Plano de Manejo da RPPN Eng. Eliezer Batista DIAGNÓSTICO secos chiquitanos (VASCONCELOS e HOFFMANN, 2006), como a tiriba-de-cara-suja Pyrrhura molinae e a choca-da-bolívia Thamnophilus sticturus, além do rei-do-bosque, ave típica da Cordilheira do Andes (SILVA, 1996; SICK, 1997). determinados grupos de aves sensíveis às perturbações no habitat indica a excelente qualidade do ambiente, ainda preservado em grande parte da área. Entretanto, são necessários estudos que incluam várias estações do ano e períodos maiores de coleta de dados, para detectar espécies raras e migratórias que possivelmente ocorram na região. Os elementos Atlânticos e de Cerrado estão pobremente representados. Embora Sick (1965, 1966) cite várias espécies como sendo endêmicas do Cerrado, na verdade elas também penetram em outros ecossistemas, não podendo, portanto, ser classificadas como endêmicas, mas sim típicas, tal como o bico-de-pimenta Saltator atricollis. A presença de matas ciliares favorece a ocorrência do jacude-barriga-castanha Penelope ochrogaster, espécie típica desse ambiente no Cerrado do Centro-Oeste. As espécies típicas da zona pantaneira incluem primariamente as que integram grupos aquáticos como o maçarico-real Theristictus caerulescens e o gavião-belo Busarellus nigricollis. Ressalta-se também a necessidade de conservação desse ecossistema singular no estado, com ocorrência de espécies que, no Brasil, são endêmicas das morrarias de Corumbá, complexo de Serras do Amolar e regiões adjacentes, tais como a tiriba-de-cara-suja. Outras, no entanto, são endêmicas da Bacia do Alto Paraguai, como a aracuã-do-pantanal, o pica-pau-louro e a choca-da-bolívia. A RN EEB é uma área de grande interesse do ponto de vista biogeográfico, uma vez que possui elementos típicos da Região Amazônica, tais como o gavião-pombo e a papa-taoca. Também verificase a influência de elementos da Cordilheira dos Andes, como o rei-dobosque, o que reforça a teoria de que os planaltos do entorno da planície funcionam como corredores de dispersão para elementos desses biomas. Destacam-se os bosques secos chiquitanos, formações vegetacionais que, no Brasil, são restritas às zonas limítrofes com a Bolívia. Aliada a essas peculiaridades, a região ainda abriga extensas e contínuas áreas de vegetação em situação íntegra a sua qualidade. 1.7.1.4 Considerações Finais Embora o período de coletas em cada estação tenha sido curto, o número de espécies observadas foi surpreendente. A ocorrência de 61 Plano de Manejo da RPPN Eng. Eliezer Batista DIAGNÓSTICO 62 Plano de Manejo da RPPN Eng. Eliezer Batista DIAGNÓSTICO 1.7.2 Entomofauna 1.7.2.1.3 Resultados Obtidos 1.7.2.1 Visitantes Florais Foram coletados 122 insetos visitantes florais na área da RPPN EEB e entorno, pertencentes a 56 espécies, como pode ser visto no Anexo 3. Oito grupos foram encontrados, cuja representatividade relativa de espécies é apresentada na Figura 35. As vespas apresentaram maior iqueza de espécies (17 espécies), seguidas de borboletas (14 espécies), abelhas (13 espécies), moscas (6 espécies), hemípteras e mariposas (2 espécies). Formigas e besouros contribuíram com apenas uma espécie cada. 1.7.2.1.1 Aspectos Gerais O Pantanal, juntamente com a Caatinga, possui escasso número de inventários e levantamentos de invertebrados, figurando entre os biomas com entomofauna menos conhecida do Brasil (LEWINSOHN; PRADO, 2002). Em uma compilação das informações acerca do conhecimento técnico-científico sobre polinizadores e polinização no Brasil, realizada pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA, 2006), foi constatado apenas um trabalho com polinização no Pantanal Sul-MatoGrossense (ARAÚJO, 2001), trabalho esse que não contemplou o levantamento de espécies de polinizadores. Dessa forma, para diversos grupos (abelhas, vespas, borboletas) os resultados apresentados neste trabalho podem ser considerados um passo inicial para a elaboração de listagem de espécies desse bioma. Vinte e quatro plantas tiveram flores visitadas por algum invertebrado durante as coletas realizadas na RPPN EEB e na RN EEB. Entre as que receberam maior diversidade de visitantes estão: cruzinha Eupatorium 1.7.2.1.2 Procedimentos para o Levantamento dos Visitantes Florais Para o levantamento das espécies de visitantes florais, foram pesquisadas 40 localidades distribuídas em diferentes fitofisionomias que apresentavam plantas com flor. Foram amostrados 19 pontos em mata (Floresta Estacional Semidecidual), sete em cerradão (Savana Florestada), quatro em cerrado (Savana Arborizada), dois em áreas antropizadas, um em campo inundável (Savana Gramíneo-Lenhosa Inundável), dois em campo arbustivo inundável (Savana GramíneoLenhosa Inundável) e cinco na margem direita do Rio Paraguai. As coletas foram realizadas entre 23 e 27 de maio de 2007, no período diurno, entre 7 e 12 horas e entre 14 e 17 horas. Todos os invertebrados encontrados visitando flores de espécies arbóreas, arbustivas e herbáceas foram coletados com puçá (rede entomológica) ou frasco matador contendo acetato de etila. Em seguida, foram espetados com alfinete entomológico e devidamente etiquetados. Para cada