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OS DESAFIOS DA CONTEMPORANEIDADE: O CURRÍCULO E SUAS
IMPLICAÇÕES PARA A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE
Rosângela Veiga Júlio Ferreira1
Tereza Cristina Fagundes Neves2
Há uma história, uma herança, naquilo que chamamos de
educação.
Nessa história, a pergunta pela educação volta para nós
mesmos, obrigando-nos a ver bem.
Ver bem nossa pergunta, pois toda pergunta pode ser também
um abandono, um nevoeiro ou um cruel convite à sinceridade.
(SKLIAR, 2002, p. 196)
A inteligibilidade da história, dos movimentos vivenciados, está sempre na
dependência da interpretação que lhe damos, das perguntas que lhe fazemos. E esta
interpretação está vinculada tanto pelos fatores explícitos como pelos implícitos, ou seja, por
aquilo que vemos e pelo que não vemos com clareza. Buscar olhar a constituição do currículo,
sobre os planos educacionais que o moveram, requer “ver bem” as bases que o sustentaram e
as que os sustentam na Atualidade.
O tratamento do tema aqui proposto, O currículo e suas implicações para a formação
da identidade, implica que tratemos, num primeiro momento, as questões gerais que
compõem o cenário educacional da Atualidade. Logo em seguida, a questão mais específica
acerca da possibilidade de compreender um currículo aberto à diferença. O eixo norteador de
ambos apontamentos é a questão dos desafios impostos pela contemporaneidade, no que tange
a busca por um ensino de qualidade. Incluem-se nesta perspectiva a possibilidade de atuar nos
entrelugares de uma política de educação excludente.
Impulsionadas por um movimento de construção e reconstrução de significados para
as questões curriculares, percebemos que os currículos oficiais foram sendo construídos, ao
longo da história da educação do Brasil, com base nas normas ditadas no modelo econômico.
Ao nosso ver, compreender as mudanças efetivadas, no decorrer dos anos, possibilita um
repensar das atuais orientações oficiais em relação ao tema.
Ao estudarmos o passado da educação brasileira frente aos movimentos ocorridos
no nosso país, verificamos que desde os Jesuítas a educação funciona na lógica da economia e
da política, com a finalidade de atender as suas especificidades. Com base nessa colocação,
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Professora do Ensino Fundamental e mestranda em Educação – UFJF
Professora do Ensino Fundamental – SME/PJF
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percebemos que as definições curriculares oficiais negaram à grande maioria de seus cidadãos
o direito de acesso ao conhecimento.
Voltando a atenção para a década de 1990, que abriga as propostas curriculares
atuais, examinamos que nesse período ocorreu um amplo programa de reformas públicas
educacionais do Estado brasileiro. Trata-se das discussões da LDB 9394/96, que propõem um
diagnóstico dos vários níveis e modalidades de ensino. As propostas buscam a definição de
diretrizes e metas de expansão, no período de 10 anos, a fim de atender as necessidades dos
governos federais, estaduais, municipais e do Distrito Federal. Contudo, cabe contextualizar
que aspectos específicos da lei, apontam mais uma vez para a lógica neoliberal e
desconsideram questões sociais do país. Além disso, qualquer plano de expansão da educação,
para ter o mínimo de fundamentação técnica, deve fazer uma estimativa dos recursos
financeiros e não trabalhar na lógica de criar o Fundo Social de Emergência, o que não
aconteceu na elaboração do PNE3. Em outras palavras, esse plano parte do principio que os
recursos financeiros são limitados. Assim, por mais bem concebido e intencionado que seja
suas possibilidades de realização serão necessariamente limitadas e truncadas se obedecer à
ordem capital e não pensar nos problemas sociais. Segundo Teixeira (2000), as propostas dos
Parâmetros Curriculares Nacionais foram transformadas em verdadeiro currículo nacional,
retirando das escolas, dos estados e dos municípios a prerrogativa de escolher ou não suas
diretrizes curriculares.
Tomando por base o pensamento de Teixeira, percebe-se que metástases advindas de
leis, textos, currículos, de didáticas e dinâmicas refletem idéias de mudanças, mas não
mudanças. As políticas educacionais brasileiras persistem na orientação de currículos
homogeineizantes, centralizados no Estado e verticalizado, demonstrando, inclusive, que as
reflexões teóricas são significativas, mas que não possibilitam uma real autonomia. Apesar
destas orientações curriculares defenderem a idéia da participação docente e do olhar acerca
dos conhecimentos trazidos pelos alunos ao ingressarem nas escolas, muitos são os entraves
desta prática.
