Economia solidária: reciprocidade e capital social Gabriela Uieda* Márcia Aparecida Ferreira Campos** Resumo: Este trabalho busca discutir a relação entre empreendimentos de economia solidária e a formação de capital social por meio do princípio da reciprocidade. O capital social, que não se forma espontaneamente por condições naturais ou sociais, precisa surgir como um subproduto de outras atividades sociais, como, por exemplo, da economia solidária. Como estes empreendimentos são formados horizontamente, aumentam o custo potencial da não cooperação e formam fortes normas de reciprocidade, além de formarem cidadãos participantes, no lugar de cidadãos protegidos pelo Estado. A economia solidária vem se revitalizando desde a década de 1980, ampliando-se enquanto uma perspectiva alternativa de geração de renda. Diferentemente do cooperativismo tradicional, que se insere dentro da lógica do capitalismo, a economia solidária apresenta um discurso crítico, inserindo-se em uma lógica de solidariedade, embora continue operando dentro deste sistema capitalista e se relacionando com ele. A literatura sobre o tema distingue dois tipos de solidariedade: a solidariedade entre os membros do empreendimento, por meio da auto-gestão, e para com os trabalhadores de modo geral, por meio da ajuda aos mais desfavorecidos e pela troca de experiência entre os empreendimentos. No primeiro caso, a solidariedade está associada ao capital social do tipo bonding, enquanto, no segundo, ao tipo bridging. O conceito de capital social relaciona-se com a discussão da relação entre as esferas econômica e social. Ele representa o ponto de contato entre as duas, isto é, a permanência da influência do social em uma economia de mercado, no sentido de Karl Polanyi. Foi com a preponderância do mercado, que a esfera econômica passou a ocupar uma posição de subordinadora e não mais de subordinada em relação à esfera social, embora regiões ou setores marginalizados ou excluídos pelo mecanismo de mercado permaneçam utilizando ou passem a utilizar princípios econômicos que não o da troca. Portanto, quanto maior é a importância do estoque de capital social para a atividade econômica, maior a dependência desta em relação à sociedade, e menos importante podem se tornar as trocas por meio do mercado, predominando os princípios de reciprocidade, quando informais, ou de redistribuição, quando formalizados no aparelho do Estado, ambos relacionados à existência de solidariedade e capital social, sendo, com isso, decisiva a importância destes para o desenvolvimento em situações em que o mercado não consegue resolver os problemas de alocação por si próprio, ou quando os agentes estão insatisfeitos com a alocação promovida por esta instituição. Parágrafo muito longo. Palavras-chave: solidariedade, reciprocidade, capital social bonding e bridging. * ** Aluna do Mestrado em Economia do Desenvolvimento (PPGE), UFRGS, bolsista do CNPq. Aluna do Mestrado em Economia do Desenvolvimento (PPGE), UFRGS, bolsista da Capes. 1 Introdução A economia solidária vem se revitalizando desde a década de 1980, ampliando-se enquanto uma perspectiva alternativa de geração de renda. Suas definições são múltiplas, tendo em comum a solidariedade. Apesar disto, sendo ela entendida como uma nova forma de política de emprego, como um modo alternativo de organização econômica, como formadora de capital social, ou mesmo como um espaço para o desenvolvimento da democracia, ela levanta grandes esperanças e não pode mais ser considerada como um fato social marginal (LALLEMENT e LAVILLE, 2000). Para o desenvolvimento de regiões e setores marginalizados, a relação da economia solidária com o capital social pode trazer indicações interessantes. O conceito de capital social relaciona-se com a discussão da relação entre as esferas econômica e social. Ele representa o ponto de contato entre as duas, a influência do social na economia no seio de uma sociedade de mercado, no sentido de Karl Polanyi. Foi com a preponderância do mercado, que a esfera econômica passou a ocupar uma posição de subordinadora e não mais de subordinada em relação à esfera social, embora regiões ou setores marginalizados ou excluídos