RADIOCRONOLOGIA SEDIMENTAR APLICADA: IMPLICAÇÕES DA PRESERVAÇÃO DE CARBONO ORGÂNICO EM AMBIENTES LACUSTRES INTERTROPICAIS F. Fernando Lamego Simões Filho* * Instituto de Radio proteção e Dosimetria - IRD-CNEN/RJ Caixa Postal 37750 22780-160, Rio de Janeiro, RJ, Brasil RESUMO O estudo geocronológico de sondagens sedimentares utiliza largamente o decaimento radioativo de nuclídeos, como ferramenta para a datação de eventos passados. Os sedimentos lacustres constituem um registro contínuo das transformações paleoambientais experimentadas pelo ecossistema ao longo do tempo. Neste contexto, o estudo dos fluxos de carbono orgânico e sua preservação recente nos sedimentos, formando os denominados depósitos quaternários, tem grande importância como regulador do ciclo de carbono e mudanças climáticas globais. No presente estudo foram analisadas amostras de testemunhos de sedimentos lacustres da região Norte da Amazônia (centro-leste de Roraima) e da planície de inundação do Rio Mogi-Guaçu (E.E. de Jataí, SP). As amostras foram datadas através do radiocarbono (T1/2 = 5500 anos) por radiometria ß (LSC) ou aceleração de massa (AMS), de acordo com o teor de carbono orgânico, e do 210Pb (T1/2 = 22 anos) através do seu decaimento ß- (Contador Proporcional). O teor de Carbono Orgânico Total (COT) foi determinado via analisador CHN. Devido a larga variação sazonal da produtividade primária nestes sistemas, a taxa de preservação de COT apresentou valores entre 0.5 e 14 % para os lagos amazônicos e 12 e 35 % para as lagoas marginais do Rio Mogi-Guaçu, sendo os últimos, ambientes de acumulação e retenção de carbono com formação de reservatórios continentais de grande importância para regulação do clima. Por outro lado, na região Norte da Amazônia (RR), entre 8000 e 7000 anos A.P., observam-se mudanças da sedimentação e a presença de concreções que podem corresponder a episódios curtos de atuação de climas mais secos conduzindo a degradação de parte do COT. PALAVRAS-CHAVE: radiocronologia, sedimentos lacustres, ciclo do carbono e mudança climática global I. INTRODUÇÃO A radiocronologia de sedimentos é uma ferramenta aplicada ao estudo paleoambiental que experimentou um grande desenvolvimento nas últimas duas décadas, principalmente devido ao avanço tecnológico que tem permitido o uso de detetores com melhor eficiência e resolução para medição de radionuclídeos naturais presentes em baixos níveis de atividade em matrizes ambientais. Estes radionuclídeos permitem datar sequências de processos deposicionais e/ou erosivos ao longo de até 10 meiasvidas. Desta forma, o 210Pb (T1/2 = 22 anos) permite avaliar os dois últimos séculos, período em que se deram as transformações decorrentes da revolução industrial, e o 14C (T1/2 = 5500 anos) nos fornece uma escala temporal abrangendo de 1950 A.D. até o pleistoceno tardio. O funcionamento de ecossistemas aquáticos e terrestres é mantido em grande parte pelas trocas de carbono entre a atmosfera e biosfera. Em termos globais, tem sido estimado que as plantas fixam cerca de 100 Gt de carbono, dos quais 50 % retorna à atmosfera via respiração vegetal e o restante é contrabalançado pela atividade de organismos dos solos e sedimentos. A acumulação de carbono orgânico nos sedimentos representa a fração dos elementos removidos do ciclo pelágico-bentônico, assim como também aquela originada do depósito de material alóctone não reciclado [1]. A produção primária e as taxas de acumulação elevadas indicam um sistema com alta eficiência de remoção de carbono, formando reservatórios que regulam a emissão de carbono e, consequentemente, o clima. Embora o aumento da interferência antrópica no ciclo global do carbono seja um fator causador de preocupação, as emissões devido à queima de combustíveis e de biomassa (florestas) são respectivamente 