O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A CONCRETIZAÇÃO DAS
POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL: UM DESAFIO À SUA GARANTIA E
ACESSIBILIDADE.
Adailson Lima e Silva1
Maria das Graças M. do Amaral Garcia2
RESUMO
O modelo econômico estruturou relações sociais fundadas em diferentes classes
sociais. Toda a produção passa a se estruturar sobre a expropriação do trabalho
humano e acúmulo de riqueza nunca visto ou experimentado pelo homem. Esta
exploração faz surgir o debate sobre o tema do bem-estar, questionando-se o que
fazer com uma população pobre e destituída de condições materiais de existência
que precisa ter acesso a uma vida digna e ter os seus direitos reconhecidos. Na
outra ponta, a negação desses direitos pela estrutura econômica enseja a
elaboração de uma legislação protetora na qual figura um Estado mediador, com
legitimidade para intervir na sociedade através de um conjunto de medidas
sociojurídicas e econômicas que trouxesse equilíbrio nas relações sociais e de
poder. Nesse contexto, a estruturação de uma Política Pública responde aos anseios
de um mínimo social e possibilita uma distribuição de riquezas através da concessão
de benefícios e serviços por um Estado legitimado e garantidor das condições e dos
meios de vida considerados como sendo direitos individuais, sociais e políticos.
Emerge, assim, uma dinâmica interna estatal cujos pressupostos se fundam em
reconhecer a matéria das Políticas Públicas à luz dos direitos fundamentais, abrindo
a possibilidade de diálogo no ordenamento jurídico, considerando a interface que
estas políticas estabelecem com a Constituição Federal, em especial, da íntima
relação entre os princípios que norteiam a aplicação da norma jurídica. Neste
sentido, a importância de se apresentar uma reflexão sobre as bases constitucionais
que orientam a implantação de Políticas Públicas e a utilização do Mandado de
Segurança e da Ação Declaratória Incidental de Inconstitucionalidade para a sua
acessibilidade.
1 Professor doutor do Curso de Pós Graduação em Direito Processual pela Fundação de Ensino Superior de
Ituiutaba - FEIT/ Universidade Estadual de Minas Gerais - UEMG. Advogado.
2 Especializanda em Direito Processual pela Fundação de Ensino Superior de Ituiutaba - FEIT / Universidade
Estadual de Minas Gerais – UEMG.
Palavras – chave: Estado. Políticas Públicas. Mandado de Segurança. Ação
Declaratória Incidental de Inconstitucionalidade.
1. A MUDANÇA NO PARADIGMA DE CONCEPÇÃO DO ESTADO: DO ESTADO
DE DIREITO AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: UMA INTERPRETAÇÃO
DO SISTEMA GARANTISTA BRASILEIRO DOS DIREITOS HUMANOS
FUNDAMENTAIS.
1.1 A visão de Estado no Liberalismo Econômico e o tratamento às questões
sociais.
A sociedade ocidental, na forma como se encontra hoje é o resultado de
uma construção civilizatória, a qual deu origem ao atual sistema de valores e organização política, jurídica, social e econômica, estabelecendo uma permanente tensão
entre o indivíduo e a coletividade, concorrendo para o surgimento de interesses variados como o político, o cultural e o ideológico, os quais põem em risco as estruturas
sociais existentes.
Para regular este conflito de interesses, específicos em cada conjuntura
histórica, procurou-se uma ordem jurídico político que consolidasse a gestão e a regulação da vida em sociedade, emergindo o Estado. Pensar a dinâmica da estruturação do Estado e, em especial, a mudança paradigmática de sua concepção é abrir
espaço para um debate mais aberto e flexível sobre esta complexa problemática acerca da sua existência e sua finalidade precípua, ainda mais quando a sua criação
foi eminentemente humana.
Em sociedades menos complexas, a exemplo dos bandos nômades, a ideia
de política e Estado não encontravam amparo. A autoridade se dava por uma pessoa ou grupo de pessoas que exerciam a liderança e eram responsáveis pela tomada de decisões, cujos efeitos repercutiam para todos daquele núcleo social. Era uma
forma de manter o grupo coeso e obediente às normas.
A noção de Estado e política como sendo a participação dos cidadãos nas
discussões sobre os destinos das cidades foi uma contribuição das Sociedades Antigas, em especial, Grécia e Roma que trouxeram a “noção de sociedade organizada
e governada por instituições de poder, de mediação das relações dos cidadãos entre
si e com o Estado por meio de leis escritas.” (MOURA, p.104).
Percebe-se que o Estado já se afigura como um “ente” que traz a função de
exercer as atividades políticas, administrativas e mediadoras das cidades já com
ideais de liberdade e democracia, mas mesmo assim ainda é um Estado autoritário,
visto que a liberdade e a estrutura de classe e poder pertenciam a poucos.
Como todo processo social e histórico possui sua dinâmica, no bojo destas
sociedades surgiram os pressupostos para a construção de um novo modelo de sociedade – a Sociedade Feudal, cuja base territorial e política se consolidavam nos
feudos, os quais criavam suas próprias leis, uma espécie de direitos locais e aplicavam-nas a todos os casos e a todas as pessoas. Apesar de serem independentes
em relação aos aspectos das regras de convivência os feudos deviam obediência a
uma lei geral emanada de um poder central a que estavam política e juridicamente
ligados, no caso, a Monarquia e a Igreja.
Neste período, muitos abusos foram cometidos em nome de um Estado Absolutista e Monárquico; verdadeiros atentados à pessoa humana através de práticas
sacrificialistas que submetiam as pessoas e seus familiares às mais variadas torturas, expropriação de bens e condenação sem processo.
Não menos diferente, a transição do pensamento absolutista para o pensamento liberal também se iniciou no seio do feudalismo. O inconformismo com a utilização de leis divinas para explicar os fenômenos sociais e políticos, a exploração,
os impedimentos de ascensão de classe social, o desenvolvimento e a expansão
comércio e as diversas guerras levaram a novos questionamentos e críticas ao Estado existente bem como em relação à interferência da Igreja em assuntos que seriam da competência deste.
Colocando-se na vanguarda do movimento intelectual que iniciaria o pensamento político moderno, Nicolau Maquiavel explicita e denuncia esta interferência
religiosa em assuntos que seriam exclusivos da determinação estatal. Em sua análise explica que a doutrina católica, no afã de exercer um poder paralelo ao do Rei ao
mesmo tempo em que desejava torná-lo uma instituição, delimitou o seu poder, cabendo a ela a autoridade do Papa em decidir e julgar sobre questões da moral e religiosa. Para Maquiavel, que estudava sobre a Política, a atuação do Estado deveria
ser desvinculada da doutrina política que se apoiasse em explicações teológicas, ou
seja, da Igreja e “defendia a ideia de que as liberdades civis eram a chave para a
constituição de uma forma republicana de governo”. (MOURA, p.11 8).
A presença atuante de movimentos sociais, intelectuais e políticos levou a
um novo pensar e fazer humano, como forma de reação ao absolutismo e tudo o
que o acompanhava. Exemplos destes movimentos foram o Iluminismo ou Época
das Luzes ou Ilustração, o Renascimento e as Revoluções Francesa e Industrial.
O Iluminismo afirmava uma confiança no desenvolvimento, propugnou pelo
livre pensamento; acentuou as discussões em torno da teoria dos direitos humanos
e defendeu a cidadania centrada na liberdade e na defesa burguesa da propriedade.
O Renascimento floresce na Europa em reação à ideologia cristã que subordina o homem a todo tipo de dominação, submetendo-o a uma condição de sofrimento, determinismo e estratificação social, sem qualquer possibilidade de mobilidade social. Ele contraria a esta condição de status quo e reivindica o lugar do homem no centro do universo. Agora, o homem é sujeito da sua história com todo o
direito de aspirar por outra condição social e política, pela aquisição de conhecimentos e respeito por sua condição humana.
Também reagindo ao absolutismo monárquico, a Revolução Francesa significou uma mudança política qualitativa na História com o referencial principiológico
de igualdade, liberdade e fraternidade que conferiu a passagem do paradigma de
um regime de Estado Absoluto para o surgimento do ideário de um Estado que primasse pela preservação da dignidade humana.
A Revolução Industrial, ainda em meados do século XIX, promove uma ruptura com o modelo tradicional de produção arcaica, introduzindo novas tecnologias,
inovando na forma de produzir e provocando mudanças no mercado e na concepção
de homem.
Todos esses movimentos se constituíram em uma ideologia de contestação
ao Estado Absolutista levando a um conjunto de reflexões sobre a atividade estatal e
a reestruturação do Estado nação como sendo um estado mediador civilizador (Carnoy, 1987 apud Bhering, p.22), pois tendo o homem uma liberdade absoluta queira
exercer o poder ilimitadamente e queira obter bens e vantagens indefinidamente.