Percebemos que o conjunto de propostas nos parece como um rosto descaracterizado
por “maquiagem sobre maquiagem”. Em outras palavras, as dúvidas, incertezas e discussões a
respeito da educação para todos, perpassam por uma construção hierarquizada e didatizada,
sendo apenas retocada a cada momento, sem reflexão nem construção coletiva.
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Plano Nacional de Educação.
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Ao pensar sobre a perspectiva discutida na metáfora da “maquiagem”, alguns
questionamentos vêm à tona: que movimentos têm sido implementados na Atualidade? O que
os intelectuais do século XXI discutem acerca de práticas curriculares excludentes? No
decorrer das discussões a seguir apresentaremos reflexões que, ao nosso ver, podem ser mais
do que análise de dispositivos legais.
Para uma grande parcela da sociedade, a escola tem como função fundamental ensinar
a ler, escrever, fazer conta, nas palavras de Freire (2003), realizar uma educação bancária.
Neste prisma, o imaginário social vê essa instituição como um local que possibilita a
aprendizagem das primeiras letras. Por isso, ao lançar os olhos nesse ambiente percebemos
múltiplos movimentos. Trata-se de um espaço que revela indícios capazes de possibilitar uma
compreensão mais ampla dos movimentos sociais. Há algum tempo, o foco de discussão
acerca dos problemas escolares tem sido centrado nos aspectos curriculares. Estudos e
pesquisas recentes apontam uma “crise” no que tange à administração do tempo e do espaço,
bem como acerca das questões culturais.
Objetivando construir uma tessitura entre o que vimos e o que está acontecendo,
tomemos como ponto de partida algumas atuações governamentais que podem possibilitar
uma compreensão dos movimentos implementados pelo currículo no cerne da educação
Moderna4. Arroyo (1999) descreve experiências de inovação educativa, permitindo uma
reflexão a respeito da base de formação curricular. Para tal, aponta alguns traços dessas
“inovações”, a saber: pensar mudanças sob perspectivas hierarquizantes; diagnósticos
negativos acerca do cotidiano escolar; solução centrada na “requalificação” de professores;
pesquisas por amostragens possibilitando a definição de estratégias de ação; mudança pautada
nos conteúdos e programas, entre outros. A compreensão dessas atuações aponta para um
repensar da perspectiva unilateral das políticas inovadoras. Nas palavras do autor: “As
políticas inovadoras do atual governo têm esse tripé: novos parâmetros curriculares, novo
sistema nacional de avaliação do aprendido e de capacitação dos mediadores – transmissores
– os professores” (idem, p.137). Pensar nessa triangulação requer inúmeros questionamentos
quanto aos entrelugares que precisam ser analisados como, por exemplo, a questão da
diferença.
Com base na última afirmação, percebemos que atualmente o ensino tem sido
constituído com base num currículo que visa inserir o sujeito na sociedade. Projetos são
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A princípio podemos pensar a escola como uma invenção e um produto daquilo que denominamos
Modernidade. A partir daí, traça-se fronteiras de exclusão e inclusão para percebermos o privilégio dado a essa
instituição que acredita ser o único contexto possível de educar.
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elaborados com propósitos de trazer à tona questões sociais, econômicas e tecnológicas. A
escola atual vive a influência de práticas que inovaram a forma de ver educação. Nas
colocações de Cavalieri (1999), muitas são as dificuldades enfrentadas pela escola na
Atualidade, dentre elas destacamos as sociais, as econômicas e as tecnológicas. Numa
perspectiva de aproximação com Arroyo podemos afirmar que a autora aponta para a
necessidade de mudança centrada num repensar do conhecimento visando ao fortalecimento
desta instituição.
Pensando em como operacionalizar um currículo que atenda as especificidades
descritas anteriormente, David Rodrigues (2001), sustenta suas argumentações em três
perspectivas de atuação: a área de desenvolvimento potencial de Vygotsky (2002); a
aprendizagem social e, ainda na possibilidade de vislumbrar o “erro” como pista capaz de nos
levar a compreender a constituição do aluno que busca uma forma outra de construir a
aprendizagem. Destaca, também, o computador e a corporeidade como preciosas ferramentas
de mediação. Nesse contexto, o professor passa a ser considerado um agente capaz de
possibilitar olhares plurais acerca do movimento ocorrido na sala de aula.