indivíduo coletado, foi anotada a hora, a data da coleta e a espécie vegetal que estava visitando. A identificação foi realizada com o auxílio de chaves de identificação, consulta à literatura pertinente (BORROR; DELONG, 1969; SILVEIRA et al., 2002) e pela comparação com exemplares previamente identificados na Coleção Zoológica de Referência da UFMS, campus de Campo Grande. Os invertebrados foram identificados até o menor nível taxonômico possível, considerando as limitações de conhecimento e as dificuldades na identificação de diversos grupos, devido à ausência de chaves de identificação e coleções de referência. Como alguns fatores abióticos interferem na amostragem de invertebrados terrestres, dados de temperatura e umidade foram registrados em intervalos de uma hora, com auxílio de termohigrômetro digital. Figura 35 - Percentagem de espécies de visitantes florais pertencentes a cada grupo amostrado na RPPN EEB e entorno, Corumbá, Mato Grosso do Sul. Plano de Manejo da RPPN Eng. Eliezer Batista DIAGNÓSTICO odoratum, picão-do-pantanal Bidens gardneri, joá-bravo Solanum sisymbriifolium, hortelã-do-campo Hyptis lappacea, cipó-de-leite Ipomoea chiliantha, timbó-branco Serjania glutinosa e uma trepadeira da família Sapindaceae Serjania minutiflora. ambientais sobre a biodiversidade, já que são importantes na dinâmica de ecossistemas devido à sua ação como desfolhadores, decompositores, presas, hospedeiros e polinizadores (HAMMOND; MILLER, 1998). Esses insetos mantêm estreita relação com as plantas – as larvas são herbívoras e a maioria dos adultos alimenta-se de néctar (MOTTA, 2002) – sendo que algumas comem pólen (Heliconius). São capazes de utilizar diversos tipos de flores, mas, principalmente, flores pequenas, abertas ou tubulosas (FAEGRI; VAN DER PIJL, 1979; CORLETT, 2004). As temperaturas variaram de 17,4 ºC a 30 °C e a umidade relativa de 19 % a 45 %. A maior parte das manhãs, durante o período de levantamento (entre 7 e 10 horas), foi marcada por temperaturas abaixo de 20 °C e ocorrência de ventos. Provavelmente, tais condições climáticas, com baixas temperaturas e ventos fortes, podem ter inibido a atividade dos insetos visitantes florais durante o período de amostragem (SAKAGAMI; LAROCA, 1971; MICHENER, 1974; FOWLER, 1979; LAROCA et al., 1982; DEGRANDI-HOFFMAN 1985 apud D'AVILA). As espécies de borboletas amostradas pertencem a 6 famílias, sendo elas: Hesperiidae (6 espécies), Lycaenidae (4 espécies), Nymphalidae (2 espécies), Arctiidae (2 espécies), Papilionidae e Pieridae (1 espécie cada). Quase todas as espécies de lepidópteros foram coletadas em flores de cruzinha Eupatorium odoratum, espécie de planta que é classificada como psicófila (polinizada por borboletas). A – Vespas Para o Brasil, entre as famílias de borboletas, Lycaenidae, Hesperiidae e Nymphalidae correspondem as três mais ricas em espécies, nessa ordem (ISERHARD; ROMANOWISKY, 2004). Porém, no levantamento feito na RPPN EEB, a ordem de riqueza inverte-se, sendo que Hesperiidae teve maior riqueza. Hesperiidae são bons indicadores de regularidade e abundância de recursos florais. As larvas da maioria dos Lycaenidae são mirmecófilas (associadas a formigas), possuindo órgãos produtores de exsudatos, e em geral, indicam sistemas ricos em formigas e suas interações (BROWN; FREITAS, 1999). Segundo Brown e Freitas (1999) há uma lacuna acentuada de inventários que incluem Hesperiidae e Lycaenidae, pois, em comparação com outras famílias, apresentam espécies geralmente de tamanho diminuto, de difícil amostragem e identificação. O termo vespa é aplicado a todos Hymenoptera que não sejam abelhas ou formigas, constituindo grupo bastante variado com grande diversidade de hábitos e ciclos de vida (AOKI; SIGRIST, 2006). Entre as vespas, destaca-se neste estudo a riqueza da família Vespidae (13 espécies), cujos indivíduos podem incluir néctar na dieta e, às vezes, pólen. Vespidae inclui muitas espécies sociais e constitui o mais importante grupo de vespas visitantes de flores em algumas localidades, muitas atuando como polinizadores (CORLETT, 2004). Além de representantes de Vespidae, Corlett (2004) relata Tiphiidae, Pompilidae, Scoliidae e Sphecidae como visitantes florais, porém não como polinizadores (exceto Sphecidae, gêneros Bembix e Sphex). Outras espécies de vespas (Chalcididae) são parasitóides e podem ser encontradas nas flores enquanto procuram hospedeiros como Lepidoptera, Coleoptera, Diptera e outros Hymenoptera (PERIOTO; TAVARES, 1999). Neste estudo, apenas uma família de mariposa foi observada (Arctiidae, subfamília Arctiinae). Isso se deve, provavelmente, ao fato de a maioria dos integrantes desse grupo apresentar hábitos noturnos, período não contemplado nesta amostragem. Segundo Hilty e Merenlender (2000), Arctiidae, juntamente com Saturniidae e Sphingidae, estão entre as famílias de mariposas mais utilizadas como bioindicadores. As vespas visitaram um número elevado de espécies vegetais (12 espécies), ficando atrás apenas das abelhas, que visitaram 22 espécies. Entre as espécies visitadas estão: margaridas Bidens gardneri, água-pé Eichhornia crassipes, vassourinha Borreria