pelo mecanismo de mercado permaneçam utilizando ou passem a utilizar princípios econômicos que não o da troca. Quanto maior é a importância do estoque de capital social para a atividade econômica, maior a dependência dela em relação à sociedade, e menos importante podem se tornar as trocas por meio do mercado, predominando os princípios de reciprocidade, quando as relações são informais, ou de redistribuição, quando são formalizadas no aparelho do Estado. A utilização de princípios diferentes da troca – embora, às vezes, em consonância com esta – é o cerne da economia solidária. Outro ponto toca os dois temas. A literatura sobre economia solidária distingue dois tipos de solidariedade: a solidariedade entre os membros do empreendimento, por meio da auto-gestão, e para com os trabalhadores de modo geral, por meio da ajuda aos mais desfavorecidos e pela troca de experiência entre os empreendimentos. Por outro lado, a literatura distingue dois tipos de capital social: o capital social do tipo bonding, pessoas mais próximas, que pode ser associado à solidariedade entre os membros do empreendimento; o capital social do 2 tipo bridging que pode ser associado à solidariedade entre os trabalhadores de modo geral. Na primeira parte do trabalho, será discutida a relação entre economia solidária e capital social, como os empreendimentos de economia solidária podem cooperar à formação do capital social e como este pode ser importante para o surgimento e manutenção da economia solidária. Na parte seguinte, reciprocidade e capital social serão aproximados por meio da discussão da economia solidária. Já na última parte, abordaremos os tipos de capital social e os tipos de solidariedade. Economia solidária e capital social Capital social já é um termo que não mais soa estranho aos cientistas sociais, inclusive aos economistas, depois dos trabalhos seminais de autores como Robert Putnam. Não só por ser uma abordagem ainda nova para a compreensão de realidades e a busca de políticas, mas por já se ter mostrado de grande valia, a abordagem do capital social merece consideração por parte de quem se interessa por desenvolvimento regional. Além disso, apresenta-se como importante intermediário para a compreensão da solidariedade dentro da economia, e como possível princípio organizador de um empreendimento econômico. A economia solidária, portanto, como manifestação da existência de capital social, tem o poder de gerar um espiral que se auto-alimenta, ou seja, ao mesmo tempo em que os empreendimentos de economia solidária utilizam-se de capital social para sua formação e existência, podem gerar mais capital social devido à formação de novas conexões sociais. De acordo com a definição de Bourdieu (1980, p.2) capital social é [...] o conjunto de recursos reais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e de inter-reconhecimento; ou, em outros termos, ao pertencimento a um grupo, como um conjunto de agentes [...] unidos por ligações permanentes e úteis 1. 1 No original: “[...] l’ensemble des ressources actuelles ou potentielles qui sont liées à la possession d’un réseau durable de relations plus ou moins institutionalisées d’interconnaissance et 3 A partir da formulação do conceito, surgiu a dificuldade de sua aplicação, ou seja, como medir o capital social? Outras formulações surgiram, com alguns pontos teóricos diferenciados; a de Putnam foi uma delas, que acabou ganhando destaque. Retomaremos então, algumas questões de destaque sobre o capital social, com ênfase na obra de Putnam (que se voltou a este tema a partir de uma grande pesquisa empírica e histórica sobre as diferenças regionais da Itália, desenvolvida a partir da reforma regional ocorrida neste país em 1970), bem como algumas críticas à sua abordagem. Defende-se que o capital social2 é de extrema importância para o desenvolvimento econômico e o real funcionamento da democracia. Em consonância com Putnam (1996), o estoque de capital social presente em um dado espaço é a variável-chave para que se possam driblar os dilemas da ação coletiva: um ambiente com um maior estoque de capital social, onde, portanto, se manifestam normas de reciprocidade (de cunho