Esse mesmo autor encerra suas discussões centrando o foco no currículo, reitera a
necessidade da escola se adaptar aos alunos, aproximando os objetivos de uma perspectiva
crítica capaz de problematizar questões. Para tal, destaca o viés da autonomia como uma
possibilidade que se abre para que os “tormentos” aflorem e que na multiplicidade das
relações os sujeitos possam ocupar um espaço uno no mundo.
Tais movimentos de inovação, presentes no contexto escolar, que nas palavras de
Arroyo (idem), tenta acompanhar a dinâmica política e social e fazer do currículo algo mais
significativo. Contudo, perguntas se fazem presentes na hora de inovar políticas educacionais,
dentre elas: que escolas, que conteúdos, que currículos, que organizações, o que se quer
inovar e quem serão os sujeitos dessas inovações? São essas algumas das questões para as
quais se voltam às pesquisas, que transitam no meio acadêmico, nas políticas sociais e
incomodam o cotidiano de professores.
Sendo assim, voltando à atenção para escola, percebemos que a mesma apresenta
um paradoxo. De um lado uma imensa possibilidade de atuação, planejamento e ação, de
outro, temos os maiores fracassos, falta de igualdade e oportunidade. Além disso, a distância
do saber em uso com o saber conteudista aponta um traço: a não abertura para as relações que
se estabelecem no cotidiano. Em suma, todo o conjunto de ações, que constitui um currículo,
pode levar a caminhos que contemplem a inclusão ou simplesmente continuar a transmitir
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conteúdos e programas hierarquizados. É nesse sentido que inovar pode significar ir além de
apresentar propostas curriculares, perpassa, a nosso ver, pela reforma de práticas sociais.
Neste contexto de inovação, a escola inclusiva é entendida como espaço de consenso,
de tolerância para com os diferentes. Essa escola só pode ser construída a partir de uma
pedagogia da diversidade. Neste prisma, a escola se posiciona a partir de uma perspectiva
teórica que vai para além de “hospedar”5. O currículo, nesta perspectiva, reverbera o outro.
Sendo assim, a inclusão deve estar galgada no respeito pelas condições existenciais de cada
um. É nessa lógica, que a escola para todos começa a ser concretizada.
Para tanto, se faz necessário tirar a maquiagem, ou seja, “lavar o rosto” retirando as
marcas encontradas com o nome de normalidade. Nessa perspectiva, as inovações de escolas
construídas a partir das singularidades serão mais concretas. Porque, uma pedagogia do futuro
precisa de um alicerce com base no outro, sem fronteira institucional, numa lógica de escola a
partir da diferença.
IDENTIDADE, DIFERENÇA E ALTERIDADE NA CONSTITUIÇÃO DO
CURRÍCULO: O QUE PENSAM ALGUNS INTELECTUAIS NA ATUALIDADE
Somos nós que definimos o outro (...). E a alteridade do outro
permanece como que reabsorvida em nossa identidade e reforça
ainda mais (...). A partir desse ponto de vista, o louco confirma
a nossa razão (...); a criança a nossa maturidade; o selvagem, a
nossa civilização; o marginalizado, a nossa integração; o
estrangeiro, o nosso país; e o deficiente a nossa normalidade.
( LARROSA e LARA, 1998, p. 8)
Inicialmente buscaremos compreender a essência dos possíveis significados
atribuídos aos termos identidade, diferença e alteridade. As colocações de Larrosa e Lara nos
remetem ao poder implícito na dualidade que nomeia, ordena e marca o outro fortemente pela
linguagem, ou seja, “o que nos faz iguais e o que nos faz diferentes” (PLACER, 1998, p.
135). De acordo com Silva (2000, p. 14), “a conceitualização de identidade envolve o exame
dos sistemas classificatórios que mostram como as relações sociais são organizadas e
divididas.”. Portanto, percebemos claramente um sentido ligado à marcação da diferença,
noutras palavras, quem é “incluído” ou “excluído”.
Com base nas colocações anteriores, podemos afirmar que identidade e diferença
possuem uma relação imbricada: diferença determinando identidade ou identidade
determinando diferença? Tal definição apresenta uma visão determinista dos termos, sem se
5
Conforme estudos de Skliar (2002).
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abrir para as singularidades que constituem o ser, uma vez que deveremos nos adequar a um
dos aspectos duais, noutras palavras, ou se é “normal” ou “anormal”.