brachystemonoides, Serjania minutiflora e ginseng-do-pantanal Pfaffia glomerata. C- Abelhas As abelhas são reconhecidas como os polinizadores mais eficientes em quase todos os ecossistemas onde há Angiospermas (ALVES DOS SANTOS, 1998), além de ser o grupo mais especializado entre os organismos que dependem da coleta de pólen e néctar (HAKIM, 1983). B- Borboletas e Mariposas (Lepidoptera) 11 Os lepidópteros compõem uma das principais ordens de insetos quanto à riqueza de espécies. Esse grupo é conveniente para estudos Plano de Manejo da RPPN Eng. Eliezer Batista DIAGNÓSTICO Por essa razão, as abelhas são o grupo de visitantes florais mais estudado. Neste levantamento foram identificadas 13 espécies de abelhas, distribuídas em 3 famílias: Apidae (10 espécies), Halictidae (2 espécies) e Andrenidae (1 espécie). Apidae, como a família mais rica em espécies, é registrada em diversos estudos em outros ecossistemas (RAMALHO 1995, SILVEIRA; CAMPOS 1995, BARBOLA et al., 2000, ANTONINI; MARTINS, 2003). Os resultados deste levantamento chamam a atenção pela ausência das famílias Megachilidae e Colletidae, comumente presentes em levantamentos realizados em área de Cerrado (bioma que margeia a região do Pantanal Sul-MatoGrossense). As abelhas foram os insetos que visitaram maior número de espécies vegetais (22 espécies), incluindo as melitófilas (polinizadas por abelhas), por exemplo, fedegoso Senna occidentalis, guelra-de-gato Senna aculeata e melão-de-são-caetano Momordica charantia, espécies polinizadas por diversos pequenos insetos, com timbóbranco Serjania glutinosa e Serjania minutiflora e espécies psicófilas (polinizadas por borboletas), como picão-do-pantanal Bidens gardneri e cruzinha Eupatorium odoratum. De todas as espécies , a abelha-européia Apis mellifera merece destaque por visitar o maior número de espécies vegetais (12 espécies) e estar presente em grande parte dos locais amostrados. Essa espécie apresenta características favoráveis à dominância, como hábitos generalistas, longo período de forrageamento, colônias populosas, sofisticado sistema de comunicação e baixa exigência para locais de nidificação, o que faz com que esta espécie seja comum nos estudos englobando os Apoidea (ROUBIK,1989, CARVALHO, 1999). Apis mellifera foi introduzida para implantação da apicultura no Brasil. Atualmente, a espécie distribui-se por todo mundo. Segundo Ebeling (2002), há no Pantanal cerca de 30 a 40 apicultores e 1.500 colméias dessa abelha. Apesar do alto potencial econômico para os moradores da região, deve ser feita uma ressalva em relação à vantagem competitiva pelos recursos alimentares que A. mellifera apresenta em relação às diversas espécies de abelhas nativas (ROUBICK 1978, 1980). Roubick , (1978) demonstrou que grande quantidade de A. mellifera, competindo por uma fonte de alimento, pode levar a uma diminuição do número de abelhas nativas Meliponinae ou a uma diminuição do tempo de coleta, e Benest (1976) observou que abelhas nativas do gênero Bombus evitam flores visitadas por A. mellifera. Além dessa espécie, pequenos meliponíneos conhecidos popularmente como arapuás ou irapuás foram freqüentemente observados visitando várias espécies vegetais, tais como malvão Abutilon ramiflorum, vassourinha Borreria verticillata, cipó-de-arraia-liso Cissus erosa, cruzinha Eupatorium odoratum, hortelã Hyptis mutabilis e cipó-de-leite Ipomoea chiliantha. Bombus morio e Xylocopa cf. frontalis, embora tenham sido observadas em poucos locais (três pontos) e tenham visitado poucas plantas (Chamaecrista rotundifolia, Inga sp., fedegoso Senna occidentalis e xique-xique Crotalaria micans), são importantes por formarem uma guilda de visitantes de plantas com flores grandes e por serem abelhas mais especialistas (ZANELLA; MARTINS, 2003). D – Moscas Muitas espécies de Diptera (moscas) alimentam-se de néctar e pólen das flores (KEVAN; BALER, 1984), mas a importância destes componentes na dieta dos adultos varia entre as espécies de cada família (TOFT, 1983). Neste estudo foram identificadas seis espécies de moscas pertencentes a 3 famílias: Syrphidae (4 espécies), Muscidae e Tachinidae (1 espécie cada). Syrphidae já era esperada como a família mais representativa, uma vez que são consideradas as principais dípteras visitantes de flores (MORSE, 1981, SOUZA-SILVA et al., 2001). Essas moscas pairam no ar durante o vôo e o custo energético desse comportamento demanda a ingestão de recursos ricos em energia, especialmente néctar. Segundo Gilbert (1981), esse comportamento leva os sirfídeos a permanecerem por longo tempo nas flores. As moscas visitaram apenas 5 espécies vegetais: hortelã-do-campo Hyptis lappacea, cruzinha Eupatorium odoratum, Serjania minutiflora, timbó-branco Serjania glutinosa e guelra-de-gato Senna aculeata. Segundo Corlett (2004), moscas das famílias Muscidae e Tachinidae são visitantes freqüentes de flores não-especializadas, com néctar de fácil acesso. E – Hemípteros (Hemiptera) Duas espécies de Hemíptera foram encontradas neste levantamento. Ambas espécies estavam pilhando néctar de flores de hortelã Hyptis mutabilis e picão-do-pantanal Bidens gardneri, não exercendo