1 OS DESAFIOS DA CONTEMPORANEIDADE: O CURRÍCULO E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE Rosângela Veiga Júlio Ferreira1 Tereza Cristina Fagundes Neves2 Há uma história, uma herança, naquilo que chamamos de educação. Nessa história, a pergunta pela educação volta para nós mesmos, obrigando-nos a ver bem. Ver bem nossa pergunta, pois toda pergunta pode ser também um abandono, um nevoeiro ou um cruel convite à sinceridade. (SKLIAR, 2002, p. 196) A inteligibilidade da história, dos movimentos vivenciados, está sempre na dependência da interpretação que lhe damos, das perguntas que lhe fazemos. E esta interpretação está vinculada tanto pelos fatores explícitos como pelos implícitos, ou seja, por aquilo que vemos e pelo que não vemos com clareza. Buscar olhar a constituição do currículo, sobre os planos educacionais que o moveram, requer “ver bem” as bases que o sustentaram e as que os sustentam na Atualidade. O tratamento do tema aqui proposto, O currículo e suas implicações para a formação da identidade, implica que tratemos, num primeiro momento, as questões gerais que compõem o cenário educacional da Atualidade. Logo em seguida, a questão mais específica acerca da possibilidade de compreender um currículo aberto à diferença. O eixo norteador de ambos apontamentos é a questão dos desafios impostos pela contemporaneidade, no que tange a busca por um ensino de qualidade. Incluem-se nesta perspectiva a possibilidade de atuar nos entrelugares de uma política de educação excludente. Impulsionadas por um movimento de construção e reconstrução de significados para as questões curriculares, percebemos que os currículos oficiais foram sendo construídos, ao longo da história da educação do Brasil, com base nas normas ditadas no modelo econômico. Ao nosso ver, compreender as mudanças efetivadas, no decorrer dos anos, possibilita um repensar das atuais orientações oficiais em relação ao tema. Ao estudarmos o passado da educação brasileira frente aos movimentos ocorridos no nosso país, verificamos que desde os Jesuítas a educação funciona na lógica da economia e da política, com a finalidade de atender as suas especificidades. Com base nessa colocação, 1 2 Professora do Ensino Fundamental e mestranda em Educação – UFJF Professora do Ensino Fundamental – SME/PJF 2 percebemos que as definições curriculares oficiais negaram à grande maioria de seus cidadãos o direito de acesso ao conhecimento. Voltando a atenção para a década de 1990, que abriga as propostas curriculares atuais, examinamos que nesse período ocorreu um amplo programa de reformas públicas educacionais do Estado brasileiro. Trata-se das discussões da LDB 9394/96, que propõem um diagnóstico dos vários níveis e modalidades de ensino. As propostas buscam a definição de diretrizes e metas de expansão, no período de 10 anos, a fim de atender as necessidades dos governos federais, estaduais, municipais e do Distrito Federal. Contudo, cabe contextualizar que aspectos específicos da lei, apontam mais uma vez para a lógica neoliberal e desconsideram questões sociais do país. Além disso, qualquer plano de expansão da educação, para ter o mínimo de fundamentação técnica, deve fazer uma estimativa dos recursos financeiros e não trabalhar na lógica de criar o Fundo Social de Emergência, o que não aconteceu na elaboração do PNE3. Em outras palavras, esse plano parte do principio que os recursos financeiros são limitados. Assim, por mais bem concebido e intencionado que seja suas possibilidades de realização serão necessariamente limitadas e truncadas se obedecer à ordem capital e não pensar nos problemas sociais. Segundo Teixeira (2000), as propostas dos Parâmetros Curriculares Nacionais foram transformadas em verdadeiro currículo nacional, retirando das escolas, dos estados e dos municípios a prerrogativa de escolher ou não suas diretrizes curriculares. Tomando por base o pensamento de Teixeira, percebe-se que metástases advindas de leis, textos, currículos, de didáticas e dinâmicas refletem idéias de mudanças, mas não mudanças. As políticas educacionais brasileiras persistem na orientação de currículos homogeineizantes, centralizados no Estado e verticalizado, demonstrando, inclusive, que as reflexões teóricas são significativas, mas que não possibilitam uma real autonomia. Apesar destas orientações curriculares defenderem a idéia da participação docente e do olhar acerca dos conhecimentos trazidos pelos alunos ao ingressarem nas escolas, muitos são os entraves desta prática. Percebemos que o conjunto de propostas nos parece como um rosto descaracterizado por “maquiagem sobre maquiagem”. Em outras palavras, as dúvidas, incertezas e discussões a respeito da educação para todos, perpassam por uma construção hierarquizada e didatizada, sendo apenas retocada a cada momento, sem reflexão nem construção coletiva. 