20 e 50 vezes menores que a fixação via fotossíntese [2]. Entretanto, estes impactos associados têm influência sobre o clima, independentemente de sua pequena expressão quantitativa, devido ao papel que desempenham na química da atmosfera, conduzindo a graves problemas ambientais (e.g. aumento do efeito estufa, chuvas ácidas, fuligem, etc ...). II. ÁREAS DE ESTUDO Campos de Roraima. O clima atual é úmido, marcado por uma larga estação seca (6-7 meses). A região encontra-se inserida entre dois centros de alta precipitação: (1) as Guianas que recebem diretamente a umidade Atlântica trazida pelos ventos alíseos de leste e nordeste e (2) a Amazônia Central, onde encontra-se o máximo da zona de convergência intertropical. Considerando-se um nível mais amplo, os campos de Roraima estão situados em um corredor seco de orientação SE-NE, que corta a planície amazônica entre o sul do Estado do Pará e a região centro-leste do estado de Roraima. A região estudada é a mais seca deste corredor, onde há um gradiente de precipitação norte-sul, indo de 1100 mm anuais ao norte, onde se encontra a região de cerrado acatingado amazônico, até 2000 mm ao sul, correspondendo a área ocupada por florestas úmidas. Neste mosaico floresta-cerrado acham-se vários lagos ocupando as depressões suaves dos campos de Roraima, nos quais se acumulam sedimentos de idade holocênica [3]. Planície de Inundação do Rio Mogi-Guaçu. O clima atual é caracterizado como mesotérmico de inverno seco e verão úmido, com precipitação em torno de 1400 mm anuais. A porção média do Rio Mogi-Guaçu destaca-se por sua feição meândrica formando cerca de 15 lagoas marginais a partir de meandros abandonados pelo desvio de seu curso. Estas lagoas são do tipo infiltração, ligando-se ao rio apenas durante o período das cheias através do transbordamento lateral, que controla primariamente sua produção primária e acumulação de carbono [4]. III. REGISTROS SEDIMENTARES Métodos. Os testemunhos sedimentares foram coletados por vibro-testemunhadores (Roraima) acoplados a tubos de alumínio de até 3m de comprimento ou por testemunhadores gravitacionais (Mogi-Guaçu) acoplados a tubos de acrílico de 50 cm de comprimento. Os primeiros foram abertos longitudinalmente no laboratório, descritos e amostrados. Os testemunhos em tubos de acrílicos foram extrudados no campo em seções de 1 cm e a porção central das amostras foi congelada para análise. Procedimentos de Medição do 14C. Os sedimentos medidos pela técnica radiométrica foram convertidos por combustão ao benzeno (ca. 92 %C) em linha de síntese [5]. Posteriormente, a amostra foi conduzida a um espectrômetro de cintilação líquida, onde foi contada por tempo extendido e então calculada a idade correspondente a atividade medida. Os resultados derivados da espectrometria de aceleração de massa (AMS), em amostras com baixo teor de carbono, são obtidos através da redução das mesmas ao grafite (100 %C), utilizando padrões definidos [6]. Determinação do 210Pb em Excesso. Os sedimentos foram analisados pela técnica de lixiviação seletiva com 0.5N HBr em presença de agente redutor, conforme já descrito[7]. Após separação do 210Pb de origem atmosférica, as amostras foram conduzidas ao detetor proporcional de baixo nível de fundo, para contagem do decaimento ß- do seu filho direto (210Bi). Preservação de Carbono Orgânico. Os fluxos de Carbono Orgânico Total (COT) obtidos pela concentração das amostras (via analisador CHN) e as taxas de acumulação, foram comparados com a produtividade primária estimada para os vários lagos através de estudos sobre a produção fitoplânctonica, macrofítica e bentônica previamente realizados [8,9]. Desta forma, foram derivados os percentuais de preservação de carbono produzido nestes ecossistemas. IV. RESULTADOS E DISCUSSÃO O desenvolvimento