Já alteridade pode ser entendida como a possibilidade de compreender o outro em sua
essência, em sua complexidade nas relações que estabelecem com múltiplos. Portanto, a nosso
ver, respeitar a alteridade significa respeitar as singularidades que constituem o sujeito como
ser de direitos.
Pensando nessas possibilidades conceituais, nos perguntamos: se a diferença é
fortemente marcada pelas relações que, por sua vez, determinam à identidade e,
conseqüentemente a alteridade, como driblar as relações de dominação existentes no social?
Como é possível entrar em relação com o outro, respeitando as diferenças que o constituem?
Como olhar para o outro me colocando em dúvida a ponto de lançar mão de mim?
As discussões a respeito do tema diversidade têm suscitado certa instabilidade na
forma como percebemos as manifestações sociais que ocorrem na sala de aula. Alguns
profissionais sequer conseguem ter consciência de que é necessário compreender o diverso,
exatamente porque não há fórmulas para tal. Percebemos, ainda, que o movimento
empreendido gera angústias e desconstruções contínuas que não sabemos ao certo como lidar.
A nosso ver, as possíveis ciladas apontadas pelas análises de diferentes vertentes conceituais
quanto ao significado das palavras diversidade e diferença, remetem ao momento de
instabilidade provocado pela Atualidade.
As ponderações de Guirado (1998) nos sinalizam um olhar compreensivo sobre a
diversidade e a tolerância, sinalizando que nos fundimos com o diferente porque somos todos
humanos. Já as discussões de Silva, sinalizam uma distância entre o múltiplo e o diverso. Ao
afirmar que “a diversidade reafirma o idêntico e que a multiplicidade é que estimula a
diferença que se recusa a se fundir com o diferente” (2000, p.101), penso que, dessa forma, as
colocações podem ser vistas como contraposições conceituais, ou como algo que revele uma
possibilidade interpretativa pautada no reforço da diferença.
Esse mesmo autor apresenta em seu texto uma vertente de análise veiculada pela
determinação mútua da identidade e da diferença. Conforme relatamos anteriormente,
transitando por caminhos diversos dos apontados nas discussões de Guirado (idem), Silva
(idem), aponta para uma perspectiva dual: normalidade x anormalidade, na qual a
desigualdade serve para afirmar o igual. Essa reflexão conduz por caminhos que nos levam a
concluir que a constituição da identidade está permeada por fatores implícitos do poder.
Manter a diferença em destaque, instituir a categorização, entre outros, é algo que
interessa a quem detém o poder. De acordo com o posicionamento de Silva, para se
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compreender as estratégias de controle que vigoram atualmente, um currículo multicultural
apoiado na tolerância, compromete a idéia de diversidade. Essa afirmação perpassa pela
concepção do conceito atribuído ao termo tolerância.
O que consubstancia as reflexões acerca de um currículo voltado para a
diversidade, a nosso ver, vai para além de aspectos conceituais. A vertente de análise poderia
estar centrada muito mais no como articular as relações sociais de forma a fazer da sala de
aula um espaço de enunciações.
Temos percebido nas reflexões que para buscar a formação de um currículo
flexível, não basta impor normas ou conceitos de forma hierarquizada. Esse movimento
requer um olhar diferente sobre todo o processo. Para tal, torna-se necessário desconstruir
relações anteriores a respeito da diferença e reconstruir os caminhos da inclusão.
Nesta perspectiva, elimina-se o viés da imposição e da tolerância. Imposição ao
pensar no currículo como obrigatoriedade; aquele que é colocado pensando na diferença, sem
ter a real consciência do que a implica, sem de fato acreditar na possibilidade inclusiva. Ao
refletir no outro, através da diferença que o marca e não no que o constitui como ser de
relações sociais, gera lacunas de aprendizagem muitas vezes intransponíveis. Partindo dessa
premissa, nos perguntamos: o que nós, do lugar de onde estamos, podemos fazer para
ressignificar a constituição da identidade nas práticas curriculares?
Ao pensar na diversidade que constitui a sala de aula, começamos a ter
consciência de que sempre falamos do(s) outro(s), mas não de nós.6 Nessa perspectiva,
reiteramos as colocações anteriores afirmando que o movimento de constituição de um
currículo, que contemple os aspectos que vêm sendo discutidos, gera instabilidade. Tudo isso
porque começamos a perceber que, na busca pela nossa identidade, muitas vezes nos
colocamos numa perspectiva simétrica em relação ao saber. Tomar consciência da
complexidade desses atos é, a nosso ver, ao mesmo tempo, assustador e revelador.