3 Plano Nacional de Educação. 3 Ao pensar sobre a perspectiva discutida na metáfora da “maquiagem”, alguns questionamentos vêm à tona: que movimentos têm sido implementados na Atualidade? O que os intelectuais do século XXI discutem acerca de práticas curriculares excludentes? No decorrer das discussões a seguir apresentaremos reflexões que, ao nosso ver, podem ser mais do que análise de dispositivos legais. Para uma grande parcela da sociedade, a escola tem como função fundamental ensinar a ler, escrever, fazer conta, nas palavras de Freire (2003), realizar uma educação bancária. Neste prisma, o imaginário social vê essa instituição como um local que possibilita a aprendizagem das primeiras letras. Por isso, ao lançar os olhos nesse ambiente percebemos múltiplos movimentos. Trata-se de um espaço que revela indícios capazes de possibilitar uma compreensão mais ampla dos movimentos sociais. Há algum tempo, o foco de discussão acerca dos problemas escolares tem sido centrado nos aspectos curriculares. Estudos e pesquisas recentes apontam uma “crise” no que tange à administração do tempo e do espaço, bem como acerca das questões culturais. Objetivando construir uma tessitura entre o que vimos e o que está acontecendo, tomemos como ponto de partida algumas atuações governamentais que podem possibilitar uma compreensão dos movimentos implementados pelo currículo no cerne da educação Moderna4. Arroyo (1999) descreve experiências de inovação educativa, permitindo uma reflexão a respeito da base de formação curricular. Para tal, aponta alguns traços dessas “inovações”, a saber: pensar mudanças sob perspectivas hierarquizantes; diagnósticos negativos acerca do cotidiano escolar; solução centrada na “requalificação” de professores; pesquisas por amostragens possibilitando a definição de estratégias de ação; mudança pautada nos conteúdos e programas, entre outros. A compreensão dessas atuações aponta para um repensar da perspectiva unilateral das políticas inovadoras. Nas palavras do autor: “As políticas inovadoras do atual governo têm esse tripé: novos parâmetros curriculares, novo sistema nacional de avaliação do aprendido e de capacitação dos mediadores – transmissores – os professores” (idem, p.137). Pensar nessa triangulação requer inúmeros questionamentos quanto aos entrelugares que precisam ser analisados como, por exemplo, a questão da diferença. Com base na última afirmação, percebemos que atualmente o ensino tem sido constituído com base num currículo que visa inserir o sujeito na sociedade. Projetos são 4 A princípio podemos pensar a escola como uma invenção e um produto daquilo que denominamos Modernidade. A partir daí, traça-se fronteiras de exclusão e inclusão para percebermos o privilégio dado a essa instituição que acredita ser o único contexto possível de educar. 4 elaborados com propósitos de trazer à tona questões sociais, econômicas e tecnológicas. A escola atual vive a influência de práticas que inovaram a forma de ver educação. Nas colocações de Cavalieri (1999), muitas são as dificuldades enfrentadas pela escola na Atualidade, dentre elas destacamos as sociais, as econômicas e as tecnológicas. Numa perspectiva de aproximação com Arroyo podemos afirmar que a autora aponta para a necessidade de mudança centrada num repensar do conhecimento visando ao fortalecimento desta instituição. Pensando em como operacionalizar um currículo que atenda as especificidades descritas anteriormente, David Rodrigues (2001), sustenta suas argumentações em três perspectivas de atuação: a área de desenvolvimento potencial de Vygotsky (2002); a aprendizagem social e, ainda na possibilidade de vislumbrar o “erro” como pista capaz de nos levar a compreender a constituição do aluno que busca uma forma outra de construir a aprendizagem. Destaca, também, o computador e a corporeidade como preciosas ferramentas de mediação. Nesse contexto, o professor passa a ser considerado um agente capaz de possibilitar olhares plurais acerca do movimento ocorrido na sala de aula. Esse mesmo autor encerra suas discussões centrando o foco no currículo, reitera a necessidade da escola se adaptar aos alunos, aproximando os objetivos de uma perspectiva crítica capaz de problematizar questões. Para tal, destaca o viés da autonomia como uma possibilidade que se abre para que