a função de polinizadores. De modo geral, os percevejos não são considerados Plano de Manejo da RPPN Eng. Eliezer Batista DIAGNÓSTICO polinizadores – embora haja registro de provável polinização em Shorea e Macaranga no Sudeste Asiático (CORLETT, 2004). Geralmente esses insetos visitam flores para comer suas partes teciduais (FAEGRI ; VAN DER PIJL, 1979). F – Besouros Besouros visitam flores para se alimentar (de néctar, pólen, tecidos florais ou secreções estigmáticas), realizar postura e/ou copular (CORLETT, 2004). Um casal de Staphilinidae foi observado utilizando as flores de cipó-de-leite Ipomoea chiliantha como sítio de cópula. Embora tenha sido encontrada apenas uma espécie de besouro na RPPN EEB, RN EEB e entorno, várias espécies de plantas coletadas nesse local são polinizadas por besouros (espécies de Annonaceae, Araceae, Arecaceae) (GOTTSBERGE, 1999) e a realização de mais coletas certamente aumentará muito o número de espécies desse grupo. G – Formigas As formigas são notoriamente conhecidas por possuírem atração por substâncias açucaradas (fonte de carboidratos), oriundas de nectários (FAEGRI; VAN DER PIJL, 1979, JUNQUEIRA et al., 2001). Várias espécies de formiga foram observadas utilizando nectários extraflorais de espécies vegetais na área. Entretanto, apenas uma espécie de formiga foi registrada visitando flores. Os indivíduos dessa espécie pilhavam (roubavam) néctar das flores de ingá Inga sp. 1.7.2.1.4 Considerações Finais sobre Insetos Visitantes Florais A RPPN EEB e a RN EEB localizam-se numa região que sofre influência de vários biomas e por apresentarem em bom estado de conservação, provavelmente, abrigam uma diversidade de polinizadores maior do que a registrada neste levantamento e cuja conservação está intimamente relacionada à flora local. As vespas e as abelhas representaram os principais visitantes florais registrados. Apidae foi a família com maior riqueza de espécies, apresentando, inclusive, a abelha-européia, espécie introduzida que compete, diretamente, por recursos com representantes de Meliponinae nativos (arapuás). Grupos de lepidópteros, que são indicadores de riqueza e abundância de flores e formigas, também merecem destaque de registro na RPPN EEB. 1.7.2.2 Odonata (libélulas) 1.7.2.2.1 Aspectos Gerais Insetos predadores como as libélulas (Odonata) são extremamente sensíveis às alterações do ambiente, já que dependem do recurso produzido por suas presas, sendo sua abundância e riqueza limitada pela quantidade e qualidade de recursos disponíveis (HURYN; WALLACE, 2000; BENKE et al., 2001). Na fase adulta aérea, formam ligações entre os corpos d'água e teias alimentares da vegetação ripária e do entorno, consumindo outros insetos e sendo devoradas por aves, artrópodes diversos e outros animais (SANTOS, 1981; HURYN; WALLACE, 2000). No Brasil, já foram descritas cerca de 660 espécies de libélulas (DE MARCO JR; VIANA, 2005), cuja distribuição ainda é pouco conhecida, sendo que apenas 29 % do território brasileiro apresentam dados sobre a riqueza de Odonata (DE MARCO JR; VIANA, 2005). No Mato Grosso do Sul, poucas regiões foram exploradas e coletas sendo assim são escassas as informações a respeito da riqueza e distribuição da odonatofauna no estado (SOUZA et al., 1999a,b; COSTA et al., 2000a; MACHADO, 2002; SOUZA; COSTA, 2006). 1.7.2.2.2 Procedimentos para o Levantamento de Libélulas Foram coletados somente indivíduos adultos com a utilização de rede entomológica, por um período de 8 horas diárias, entre 23 e 27 de maio de 2007. As coletas foram conduzidas em 40 pontos distribuídos em trilhas preexistentes. O material coletado foi tratado com acetona pura (PA), para manutenção das cores e acondicionado em envelopes entomológicos, sendo conservados em recipientes contendo naftalina. Os indivíduos foram identificados através de chaves de identificação, bibliografia especializada (COSTA et al., 2002; COSTA et al., 2004; SOUZA; COSTA, em preparação) e comparação com o material depositado na Coleção Zoológica de Referência da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), campus de Campo Grande. Plano de Manejo da RPPN Eng. Eliezer Batista DIAGNÓSTICO 1.7.2.2.3 Resultados Obtidos Foram coletados 122 indivíduos, distribuídos em 30 espécies, 14 gêneros e 3 famílias. Desses, apenas 8 espécies foram identificadas até o nível específico, 21 espécies até o gênero e 1 espécie até a família. A subordem mais representativa foi Anisóptera (8 gêneros representantes da família Libellulidae e 1 representante de Aeshnidae), seguida pela subordem Zygoptera (três gêneros, pertencentes à família Coenagrionidae). A lista de odonatos da RPPN EEB e entorno encontra-se no Anexo 4. A observação de grande número de espécies de Libellulidae e Coenagrionidae é esperada, uma vez que Libellulidae agrupa a maioria das espécies de Odonata (COSTA et al., 2000b). Ambas as famílias são as mais representativas em termos de número de espécies no País: Libellulidae com 207 espécies e Coenagrionidae com 144 (DE MARCO JR.; VIANA, 2005). A família Aeshnidae inclui os anisópteros de formas de vôo mais velozes e de maior porte em relação às outras famílias (COSTA et al. 2000b; COSTA; OLDRINI, 2005), e figura como a quarta família com o maior número de espécies no Brasil (DE MARCO JR.; VIANA, 2005). Libellulidae é uma família cosmopolita, amplamente distribuída pelo Brasil (COSTA et al., 2000b), com algumas espécies bem adaptadas a ambientes temporários e com um ciclo de vida muito curto (CARVALHO; CALIL, 2000; COSTA et al., 2002; WATANABE, 2004). Neste estudo, como observado em áreas do Cerrado (FERREIRAPERUQUETTI; FONSECA-GESSNER, 2003), Erythemis foi o gênero mais representado de Libellulidae, com 9 espécies, sendo elas: E. attala, E. credula, E. peruviana, E. vesiculosa e mais 5 não identificadas. Erythrodiplax (5 espécies) e Tramea (4 espécies) também apresentaram grande riqueza de espécies. As espécies Erythemis vesiculosa e Erythemis sp.3 foram as mais abundantes, com 13 indivíduos cada uma, entretanto para Libellulidae é comum a dominância de Erythrodiplax nos levantamentos (COSTA et al., 2000b; COSTA; OLDRINI, 2005; SOUZA; COSTA, 2006). Algumas espécies de Libellulidae destacam-se pelo número de localidades que ocorreram, como Erythemis sp.5, observada em 11 pontos e em fisionomias diversas como margem do Rio Paraguai, campo inundável, cerrado, cerradão e mata. Erythemis vesiculosa foi observada em oito pontos, ocorrendo em fisionomias similares à Erythemis. sp.5. As espécies Erythemis sp.1 e Erythemis sp.3, registradas em sete pontos, e Erythemis atalla e Erythemis sp.4, registradas em seis pontos, utilizaram preferencialmente ambientes florestados. O gênero Enallagma foi encontrado em sete pontos de coleta, desde áreas antropizadas e proximidades de corpos d'água até ambientes florestais. Brachymesia, Micrathyria, Oligoclada e Pantala estão entre os gêneros mais raros que foram encontrados na RPPN EEB, RN EEB e no entorno, com 1 exemplar amostrado, respectivamente, em área de cerrado, cerradão, campo inundável e mata. Na família Coenagrionidae estão incluídas as formas de menor tamanho e também os odonatos mais delicados (COSTA et al., 2000b). Enallagma, gênero ainda em fase de identificação, foi o mais abundante, com 16 indivíduos coletados próximos a corpos d'água, áreas antropizadas e matas. Outros 4 gêneros pertencentes a essa família foram amostrados: Argia, Helveciagrion, Ischnura e Telebasis. Souza e Costa (2006) já haviam registrado todos esses gêneros em levantamento realizado no estado de Mato Grosso do Sul, entretanto o gênero mais diverso encontrado por esses autores (Acanthagrion) não foi observado neste estudo. A maior riqueza específica por ponto de coleta foi encontrada em área de cerrado, representado por 8 espécies da família Libellulidae (Brachymesia sp., Erythemis peruviana, E. vesiculosa, Erythemis sp.2, E. sp.3 e E. sp.4), seguido por área de mata com 6 espécies coletadas (Erythemis sp.1, E. sp.2 e E. sp.3, Erythrodiplax latimaculata, Erythrodiplax sp.1 e Micrathyria spuria). Segundo Ferreira-Peruqueti e De Marco Jr. (2002), para organismos como Odonata, a heterogeneidade ambiental é indispensável para proporcionar maior diversidade de habitats, provimento de recursos alimentares, abrigo contra a predação e conseqüente aumento na riqueza biológica, característica presente na RPPN EEB. A diversidade de macrófitas aquáticas existente na área de estudo também deve ser estudada, uma vez que são importantes para o ciclo de vida de várias espécies de Odonata (WILDERMUTH, 1994; CORBET, 1999). Plano de Manejo da RPPN Eng. Eliezer Batista DIAGNÓSTICO 1.7.3 Herpetofauna 1.7.3.1 Aspectos Gerais Anfíbios e répteis são componentes essenciais dos ecossistemas em diversas partes do mundo (POUGH et al., 2001). Além da importância nas cadeias alimentares, várias espécies, particularmente de anfíbios, são consideradas indicadoras da qualidade ambiental e são excelentes modelos para estudos ecológicos (LANGONE, 1994). A herpetofauna tem ainda recebido atenção especial, nos últimos anos, devido ao declínio de várias populações (YOUNG et al. 2001), inclusive no Brasil (Eterovick et al., 2005). As causas para os declínios são várias, mas estão principalmente associadas à perda de habitat (LIPS et al., 2001). No Pantanal e no Cerrado, ao contrário de outros biomas como a Mata Atlântica (HADADD; SAWAYA, 2000) e a Amazônia (AZEVEDO-RAMOS; GALLATI, 2002), apenas recentemente, houve aumento no número de estudos da herpetofauna (COLLI et al., 2002; STRÜSSMANN; SAZIMA, 1993). Para o Pantanal, destacam-se estudos de história natural e ecologia das espécies de anfíbios anuros (ÁVILA; FERREIRA, 2004; PRADO et al., 2005; PRADO; HADADD, 2005; PRADO et al., 2000) e serpentes (ÁVILA et al., 2006a; ÁVILA et al., 2006b; MARQUES et al., 2005; STRÜSSMANN; SAZIMA, 1993). O registro de espécies novas para a ciência ( BAILEY et al., 2005; SCROCCHI et al., 2005) ou previamente não descritas como componentes da fauna do Pantanal tem sido freqüente (CARVALHO JÚNIOR et al., 2006). Apesar de as informações existentes ainda serem incipientes e pontuais (ÁVILA, 2005; ÁVILA; CUNHA-AVELLAR, 2005; FERREIRA, 2001; STRÜSSMANN, 1997), pode-se considerar que a herpetofauna da planície pantaneira seja um pouco mais conhecida do que a do planalto do entorno (STRÜSSMANN et al., 2000). As coletas efetuadas em diversas regiões do Pantanal sugerem que a distribuição, dispersão e a conseqüente estrutura populacional de vários táxons pode ser reflexo de componentes físicos locais, que atuam como elementos biogeográficos importantes, como complexos serranos e cabeceiras de riachos (CHERNOFF; WILLINK, 2000). Nesse aspecto, a Serra do Amolar, pelas peculiaridades de localização e o relevo, além de deter uma das herpetofaunas mais desconhecidas do Pantanal, pode abrigar várias espécies novas para a ciência ou que estão ameaçadas em outras regiões do País (CAMPOS et al., 2004; STRÜSSMANN et al., 2000). 