Buscamos compreender melhor as vertentes de análise de Silva (id) em questão
para clarear a concepção discutida. Dessa forma, percebemos que o autor define a identidade
como “aquilo que se é” possibilitando ao leitor refletir sobre as formas de “silêncios”
presentes numa simples afirmativa. Na opinião desse autor, essa afirmativa revela múltiplas
negações, silenciando os outros que habitam em nós. Pondera que consideramos a diferença
como algo que provém da identidade, reforçando a tese de que são mutuamente determinadas
e que são produtos das relações sociais.
6
Questão proposta por Skliar (2002), ao falar da interioridade.
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Partindo da premissa de que a forma como lidamos com a diversidade é uma
produção social, nos perguntamos: como o diverso se constitui? O que está implícito na
categorização da diferença?
De acordo com o autor, “questionar a identidade e a diferença como relações de
poder significa problematizar os binarismos em torno dos quais elas se organizam” (2000,
p.83). Nesse momento, nos reportamos às colocações de Foucault (2004), que ressaltam a
eficiência da microfísica do poder. Estamos enredados numa teia que leva a produção da
diferença, uma vez que somos a representação do poder na perspectiva micro.
O discurso presente no imaginário social relaciona identidade e diferença a
estereótipos pré-definidos, ligando essas concepções ao poder social.
Ao analisar as diferentes manifestações do poder, destacamos o papel da
performatividade. Através da enunciação percebe-se claramente a marcação do diferente,
atribuindo à linguagem esse viés performativo, reforçando a negatividade ou positividade
atribuída a uma dada identidade. A eficácia dessa estratégia de poder está pautada na
repetição, conforme podemos perceber nas palavras de Silva:
Quando utilizamos uma palavra racista como “negrão” para nos
referir a uma pessoa negra do sexo masculino, não estamos
simplesmente fazendo uma descrição sobre a cor de uma pessoa.
Estamos, na verdade, inserindo-nos em um sistema lingüístico mais
amplo que contribui para reforçar a negatividade atribuída à
identidade “negra” (idem, p.93).
Podemos perceber a manifestação contrária à descrita na colocação anterior, ao
analisar o movimento ocorrido num curso de Medicina, por exemplo. Nesse caso, a
performance positiva é o fio condutor . Isso ocorre quando os futuros profissionais são
levados a crer na sua superioridade, sendo este um diferencial criado a partir da eficiência.
Com afirmativas do tipo “vocês são os melhores!” são inseridos no mercado de trabalho.
Um outro aspecto que se torna relevante refletirmos é a concepção da pedagogia
como diferença, retomando a idéia de que a identidade e a diferença se constituem no social.
Este fato impulsiona um repensar dos aspectos pedagógicos e curriculares, uma vez que vê o
outro como um corpo diferente e aponta estratégias para atuar nos aspectos pedagógicos.
Percebemos nas colocações anteriores dois vieses: há um olhar compreensivo à
diversidade cultural, procurando levar os alunos a conviver com os diferentes grupos
culturais, destacando a preocupação com as dicotomias que podem surgir. Mas há, também,
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uma segunda visão, que atribui um caráter patológico à diferença, afirmando que as
dificuldades de convivência advêm do preconceito.
Ao declarar essas estratégias, bem como os espaços existentes entre elas, o autor
revela a necessidade de abordar a pedagogia e o currículo sob um viés político, analisando o
processo de produção da identidade e da diferença, além dos mecanismos implícitos nessa
relação. De acordo com suas colocações, a base do currículo deve se pautar na multiplicidade
“a diversidade reafirma o idêntico e a multiplicidade estimula a diferença que se recusa a se
fundir com o idêntico.” (idem, p. 101).
Retomamos as colocações anteriores, reconhecendo nossa dificuldade em
vislumbrar a base da concepção de currículo inter/multicultural, já que acreditamos que o
múltiplo e diverso não se contrapõem, e que não devemos ressaltar a diferença, mas conviver
com os diferentes que se constituem na diversidade. Nesse ponto nos contrapomos ao que é
dito por Silva no parágrafo anterior, no entanto, concordamos com ele no que diz respeito à
relevância de se analisar os aspectos implícitos nas manifestações de poder que envolve a
constituição da identidade. Sendo assim, o que colocamos em diálogo é a importância de
compreender os movimentos empreendidos na Atualidade para buscar caminhos que levem a
não reprodução da inclusão como manutenção da ordem social.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
No decorrer das reflexões e apontamentos empreendidos neste artigo, tivemos a
oportunidade de perceber a necessidade de nos abrirmos para movimentos de inovação. O
visível e o invisível aos olhos dos educadores instigam práticas de mudanças. Para tal, pensar
num currículo que atenda as singularidades pode atribuir múltiplos olhares acerca dessa
questão, uma vez que percebemos que a concepção autoritária das diretrizes propostas
hierarquicamente reflete na forma com a qual o currículo é implementado e veiculado no
contexto escolar da Atualidade.
A idéia proposta exige uma nova forma de pensar, com movimentos mais dinâmicos,
articulados, trabalhando-se entre os lugares deixados no currículo conteudista. Portanto,
refletir na capacidade do individuo e como esse aprende e adquire dignidade, é fator que se
pode levar em consideração na hora de ensinar.
A educação aberta ao nascimento, à ética e à singularidade pode permitir um
repensar constante dos saberes que temos a respeito dos outros. Dessa forma, o outro é algo
absolutamente novo que dissolve o enrijecimento do mundo e abala nossas certezas.
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Ao tentar dissolver esse enrijecimento podemos deixar de projetar no outro o que
somos o que queremos ou buscamos. Para tal, torna-se necessário nos abrir para os inúmeros
mistérios que envolvem a singularidade do outro. Se o entendermos num movimento de
continuum poderemos romper com a idéia de temporalidade, tal qual se apresenta nos
currículos atuais. Como conseqüência dessa possibilidade de ruptura, o tempo estará sempre
aberto a um novo começo.
Pedagogicamente falando, refletir a respeito das relações de saber e poder presentes
num currículo fechado poderão provocar um repensar das relações autoritárias, permitindo,
dessa forma, que as singularidades se manifestem nas fendas, nas rachaduras, nas
incompreensões, ou seja, onde as incertezas habitam e os “outros” se manifestam.
Com este pensamento nos perguntamos: que sentidos apontamos hoje às disciplinas
que constituem o currículo? De que forma percebemos nossos alunos: como “massa a
modelar” ou “riqueza a preservar”? Respeito à singularidade de meus alunos ou derrubo sobre
eles o meu saber? Que tipos de interações são revelados nos currículos atuais? Os professores
se abrem para a diferença? Na constituição do currículo, as vozes dos professores / alunos são
ouvidas? Enfim, a quem cabe a ruptura com um currículo excludente: à elite educacional, ao
professor ou ao movimento impulsionado pelo cotidiano?
Romper com práticas de exclusões presentes no cotidiano escolar constitui um passo
importante na tomada de decisão rumo a uma sociedade mais justa e mais solidária. Para se
falar em currículo é necessário pensar em uma pedagogia que não seja só a fabricação de
projeto para o futuro, mas a construção do mesmo. Uma pedagogia sem máscaras
classificatórias e excludentes. Nesta perspectiva a prática contemporânea abre espaço para
mudanças educacionais que contemple uma educação construída a partir das diferenças. Para
tanto, precisamos de um novo sujeito, pedagogos capazes de refletir acerca da imagem
vertiginosa de mundo em algo mais híbrido.
O que se propõe atualmente é a ruptura com a rigidez institucional aproximando o
currículo da vida. Procurando ver o invisível aos olhos e compreender os movimentos duais
que ocorrem no confronto com o visível. Para consubstanciar essa proposta faz-se necessário
romper com paradigmas unidimensionais do conhecimento e do aluno, concebendo-o como
um ser particular que se constitui na integralidade, através das múltiplas relações que
estabelece com o mundo.
O convite que fazemos ao leitor é o de olhar para as concepções de currículo, que
permeiam o meio educacional, com “óculos” que permitam olhar para além do nevoeiro. Para
permitir que a diferença conquiste um espaço na constituição do currículo é necessário
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possibilitar espaços de reflexão. Noutras palavras, um viés que pense a diferença para que se
possa ver, sentir e viver a vida em seu devir. Um caminho possível para se fazer propostas
curriculares pode ser o da “inovação”, no sentido de mudanças substantivas. Experimentar
abrir-se para os movimentos implementados no cotidiano sem medo de arriscar, aventurando
e partilhando com outras pessoas afetos, sensações, desejos, aprendizagens...
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