os “tormentos” aflorem e que na multiplicidade das relações os sujeitos possam ocupar um espaço uno no mundo. Tais movimentos de inovação, presentes no contexto escolar, que nas palavras de Arroyo (idem), tenta acompanhar a dinâmica política e social e fazer do currículo algo mais significativo. Contudo, perguntas se fazem presentes na hora de inovar políticas educacionais, dentre elas: que escolas, que conteúdos, que currículos, que organizações, o que se quer inovar e quem serão os sujeitos dessas inovações? São essas algumas das questões para as quais se voltam às pesquisas, que transitam no meio acadêmico, nas políticas sociais e incomodam o cotidiano de professores. Sendo assim, voltando à atenção para escola, percebemos que a mesma apresenta um paradoxo. De um lado uma imensa possibilidade de atuação, planejamento e ação, de outro, temos os maiores fracassos, falta de igualdade e oportunidade. Além disso, a distância do saber em uso com o saber conteudista aponta um traço: a não abertura para as relações que se estabelecem no cotidiano. Em suma, todo o conjunto de ações, que constitui um currículo, pode levar a caminhos que contemplem a inclusão ou simplesmente continuar a transmitir 5 conteúdos e programas hierarquizados. É nesse sentido que inovar pode significar ir além de apresentar propostas curriculares, perpassa, a nosso ver, pela reforma de práticas sociais. Neste contexto de inovação, a escola inclusiva é entendida como espaço de consenso, de tolerância para com os diferentes. Essa escola só pode ser construída a partir de uma pedagogia da diversidade. Neste prisma, a escola se posiciona a partir de uma perspectiva teórica que vai para além de “hospedar”5. O currículo, nesta perspectiva, reverbera o outro. Sendo assim, a inclusão deve estar galgada no respeito pelas condições existenciais de cada um. É nessa lógica, que a escola para todos começa a ser concretizada. Para tanto, se faz necessário tirar a maquiagem, ou seja, “lavar o rosto” retirando as marcas encontradas com o nome de normalidade. Nessa perspectiva, as inovações de escolas construídas a partir das singularidades serão mais concretas. Porque, uma pedagogia do futuro precisa de um alicerce com base no outro, sem fronteira institucional, numa lógica de escola a partir da diferença. IDENTIDADE, DIFERENÇA E ALTERIDADE NA CONSTITUIÇÃO DO CURRÍCULO: O QUE PENSAM ALGUNS INTELECTUAIS NA ATUALIDADE Somos nós que definimos o outro (...). E a alteridade do outro permanece como que reabsorvida em nossa identidade e reforça ainda mais (...). A partir desse ponto de vista, o louco confirma a nossa razão (...); a criança a nossa maturidade; o selvagem, a nossa civilização; o marginalizado, a nossa integração; o estrangeiro, o nosso país; e o deficiente a nossa normalidade. ( LARROSA e LARA, 1998, p. 8) Inicialmente buscaremos compreender a essência dos possíveis significados atribuídos aos termos identidade, diferença e alteridade. As colocações de Larrosa e Lara nos remetem ao poder implícito na dualidade que nomeia, ordena e marca o outro fortemente pela linguagem, ou seja, “o que nos faz iguais e o que nos faz diferentes” (PLACER, 1998, p. 135). De acordo com Silva (2000, p. 14), “a conceitualização de identidade envolve o exame dos sistemas classificatórios que mostram como as relações sociais são organizadas e divididas.”. Portanto, percebemos claramente um sentido ligado à marcação da diferença, noutras palavras, quem é “incluído” ou “excluído”. Com base nas colocações anteriores, podemos afirmar que identidade e diferença possuem uma relação imbricada: diferença determinando identidade ou identidade determinando diferença? Tal definição apresenta uma visão determinista dos termos, sem se 5 Conforme estudos de Skliar (2002). 6 abrir para as singularidades que constituem o ser, uma vez que deveremos nos adequar a um dos aspectos duais, noutras palavras, ou se é “normal” ou “anormal”. Já alteridade pode ser entendida como a possibilidade de compreender o outro em sua essência, em sua complexidade nas relações que estabelecem com múltiplos. Portanto, a nosso ver, respeitar a alteridade significa respeitar as singularidades que constituem o sujeito como ser de direitos. Pensando nessas possibilidades conceituais, nos perguntamos: se a diferença é fortemente marcada pelas relações que, por sua vez, determinam à identidade e, conseqüentemente a alteridade, como driblar as relações de dominação existentes no social? Como é possível entrar em relação com o outro, respeitando as diferenças que o constituem? Como olhar para o outro me