68 Plano de Manejo da RPPN Eng. Eliezer Batista DIAGNÓSTICO 1.7.3.2 Procedimentos Adotados para a Caracterização da Herpetofauna Foram realizados inventários em duas expedições à RPPN EEB. O método utilizado foi o de procura limitada por tempo (PLT), sendo que dois observadores procuravam os espécimes em todos os microhabitats disponíveis (sob troncos e rochas). Durante o período seco, o esforço amostral foi de 35h/observador e durante as cheias de 25h/observador. No caso de anfíbios anuros, foram realizados pontos de escuta em vários tipos de ambientes apropriados à atividade reprodutiva das espécies (baías, poças e margens de rio). Rastros d espécies e observações de terceiros (quando não havia dúvida da identidade da espécie) também foram registrados. Alguns indivíduos foram capturados, fotografados e soltos no local de captura. Espécimes mortos pela população local foram fixados em formol 10 % e transportados ao Laboratório de Zoologia da UFMS, campus de Corumbá, sendo depositados na referida coleção sob a acronímia CEUCH. Ao todo, foram amostrados 13 locais da RPPN-EBB e do entorno, em ambientes na margem do Rio Paraguai, baías, corixos, brejos, mata ciliar, cerrado, campo de altitude (ou rupestre), floresta estacional semidecídua e áreas antropizadas. No período de cheia, os campos rupestres não foram amostrados, aumentando o tempo de coleta nos habitats, como matas semidecíduas. Alguns indivíduos observados não puderam ser identificados até o nível da espécie, sendo assinaladas por denominações apropriadas em latim. 1.7.3.3 Resultados Obtidos Ao todo, foram inventariadas 47 espécies, sendo 37 no período seco e mais 10 espécies acrescidas durante o levantamento das cheias. Esses totais incluíram também a serpente Taeniophalus occipitalis registrada através de imagens feitas por G. Batista. A lista das espécies da herpetofauna com nome científico e os ambientes, onde foram encontradas, são apresentados no Anexo 5. O número de espécies de répteis e de anfíbios esperado para a RPPN EEB é maior do que o registrado, pois várias espécies comuns em áreas adjacentes, como a rã Physalaemus albonotatus e todos os integrantes da família Microhylidae, os lagartos Stenocercus caducus e Gonatodes sp., as serpentes Liophis poecilogyrus, Hydrodynastes gigas e a cascavel Crotalus durissus não foram registradas nas duas expedições. É possível observar que a curva do coletor, apresentada na Figura 36, não atingiu a estabilidade, demonstrando que novas espécies serão registradas na medida que o esforço amostral aumentar. Entre os indivíduos que não puderam ser identificados, tem-se: Rhinella aff. margaritifer, espécie de sapo que habita as matas ciliares; e Gonatodes sp., espécie de lagarto de tamanho pequeno que pode apresentar afinidades com Gonatodes hasemani. Algumas espécies presentes na área foram recentemente descritas (Hydrops caesurus – SCROCCHI et al., 2005; Thamnodynastes lanei – BAILEY et al., 2005) e outras tiveram sua distribuição geográfica ampliada para a planície pantaneira (Scinax constrictus – CARVALHO-JÚNIOR et al., 2006). A riqueza de espécies da herpetofauna encontrada na RPPN EEB e no entorno pode ser considerada baixa (18 espécies de anfíbios e 29 espécies de répteis) Plano de Manejo da RPPN Eng. Eliezer Batista DIAGNÓSTICO quando comparada a inventários de áreas adjacentes, como mostra a Figura 37. No entanto, o esforço amostral foi menor. Ressalta-se ainda que na região que compreende a Serra do Amolar e o Parque Nacional do Pantanal Matogrossense já foram inventariadas pelo menos 108 espécies (35 de anfíbios e 73 de répteis), cujos esforços de coleta envolvem cerca de dois anos de pesquisa, e utilizou diversos métodos de captura (STRÜSSMANN; RIBEIRO, 2003). O ambiente mais utilizado pelas espécies na RPPN EEB e no entorno, principalmente por anfíbios, foi aquele com presença de macrófitas aquáticas. Répteis e anfíbios utilizam a vegetação flutuante de várias formas como sítios de vocalização de anuros (HÖDLl, 1977), abrigo para os girinos (CARAMASCHI; NIEMEYER, 2004) e local de alimentação (ÁVILA et al., 2006). Além disso, ilhas de vegetação flutuante servem como meios importantes de dispersão para as espécies (HOOGMOED, 1993). Nesse sentido, as baías encontradas na região desempenham papel importante na manutenção das espécies aquáticas, inclusive as de grande porte, como a víborado-pantanal Dracaena paraguayensis e a Figura 37 - Número total de espécies de anfíbios e de répteis