moral, não necessariamente legal) em redes sociais, e sistemas de participação cívica, consegue se desvencilhar melhor de tais dilemas, ao ser um ambiente onde a cooperação entre os indivíduos se dá de forma espontânea e de melhor qualidade. O autor considera o capital social como se referindo a “características da organização social, como confiança, normas e sistemas, que contribuam para aumentar a eficiência da sociedade, facilitando as ações coordenadas” (PUTNAM, 1996, p. 177)3. No que tange em específico à confiança, o autor defende que ela é um ingrediente fundamental do capital social, ao permitir que haja cooperação entre os agentes e esta, por sua vez, promova, em retorno, mais confiança. Outro ponto inescapável ao se estudar o tema do capital social refere-se ao fato de que suas manifestações são consideradas como sendo recursos que, diferentemente do capital físico, se vêem aumentados ao serem consumidos: seu estoque é cumulativo e auto-reforçador (PUTNAM, 1993; PUTNAM e FELDSTEIN, 2003); por outro lado, ao ficarem ociosos, se esvaem. É nesse sentido que se pode afirmar que “quanto mais duas pessoas confiam uma na outra, maior a sua d’interreconnaissance ; ou, en d’autres termes, à la apartenance à un groupe, comme ensemble d’agents [...] unis par des liasons permanentes et utiles”. 2 É interessante notar, como afirmado por Monasterio (2002), que a abordagem da Nova Economia Institucional foi crucial para a constituição do enfoque do capital social. 3 Conforme o trabalho do Office for National Statistics (2001), Putnam afirma que o capital social, ao contrário do capital humano, não é um atributo do indivíduo, e sim um atributo de uma rede social como um todo. 4 confiança mútua” (PUTNAM, 1996, p. 179), ao passo que, em um ambiente onde reina a desconfiança, esta tende a se perpetuar, vez que se auto-alimenta. É importante depreender disto que, portanto, a riqueza ou a pobreza de capital social gera círculos virtuosos ou viciosos, respectivamente: a carência de vínculos de integração social pode engendrar manifestações de desmantelamento da vida social, como pobreza e crime, e estas manifestações por sua vez arruínam laços sociais (PUTNAM e FELDSTEIN, 2003). Putnam (1996) assevera que as regras que levam ao fortalecimento da confiança social, como as normas de reciprocidade, são eficazes devido ao fato de reduzirem os custos de transação e facilitarem a cooperação. A reciprocidade, em especial a reciprocidade generalizada (voltada a quaisquer pessoas, e que não espera retorno idêntico e imediato ao favor prestado), é um elemento-chave do capital social, pois onde esta norma impera existem maiores chances de se resolver os problemas de ação coletiva, como o oportunismo. Os investimentos em todas as formas de capital, físico, humano, financeiro e social, se complementam, não sendo concorrentes entre si, pois o investimento em capital social tem o poder de potencializar os resultados dos investimentos nos outros tipos de capital. Ademais, o capital social, em suas várias nuances, é um bem público, que tende a ser oferecido em quantidades sub-ótimas do ponto de vista social; nesse sentido, deve ser gerado como uma externalidade de interações sociais4 (PUTNAM, 1993). Depreende-se, então, que uma atividade econômica que incentive a interação entre indivíduos pode levar à formação de capital social. Ao invés da formação de grupos que criariam capital social, que, por sua vez, contribuiria para a atividade econômica, um empreendimento de economia solidária poderia reunir ao mesmo tempo o grupo e a atividade econômica. O termo economia solidária tem diversas definições. Todas elas, no entanto, têm em comum a idéia de solidariedade. Esta ocorre em dois sentidos: para com os membros da organização, seja ela de produção, consumo, crédito ou outros, por meio da auto-gestão; para com os trabalhadores, por meio da ajuda aos mais desfavorecidos (SINGER, 2003), ou seja, aqueles que se encontram marginalizados do mercado de trabalho ou que estão descontentes com o trabalho num empreendimento capitalista. Quanto à auto- 4 “Members of Florentine choral societies participate because they like to sing, not because their participation strengthens the Tuscan social fabric. But it does” (PUTNAM, 1993, p.37). 