colocando em dúvida a ponto de lançar mão de mim? As discussões a respeito do tema diversidade têm suscitado certa instabilidade na forma como percebemos as manifestações sociais que ocorrem na sala de aula. Alguns profissionais sequer conseguem ter consciência de que é necessário compreender o diverso, exatamente porque não há fórmulas para tal. Percebemos, ainda, que o movimento empreendido gera angústias e desconstruções contínuas que não sabemos ao certo como lidar. A nosso ver, as possíveis ciladas apontadas pelas análises de diferentes vertentes conceituais quanto ao significado das palavras diversidade e diferença, remetem ao momento de instabilidade provocado pela Atualidade. As ponderações de Guirado (1998) nos sinalizam um olhar compreensivo sobre a diversidade e a tolerância, sinalizando que nos fundimos com o diferente porque somos todos humanos. Já as discussões de Silva, sinalizam uma distância entre o múltiplo e o diverso. Ao afirmar que “a diversidade reafirma o idêntico e que a multiplicidade é que estimula a diferença que se recusa a se fundir com o diferente” (2000, p.101), penso que, dessa forma, as colocações podem ser vistas como contraposições conceituais, ou como algo que revele uma possibilidade interpretativa pautada no reforço da diferença. Esse mesmo autor apresenta em seu texto uma vertente de análise veiculada pela determinação mútua da identidade e da diferença. Conforme relatamos anteriormente, transitando por caminhos diversos dos apontados nas discussões de Guirado (idem), Silva (idem), aponta para uma perspectiva dual: normalidade x anormalidade, na qual a desigualdade serve para afirmar o igual. Essa reflexão conduz por caminhos que nos levam a concluir que a constituição da identidade está permeada por fatores implícitos do poder. Manter a diferença em destaque, instituir a categorização, entre outros, é algo que interessa a quem detém o poder. De acordo com o posicionamento de Silva, para se 7 compreender as estratégias de controle que vigoram atualmente, um currículo multicultural apoiado na tolerância, compromete a idéia de diversidade. Essa afirmação perpassa pela concepção do conceito atribuído ao termo tolerância. O que consubstancia as reflexões acerca de um currículo voltado para a diversidade, a nosso ver, vai para além de aspectos conceituais. A vertente de análise poderia estar centrada muito mais no como articular as relações sociais de forma a fazer da sala de aula um espaço de enunciações. Temos percebido nas reflexões que para buscar a formação de um currículo flexível, não basta impor normas ou conceitos de forma hierarquizada. Esse movimento requer um olhar diferente sobre todo o processo. Para tal, torna-se necessário desconstruir relações anteriores a respeito da diferença e reconstruir os caminhos da inclusão. Nesta perspectiva, elimina-se o viés da imposição e da tolerância. Imposição ao pensar no currículo como obrigatoriedade; aquele que é colocado pensando na diferença, sem ter a real consciência do que a implica, sem de fato acreditar na possibilidade inclusiva. Ao refletir no outro, através da diferença que o marca e não no que o constitui como ser de relações sociais, gera lacunas de aprendizagem muitas vezes intransponíveis. Partindo dessa premissa, nos perguntamos: o que nós, do lugar de onde estamos, podemos fazer para ressignificar a constituição da identidade nas práticas curriculares? Ao pensar na diversidade que constitui a sala de aula, começamos a ter consciência de que sempre falamos do(s) outro(s), mas não de nós.6 Nessa perspectiva, reiteramos as colocações anteriores afirmando que o movimento de constituição de um currículo, que contemple os aspectos que vêm sendo discutidos, gera instabilidade. Tudo isso porque começamos a perceber que, na busca pela nossa identidade, muitas vezes nos colocamos numa perspectiva simétrica em relação ao saber. Tomar consciência da complexidade desses atos é, a nosso ver, ao mesmo tempo, assustador e revelador. Buscamos compreender melhor as vertentes de análise de Silva (id) em questão para clarear a concepção discutida. Dessa forma, percebemos que o autor define a identidade como “aquilo que se é” possibilitando ao leitor refletir sobre as formas de “silêncios” presentes numa simples afirmativa. Na opinião desse autor, essa afirmativa revela múltiplas negações, silenciando os outros que habitam em nós. Pondera que consideramos a diferença como algo que provém da identidade, reforçando a tese de que são mutuamente determinadas e que são produtos das relações sociais. 