de sedimentação orgânica requer um ambiente anóxico geralmente garantido pela coluna d’água do lago. Os sítios de deposição orgânica mais recentes são os ecossistemas inundáveis ainda ativos na planície do Rio MogiGuaçu e representam zonas de afloramento do lençol d’água, pelo menos durante o período imediatamente anterior ao seu transbordamento. O amplo desenvolvimento de depósitos orgânicos durante o Holoceno tardio está indubitavelmente relacionado a mudança climática em direção a um clima mais úmido e consequentemente a elevação do nível do lençol freático [10]. Estes eventos estão em acordo com outros dados paleoclimáticos que mostram a expansão das florestas tropicais durante os últimos 2000 anos A. P. [11]. Podemos observar na Fig. 1 que as taxas de sedimentação da Lagoa do Infernão para o período abrangendo os últimos 30 anos são similares, o que é demonstrado pela igual tendência dos segmentos da curva idade/ profundidade. Por outro lado, os valores de COT apresentam uma queda até aproximadamente 20 anos a partir da coleta (em torno de 1970) com um marcante aumento a partir daí. Este comportamento tem duas componentes relacionadas, a saber: (1) – Degradação anaeróbia diferencial dos depósitos orgânicos presentes nas camadas redutoras do sedimento e (2) – Aumento da carga de sedimentos orgânicos chegando as lagoas pelo transbordo marginal relacionado ao aumento da erosão dos solos e resíduos gerados pela retomada em larga escala das plantações de cana-deaçúcar na região a partir da década de 70. Desta forma, a acumulação e conseqüente preservação de sedimentos tem sido crescentes, atingindo valores de 12-35%, considerando-se que a produção primária (fitoplâncton, bentos e macrófitas aquáticas) varia anualmente de forma sazonal entre 500 e 1500 g/cm2.ano. As sondagens realizadas nos lagos de Roraima mostraram importantes variações da coluna sedimentar, atestando a ocorrência de mudanças paleoambientais. Na base das sondagens mais profundas observa-se depósitos argilosos ou areno-argilosos semi consolidados na sua parte inferior, muito parecidos com a formação geológica local (Boa Vista), que compõem a bacia de drenagem de todos os lagos. Estas camadas apresentam uma cor cinza clara e COT igual a 0,1 %. Estes depósitos podem corresponder a parte superior dos sedimentos da Formação Boa Vista, intemperizados ou retrabalhados. [3] O Lago Caracaranã, (Fig. 2) o qual apresenta o registro lacustre mais contínuo da região, mostrou um aumento das taxas de sedimentação a partir de 8000 anos A. P. e uma diminuição da mesma entre 7000 e 8000 anos A .P. com presença de concreções e diminuição do COT. O primeiro episódio corresponde a dominância de clima mais úmido (ótimo climático I D A D E P b -2 1 0 0 5 10 15 20 25 30 0 16 1 2 3 15 4 5 7 14 8 % COT PROFUNDIDADE (cm) 6 9 10 13 11 12 13 14 12 15 16 17 11 18 Figura 1: Idade 210Pb (anos a partir de 1991) e Carbono Orgânico Total (%) de um Testemunho da Lagoa do Infernão, Planície de Inundação do Rio Mogi-Guaçu (E.E. de Jataí, SP) 0 1000 0 9 20 8 40 7 60 6 80 5 100 4 120 3 140 2 160 1 180 0 PROFUNDIDADE (cm) 0 1000 2000 3000 4000 5000 6000 7000 8000 9000 % COT IDADE C-14 A.P. Figura 2: Idade 14C A. P. (antes do presente, i.e. 1950) e Carbono Orgânico Total (%) de um Testemunho do Lago Caracaranã (Parque Nacional do Caracaranã, RR). holocênico), com grande aporte orgânico e mineral refletido no aumento da acumulação e preservação de COT (14 %) e minerais detríticos [12]. A possível fase seca é atestada pela menor preservação de carbono (0,4 %) e aumento do número de carvões identificados ao microscópio que correspondem a incêndios ocasionados pela atuação, de curta duração, de um clima mais seco na região, correspondente a ocorrência do evento “younger dryas” na América do Sul [13]. [3] LAMEGO SIMÕES FILHO, F.F., TURCQ, B., CARNEIRO FILHO, A. & SOUZA, A.G., .Registros sedimentares de lagos e brejos dos campos de Roraima: Implicações paleoambientais ao longo do Holoceno, Ocupação humana, ambiente e ecologia em Roraima, p 227-237, 1997. [4] MOZETO, A.A., ALBUQUERQUE, A. & LAMEGO SIMÕES FILHO, F.F. Uso de traçadores biogeoquímicos em estudos da matéria orgânica e geocronologia da E.E. de Jataí. Anais do I Workshop Projeto Jataí, p 32-40, 1994. V. CONCLUSÃO A radiocronologia de sedimentos lacustres mostrouse uma ferramenta poderosa para a avaliação dos estoques continentais de carbono e subsídio para modelagem das mudanças climáticas que poderão ocorrer no próximo século, observando-se as trocas do ciclo de carbono ocorridas no passado geológico recente devido a variação do paleoclima Planícies de inundação intertropicais como a do Rio Mogi-Guaçu têm grande importância como reservatório continental de carbono, retendo grandes quantidades do mesmo a partir do seu transbordamento lateral e assim, funcionando como agentes reguladores do clima. Desta forma, a degradação destes ambientes poderá concorrer para aumentar significativamente as emissões de carbono para a atmosfera, alterando o clima global. A tendência geral da historia da sedimentação no Lago Caracaranã parece corroborar outros estudos realizados na América do Sul. Posteriormente ao último máximo glacial (18-15 mil anos A .P.) houve o principal desenvolvimento do lago devido a dominância do ótimo climático mais úmido (8-9 mil anos A.P.). No entanto, as condições evidenciadas durante o evento mais seco (7-8 mil anos A.P.) com rápida deterioração ambiental e perda de carbono, provavelmente estão relacionadas ao fenômeno “younger dryas”. Este evento paleoclimático está relacionado ao ciclo orbital e as forças geomagnéticas terrestres que parecem ser recorrentes durante todo o Quaternário. AGRADECIMENTOS O autor gostaria de agradecer o suporte financeiro concedido pela ORSTOM (Instituto Francês de Pesquisa Científica para o Desenvolvimento em Cooperação) para os estudos desenvolvidos em Roraima e a FAPESP pelo financiamento aos estudos desenvolvidos em São Paulo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS [1] KNOPPERS, B. Primay Production and accumulation of organic matter in some coastal lagoons. Série Geoquímica Ambiental - UFF, 1, p 97-106, 1992. 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ABSTRACT The geochronological study of sediment records often uses the natural radioisotope decay as a tool for dating paleo-events. The lake sediments provided the assessment of the paleoenvironmental changes that exposed the ecosystems during the geologic time. Thus, the study of organic carbon fluxes and its preservation, forming the namely quaternary deposits, has great importance as a carbon cycle and global climatic change guide. In the present study, lake sediment core samples from the Northern Amazon and from the floodplain of the Mogi-Guaçu River were dated by radiocarbon (T1/2 = 5500 years) or 210Pb (T1/2 = 22 years) for the last thousands or hundred years, respectively, and also it was measured the Total Organic Carbon (TOC) content. Due to the remarkable primary production seasonal variation, the TOC preservation rate showed values between 0.5-14 % for Amazon lakes and between 12-35 % for the Mogi-Guaçu river-floodplain lakes. These environments are sinks for carbon, providing continental pools that play significant rule for the climatic budget. On the other hand, it were observed, for the Northern Amazon area, sedimentation changes in the period between 8000 and 7000 years BP that probably are linked to dry short-term younger dryas events leading to partial TOC decay KEY-WORDS: radiochronology, lake sediments, carbon cycle and global climatic change.