registrados na RPPN EEB e adjacências, sucuri Eunectes notaeus. em Mato Grosso do Sul e Mato Grosso Fonte: Dados disponíveis nos relatórios não publicados de Strüssmann e Ribeiro (2003) e Ávila (2005). Parna Pantanal – Parque Nacional do Pantanal (MT); Acurizal – RPPNs Nos campos de altitude (rupestres) Acurizal (MS), Penha (MS); Gaíva – Fazendas Gaíva (MS) e Mandioré (MS); Vila Amolar – Vila do Amolar (MS). existentes na UC, foi possível observar grande abundância de indivíduos, e que podem constituir grande fonte de endemismo (ETEROVICK; SAZIMA, 2004). Além dos campos de altitude, matas semidecíduas e ciliares merecem atenção especial não somente por apresentarem espécies com presença disjunta de suas distribuições geográficas (lagartixa Gonatodes humeralis, que possui distribuição marcadamente amazônica) ou novas para a ciência (sapo Rhinella aff. margaritifer e a lagartixa Gonatodes sp.), mas também por serem ambientes frágeis às alterações antrópicas (fogo, desmatamentos). Apesar de nenhuma das espécies encontradas nos levantamentos ou relacionadas em trabalhos anteriores na área (ÁVILA, 2005; CAMPOS et al., 2004; STRÜSSMANN et al., 2004) figurarem na Lista Brasileira das Espécies Ameaçadas de Extinção (IBAMA, 2003), algumas aparecem como vulneráveis em outras regiões do País. No estado de São Paulo, por exemplo, Tupinambis merianae e Paleosuchus palpebrosus são citados na lista vermelha de espécies ameaçadas (SÃO PAULO, 1998). No Rio Grande do Sul, Hydrodynastes gigas é citada como vulnerável. Seis espécies listadas para a RPPN-EBB (Geochelone carbonaria, Iguana iguana, Dracaena paraguayensis, Tupinambis merianae, T. teguixin e Eunectes notaeus) são relacionadas no Anexo II da Cites, que inclui espécies não necessariamente em risco de extinção, mas cujo comércio necessita ser controlado para evitar utilização incompatível com a sobrevivência da espécie (CITES, 2007 e IUCN, 2007). Apenas uma espécie, a lagartixa-de-parede Hemidactylus mabouia, pode ser considerada exótica ao local. Das espécies encontradas no Pantanal, existem informações pontuais sobre a história natural ou ecologia para as pererecas Scinax constrictus e S. acuminatus (ÁVILA, 2005; MORAIS; ÁVILA, 2006), os lagartos A. ameiva (ÁVILA; CUNHA-AVELLAR, no prelo), D. paraguayensis (STRÜSSMANN, 1997; FERREIRA, 2001) e Phyllopezus pollicaris (ÁVILA; CUNHA-AVELLAR, 2005), e as serpentes Philodryas olfersii (ÁVILA; FERREIRA, 2007) e Bothrops moojeni (ÁVILA; PORFÍRIO, submetido). Destaca-se a ocorrência do jacaré-paguá Paleosuchus palpebrosus, que possui ampla distribuição geográfica Brasil, mas é considerada uma das espécies de crocodilianos mais desconhecida para a ciência (THORBJARNARSON, 1992). Em função de sua importância biológica e das pressões de perda de habitat que a espécie sofre, foram realizados levantamentos específicos da ocorrência de P. palpebrosus na RPPN EEB e no entorno, avaliando também o estado de conservação de seus habitats. 1.7.3.4 Jacaré-Paguá 70 Plano de Manejo da RPPN Eng. Eliezer Batista DIAGNÓSTICO 1.7.3.4.1 Aspectos Gerais Entre as 5 espécies de crocodilianos que ocorrem no Brasil, o jacaré-paguá tem a sua distribuição marcante ao longo dos rios Amazonas, Paraguai e Paraná, e de suas áreas inundadas, excluindo a área central do Pantanal e do Rio São Francisco (MEDEM, 1981). A espécie ocupa outros habitats periféricos da planície do Pantanal, causando uma separação espacial com o jacaré-do-pantanal Caiman crocodilus yacare. A falta de informação da sua biologia é um dos fatores que, eventualmente, afeta a conservação do jacaré-paguá (MAGNUSSON, 1985). Um programa de monitoramento da área de ocorrência e o estado de conservação dessa espécie vem sendo executado pela Embrapa Pantanal desde 2004, em parceria com a Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul (Fundect), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis e tem registrado modificação e destruição dos seus habitats e a caça predatória nos rios, veredas e áreas alagadas do entorno do Pantanal (CAMPOS; MOURÃO, 2006). Essas práticas têm afetado diretamente no tamanho das populações de jacaré-paguá, o que remete à fremente necessidade de se adotar medidas efetivas para a conservação das populações, que deverão ser subsidiadas com conhecimentos gerados por estudos ecológicos em médio prazo. Diante da situação alarmante, Campos & Mourão (2006) sugeriram que o jacaré-paguá seja considerada uma espécie bioindicadora para os habitats de riachos, veredas e cabeceiras de rios da Bacia do Alto Paraguai. Um indicador biológico ou bioindicador é um grupo de organismos que pode ser usado para representar processos biológicos que estejam ocorrendo no ecossistema como um todo. 1.7.3.4.2 Procedimentos Adotados Durante a segunda expedição, foi realizado o levantamento da ocorrência de jacaré-paguá e o estado de conservação de seus habitats nos córregos das morrarias da região da RPPN EEB e no entorno, na Serra do Amolar. A metodologia empregada foi a de levantamento noturno para a contagem e a captura dos jacarés nos riachos, principalmente, após uma averiguação do nível da água desses habitats durante o dia. No primeiro dia, à tarde, percorreu-se o riacho temporário que corta a reserva, atrás da sede, e que se encontrava seco. No final da tarde, foi amostrado o Riacho Taquaral, de substrato pedregoso, localizado no entorno da reserva. Esse riacho encontrava-se parcialmente seco, sendo percorridos aproximadamente 2 km para as contagens dos jacarés. Na segunda noite, foram percorridos trechos do Riacho Dois Córregos, que também encontrava-se praticamente seco, somente com algumas poças com água. As contagens e as capturas foram feitas à noite, a pé, dentro do riacho, com lanternas de cabeça e de mão. Os jacarés, ao serem avistados pelo brilho dos olhos, foram capturados usando um laço fixado em uma vara de bambu e um cambão. As medidas do comprimento focinho-cloaca (CRC, cm), comprimento total (CT, cm) e comprimento da cabeça (CB, cm) foram feitas com uma trena de 3 m. A massa corporal dos jacarés foi tomada por uma balança de 50 kg, modelo Pesola. Os jacarés foram marcados individualmente com etiquetas (TAG) numeradas de alumínio National Band & Tag 1005-1, para jovens, e 1005-3 para adultos, fixadas com alicate específico na membrana interdigital da pata traseira esquerda. As cristas simples e duplas foram retiradas em combinações numéricas únicas para marcação individual e permanente. Todo o procedimento de captura, marcação e soltura foi executado com atenção e cuidado a fim de minimizar o estresse do animal e a segurança da equipe. 71 Plano de Manejo da RPPN Eng. Eliezer Batista DIAGNÓSTICO 1.7.3.4.3 Resultados Obtidos No trecho amostrado do Riacho Taguaral, foram avistados e contados nove indivíduos, sendo que desses, 6 foram capturados, marcados e soltos. Não foram observados indivíduos de jacaré-paguá nos outros corredores visitados. A densidade dos jacarés no Taquaral foi em torno de 4,5 indivíduos/km. Campos et al. (1995) encontraram até 8 indivíduos/km em riachos ao norte da RPPN EEB e verificaram que a densidade dessa espécie está associada à disponibilidade de água. Segundo esse autores, em épocas que os riachos estavam mais secos, poucos jacarés foram observados, provavelmente, movendo-se para o interior da floresta. Isso pode explicar a aparente alta densidade encontrada no Riacho Taquaral, que pode resultar da distribuição agregada dos jacarés no trecho de 2 km, com disponibilidade de água. Jovens recém-eclodidos também foram capturados no Riacho Taquaral, apontando o uso desse ambiente para reprodução. A Tabela 2 apresenta de forma sistematizada os resultados obtidos. Os dados encontrados apontam que os riachos da Serra do Amolar constituem sítios reprodutivos do jacaré-paguá. Porém, são necessários estudos da biologia e ecologia dessa espécie em médio e longo prazo, na região da UC, que forneçam subsídios para o monitoramento da integridade dos habitats e da qualidade e riqueza da fauna local. Tabela 2 – Dados biométricos dos jacarés-paguás capturados e marcados em maio de 2007 no Riacho Taquaral, Serra do Amolar, entorno da RPPN-EEB, Corumbá, Mato Grosso do Sul. Ponto Jac1 Jac2 Jac3 Jac4 Jac5 Jac6 Marcação nas cristas S2 S3 S4 S5 S6 S2S6 TAG 3726 1309 3704 2858 1373 2803 Comp. focinho cloaca (cm) 90,0 13,4 48,5 79,0 14,2 59,0 Comp. total (cm) 148,0 25,7 90,5 128,0 26,5 106,0 Massa corporal (kg) 22,0 0.047 3,0 13,0 0.050 5,0 Sexo macho N.D. fêmea macho N.D. macho Plano de Manejo da RPPN Eng. Eliezer Batista DIAGNÓSTICO efetuada uma incisão na parte ventral para a identificação do sexo, estádio de maturação gonadal e a extração do estômago para análise de conteúdo estomacal. Para a determinação da atividade reprodutiva, foram utilizadas cinco fases da maturação gonadal, sendo: repouso; em maturação; maduro; esgotado; e regressão (GODOY; SCHUBART, 1940). A dieta alimentar foi determinada por meio de identificação macroscópica dos componentes do conteúdo estomacal de cada exemplar amostrado. 1.7.4 Ictiofauna 1.7.4.1 Aspectos Gerais Da ictiofauna sul-americana, as bacias do Paraguai e do Paraná apresentam as maiores semelhanças, possuindo elementos distintos de outras grandes bacias do continente, como a amazônica (CARAVELLO, 1986). Particularmente, no Pantanal, a dinâmica de inundação e a diversidade de habitats aquáticos permitem a existência de uma rica ictiofauna que utiliza diferentes estratégias de vida, habitats e reprodução (EMBRAPA, 2008). Para o Pantanal são reconhecidas 263 espécies de peixes, distribuídas principalmente nas ordens Characiformes, Siluriformes, Gymnotiformes, Perciformes e Cyprinodontiformes (BRITSKI et al., 1999). A classificação taxonômica da ictiofauna segue a adotada por Britski et al. (1999) e os nomes populares foram determinados em função do conhecimento tradicional de pescadores e moradores locais. 1.7.4.3 Resultados Obtidos Ao todo, foram capturados e identificados 151 exemplares de peixes, pertencentes a 33 espécies e 13 famílias. A maior ocorrência foi de espécies da ordem Siluriformes, com 17 espécies, seguida por Characiformes, com 16 espécies; Gymnotiformes, com 3 espécies, e Perciformes, com duas espécies. A lista de espécies da ictiofauna capturadas na RPPN EEB e no entorno é apresentada no Anexo 6. