Um cordel pós-moderno
Chico César estréia em livro, com um canto de amor e
amizade
No CD Cuscuz-Clã, lançado em 1996, há uma canção de Chico
César intitulada “esta”, que diz assim:
“nenhuma mulher me basta
mesmo que se meta a besta
mesmo que se finja casta
venha rindo numa cesta
hare-krishna puta ou rasta
dê-me prazer reza êxtase
chegue quando o mal se afasta
nenhuma mulher me basta
a não ser esta
assim é
esta...”
Esta de que fala o compositor paraibano bem pode ser Tata
Fernandes, musa-alvo de seu primeiro livro de poemas que estará
sendo lançado neste sábado 24, em João Pessoa, no Parahyba
Café, pela Editora Garamond: “Cantáteis: Cantos elegíacos do
amozade”. Isso mesmo, amozade! Um termo híbrido de que Chico
César lançou mão para definir o amor e a amizade por uma mulher.
A obra pode ser classificada como um cordel pós-moderno, como a
define o release da editora. Afinal, todos os elementos literários e
artísticos da pós-modernidade estão presentes no longo poema
dedicado a Tata Fernandes. Isso na linguagem e no ritmo acelerado
do cordel. Se amozade é um termo híbrido para definir o encanto
por uma mulher, cordel pós-moderno bem que poderia ser também
a junção de estilos sempre presente na produção cultural de Chico
César, desde os tempos do Jaguaribe Carne até os dias atuais,
com vários CDs lançados e uma estética singular.
“Cantáteis” revela, sim, um poeta original, erudito e afinado com a
sensibilidade contemporânea. Um poeta capaz de dialogar, com
vigor e originalidade, com os cantos do sertão e da Divina Comédia,
com o pop, com o modernismo latino-americano, com a poesia
brasileira e, é claro, com a música popular. Mas é bem mais do que
isso. É também a estréia surpreendente do compositor paraibano
na poesia escrita, visto que em sua música há muito de poesia e
lirismo.
Além de tudo, revela um poeta ousado, dialogando com a
contemporaneidade e arriscando num poema longo, como se fora
um escritor acostumado a dialogar com a tradição literária de um
Dante, um Camões ou até mesmo um Haroldo de Campos.
Assim é que o poeta inicia seus cantos elegíacos, explicando-se
para o objeto de desejo, no melhor estilo do cordel tradicional:
seu poeta preferido
bem antes de ser ferido
já era ferido antes
não visitou as bacantes
as nereidas e as ninfas
quis beber de sua linfa
esperou e não morreu
esse poeta sou eu
de lira desgovernada
deliro musa amada
órfão bisneto de Orfeu”.
A partir daí, o livro é um passeio por todas as nossas referências
culturais ao longo dos tempos. Diria, que mais do que um canto de
amor a amizade, é um canto tropicalista, com um toque da
antropofagia de Oswald de Andrade, mas sem abrir mão dos
clássicos que tanto encantam aos leitores. Uma espécie de geléia
geral, onde o amor, ou a amozade, como prefere Chico César,
aparece refletido em mil espelhos da sociedade. Como se dissesse
para a musa: existem mil formas de lhe amar. Confira, então!
Daí que o poeta passeia pela Veneza brasileira, nossa Recife, bebe
chá de sumiço em Sumaré, reaparece como fogo fátuo, busca o
nordeste armorial com o sangue da onça parda, pula para o nosso
ritmo nordestino ao som do triângulo e da zabumba, mas não
esquece a erudição e os livros de Roland Barthes.
A idealização do amor vem quando o poeta sonha em ser Dante,
para reverenciar sua Isabel. Mas uma idealização concreta, diria.
Pois passeia pelas ruas de João Pessoa, lembra as barbas de Fidel
Castro, a ganância de Wall Street e até do inesquecível Nescau,
sem esquecer do beiju, da tapioca e, claro, do beijo.
O amor do poeta pela sua musa é tamanho que deseja ele colocar
este sentimento no gramafone. Gritar aos quatro cantos da literatura
que sua musa é tão rara e única quanto um Stradivárius, numa
espécie de prece que não pode ser classificada nem como parnaso
e nem concreto. Algo assim que até os fãs de Guilherme Arantes
vão entender tranqüilamente.
Chico César explica que escreveu “Cantáteis - Cantos Elegíacos de
Amozade” em 1993. “Não num só fôlego, como seria mais heróico.
Mas em muitos e seguidos mergulhos no texto, no assunto. Escrevi
em um bloco de notas, à mão, em São Paulo. Andando pelas ruas.
De ônibus, a pé, de metrô, de táxi. Eu, estrangeiro no lugar e no
momento, escrevi esse texto aos solavancos vagando pela cidade,
mais pela zona oeste. Vagando pelo meu quarto num apartamento
que dividia com um colega nordestino na avenida Heitor Penteado”.
Explica, então, que “Cantáteis” surgiu como um canto de amor e
amizade a uma mulher, uma musa paulistana. “Escrevi movido por
esse sentimento híbrido (amozade) e que muitas vezes julgamos
formado por partes que se negam: o amor e a amizade. Ela chamase Tata Fernandes, está nomeada no poema. O tempo e o
afastamento do ambiente passional mostra que a musa, mais que
pessoa em si, é uma representação de um tipo de mulher de São
Paulo. Urbana, letrada, combativa, independente, freqüentadora
dos círculos intelectuais alternativos, das rodas artísticas. Seja isso
resultado de reivindicação e conquista pessoal ou berço. Uma
espécie de herdeira de Pagu ou Anita Malfati ou Lina Bo Bardi ou
Tarsila do Amaral. Uma contemporânea de Suzana Salles, Lala
Dehzenleim e Soninha Francine (ex-MTV, ex-TV Cultura)”.