5 gestão, ela significa que os trabalhadores têm direito a participar da gestão da empresa, direito este independente do cargo ocupado na empresa. A literatura sobre a economia solidária aponta que a finalidade deste modo de organização econômica não é somente uma alternativa de emprego para os excluídos da economia capitalista, mas também a conscientização dos trabalhadores e sua formação enquanto cidadãos, expandindo a democracia por meio de sua participação na gestão dos empreendimentos5. Uma das formas de se ver como estão ligados os conceitos de capital social e economia solidária é o resultado potencial que suas existências têm sobre a democracia, via o contato entre pessoas numa relação não hierárquica, ao alimentar a atuação e a tomada de decisões em pé de igualdade entre as pessoas. Nesse sentido, o foco é nos movimentos emancipatórios para a sociedade civil, que buscam o aprofundamento da democracia política e sua extensão à democracia econômica como uma forma de tornarem-se mais evidentes as distribuições de papéis entre a sociedade civil e o Estado, passando-se do cidadão protegido pelo Estado para o cidadão participante. Quanto à democracia, o conceito evoluiu de sua forma direta na Grécia Antiga para a democracia representativa de Tocqueville. Na sociedade contemporânea, quando grande parte dos países tem algum grau de democracia representativa como forma de governo, a discussão passou para um entendimento mais extenso do termo, atingindo também a sociedade civil, “da escola à fábrica” (BOBBIO, 1987). Alexis de Tocqueville, observando a sociedade norte-americana na primeira metade do século XIX, ficou maravilhado com a democracia deste país em relação à condição de sua França. Com estas comparações, explica a necessidade da formação de associações numa sociedade em que os laços sociais em relação a status são enfraquecidos com a igualdade legal de seus cidadãos. Nas sociedades aristocráticas, estes homens não precisam se reunir a fim de atuarem, porque estão fortemente ligados uns aos outros. Cada cidadão rico e poderoso constitui uma associação permanente e compulsória composta de todos os que dele dependem ou dos que submete para a execução de seus desígnios. Nas nações democráticas, pelo contrário, todos os cidadãos são independentes e fracos; mal podem fazer seja o que for, por si próprios, e nenhum pode obrigar seus concidadãos a prestar-lhe ajuda. Todos, portanto, se tornam impotentes, se não aprenderem, 5 Ver Santos (2002) e Singer (2002). 6 voluntariamente, a ajudarem-se uns aos outros (TOCQUEVILLE, 1969, p. 230). Entretanto, a cooperação entre pessoas não é algo evidente e, inclusive, segundo Putnam (1996), não cooperar para benefício mútuo não é necessariamente ignorância ou irracionalidade, mas ela ocorre mais do que o previsto pela teoria econômica tradicional, sendo necessário observar o contexto social em que a interação ocorre, pois a cooperação voluntária é mais fácil em uma comunidade com alto estoque de capital social, formado por normas de reciprocidade e redes de engajamento cívico. Para ele, o capital social facilita a coordenação de ações por cooperação espontânea, dado que as redes sociais permitem que o conhecimento torne-se transitivo e abrangente. O capital social é um bem público e, portanto, tende a ser subavaliado e subofertado por agentes privados, precisando surgir como um subproduto de outras atividades sociais, como, por exemplo, da economia solidária. O capital social, entretanto, não pode ser considerado como dado, ele não se forma espontaneamente por condições naturais ou sociais, ele se forma e se mantém por um processo de realimentação das relações sociais entre os indivíduos (BOURDIEU, 1980). As cooperativas pertencem ao que Putnam denomina redes de engajamento cívico. Estas redes aumentam o custo potencial da não cooperação e formam fortes normas de reciprocidade. A vantagem da economia solidária, em relação a uma empresa capitalista, é sua organização horizontal de auto-gestão. Com esta organização, todos os trabalhadores têm o mesmo status dentro da cooperativa, podendo haver