Somente o Estado poderia dirimir este conflito e proteger os homens da condição de
lobo do próprio homem, impondo normas de controle social.
Para a superação deste Estado absolutista, há a orientação de John Locke,
o qual reconhece que é preciso uma sociedade política diversa dos moldes de uma
monarquia absoluta. Defende uma autêntica esfera de um poder político que vise o
interesse da coletividade, assentando suas bases por um consentimento de vonta-
des plurais, defendendo valores fundamentais e consagrados pela sociedade como
a liberdade, a vida e a propriedade, base de uma sociedade justa – uma sociedade
civil.
Nesta linha de pensamento, Jean-Jacques Rousseau, no Contrato Social,
constata que é imprescindível um pacto social que reconheça a figura de um Estado
que se funde em bases políticas e que o poder exercido por ele seja a representação de uma vontade geral, no seu povo e promova cidadania. Este Estado, “um Estado de Direito, fundado em leis definidas por esta vontade geral, que se denomina
lei [...] vê-se imediatamente, que não é mais necessário perguntar a quem compete
fazer leis, pois elas são ato da vontade geral [...]” (p. 60).
Lançam-se, assim, as bases para o ideário liberal ainda no contexto da sociedade medieval. O pensamento liberal, resultante dos ideais iluministas de igualdade, fraternidade e solidariedade, se estrutura em ideais morais, políticas e econômicas, em cujos princípios está a defesa dos direitos individuais e civis, à propriedade
privada, à vida, à liberdade, garantidos por meio de um conjunto de direitos definidos
em lei, bem como a livre iniciativa e a livre concorrência econômica.
Neste sentido, há a emergência de uma sociedade civil com vistas a uma
expansão mercadológica e lucratividade, deixando-se conduzir pelo mercado o qual
possui leis próprias e o papel do Estado deve ser apenas, o de fornecer a ordem
legal para que o mercado possa se estruturar livremente. Não desaparece o poder
do governante no sentido de exercer o imperium, o poder de polícia e a edição de
atos de governo. Neste modelo de Estado, para garantir a governabilidade, toda a
atividade administrativa, considerados inclusive os três poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), deve estar em conformidade com a lei, mesmo que esta promova
arbitrariedades. O poder da autoridade está limitado ao que é permitido pela lei. O
Estado Liberal se funda, assim, no que se reconhece como Estado de Direito (Rechtsstaat), o qual
limita-se à defesa da ordem e segurança públicas, remetendo-se os
domínios econômicos e sociais para os mecanismos da liberdade individual
e da liberdade de concorrência. Neste contexto, os direitos fundamentais
liberais decorriam não tanto de uma declaração revolucionária de direitos
mas do respeito de uma esfera de liberdade individual. Compreende-se, por
isso, que os dois direitos fundamentais – a liberdade e propriedade (Freiheit
und Eigentum) – só pudessem sofrer intervenções autoritárias por parte da
administração quando tal fosse permitido por uma lei aprovada pela
representação popular (doutrina da lei protectora dos direitos de liberdade e
de propriedade e doutrina da reserva de lei). (Canotilho, p. 97)
O ponto central do pensamento liberal é o de que a ordem social está
fundada em indivíduos livres, não necessitando de um comando estatal como
garantia para que estes respeitem a ordem pública, as liberdades, o equilíbrio social
e político.
Em relação à produção de melhor qualidade de vida, uma vez determinada a
autonomia do mercado com todas as suas garantias, cabe à ele atuar na
maximização dos benefícios humanos, desde que não implique custos demasiados,
pois as pessoas devem ser capazes de se auto proverem e não depender de uma
ação estatal que vá suprir a sua existência. Assim, o papel do Estado deve ser
mínimo, visando apenas à proteção contra inimigos externos; a proteção de ofensas
por outros indivíduos e o provimento de obras públicas.
O Estado Liberal é entendido como um poder separado da sociedade e da
economia, que tem por fundamento a defesa dos direitos privados, inclusive
contra a intervenção do próprio Estado. Sob a proteção deste Estado, todos
os indivíduos membros da nação encontram-se liberados para usufruir e
dispor privadamente de suas capacidades pessoais e de seus bens,
inclusive para negociá-los no mercado (ABREU, p. 35 e 36).
Em função do desenvolvimento em curso o feudalismo já não mais
respondia aos interesses de uma classe emergente e, se a sociedade Feudal já
trazia uma desigualdade social, política, econômica e jurídica, a sociedade que a
sucede, a Capitalista, a intensifica.
Este é um fenômeno em que se pode afirmar que procedeu a uma transição
paradigmática visto que confrontaram um paradigma dominante em crise e um
emergente, culminando com uma mudança qualitativa de uma sociedade para outra
e de uma concepção de Estado para outro que, segundo Santos (2011),
A transição paradigmática é um objetivo de muito longo prazo. Acontece que
as lutas sociais, políticas e culturais, para serem credíveis e eficazes, têm
de ser travadas a curto prazo, no prazo de cada uma das gerações com
capacidade e vontade para as travar. Por esta razão, as lutas
paradigmáticas tendem a ser travadas, em cada geração, como se fossem
subparadigmáticas, ou seja, como se ainda se admitisse, por hipótese, que
o paradigma dominante pudesse dar resposta adequada aos problemas
para que eles chamam a atenção. (p.19)
Isto significa que todos os movimentos sociais que culminaram em
mudanças de certo modo de produção para outro sempre se originaram no próprio
bojo da sociedade precedente, pois é nela e, a partir dela, que os valores, estrutura,
poder e as normas são questionados.
Desta crise paradigmática resulta uma nova concepção de Estado e de
sociedade moderna – a capitalista, que se inicia a partir de meados do século XIX e
redesenha um cenário de exploração,
agora numa sociedade que vem
desigualmente divida pela propriedade privada; as riquezas socialmente produzidas
são consideradas bens privados dos proprietários dos meios de produção em
detrimento de uma classe contratada para produzir estes bens, mas que não tem
acesso aos mesmos. Este modelo de sociedade é um modelo totalmente excludente
de direitos.
Neste
sentido,
a
emergência
da
sociedade
moderna
importa
no
reconhecimento de se aceitar que as novas configurações do Estado são diferentes
das concepções anteriores, assim como a própria noção de sociedade, até porque a
opção por um modelo de desenvolvimento fundado em bases capitalistas exige a
adequação de paradigma diferente. Santos (2011), afirma que,
A passagem entre paradigmas – a transição paradigmática – é, assim, semicega e semi-invisível. Só pode ser percorrida por um pensamento
construído, ele próprio, com economia de pilares e habituado a transformar
silêncios, sussurros e ressaltos significantes em preciosos sinais de
orientação. (p.15)
Estar-se-á, efetivamente, diante de um novo modelo de produção – o
capitalismo, apoiado no pensamento liberal que se pauta no pensamento do
Darwinismo Social – sobrevivem sociedades e os indivíduos que melhor se
adaptarem aos novos padrões exigidos e a melhoria de suas condições de vida
dependerá desta capacidade de adaptação. Para garantí-lo, o Estado prima pela não
interferência nas relações de produção e, ainda, pela necessidade de um conjunto
de medidas que permitam a subordinação, especialmente pela elaboração de um
direito compatível com os ideais do Estado vigente. Para Chakhnazárov,
a vontade da classe dominante expressa-se no direito, que é um conjunto
das
leis e de outras normas jurídicas (regaras de comportamento) que
regulamentam todos os aspectos principais da vida social. Mas o direito por
si só nada significa sem um aparelho capaz de garantir a observância das
suas prescrições, incluindo pela força nos casos em que isso for necessário.
Este é desempenhado pelo Estado, o qual é uma organização do poder
político que dispõe de órgãos como a polícia, o exército, os tribunais, as
prisões.
Em
todas
as
formações
econômico-sociais
baseadas
na
propriedade privada e na exploração, o Estado é o instrumento de
dominação de classe dos exploradores sobre os explorados. (p.79)
O Estado é, assim, por sua natureza, um instrumento de dominação que a
exerce por meio de uma democracia, ainda que limitada e formal, suficiente para
manter os interesses e defender a ordem estabelecida pelas classes dirigentes. Por
outro lado, ainda que o sistema não reconheça, a democracia é uma conquista dos
povos e não um presente da ordem dominante.
Com um modelo extremamente excludente e com um crescente domínio no
processo econômico e político, o capitalismo trouxe conseqüências
graves no
âmbito social, ou seja, criando o que se conhece por questão social - pela
miserabilidade em que vivem as pessoas destituídas dos meios de produção e pelo
perigo que representa à estabilidade da ordem social, jurídica, política e econômica.