6 Questão proposta por Skliar (2002), ao falar da interioridade. 8 Partindo da premissa de que a forma como lidamos com a diversidade é uma produção social, nos perguntamos: como o diverso se constitui? O que está implícito na categorização da diferença? De acordo com o autor, “questionar a identidade e a diferença como relações de poder significa problematizar os binarismos em torno dos quais elas se organizam” (2000, p.83). Nesse momento, nos reportamos às colocações de Foucault (2004), que ressaltam a eficiência da microfísica do poder. Estamos enredados numa teia que leva a produção da diferença, uma vez que somos a representação do poder na perspectiva micro. O discurso presente no imaginário social relaciona identidade e diferença a estereótipos pré-definidos, ligando essas concepções ao poder social. Ao analisar as diferentes manifestações do poder, destacamos o papel da performatividade. Através da enunciação percebe-se claramente a marcação do diferente, atribuindo à linguagem esse viés performativo, reforçando a negatividade ou positividade atribuída a uma dada identidade. A eficácia dessa estratégia de poder está pautada na repetição, conforme podemos perceber nas palavras de Silva: Quando utilizamos uma palavra racista como “negrão” para nos referir a uma pessoa negra do sexo masculino, não estamos simplesmente fazendo uma descrição sobre a cor de uma pessoa. Estamos, na verdade, inserindo-nos em um sistema lingüístico mais amplo que contribui para reforçar a negatividade atribuída à identidade “negra” (idem, p.93). Podemos perceber a manifestação contrária à descrita na colocação anterior, ao analisar o movimento ocorrido num curso de Medicina, por exemplo. Nesse caso, a performance positiva é o fio condutor . Isso ocorre quando os futuros profissionais são levados a crer na sua superioridade, sendo este um diferencial criado a partir da eficiência. Com afirmativas do tipo “vocês são os melhores!” são inseridos no mercado de trabalho. Um outro aspecto que se torna relevante refletirmos é a concepção da pedagogia como diferença, retomando a idéia de que a identidade e a diferença se constituem no social. Este fato impulsiona um repensar dos aspectos pedagógicos e curriculares, uma vez que vê o outro como um corpo diferente e aponta estratégias para atuar nos aspectos pedagógicos. Percebemos nas colocações anteriores dois vieses: há um olhar compreensivo à diversidade cultural, procurando levar os alunos a conviver com os diferentes grupos culturais, destacando a preocupação com as dicotomias que podem surgir. Mas há, também, 9 uma segunda visão, que atribui um caráter patológico à diferença, afirmando que as dificuldades de convivência advêm do preconceito. Ao declarar essas estratégias, bem como os espaços existentes entre elas, o autor revela a necessidade de abordar a pedagogia e o currículo sob um viés político, analisando o processo de produção da identidade e da diferença, além dos mecanismos implícitos nessa relação. De acordo com suas colocações, a base do currículo deve se pautar na multiplicidade “a diversidade reafirma o idêntico e a multiplicidade estimula a diferença que se recusa a se fundir com o idêntico.” (idem, p. 101). Retomamos as colocações anteriores, reconhecendo nossa dificuldade em vislumbrar a base da concepção de currículo inter/multicultural, já que acreditamos que o múltiplo e diverso não se contrapõem, e que não devemos ressaltar a diferença, mas conviver com os diferentes que se constituem na diversidade. Nesse ponto nos contrapomos ao que é dito por Silva no parágrafo anterior, no entanto, concordamos com ele no que diz respeito à relevância de se analisar os aspectos implícitos nas manifestações de poder que envolve a constituição da identidade. Sendo assim, o que colocamos em diálogo é a importância de compreender os movimentos empreendidos na Atualidade para buscar caminhos que levem a não reprodução da inclusão como manutenção da ordem social. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES No decorrer das reflexões e apontamentos empreendidos neste artigo, tivemos a oportunidade de perceber a necessidade de nos abrirmos para movimentos de inovação. O visível e o invisível aos olhos dos educadores instigam práticas de mudanças. Para tal, pensar num currículo que atenda as singularidades pode atribuir múltiplos olhares acerca dessa questão, uma vez que percebemos que a concepção autoritária das diretrizes propostas hierarquicamente reflete na forma com a qual o currículo é implementado e veiculado no contexto escolar da Atualidade. A idéia proposta exige uma nova forma de pensar, com movimentos mais dinâmicos, articulados, trabalhando-se entre os lugares deixados no currículo conteudista. Portanto, refletir na capacidade do individuo e como esse aprende e adquire dignidade, é fator que se pode levar em consideração na hora de ensinar. A educação aberta ao nascimento, à ética e à singularidade pode permitir um repensar constante dos saberes que temos a respeito dos outros. Dessa forma, o outro é algo absolutamente novo que dissolve o enrijecimento do mundo e abala nossas certezas. 