confiança e cooperação. Essa estrutura transporta a discussão da democracia do nível macro para o micro, isto é, ao nível dos empreendimentos e associações. Numa organização vertical, no entanto, isto não ocorre. “Um sistema vertical, por mais ramificado e por mais importante que seja para seus membros, é incapaz de sustentar a confiança e a cooperação sociais”. (PUTNAM, 1996, p. 184). A impossibilidade de se estabelecerem relações de confiança e cooperação decorre, principalmente, da dificuldade de punição de um superior, caso ele tenha um comportamento free rider. Embora o capitalismo e a democracia tenham, possivelmente, tido vantagens, em relação ao feudalismo e à autocracia, por sua organização mais horizontal da sociedade, como proposto por Putnam, essa organização não foi transposta à 7 empresa capitalista, que, normalmente, possui uma estrutura hierárquica em algum grau. Por outro lado, em um empreendimento de economia solidária, a auto-gestão possibilita uma organização horizontal, sendo a administração subordinada às decisões dos trabalhadores. Putnam considera o papel desempenhado pelo conceito de path dependence para explicar por que alguns lugares trilham um caminho que culmina em grande estoque de capital social enquanto outros não, indicando que a dependência da trajetória repercute no desenvolvimento econômico e político. Para comunidades carentes de capital social, o autor não nega que uma mudança em tal quadro é um processo difícil e lento, uma vez que tal carência parte de tradições arraigadas nessas comunidades, em geral, desde longa data. Menos difícil, no entanto, pode ser a solidariedade estabelecida entre grupos menores, como, por exemplo, uma associação ou empreendimento de economia solidária, do que em toda a sociedade, que podem atrair novos adeptos conforme vão demonstrando seus resultados. Solidariedade e reciprocidade Conforme é lembrado por Monasterio (2002), o enfoque de Putnam sobre o capital social está compreendido no nível 1 da análise institucional desenvolvida por Williamson (2000), nível constituído pelas regras informais, categoria que consideraria para estudo normas, valores e tradições sociais, elementos básicos em que se inserem as demais instituições: é o “embeddedness level”, que estuda o pano de fundo em que se processam as ações e interações entre os indivíduos e onde se erguem os demais níveis institucionais. Neste nível institucional de análise, que engloba o capital social, a mudança é um processo lento, e daí adviria a maior dificuldade de se usar este capital como instrumento para o desenvolvimento. Também para Carroll e Stanfield (2003), o capital social pode estar relacionado ao nível de embeddedness da economia. Este termo origina-se dos trabalhos de Karl Polanyi sobre a relação entre as esferas econômica e social ao longo da história. Para o autor (POLANYI, 2000), somente na Europa do século XIX o mercado teve preponderância nas relações econômicas, pois em todos os outros momentos da história, outros princípios, que apresentavam importância diferenciada 8 em cada período, regulavam estas relações e eram facilitados, cada um, por uma forma de organização da sociedade. Os princípios são: a reciprocidade, facilitada por um padrão simétrico de organização; a redistribuição, por alguma centralização; a domesticidade, pela autarquia. Com a preponderância do princípio da troca e, com ele, de sua instituição que é o mercado, ocorreu uma redução do embeddedness da economia. O conceito de capital social relaciona-se à discussão da relação entre as esferas econômica e social. Ele representa o ponto de contato entre as duas, isto é, a permanência da influência do social em uma economia de mercado, no sentido de Karl Polanyi. Foi com a preponderância do mercado que a esfera econômica passou a ocupar uma posição de subordinadora e não mais de subordinada em relação à esfera social, embora regiões ou setores marginalizados ou excluídos pelo mecanismo de mercado permaneçam utilizando ou passem a utilizar princípios econômicos que não o da troca. Por conseguinte, quanto maior é a importância do estoque de capital social para a atividade econômica, maior o seu nível de embeddedness, ou seja, da dependência desta em relação à sociedade. Ademais, quanto maior o estoque de capital social, menos importantes podem se tornar as trocas por meio do mercado, predominando os princípios de reciprocidade, quando as relações são informais, ou de redistribuição, quando formalizadas no aparelho do Estado. Ambos os princípios estão relacionados à existência de solidariedade e capital social, sendo, com isso, decisiva a importância destes para o desenvolvimento em situações em que o mercado não consegue resolver os problemas de alocação por si próprio, ou quando os agentes estão insatisfeitos com a alocação promovida por esta instituição. A economia solidária, pela definição de Singer (2000), passa por uma junção de relações de mercado com o princípio de reciprocidade: a reciprocidade nas relações internas, dado que a organização simétrica facilita este princípio; as relações de mercado, na comercialização de seus produtos. Na comercialização, Singer, inclusive, defende que a concorrência com as empresas capitalistas seria benéfica, dado que impediria a preservação de ineficiências, o que poderia ocorrer com a comercialização por meio de um comércio solidário ou justo. Neste tipo de comércio, há um compromisso entre os produtores e os consumidores. Enquanto os produtores se comprometem com princípios, como, por exemplo, a organização democrática da produção, os consumidores se comprometem em buscar 9 informações quanto à produção, garantindo o cumprimento destes princípios, e em pagar um preço mais justo pelos produtos, no sentido de um preço que seja suficiente para a reprodução material do produtor. O receio de Singer decorre do fato de que a parcela da população disposta a, ou capaz de, estabelecer este compromisso e de pagar um preço mais elevado pelos produtos seria pequena, limitando o crescimento da economia solidária. Vale, por fim, mencionar que a definição de economia solidária, no caso, economia social e solidária, de Laville (LAVILLE, 2002; FRANÇA FILHO e LAVILLE, 2004; EME, LAVILLE e MARECHAL, 2006) é mais abrangente e agrega, além dos empreendimentos de junção da lógica da troca e da reciprocidade, empreendimentos com somente a segunda lógica, como, por exemplo, os serviços de proximidade. Estes são serviços realizados entre pessoas próximas e que não passam por relações monetárias, pois dependem, exatamente, desta proximidade entre os participantes, sejam eles executores dos serviços ou os beneficiados. Apesar das diferenças de definição, os dois – ou três, se incluímos os empreendimentos que comercializam seus produtos ou serviços por meio do comércio solidário ou justo – tipos de empreendimentos são, todos eles, pelo menos potencialmente, estabelecedores de laços entre os participantes, alimentando o capital social e podendo trazer outros benefícios decorrentes disto, outras manifestações do capital social. Tipos de solidariedade e tipos de capital social Dada a forte relação entre os conceitos de capital social e economia solidária, é interessante notar que diferenciações e conceitos específicos destes temas também se comunicam entre si, se identificam. Conforme Putnam (1996), as formas de relacionamento social existentes em uma sociedade caracterizam-se, de maneira geral, por serem horizontais (“sistemas reticulados”) – em que seus integrantes têm o mesmo poder e status – ou verticais (“sistemas hasteados”) – em que os agentes interagem entre si por meio de relações assimétricas em termos de poder e hierarquia, e em que, portanto, existe 10 dependência. Estas últimas formas não são eficientes para o desenvolvimento do capital social, uma vez que as informações obtidas entre hierarquias diferentes não são tão confiáveis quanto as obtidas de forma horizontal; ademais, “as sanções que resguardam as regras de reciprocidade da ameaça do oportunismo dificilmente são impostas de baixo para cima e, ainda que o sejam, dificilmente são acatadas” (PUTNAM, 1996, p. 184). Por outro lado, os sistemas de participação cívica são exemplo básico das relações horizontais, e representam por isso um tipo fundamental de manifestação do capital social. Para o autor, os sistemas horizontais são tão importantes porque eles: i) fazem com que os custos de oportunidade de uma eventual transgressão de um determinado indivíduo às regras sejam maiores, por representarem um jogo iterativo; ii) “promovem sólidas regras de reciprocidade” (PUTNAM, 1996, p. 183); iii) fazem com que seja tornada pública a (boa) reputação dos seus integrantes, estimulando o bom comportamento e em conseqüência a confiança e a cooperação e iv) criam uma continuidade na utilização de formas de colaboração que se mostraram eficazes como soluções para problemas anteriores, funcionando como modelos aplicáveis a outros contextos. Tendo como base esta diferenciação, Putnam e Feldstein (2003) diferenciam dois tipos de capital social: i) capital social bonding encerra laços entre pessoas de mesma posição social, isto é, com muito em comum: “são grupos homogêneos, voltados ‘para dentro’, nos quais as identidades dos membros são reforçadas” (MONASTERIO, 2002, p. 30). É a modalidade que remete diretamente ao conceito de “laços fortes” de Granovetter (1973; 2005), em que a proximidade dos agentes engendra um relacionamento de lealdade e reciprocidade entre os membros dos grupos. Exemplos constituintes dessa modalidade são os laços familiares ou de amizade mais íntima. ii) capital social bridging, ou “laços fracos” na terminologia de Granovetter, definem relacionamentos entre pessoas de grupos sociais diferentes. Por esta forma de capital social transcender limitações de classe social, de etnia e de ocupação, ela permite uma integração entre um grupo maior de pessoas, sendo, portanto, mais abrangente e mais diversa. A relação que se estabelece é de confiança entre pessoas não necessariamente próximas dentro de seu ambiente de convívio mais imediato, e o que permite, com isso, a circulação em uma 11 dimensão maior de informações sobre a confiabilidade dos membros e sobre potenciais oportunidades. Incluem-se como exemplos desta forma de capital social movimentos de direitos civis, e organizações religiosas ecumênicas. No que concerne a estas formas de capital, tem-se que, [...] como observou Granovetter, os vínculos interpessoais “fortes” (como parentesco e íntima amizade) são menos importantes do que os vínculos “fracos” (como conhecimentos e afiliação a associações secundárias) para sustentar a coesão comunitária e a ação coletiva (PUTNAM, 1996, p. 185). Putnam e Feldstein (2003) afirmam que tanto o capital bonding como o bridging são importantes para os atores sociais enquanto indivíduos, mas o segundo é destacadamente importante para harmonizar democracia e diversidade, ao mesmo tempo em que esta modalidade de capital social não se desenvolve de forma tão automática quanto o primeiro pode se formar. Esta consideração sobre a nomenclatura dos tipos de capital social contribui para tornar mais evidente que [...] mesmo alguns aspectos da vida comunitária que aparentemente não têm relevância econômica direta, como a participação ativa em associações de diversos tipos – como clubes de serviços e entidades com objetivos culturais ou esportivos – passaram a ser considerados relevantes para explicar o desenvolvimento, na medida em que ajudam a aproximar os membros da comunidade, fortalecendo os laços existentes entre eles e tornando-os culturalmente mais propensos a colaborar no sentido de enfrentar problemas comuns (CÉSAR e BANDEIRA, 2001, p. 39). A solidariedade é um termo de difícil compreensão para economistas, que pode, no entanto, ser aproximado do termo capital social. Essa aproximação ocorre tanto com o capital social do tipo bonding, quando a solidariedade ocorre entre os trabalhadores de um mesmo empreendimento, quanto com o do tipo bridging, quando ocorre entre os trabalhadores de modo geral. Assim como Putnam e Feldstein (2003) e Granovetter (1973) ressaltam a importância deste último, Santos (2002) ressalta a importância do diálogo entre as organizações de economia solidária. A solidariedade pode ser entendida de muitas formas: como um acordo implícito entre os indivíduos de um grupo; como o sentimento de indivíduos de um grupo para com indivíduos de outro grupo que se encontram em situação pior que os do primeiro; ou como os dois sentidos (KRITIKOS et al., 2006). No caso da 12 economia solidária, as duas formas de solidariedade são importantes, assim como os dois tipos de capital social o são. A solidariedade dentro do próprio grupo, ou seja, do mesmo empreendimento de economia solidária é importante para permitir o seu funcionamento e para que não acabe adotando práticas capitalistas e perdendo seu caráter de auto-gestão. A solidariedade entre os trabalhadores de modo geral destaca-se por contribuir para a inclusão de mais pessoas nesta economia. Além disso, a troca de experiências entre os empreendimentos, como destaca Santos (2002), é fundamental principalmente nesta fase de revitalização da economia solidária, permitindo a inovação e a correção dos erros cometidos. O tipo de solidariedade entre os trabalhadores de um mesmo grupo pode exigir, não obstante, mais confiança do que entre um grupo familiar ou de vizinhos (ligados pelo capital social do tipo bonding); assim como a solidariedade entre os trabalhadores de modo geral pode exigir menos confiança que entre grupos diferentes (ligados pelo capital social do tipo bridging), pois podem pertencer a uma mesma categoria. Apesar de a relação entre os dois tipos de capital social e os dois tipos de solidariedade não ser sempre perfeita, a existência da relação aponta para a forte conexão entre os dois assuntos, e os argumentos a favor dos dois tipos de capital social e de solidariedade coincidem, demonstrando a necessidade de coesão interna – importante para o funcionamento do grupo –, ao mesmo tempo que de introdução do fator novo – importante para quebrar um círculo vicioso. Considerações finais Estudar o capital social é um assunto instigante, e que foi deixado de lado pelos economistas por um bom tempo. A demora em se estudar o capital social é uma prova de como a economia perde por não unir forças com a ciência política e a sociologia, por exemplo. Ademais, esta demora pode em parte ser atribuída ao individualismo metodológico da teoria econômica convencional, que não leva em conta que, como em relação ao capital social, o todo não é necessariamente igual à 13 soma das partes6. Enquanto, na teoria, começou-se a perceber a importância do capital social, na prática, sua relação com a economia solidária pode apresentar-se como alternativa para o desenvolvimento regional. Regiões ou setores marginalizados ou excluídos pelo mecanismo de mercado permanecem utilizando outros princípios que não o da troca, ou passam a utilizá-lo para preencher as lacunas deixadas pelo mercado. Com isso, maior é a importância, nestas regiões ou setores, do estoque de capital social para a atividade econômica. Portanto, é decisiva a importância da solidariedade e do capital social para o desenvolvimento em situações em que o mercado não consegue resolver os problemas de alocação por si próprio, ou quando os agentes estão insatisfeitos com a alocação promovida por esta instituição. Aí, então, abre-se uma brecha para as políticas de desenvolvimento regional, que, ao invés de incentivar a participação no mercado, poderiam incentivar a organização nos modelos de economia solidária. 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Desenvolvimento Regional, Cultura Política e Capital Social: pesquisa empírica como subsídio à atividade parlamentar 6 Nesse sentido é importante considerar que “duas contribuições da Teoria dos Jogos foram marcantes para que o conceito de capital social fosse incorporado pelo mainstream: a Teoria dos Jogos permitiu que a ortodoxia superasse a análise atomizada dos indivíduos e legitimou o estudo das interações entre os agentes” (MONASTERIO, 2002, p. 17). 14 no Rio Grande do Sul. Relatório de Análise de Resultados. Porto Alegre, LABORS/IFCH/UFRGS. 2001. 66p. EME, B; LAVILLE, J.-L.; MARECHAL, J.-P. Economie solidaire : illusion ou voie d’avenir? ATTAC - Association pour la Taxation des Transactions pour l’Aide aux Citoyens. Disponível em: <http://www.attac.org/fra/list/doc/ eme.pdf> (acesso em: 9 de maio de 2006) FRANÇA FILHO, G. C. de; LAVILLE, J.-L. A economia solidária: uma abordagem internacional. Porto Alegre: UFRGS, 2004. FUKUYAMA, F. 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