Este estado de pobreza é perturbador para o capitalismo e o seu ideário liberal,
ensejando medidas assistencialistas que a minimizem, as quais, existem desde
tempos anteriores. Assim,
A história da proteção social informa que, desde o século XIV, existiam
intervenções públicas que iam da assistência aos indigentes até a
repressão
à
vagabundagem,
passando
pela
regulação
estatal
da
organização do trabalho e da mobilidade espacial s os trabalhadores
(PEREIRA, p. 51).
Porém, este processo intervencionista não muda em nada a realidade social,
pois não confere cidadania; apenas reproduz e mantém o status quo vigente,
atuando no extremo da pauperização. Por óbvio que, um sistema que gera
desigualdades, será suscetível de crises freqüentes que levam, inclusive, a
questionar a própria legitimidade do Estado, já que o Estado Liberal tem dificuldades
de obter o consentimento e a obediência dos seus cidadãos às condições
socioeconômicas e jurídicas estabelecidas.
É preciso, ainda, esclarecer que a questão social, no período atual, se
apresenta sob um caráter excludente, já que ela não se define pela condição de
pobreza, mas pelas formas de flexibilização do trabalho, especialmente no
desemprego, porque a pessoa está privada de um mínimo de condições para viver,
inclusive pela ruptura dos laços afetivos e das relações de convívio. Cria-se um
contingente de pessoas que são consideradas sobrantes, ou seja, pessoas que,
apesar de qualificadas, não encontram mais lugar no mercado de trabalho porque
não são mais úteis e, por isso, se tornam descartáveis. A exclusão social é, assim,
analisada como sendo
[...] a impossibilidade de poder partilhar, o que leva à vivência da privação,
da recusa, do abandono e da expulsão, inclusive com violência, de um
conjunto significativo da população. Por isso, é uma exclusão social e não
pessoal. [...] é uma situação de privação coletiva que inclui pobreza,
discriminação, subalternidade, a não equidade, a não acessibilidade, a não
representação pública como situações multiformes [...]. A grande questão da
exclusão reside no fato de que o outro se torna um dessemelhante.
(SPOSATI, p. 67 e 69).
Isto significa que há uma perda significativa de um padrão de sociedade
civilizatória fundada na ética e na promoção da pessoa que vislumbra a condição de
dignidade como sendo essencial para todos e para a consolidação de uma
sociedade mais justa. Significa, também, que há uma necessidade de se redefinir o
paradigma do Estado Liberal. Então, que Estado é este que surge?
Na acepção moderna, “o Estado é aquele que surge como exigência
histórica de se constituir um poder central, supremo e soberano para gerir os
conflitos sociais e econômicos”. (SILVA, p.57). Um Estado que é responsável pela
gestão das questões sociais e, para tanto, deve criar estratégias para reduzir os
impactos que as profundas desigualdades causam aos Estados nacionais. O Estado
que surge deve enfrentar os desafios decorrentes do modelo de desenvolvimento,
tentando equacionar as diferenças de interesses de classe, ao mesmo tempo que
permita a continuidade de um desenvolvimento excludente. Tarefa difícil, mas que
tem sido levada a efeito como projeto político
de um Estado que tem por finalidade e função o desenvolvimento capitalista
de uma determinada nação, ao mesmo tempo em que intervém nas
desigualdades sociais para evitar que estas se traduzam em lutas políticas
desestabilizadoras da ordem social e política. Para cumprir esta finalidade,
os atores com acesso ao poder político constituem instituições públicas que
regulam a aplicação dos recursos econômicos da nação (renda,
propriedade, salário etc) e os interesses das classes e grupos sociais,
redistribuindo os primeiros sob a forma de custos e benefícios e
reordenando os últimos sob a forma de direitos e deveres da cidadania.
(ABREU, p.35).
Em síntese, neste processo de reestruturação, o que se percebe é que o
Estado tem buscado novas estratégias de controle através de políticas de benefícios
e incentivos que neutralizam qualquer movimento de insatisfação por parte de uma
classe social desfavorecida e, ainda, levam a um consentimento da gestão estatal
por parte da sociedade sem ferir, contudo, os interesses do capital.
1.2 O Estado Constitucional Democrático de Direito e a adoção de regras e
princípios no sistema jurídico
A construção de um Estado Democrático de Direito faz parte das
transformações históricas que compõem o tecido da sociedade, além de ser um
novo referencial para a sua reestruturação, para a redefinição do ordenamento
jurídico e, em especial, para o reconhecimento dos direitos dos cidadãos. Não se
trata somente de elaborar uma constituição, pois o Estado de Direito a possui. O que
se objetiva é a reafirmação das conquistas civilizatórias de direitos do homem,
possível com o paradigma de um Estado Democrático de Direito, contrariando o
modelo conservador de negação de direitos.
Toda essa aclamação por um novo Estado é porque as sociedades humanas
nem sempre viveram sob a égide de um Estado Democrático de Direito que
garantisse a universalidade de direitos a todos os seus cidadãos. Na história, a luta
pelo poder e riquezas levaram os homens a estabelecer as mais diversas formas de
arbitrariedade em face da vida humana, a exemplo das penas draconianas, da
escravidão, das torturas e perseguições sofridas por povos no período moderno e
contemporâneo.
A existência de um Estado Constitucional Democrático de Direito é recente e
representa uma conquista da Humanidade em face de governos arbitrários, tirânicos
e usurpadores de direitos. Trata-se de uma construção histórica de consolidação
enquanto forma de organização jurídica de poder que agrega outras competências
como a soberania, a participação e a cidadania e que se põe como paradigma a ser
aperfeiçoado e instrumento de defesa todas a vezes que insurgir ameaças à sua
existência.
Neste Estado, as regras jurídicas continuam tendo a sua validade; o que
trouxe de diferente é a inclusão de valores e princípios que modificam a
interpretação axiológica, pois a este novo Estado cabe a função de proteger e
garantir direitos sociais. No confronto com a lei, os princípios devem ter supremacia.
Reconhecida a importância desta Lei Fundamental, de onde deve emanar o
restante da legislação, importa refletir como esta Constituição precisa ser aplicada,
de forma que tenha eficácia e efetividade na garantia dos direitos e da democracia,
tanto do ponto de vista formal quanto do ponto de vista material, pois
Estes amparam a legitimidade do ordenamento constitucional, cujo fim já
não é, apenas, aquela segurança, de todo formal, senão também a justiça
substantiva, a justiça material, a justiça que se distribui na sociedade, a
justiça em sua dimensão igualitária; portanto, a justiça incorporadora de
todas as gerações de direitos fundamentais [...], até alcançar, com a
democracia participativa, onde têm sede os direitos da quarta geração –
sobretudo o direito à democracia – um paradigma de juridicidade
compendiado na dignidade da pessoa humana [...]; é o supremo valor onde
jaz o espírito da Constituição. (BONAVIDES, p. 28).
É tão significativa uma Constituição para a existência da sociedade e de
uma relação social democrática que a Declaração Universal dos Direitos do Homem
e do Cidadão de 1789 (artigo 16) confirma que o referencial de uma Constituição é a
própria sociedade “Toute société dans laquelle la garantie des droits nest pás
assurée, ni la separation des pouvoirs déterminée na point de Constituition”
(CANOTILHO, p.88).
É pela via da sociedade que se defendem e constrõem os valores, suas
normas, seus direitos os quais são insculpidos em uma norma que seja
hierarquicamente superior às demais sem que deixe de direcionar os caminhos de
seus cidadãos. Dessa forma, uma sociedade que não garanta os direitos
fundamentais e tampouco assegure a separação dos poderes Legislativo, Executivo
e Judiciário como sistema de freios e contrapesos para evitar os excessos destes,
não possui Constituição.
Quer-se, aqui, que a Constituição seja uma ordem jurídica a ser aplicada à
sociedade, mas que seja fundada em princípios, em uma democracia participativa e
garantista de direitos e que o Estado reafirme o seu papel de proteger e garantir
direitos sociais e manter o equilíbrio do exercício dos poderes. Para Canotilho
(2011),
Qualquer que seja o conceito e a justificação do Estado – e existem vários
conceitos e várias justificações – o Estado só se concebe hoje como Estado
constitucional [...]. O Estado Constitucional, para ser um estado com as
qualidades identificadas pelo constitucionalismo moderno, deve ser um
Estado de direito democrático. Eis aqui as duas grandes qualidades do
Estado constitucional: Estado de direito e Estado democrático. Estas duas
qualidades surgem muitas vezes separadas. Fala-se em Estado de direito,
omitindo-se a dimensão democrática, e alude-se a Estado democrático
silenciando a dimensão de Estado de direito. Esta dissociação corresponde,
por vezes, à realidade das coisas: existem formas de domínio político onde
este domínio não está domesticado em termos de Estado de direito e
existem
Estados
de
direito
sem
qualquer
legitimação
em
temos
democráticos. O Estado constitucional democrático de direito procura
estabelecer uma conexão interna entre democracia e Estado de direito. (p.
92 e 93).
Com esta nova concepção há uma limitação ao exercício do poder pelo
Estado que se submete ao império do Direito bem como uma democracia que
autoriza o exercício da vontade popular e legitima este poder através de técnicas
legislativas como, por exemplo, o referendum, o plebiscito e o voto, por meio dos
quais os cidadãos, ao reconhecer a ordem estatuída e obedecer ao seu conjunto
normativo, legitimam-na. É a caracterização do Estado Democrático de Direito,
consolidado com a premissa de garantista.
O Estado comparece como exigência histórica de se constituir um poder
central, supremo e soberano para gerir os conflitos sociais e econômicos.
Para evitar a “guerra de todos contra todos” (Hobbes, 1651). Abolindo a
soberania e a “guerra do déspota contra os súditos” ao dividir os poderes
em Legislativo e Executivo e, posteriormente, Judiciário, de modo que um
possa controlar o outro (Locke,1690). Expressando a “vontade geral” por
força de um “contrato social” em que o homem abre mão de sua liberdade
natural e de seu estado de natureza selvagem em favor da liberdade civil
(Rousseaus, 1762). Acabando com os privilégios e as instituições
oligárquicas e assegurando, através de uma Constituição, o ideal de justiça
sobre os fundamentos da propriedade privada e do livre desenvolvimento
capitalista, as instituições representativas como expressão dos anseios
nacionais, os direitos do homem e o interesse comum. (SILVA, P.57 e 58).
O novo Estado exerce a sua soberania por meio de princípios e pela vontade
popular, agora com a concepção de cidadão e de cidadania participativa e, por isso,
a questão humana é colocada em primeiro plano não podendo admitir que seres
humanos sejam tratados como objetos e sejam eliminados os seus direitos de cidadania, buscando-se a aplicação da máxima da dignidade da pessoa humana. Segundo Norberto Bobbio,
O reconhecimento e a proteção dos direitos do homem estão na base das
constituições democráticas modernas. A paz, por sua vez, é o pressuposto
necessário para o reconhecimento e a efetiva proteção dos direitos do homem em cada Estado [...] Em outras palavras, a democracia é a sociedade
dos cidadãos quando lhe são reconhecidos alguns direitos fundamentais;
haverá paz estável [...] somente quando existirem cidadãos não mais apenas deste ou daquele Estado, mas do mundo. (p.1)
É a partir desse paradigma pós-positivista que os princípios passam a ser
importantes na solução de conflitos quando a regra não consegue ser precisa e
adequada, auxiliando os juristas a decidirem a partir dos mesmos. Para Pereira
(2006),“a presença dos princípios no Direito impede que o fenômeno jurídico seja
analisado por meio de raciocínios puramente formais e alheios a valorações
substantivas, de modo que se torna inviável acolher a tese positivista de separação
entre Direito e Moral”. (p.)
No Estado Constitucional Democrático de Direito são os Direitos
Fundamentais compreendidos como norma principiológica que agora se apresenta
como sendo finalidade a ser alcançada, seja porque deve protegê-los, seja porque
deve torná-los efetivos.
1.2.1 O princípio da dignidade da pessoa humana: ícone no Estado
Democrático de Direito.
Corolário do ideal
democrático para
a concretização
dos
direitos
fundamentais, a dignidade da pessoa humana contempla todas as dimensões do ser
humano, desde as garantias de uma vida material até ao respeito e a promoção das
aspirações da alma. Neste sentido, é inerente do homem manifestar-se e designarse conforme a sua consciência individual e social, visto que está inserido em um
universo de relações sociais que demanda atitudes e decisões, desde que não
ultrapasse o que se convencional, no ideário da ética e da moral.
A concepção de que a pessoa humana é dotada de valor que lhe é inerente
possui uma longa caminhada ao longo da História. Desde antes de Cristo, o Antigo
Testamento já fazia alusão a este valor que também foi registrado no Novo
Testamento, podendo encontrar “referências no sentido de que o ser humano foi
criado à imagem e semelhança de Deus” (SARLET, p.30).
Também foi verificada, na sociedade antiga clássica, que, segundo o
pensamento da época, a dignidade era quantificada, pois vista a partir de seu
aspecto material – posição social e propriedade. Diferentemente do pensamento
estoico, que afirmava ser a dignidade, uma
qualidade que, por ser inerente ao ser humano, o distinguia das demais
criaturas, no sentido de que todos os seres humanos são dotados da
mesma dignidade, noção esta que se encontra intimamente ligada à noção
de liberdade pessoal de cada indivíduo (o Homem como ser livre e
responsável por todos os seus atos e seu destino) bem como à ideia de que
todos os seres humanos, no que diz com a sua natureza, são iguais em
dignidade. (COMPARATO apud SARLET, p.31).
Nessa perspectiva, não se pode conceber a existência do Homem, um ser
essencialmente social, que não tenha as suas ações livres e desembaraçadas das
ideologias de cada período histórico. Há que se reconhecer sua autonomia e
capacidade civilizatória como condições específicas da sua própria essência de
humanidade.
Adiante, mesmo no período que se refere à Idade Média, por ter sido esta
vinculada aos ideais do cristianismo, dando destaque à figura de Santo Tomás de
Aquino que cunhou a expressão dignitas humana, esta noção de dignidade também
é consagrada como qualidade e condição dada ao homem para que determine a sua
existência e a sua história.
Durante a colonização da América, no século XVI, observando a exploração
e o aniquilamento de uma raça, a ideia de dignidade foi ressaltada pelo espanhol
Francisco de Vitória “que os indígenas, em função do direito natural e de sua
natureza humana [...] eram em princípio livres e iguais, devendo ser respeitados
como sujeitos de direitos, proprietários [...] ”. (SARLET, p32).
O pensamento jusnaturalista, que predominou no período entre os séculos
XVII e XVIII, mesmo tendo passado por um processo de laicização e pela
racionalidade, manteve a ideia da existência de uma igualdade que é conferida a
todos os homens em dignidade e liberdade. Agir conforme deliberação própria e se
designar conforme a sua consciência e liberdade parece ter sido a síntese da
concepção da dignidade e que encontrou ressonância significativa no pensamento
de Kant, no qual prevalece a questão da autonomia ética do ser humano. A partir
deste entendimento, ao homem estaria proibida a atribuição de objeto, pois este traz
a noção de mercadoria e preço e, quem se determina, só pode ser sujeito, a quem
se atribui uma qualidade insubstituível. Segundo Kant,
no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma
coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como
equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto
não permite equivalente, então ela tem dignidade [...] Esta apreciação dá
pois a conhecer como dignidade o valor de uma tal disposição de espírito e
põe-se infinitamente acima de todo o preço. (apud SARLET, p.33e 34).
Nas relações interpessoais, que são recíprocas, dialéticas e se pretendem
ser autônomas, não há espaço para uma concepção mercadológica ou coisificada
do ser humano, na qual a vida e a liberdade são negociáveis e descartáveis, ainda
que se viva em uma sociedade de consumo. Por isso, a dignidade é um valor
intrínseco, principiológico em sua essência e, por apresentar – se desta forma, não
admite barganhas ou mesmo a sua invisibilidade, cabendo ao ordenamento jurídico
a sua legitimação e concretização. Isto significa que a dignidade da pessoa humana
implica em uma juridicidade de sua referência conceitual. A sua projeção no
ordenamento jurídico foi com a eficácia de um princípio constitucional fundamental
que também possui uma função disciplinadora às atividades do Estado, pois que ele
obstaculiza qualquer atividade que vá de encontro à desvalorização deste princípio.
Importa (re) afirmar que a essência da dignidade encontra as suas raízes na
razão humana e que as dimensões essenciais de sociabilidade e unicidade faz da
pessoa humana um ser único, livre, sujeito de sua própria construção pessoal e
social, capaz de ações inteligentes e responsáveis, justamente porque é livre e, essa
liberdade é própria de seu acontecer existencial. A pessoa é, assim,
um sujeito inteligente, responsável e livre, é algo que se constitui a partir de
dois eixos essenciais: o da sua sociabilidade e o da sua unicidade que a
definem como um ser aberto, sociável, comunicativo, dialogante, falante,
único, por conseguinte, distinto de todos os outros e idêntico a si próprio.
Neste sentido, a pessoalidade constitui o rasgo estruturante e fundador do
humano [...], capaz de desenvolver relações sociais sem desligar-se da sua
individualidade. (TAVARES, p.54).
Situar a dignidade neste contexto significa respeitar o Homem na sua
essência enquanto pessoa, no mundo e na sua realidade concreta, possuidor de
uma liberdade que o faz ser e querer ir até o limite de suas possibilidades e
reconhecer que associa outras dimensões fundamentais como a inteligência, a
vontade, a afetividade, a capacidade de intervir e criar, dentre outras.
No século XX, esta referência conceitual de pessoa e dignidade humana
enquanto princípio só foi adotada pelas constituições, a exemplo da Constituição
Brasileira de 1988, a partir da segunda metade do século, quando o mundo
presenciou os horrores das guerras e o imperativo de uma construção de normas
internacionais para a proteção dos direitos da humanidade frente aos abusos e
aniquilamento destes por governos anti -democráticos. Por isso, a sua supremacia é
presente no Estado Constitucional.
Alguns documentos jurídicos são importantes nesta fase que emerge a
ideologia internacional protecionista dos direitos humanos: a Convenção de
Genebra, de 1864; a Organização Internacional do Trabalho, de 1919; a Declaração
Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia Geral da ONU, em
1948; a Carta das nações Unidas, em 1945; a Carta dos Direitos Fundamentais da
União Européia, em 2000, documento recente que prevê a dignidade como sendo
“inviolável. Deve ser respeitada e protegida”. (BREUS, p. 164).
No Brasil, a Constituição Federal de 1988, recepcionou e consagrou este
princípio como fundamental, em seu artigo 1º, inciso III atendendo a tendência de
uma sociedade mundial que transforma profundamente seus valores. Esta
sociedade se adapta e se desenvolve de diferentes maneiras, na qual emerge um
verdadeiro mosaico cultural, linguístico e racial; uma sociedade que se constrói com
pessoas vivas, dinâmicas, inteligentes, solidárias, livres, tolerantes e mais humanas
e na qual o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
continua, talvez mais do que nunca, a ocupar um lugar central no
pensamento filosófico, político e jurídico, do que dá conta a sua já referida
qualificação como valor fundamental da ordem jurídica, para expressivo
número de ordens constitucionais, pelo menos para as que nutrem a
pretensão de constituírem um Estado democrático de Direito. (SARLET,
p.37).
A experiência ensina que essa evolução no campo da ordem jurídica,
nacional e internacional, de proteção da dignidade da pessoa humana demonstra
uma maturidade do legislador em se comprometer com as demandas e os desafios
que se colocam face à manutenção de uma democracia e direitos que equalizem as
desigualdades e as injustiças. Também se apresenta como uma conquista dos povos
e uma direção onde devem se assentar as bases de um Estado Constitucional e
democrático e de direito.
Toda essa reflexão não pode ser levada a efeito se não considerar que, no
campo dos direitos humanos, o princípio da dignidade da pessoa humana vem
informado por outros princípios jurídicos, como o da Igualdade, Liberdade e
Solidariedade, todos com previsão constitucional e em Tratados e Declarações
internacionais, com a finalidade de limitar o poder político do Estado.
Segundo Eduardo Carlos Bianca Bittar, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948 deu o primeiro passo nesse sentido:
[...] Artigo II.1. Toda pessoa tem capacidade ara gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie
seja de ração, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra nature-
za, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição [...]
Art. VII. Todos são iguais perante a lei e têm direitos, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação. (p.519).
Por esta assertiva, afigura-se que todos, indistintamente, têm o direito de receber igual tratamento quando for cumprida a lei, não lhe sendo dado o direito de
discriminar; pelo contrário, cabe a ela, garantir uma coexistência pacífica, orientando
a ordenação das ações humanas, as diferenças e semelhanças de cada grupo social e dos indivíduos, pois “a lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguição, mas
instrumento regulador da vida social que necessita tratar equitativamente todos os
cidadãos”. (MELLO, p. 10).
Para evitar que haja injustiças, há a necessidade de providenciar uma
equivalência de meios para que cada pessoa possa desenvolver as suas
potencialidades. Neste sentido, Humberto Gouveia (2008), faz a seguinte reflexão:
O primado da igualdade, por esse novo enfoque, pode ser utilizado como
um instrumento para o objetivo de aproximar as pessoas da igualdade
efetiva, ou seja, um meio para a busca da igualdade social. Por esse motivo,
o princípio da igualdade, nesse sentido material, estabelece que os iguais
devem ser tratados de forma igual e os desiguais, de forma desigual na
medida em que se desigualam. Para J.J.Canotilho, a igualdade na aplicação
do Direito vai além da mera igualdade da aplicação da lei, agora o intuito é
atingira a igualdade por meio da lei. (p.69).
Dessa forma, na tentativa de manter a igualdade, a lei buscou na realidade
social, elementos que julgou serem possíveis de criar desequiparações odiosas entre as pessoas, e explicitou a impossibilidade das mesmas em utilizá-las para benefício próprio. Num Estado que se quer constitucional e democrático, é preciso que
haja, além da igualdade formal, uma igualdade material a fim de que se respeite as
diferenças de cada segmento social, de suas peculiaridades, através de intervenções sociais de prevenção e apoio.
O princípio da liberdade, considerado como de primeira dimensão, é oriundo
da concepção liberal e pressupõe uma abstenção do Estado em intervir nas relações
individuais e privadas e “se consubstancia, presentemente, em um espectro que
compreende inúmeras perspectivas que vão desde a privacidade, a intimidade, até o
livre exercício da vida privada [...]. (BREUSS, p. 179)
Somente com este pensamento e visto apenas pelo viés de seu substrato,
este princípio se torna incipiente, pois as pessoas estão em relação e se situam em
um meio social organizado, sendo articulado a ele, o princípio da solidariedade e
todos os demais, como sendo atributos da cidadania, princípio fundamental da
Constituição, atributo inerente ao ser humano na sua forma de autodeterminação e
que só pode ser compreendido no seu espaço público (político e social). O contrário
de cidadania é a condição de abandonado, de excluído, de marginalizado.
II. AS POLÍTICAS SOCIAIS PÚBLICAS COMO PRIMAZIA DO ESTADO
BRASILEIRO.
Política Pública é um tema bastante complexo e discutido em diversas áreas
do conhecimento a exemplo das ciências sociais, da ciência política e economia
política, justamente por ser um importante instrumento de controle e promoção da
atuação do Estado. Nesta ótica, o porquê e o para quê das coisas, quais os sujeitos
e em que circunstâncias elas ocorrem terão que fazer parte integrante de um mesmo
processo. Por Política Pública entende-se
uma orientação à atividade ou à passividade de alguém; as atividades ou
passividades decorrentes dessa orientação também fazem parte da política
pública; uma política pública possui dois elementos fundamentais:
intencionalidade pública e resposta a um problema público: em outras
palavras, a razão para o estabelecimento de um problema público; em
outras palavras, a razão para o estabelecimento de uma política pública é o
tratamento ou a resolução de um problema entendido como coletivamente
relevante. (SECCHI, 2010, p. 2).
Diante deste conceito, algumas questões devem ser suscitadas na tentativa
de se refletir sobre uma investigação mais comprometida sobre esta ação estatal,
pois seria somente o Estado responsável pela sua implantação ou mesmo
implementação?
O primeiro questionamento se refere aos atores das Políticas Públicas: estes
são somente os agentes estatais ou podem ser agentes não estatais? Há uma
discussão na literatura sobre quem seria o responsável pela efetivação destas
políticas tendo uma corrente que defendem uma abordagem estatista e outra
corrente que defende a abordagem multicêntrica. Segundo Leonardo Secchi (2010),
a abordagem estatista (state-centered policy-making) considera as políticas
públicas, analiticamente, monopólio de atores estatais. Segundo essa
concepção, o que determina se uma política é ou não pública é a
personalidade jurídica do ator protagonista. Em outras palavras, é política
pública somente quando emanada de ator estatal. A abordagem
multicêntrica,
contrariamente,
considera
organizações
privadas,
organizações não governamentais, organismos multilaterais, redes de
políticas públicas (policy networks), juntamente com atores estatais,
protagonistas no estabelecimento das políticas públicas. (p. 2).
Neste contexto tem-se que as políticas públicas, pela abordagem estatal,
admitem apenas a competência do Estado para estabelecer e comandar um
processo de política pública – enfoque positivista; o agente não estatal pode até
auxiliar, mas não cabe a ele o processo decisório. Já a multicêntrica, vislumbra que
este privilégio pode pertencer a agentes não estatais, que podem atuar na busca por
soluções a problemas que são públicos e por imprimirem uma visão mais
interpretativa da realidade social.
O segundo questionamento a ser visitado é se as políticas públicas podem
se referir à omissão ou negligência. A resposta a este questionamento só pode ser
negativa, pois
uma política pública deve resultar em uma diretriz intencional, seja ela uma
lei, uma nova rotina administrativa, uma decisão judicial etc. Se um ator
governamental ou não governamental decide não agir diante de um
problema público, isto não constitui em uma política pública. (SECCHI,
2010, p.4).
O terceiro questionamento diz respeito se uma política pública se situa
apenas como diretriz estruturante – a nível estratégico ou se situa a nível
operacional. Caso a interpretação seja favorável a de uma diretriz estratégica, temse, então, uma Política Pública Educacional, Agrária, Ambiental etc., dirigidas a
setores. Por outro lado, caso se considere que elas se situam ao nível operacional,
há uma grande probabilidade em se excluir os problemas públicos municipais,
estaduais, regionais ou mesmo aqueles considerados intra-organizacionais.
Esta análise passa por outra, a de verificar quando um problema é público.
Este só o será quando a situação for inadequada e as conseqüências forem para
uma quantidade significativa de pessoas, ou seja, uma coletividade.
Feitas estas reflexões, importa estabelecer que, para o Direito, a política
será pública quando a ação do agente for estatal, ou seja, quando o Estado decidir,
diante das condições sociais e econômicas qual a melhor estratégia para se
promover o equilíbrio entre as camadas sociais. Assim, segundo Thiago Lima Breus
(2007), citando Cristiane Derani,
as políticas são chamadas de públicas, quando estas ações são
comandadas pelos agentes estatais e destinadas a alterar as relações
sociais existentes. São políticas públicas porque são manifestações das
relações de forças sociais refletidas nas instituições estatais e atuam sobre
campos institucionais diversos, para produzir efeitos modificadores na vida
social. São políticas públicas porque empreendidas pelos agentes públicos
competentes, destinadas a alterar as relações sociais estabelecidas.
(p.210).
Neste quadro, importa refletir a tese sobre a função do Estado em sendo
aquela de estabelecer as ações que são definidas como importantes para a
sociedade e são, resultantes
dos movimentos sociais cujas forças atuam na
configuração de diferentes modelos de políticas públicas e, para os quais, constatase que a sua efetivação atende tanto às necessidades do capital quanto às do
trabalho, pois quando se trata de políticas públicas, se está em um campo de
sobrevivência.
Neste sentido, o papel do Estado é o de enfrentar a questão social,
ampliando as medidas de política social como estratégia de conter a crise do
capitalismo que, seguramente, demanda investimentos para o aquecimento do
mercado, do emprego e do consumo. A contribuição de John Maynard Keynes, neste
sentido, foi inconteste com sua teoria Geral, em 1936. Segundo ele, a concorrência
feroz entre os empresários levariam a crise do próprio sistema, afirmando que o
capitalismo não é auto - regulável. Por isso, o Estado deveria intervir através de um
conjunto de medidas econômicas e sociais, tendo em vista gerar demanda
efetiva, ou seja, disponibilizar meios de pagamento e dar garantias ao
investimento, inclusive contraindo déficit público, tendo em vista controlar as
flutuações da economia. Nessa intervenção global, cabe também o
incremento das políticas sociais. (BEHRING, p.26)
Tal intervenção traria o que se conhece como Estado do Bem Estar Social
que orientou as ações dos governos no pós-guerra, pois partia do princípio de que
os governos são responsáveis por garantir aos cidadãos um mínimo de existência e
padrão de vida, o que não significava o abandono do ideário do liberalismo
econômico, mas acrescentou a necessidade de uma ampla intervenção do Estado
na economia.
O reconhecimento deste Estado importa no reconhecimento da legitimidade
do sistema de proteção, pois rompe com o liberalismo tradicional ao denunciar que o
capitalismo não produz um equilíbrio no mercado e nem igualdade, seja entre as
pessoas, seja entre produção e demanda. Por isso, a necessidade da regulação do
Estado. Para Rodrigues (2010),
O Estado de Bem - Estar Social é um sistema de proteção social que
emergiu nos países de capitalismo desenvolvido no período do pós-guerra.
Configura-se como um campo de escolhas e de solução de conflitos para
decidir sobre a distribuição dos frutos do trabalho social e o acesso de
camadas expressivas da população à proteção contra os riscos inerentes à
vida em sociedade. A provisão dos serviços e de medidas de política social
e econômica que propiciam, entre outras coisas, segurança no mercado de
trabalho (garantia de salários, de postos e condições de trabalho e
representação dos interesses do trabalho), garantia de renda (seguro desemprego; auxílio -família; auxílio-doença), proteção contra riscos da vida
social (saúde, habitação e educação) e pleno emprego tornam-se, nesse
contexto, direitos sociais, assegurados pelo Estado [...]. (p.63)
A partir deste conceito, percebe-se a preocupação que se tem com a
dinâmica social, pois o seu desequilíbrio coloca em risco a estrutura do sistema e da
organização social. Assim, melhor cuidar para que a população não seja sacrificada
diante das crises, pois a sua ruína significa a ruína do sistema capitalista como um
todo e, esta, constitui a sua lógica.
De uma forma geral, há o reconhecimento da existência das políticas
públicas a partir da construção da sociedade burguesa, resultante da consolidação
do sistema capitalista de produção que trouxe consigo uma forma de produzir e
reproduzir-se muito especificamente. A sua exploração foi tão intensa que promoveu
movimentos de trabalhadores que reivindicavam direitos de forma que
existe um consenso em torno do final do século XIX como período de
criação das primeiras legislações e medidas de proteção social, com
destaque para a Alemanha e a Inglaterra, após um intenso e polêmico
debate entre liberais e reformadores sociais humanistas. A generalização de
medidas de seguridade social no capitalismo, no entanto, se dará no
período posterior à Segunda Guerra Mundial, com a construção do welfare
state em alguns países da Europa Ocidental. (BHERING, 200, P.21).
Havia uma preocupação em melhorar as condições de vida dos
trabalhadores para que estes pudessem responder às necessidades do capital; só
assim, haveria meios de se manipular o trabalhador e evitar crises estruturais que
colocassem em risco a organização sociopolítica e econômica vigente. Nada melhor
que utilizar o Direito para organizar as normas jurídicas que passariam a ter controle
sobre a ação do trabalhador e do próprio Estado.
No Brasil, o modo de produção capitalista acirrou as contradições existentes
entre diferentes classes sociais, aumentou o nível de exploração de uma classe
sobre a outra e promoveu a exclusão social, com a reorganização das reformas
estatais, pela flexibilização e desregulamentação das normas dos contratos sociais
com direitos trabalhistas limitados. Além destes aspectos, o governo brasileiro ainda
buscou atender às metas de ajuste da economia brasileira determinadas pelo Fundo
Monetário Internacional (FMI), cujas conseqüências, dentre outras, foi o arrocho
salarial resultando em péssimas condições de vida para a população brasileira. Por
conseguinte, as forças políticas do movimento constituinte originário trataram de
garantir que os direitos de cidadania fossem respeitados e garantidos enquanto
mandamento constitucional.
A resposta a este conflito social foi a elaboração e promulgação da
Constituição Federal de 1988, que consolidou as conquistas dos movimentos
sociais, ampliando seus direitos no sentido de garantir um modelo democrático de
seguridade social: imprimiu os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos;
reafirmou uma gestão pública e o seu financiamento através das contribuições
sociais; estabeleceu uma ordem econômica, tributária e financeira que viesse dar
condições de promover o bem-estar da sociedade e, finalmente, o estabelecimento
de uma ordem social que “tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o
bem-estar e a justiça sociais”. (artigo 193, CF).
Não é mais uma sociedade que serve ao Estado, mas o seu inverso – um
Estado que deve servir à sociedade, realizando e efetivando todos os direitos
fundamentais elencados na Constituição Federal. Neste contexto, que prima pelos
direitos, as Políticas Públicas emergem como novo modelo de atendimento e
alcance de uma vida digna e de justiça social ao mesmo tempo que servem de
instrumento de controle e regulação pelo Estado e o Direito. Por esta dinâmica,
passa-se a verificar a atuação de uma mão visível, estatal, a qual passa a
ser o principal agente de mediação e de influência dentre os atore da
sociedade civil. Para que o Estado possa influenciar a atuação da sociedade
civil, é elaborada uma série de mecanismos jurídicos para que sua atuação
ocorra a contento. Neste contexto, o instrumento utilizado para a promoção
dessa participação perante as relações sociais são as políticas públicas.
(BREUS, 2007, P.214).
Nesta relação dinâmica, o Estado assume papel fundamental na
implantação/implementação das políticas públicas: de uma bandeira liberal, que
assegurava uma intervenção mínima do Estado e confirmava uma omissão do
Estado na garantia dos direitos individuais, à transposição para um Estado
contemporâneo, o Democrático Constitucional e de Direitos, que prima por um poder
jurídico estatal comprometido a superar as graves condições sociais e econômicas
em que vive uma parcela significativa da sociedade, a qual não possui condições de
exercer a sua cidadania.
No Brasil, as políticas públicas tiveram um desenvolvimento lento, pois as
questões sociais que emergiam e geravam crises ao sistema eram tratadas como
caso de polícia
III A ACESSIBILIDADE ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS PELA VIA DO MANDADO DE
SEGURANÇA
E
DA
AÇÃO
DECLARATÓRIA
INCIDENTAL
DE
INCONSTITUCIONALIDADE.
No Brasil, as reivindicações feitas pelos movimentos sociais originaram no
conjunto de ações e estratégias que estão dispostas na Constituição da República e
que servem de modelo para a implantação / implementação de políticas públicas
como necessárias para a igualdade e a participação da população enquanto acesso
a direitos, sem discriminação. Ter a possibilidade de utilizar este conjunto de ações e
estratégias para a efetivação dos direitos é o que se designa por acessibilidade.
Segundo SCHNEIDER (2009),
O conceito de acessibilidade é usado no sentido de identificar uma situação
de uso pleno, seguro e independente do espaço construído. Assim, será
acessível o espaço ou o equipamento urbano que propiciar tais condições
para toda a população, independentemente de características físicas, idade,
sexo etc [...]. Há a necessidade de se compreender o acesso, não só nas
estruturas físicas, mas também em toda e qualquer forma de comunicação e
de observância no que se refere aso direitos e deveres, tanto dos
indivíduos, quanto da sociedade e das concepções políticas desenvolvidas
por parte dos governos e das empresas. Ter acesso é oferecer ao indivíduo
a possibilidade de independência e autonomia. (p. 111 e 112).
Neste caso, as políticas públicas devem dar acesso e plena utilização dos
direitos sociais, atendendo as demandas individuais e sociais na medida de suas
necessidades, atendendo a todos os indivíduos, independentemente de sua
condição financeira. E, se não puder se voltar para todos, que pelo menos seja para
uma maioria da população, em especial, a que se encontra em situação de
vulnerabilidade. Por outro lado, para se acessar as Políticas Públicas, muitas vezes
os sujeitos necessitam ter acesso à Justiça. Para Cândido Rangel Dinamarco
(2005),
o acesso à Justiça é, mais do que ingresso no processo e aos meios que
ele oferece, modo de buscar eficientemente, na medida da razão de cada
um, situações e bens da vida que por outro caminho não se poderiam obter.
Seja porque a lei veda a satisfação voluntária de dadas pretensões, seja
porque a pessoa de quem se poderia esperar a satisfação não satisfez e,
quem não vier a juízo ou não puder fazê-lo renunciará àquilo a que aspira.
(p.347).
Justamente
por
terem
sido
reconhecidos
enquanto
conquista
da
Humanidade, afinal, não há direito que tenha surgido do acaso, inegável que os
direitos humanos fundamentais, uma vez positivados na Constituição, adquiriram um
status de norma fundamental e sejam efetivos, promovendo a satisfação da
população. Trata-se, aqui, de direito substancial de superação das desigualdades
sociais, cujo reconhecimento e efetividade deveriam ser naturais. Entretanto, esta
prática não é usual e sem os instrumentos processuais adequados, não há como
conferir eficácia aos mesmos.
Sob o paradigma de Estado Constitucional Democrático de Direito, criou-se
um modelo processual fundado na Constituição que assegurem direitos e garantias
fundamentais e, assim, acessibilidade aos mesmos. Sampaio Dória explica que “os
direitos são garantias e as garantias são direitos” (apud TAVARES, p. 764).
Com esta concepção, pode – se dizer que são direitos – garantias, sob a
ótica da dialeticidade, num sistema totalmente integrativo. Neste sentido, o modelo
processual se funda em dois importantes princípios: o da jurisdicionalidade e da
legalidade, a fim de promover a segurança do processo e o respeito à ordem
constitucional.
O princípio da jurisdicionalidade tem previsão no artigo 5º, XXXV, da
Constituição Federal de 1988 e impõe a inafastabilidade da jurisdição. Significa a
garantia constitucional da tutela jurisdicional dos direitos subjetivos, a qual deve
conferir um resultado e a irradiação de efeitos jurídicos ao direito de ação.
O princípio da legalidade, consagrado no artigo 5º, incisos II e XXXIX, da
Constituição Federal, traz a máxima de que “ninguém será obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” e “não há crime sem lei
anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, também previsto no
Código Penal; em relação à atuação da Administração Pública, no artigo 37 da
Constituição Federal, e no seu artigo 150, inciso I, limitando o poder de tributar do
Estado, com previsão no Código Tributário Nacional.
Alerta-se para o fato de que, diferente de outros princípios estes “servem
como instrumental à disposição da proteção aos direitos essenciais ao ser humano.
Configurar-se-iam, portanto, como ferramentas garantidoras de intervenções
jurídicas protetivas e efetivadoras dos direitos humanos. (COELHO, p.139).
Para além dos princípios, há ainda os instrumentos jurídicos conhecidos por
remédios constitucionais, a exemplo da ação popular, do mandado de segurança, do
mandado de injunção, do habeas data e do habeas corpus bem como a ação
declaratória incidental de inconstitucionalidade, que têm exercido importante papel
na proteção e garantia de direitos dos cidadãos. O processo tem, assim, o escopo
de se colocar como instrumento para garantir a paz social, já que por ele prima-se
por garantir a participação das partes, que têm direito ao processo, e a uma decisão
mais justa a partir do convencimento efetivo do magistrado.
No caso do Mandado de Segurança e da Ação Declaratória Incidental de
Inconstitucionalidade,
estes
se
constituem
em
instrumentos
processuais
constitucionais, podendo ser utilizado por grande parte da população quando esta vê
o seu direito violado e se sente impotente diante das dificuldades em acessar
serviços que deveriam estar à sua disposição. Afinal, as garantias individuais e
sociais estão presentes no ordenamento jurídico como um mínimo a ser
disponibilizado aos cidadãos.
3.1 Mandado de Segurança.
Dentro do contexto do sistema das garantias – meio de defesa disposto à
população para assegurar os seus direitos, o mandado de segurança tem a sua
regra inserida no artigo 5º, inciso LXIX, da Constituição Federal, que dispõe:
conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo,
não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável
pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de
pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.
Assim, este instrumento assegura, efetivamente, direitos, desde que sejam
incontroversos e não dependa de dilação probatória, visto que a sua natureza
jurídica o inclui como ação civil de rito sumário e, portanto direito líquido e certo a ser
garantido à pessoa física ou jurídica, desde que o seu direito não esteja amparado
por habeas corpus ou habeas data. Também constitui em uma forma de controle
jurisdicional, através do qual, o Poder Judiciário intervém quando a autoridade
coatora exerça atos de ilegalidade ou abuso de poder; atos comissivos ou
omissivos; lesão ou ameaça de lesão a direito líquido e certo e possui caráter
subsidiário.
Data o seu surgimento em forma de ação constitucional, de natureza civil
pela primeira vez, na Constituição de 1934. Nas outras Constituições subseqüentes,
também foi recepcionado com a característica de garantia, à exceção da
Constituição de 1937.
Sua importância é tão grande que recentemente a Lei nº 1.533, de 31/12/51,
que rege a matéria, foi revogada pela Lei nº 12.016/09, a qual trouxe inovações. O
estatuto anterior – Lei nº1.533 trazia apenas a situação de uso do mandado quando
não coubesse o habeas corpus e referia-se a alguém, limitando a sua proposta de
aplicabilidade. O novo estatuto legal – Lei nº 12.016/09 acrescentou, em sua
redação, a expressão habeas data e ainda ampliou o rol daqueles que podem se
utilizar deste instrumento, ou seja, substituindo a palavra alguém por pessoa física
ou jurídica, trazendo o sentido de que a coação parte do dirigente e diz respeito a
ações ou omissões do Poder Público.
Ainda na redação atual, há vedações expressas quanto a utilização desta
ação processual, podendo ser observadas no artigo 1º, § 2º e artigo 5º. O primeiro
dispositivo se refere à proibição de se impetrar contra atos de gestão comercial
praticados pelos administradores de empresas públicas, sociedades de economia
mista e de concessionárias de serviços públicos. Ainda no campo das vedações, o
artigo 5º, inciso III, não permite impetrar o Mandado de Segurança contra decisão
transitada em julgado – artigo proveniente da Súmula 268 do STF. Já o artigo 6º, §
3º da referida lei estabelece o conceito de autoridade coatora como sendo “aquela
que tenha praticado o ato impugnado ou da qual emane a ordem para a sua prática”.
Importa atentar para um elemento normativo, sem o qual, há total
impossibilidade em utilizar a via do Mandado de Segurança, que é a questão do
direito líquido e certo ao qual o impetrante deve estar revestido. Por direito líquido e
certo se entende o direito que é comprovado de imediato (de plano), apresentado no
momento da impetração e não demande comprovação por outros meios de prova,
pois em sede do mandamus, não há previsão de dilação probatória.
Observando ainda a necessidade de proteger direitos direcionados àqueles
considerados coletivos, difusos e individuais homogêneos, o artigo 5º, inciso LXX, da
Constituição Federal, trouxe a lume o Mandado de Segurança Coletivo, autorizados
a impetrá-lo os partidos políticos com representação no Congresso Nacional; as
organizações sindicais, entidade de classe ou associação legalmente constituída,
funcionando há pelo menos um ano e o seu objetivo seja o de proteger interesses de
seus membros ou associados.
3.2 Ação Declaratória Incidental de Inconstitucionalidade
A Constituição Federal trouxe várias matérias assecuratórias de direitos,
protetivas a diferentes seguimentos da sociedade porquanto a sua condição de
vulnerabilidade. Entretanto, a norma constitucional muitas vezes pode ser ofendida
na sua eficácia, negando-a enquanto direito do cidadão.
No caso de infração de norma constitucional à norma de direito supralegal
positivado na Constituição, ou seja, à norma do direito natural, como as que
indicam o Direito à vida, o Direito à liberdade, o Direito à saúde, causando a
inconstitucionalidade da norma constitucional alusiva, como seria o caso de
uma norma constitucional que proibisse alguém de viver ou de se alimentar
ou de respirar. A situação, a nosso ver, tratar-se-ia de inconstitucionalidade
da norma constitucional específica por desvio de finalidade em relação aos
objetivos reitores da Constituição, que, segundo pensamos, não pode ser a
morte dos cidadãos do Estado, mas seu bem comum. (SILVA, 2009, p.81)
Neste caso, exercer a cidadania implica em questionar a negativa de direito
e requerê-lo como condição de dignidade e, um bom instrumento processual
constitucional é a ação declaratória cuja finalidade é a obtenção da declaração da
existência
ou
a
inexistência de
uma
relação jurídica,
desde
que
haja,
comprovadamente, a existência de uma lide constitucional.
Em se tratando de Políticas Públicas, estas se constituem em um conjunto
de ações que o Estado deve implantar e implementar como condição sine qua non
para a promoção do homem e de sua existência digna, dirigindo-se a diversos
setores, integrados entre si para fazer valer os direitos individuais, sociais e do
trabalho, além do direito à paz social.
As áreas que incidem estas políticas estão voltadas na garantia a habitação,
saúde, transporte público, segurança, seguridade social, saneamento, idoso, criança
e adolescente, família, meio ambiente e educação. Uma vez que o cidadão busque
acesso a estas políticas e as mesmas são negadas pelo Poder Público, por meio de
algum dispositivo administrativo que possibilite à mesma esquivar-se de sua
obrigação, há um flagrante desrespeito para com a norma constitucional.
Neste caso, qualquer que seja a negativa a estes direitos há uma lesão a
norma de direito constitucional, dando origem a uma divergência entre sujeitos a
qual remete para o campo processual brasileiro e, assim, cabível ação declaratória
incidental de inconstitucionalidade, com previsão nos artigos 5º e 325 do Código de
Processo Civil, para que, por meio desta, se declare inconstitucional a decisão do
Poder Público que tenta descumprir o seu dever de atender ao cidadão no tocante
ao seu direito. Além disso, reivindica-se, por meio desta ação, que o seu conteúdo
não seja aplicado, anulando os efeitos emanados do instrumento do Poder Público,
já que a sua finalidade precípua não está sendo cumprida.
No foro pós-moderno, entendemos que presentes os pressupostos
processuais e as condições da ação, estando a demanda em trâmite
regular, presente a pretensão de declaração de inconstitucionalidade de
uma lei ou ato normativo, resistida pela parte contrária, surgirá a lide
constitucional prejudicial em seu bojo, cuja solução será necessária e útil
para o julgamento do pedido constante da demanda principal, portanto,
cabível, em tese, a ação declaratória incidental de inconstitucionalidade.
(SILVA, 2009, p. 146).
Não há que se discutir, então, da possibilidade de se defender direitos por
meio desta ação, até porque, segundo Adailson Lima e Silva (2009),
o objeto da ação declaratória de inconstitucionalidade é a relação jurídica de
direito civil, penal, do trabalho controvertida, ou seja, a lei ordinária ou ato
normativo equivalente que se tem por inconstitucional, cuja aplicação
poderá trazer prejuízos ao titular do polo ativo da relação jurídica
processual(p.153).
Assim, sendo as Políticas Sociais Públicas espaço de democratização
social, política, econômica e cultural da sociedade para a consolidação da cidadania
, também se constituem como atribuições do Poder Público e, por isso mesmo, são
passíveis de sofrer a interposição destes instrumentos processuais constitucionais.
CONCLUSÃO
As mudanças no paradigma de Estado trouxeram, em cada momento
histórico-social, uma atuação diferenciada deste em relação às demandas da
sociedade: ora, atuando de forma incisiva, absoluta; ora, deixando de intervir por
mera conveniência e, por fim, intervindo pela exigência de uma sociedade
mobilizada e participativa, consolidada em um sistema democrático brasileiro. Com
isto, passou-se a exigir do Poder Público o dever de se concretizar os ideais de uma
Constituição Democrática e participativa, nos quais os direitos fundamentais
passaram a merecer uma tutela especial, de máxima importância e com maior
efetividade, muitas das vezes, manifestada pela implantação e implementação de
Políticas Sociais Públicas, indispensáveis para o exercício da cidadania no país.
A partir dessas premissas, toda e qualquer disposição legal deve obedecer
ao dirigismo constitucional que orienta para o respeito a estes direitos, minimizando
as distorções produzidas pelo sistema econômico, em cuja base, está a
desigualdade e a exclusão social, motivos determinantes para o usufruto de uma
cidadania plena.
Por esta ótica, conclui-se que os direitos sociais, por serem reconhecidos e
protegidos por um sistema internacional de direitos humanos e recepcionados pela
Constituição Federal brasileira como fundamentais, não podem e não devem sofrer
limitações ou restrições por parte do Poder Público, sob a justificativa de poucos
recursos ou falta de investimentos, pois esta é uma declaração de falência do
Estado e de sua incapacidade para cuidar de seus cidadãos. Antes, há que se
investir em áreas de planejamento, verificando quais as demandas para que se
possam efetivar políticas sociais públicas que respondam à efetivação dos direitos
fundamentais.
Não perdendo de vista a análise crítica, ainda que haja os impositivos de
princípios, em especial o da dignidade da pessoa humana, não se pode
desconsiderar que o Estado Constitucional Democrático de Direito presta uma
resposta fragmentada através destas políticas, contribuindo para a produção e
reprodução dos interesses de uma classe dirigente. Registra-se uma incompetência
do Estado em se garantir os direitos individuais e sociais fundamentais, sendo
notório o reconhecimento da sociedade em relação a esta situação, a qual pode ser
comprovada através dos meios de comunicação que, a todo instante, denunciam
falhas na gestão das Políticas Públicas, seja na área de segurança, de saúde, de
habitação, de educação, dentre outras, o que tem demandado do Judiciário uma
interferência no sentido de se fazer valer as garantias constitucionais.
No sentido de se evitar uma ingerência estatal, a Constituição Federal de
1988 trouxe um aperfeiçoamento na defesa da legalidade ao ampliar os
instrumentos de defesa na garantia dos direitos fundamentais e que estão colocados
à disposição das pessoas, a exemplo do Mandado de Segurança e da Ação
Declaratória Incidental de Inconstitucionalidade, no que tange a acessibilidade às
Políticas Públicas. Ambos, pertencentes ao sistema processual constitucional,
voltados para que o Estado assuma o seu compromisso de garantir o bem comum e
de possibilitar uma justiça social.
A constituição do processo passa a ter uma visão mais humanista, que
permita a participação das partes e o maior aproveitamento para o que foi proposto,
consistindo na sua maior efetividade, especialmente no que se refere a mediadas de
urgência, pois a falta de acesso às Políticas Públicas pode representar um grave
dano para aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade, qualquer que
seja esta.
Destaca-se, assim, que só é possível uma justiça social e vida digna com a
efetiva promoção do homem através do cumprimento dos objetivos constitucionais,
tarefa primordial do Estado Democrático de Direito, representada pela construção
efetiva de políticas públicas enquanto resposta do sistema para que se promova a
estabilidade da ordem econômica e jurídica e a consolidação da cidadania.
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