10 Ao tentar dissolver esse enrijecimento podemos deixar de projetar no outro o que somos o que queremos ou buscamos. Para tal, torna-se necessário nos abrir para os inúmeros mistérios que envolvem a singularidade do outro. Se o entendermos num movimento de continuum poderemos romper com a idéia de temporalidade, tal qual se apresenta nos currículos atuais. Como conseqüência dessa possibilidade de ruptura, o tempo estará sempre aberto a um novo começo. Pedagogicamente falando, refletir a respeito das relações de saber e poder presentes num currículo fechado poderão provocar um repensar das relações autoritárias, permitindo, dessa forma, que as singularidades se manifestem nas fendas, nas rachaduras, nas incompreensões, ou seja, onde as incertezas habitam e os “outros” se manifestam. Com este pensamento nos perguntamos: que sentidos apontamos hoje às disciplinas que constituem o currículo? De que forma percebemos nossos alunos: como “massa a modelar” ou “riqueza a preservar”? Respeito à singularidade de meus alunos ou derrubo sobre eles o meu saber? Que tipos de interações são revelados nos currículos atuais? Os professores se abrem para a diferença? Na constituição do currículo, as vozes dos professores / alunos são ouvidas? Enfim, a quem cabe a ruptura com um currículo excludente: à elite educacional, ao professor ou ao movimento impulsionado pelo cotidiano? Romper com práticas de exclusões presentes no cotidiano escolar constitui um passo importante na tomada de decisão rumo a uma sociedade mais justa e mais solidária. Para se falar em currículo é necessário pensar em uma pedagogia que não seja só a fabricação de projeto para o futuro, mas a construção do mesmo. Uma pedagogia sem máscaras classificatórias e excludentes. Nesta perspectiva a prática contemporânea abre espaço para mudanças educacionais que contemple uma educação construída a partir das diferenças. Para tanto, precisamos de um novo sujeito, pedagogos capazes de refletir acerca da imagem vertiginosa de mundo em algo mais híbrido. O que se propõe atualmente é a ruptura com a rigidez institucional aproximando o currículo da vida. Procurando ver o invisível aos olhos e compreender os movimentos duais que ocorrem no confronto com o visível. Para consubstanciar essa proposta faz-se necessário romper com paradigmas unidimensionais do conhecimento e do aluno, concebendo-o como um ser particular que se constitui na integralidade, através das múltiplas relações que estabelece com o mundo. O convite que fazemos ao leitor é o de olhar para as concepções de currículo, que permeiam o meio educacional, com “óculos” que permitam olhar para além do nevoeiro. Para permitir que a diferença conquiste um espaço na constituição do currículo é necessário 11 possibilitar espaços de reflexão. Noutras palavras, um viés que pense a diferença para que se possa ver, sentir e viver a vida em seu devir. Um caminho possível para se fazer propostas curriculares pode ser o da “inovação”, no sentido de mudanças substantivas. Experimentar abrir-se para os movimentos implementados no cotidiano sem medo de arriscar, aventurando e partilhando com outras pessoas afetos, sensações, desejos, aprendizagens... REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARROYO, G. Miguel. Experiências de inovação educativa: o currículo na prática da escola. In: Currículo: políticas e práticas, Campinas, SP: Papiros. 1999. p. 131-64. CAVALIÉRI, Ana Maria Villela. Uma escola para a modernidade em crise: considerações sobre a ampliação das funções da escola fundamental. In: Moreira, Antônio Flávio Barbosa (org.). Currículo: políticas e práticas. Campinas, São Paulo: Papirus, 1999. p. 115-29. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 5.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder.Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004. GUIRADO, Marlene. Diferença e alteridade: dos equívocos inevitáveis. In: AQUINO, Júlio Groppa. Diferenças e preconceito na escola: alternativas teóricas e práticas. 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