Distanciando-se um pouco no tempo e no espaço, admite que a
obra pode, também, ser uma leitura mais fecunda hoje, como um
canto de afeto abismado à cidade de São Paulo. “Suas surpresas,
sua teia, o fascínio inevitável que exerce sem compaixão por quem
aqui chega. Sua eroticidade e seu tanatos. Um canto de amor à
São Paulo mulher, hermafrodita, grávida de si mesma e das
pessoas que recebe. Elas também, a cada segundo, mais grávidas
do que eram e de um devir contínuo em que a cidade as coloca.
Nos coloca”.
O compositor e poeta paraibano revela suas referências ao
escrever a obra. Diz que foi estimulado pela existência e
consistência de poemas longos como “Os Cantos” de Erza Pound,
“Morte e Vida Severina” de João Cabral de Melo Neto, “Altazor” de
Vicente Huidobro. Ou ainda “O Guesa”, de Souzândrade e “A Divina
Comédia”, de Dante Alighieri. “Sei que o fato de esses poemas
existirem e pesarem decididamente na balança da literatura
universal deveria me silenciar em definitivo. Mas deu-se o contrário.
E cometi “Cantáteis”. Atribuo à falta de juízo que acomete os
apaixonados. E era como eu me encontrava”.
Bendita seja esta falta de juízo, e que, mais de dez anos depois do
texto escrito, o autor pense, também, num projeto multimídia,
colocando melodia com o intuito de vê-lo arranjado para coro,
orquestra e conjunto pop, transformado em espetáculo, e ao mesmo
tempo registrado em suportes diversos como cd, dvd, livro. “A
musicalidade do poema sugere o contraponto criado pelo encontro
da cultura embrenhada nos brasis distantes e distintos com a
fornalha policultural de uma das maiores cidades do mundo, cuja
principal característica é a diversidade”. Não há porque duvidar.
Muito menos porque não ler esta obra, com a marca Chico César
de qualidade e originalidade.
TRECHOS DO LIVRO
11 é a musa que elejo
na peleja em que pelejo
elemento de elegia
quentura na noite fria
vento brando em dia quente
¿quanto ganha um gerente
para perguntar seu nome?
quero ver se você some
quero embalar sua rede
tarde cedo seda sede
frame trama tremor fome
12 zaratustra zoroastro
a barba de fidel castro
as ruas de joão pessoa
alma caridosa e boa
sou eu lhe chamando, escute
venha, traga o vermute
que irriga o paraíso
quebre o espelho de narciso
meu gibão, minha couraça
venha iluminar a praça
cale o choro, rasgue o riso
13 a luz da eletricidade
não brilha nem a metade
da briluz que é seu brilho
mãe iluminando filho
ato falho espantalho
coelho macaco galho
todo bicho da floresta
gesto certeiro na gesta
parideira de poema
ouvi o canto da ema
era você: aquelesta
14 viscondessa sabugosa
com a veredenta prosa
e o raso da catarina
catarineta menina
canção de cancão de fogo
cortázar sorte no jogo
marylin de boca pintada
uivo da onça malhada
bartoquesas e hermetices
fictícias fiquitices
verdade de amante amada
15 casa perto de uma praça
num certo ano da graça
eu morava em santo amaro
paro penso repenso reparo
repasso passado e futuro
estive num quarto escuro
era minha própria mente
representando o presente
preteritei guarnicês
guaxinins e tietês
que mordem e afogam gente
16 a ganância de wall street
faz com que meu verso grite
a pobreza de manila
o meu canto aniquila
o baticum da bahia
dá um sopro de alegria
se chora jerusalém
a rima rica não vem
porém se você acena
o mundo se açucena
a poesia também
17 você quer me deixar louca
pergunta com a voz rouca
numa noite de setembro
de noites assim me lembro
o inesquecível nescau
nenúfares e nenhum mal
diz que sim dicionário
o engraçado hilário
humor amoroso serve
para desatar a verve
disparar o calendário
18 ilusão cosmopolita
o cinema é uma fita
que amarra seu cabelo
no porto de cabedelo
onde morreu a baleia
mar morto de cara feia
boteco beira de praia
eu prefiro sua saia
às farsantes do teatro
digo sete, cinco, quatro
sarado saramandaia
19 no seu café da manhã
strudel e croissants
beiju tapioca beijo
biscoito e pão de queijo
coito antes ou depois
um bolinho de arroz
bolinação carinhagem
a pajelança do pajem
dendendengo e meu amor
giralua furta-cor
mulher de homem homenagem
20 ser preferido e poeta
é duro como a seta
que atravessa a maçã
peitinho de cunhatã
no primeiro alvoroço
é o soldado mais moço
dizendo adeus à mãinha
o sol da demanhãzinha
teme a crueza da guerra
onde toda infância encerra
a dele a sua e a minha
21 ser o preferido ser
do ser que se olha e vê
cerzido ao nosso destino
badagadala o sino
a sina a senha exata
marreco casa com pata
beduíno com miragem
riso vai com risadagem
no olho do furacão
são jorge com o dragão
o olhar com a paisagem
22 quem dança fado d’espera
ou tem nos olhos quimera
diásporas e arrenegos
vai bater na caixa-prego
haraquiri ai-ki-dô
sente falta de esquindô
banzo no samba lelê
sinto falta de você
ponte pênsil viaduto
há dias que fico puto
pour quois mon amour por quê?
(Publicado no Correio das Artes em setembro de 2005)
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Ver PDF - Linaldo Guedes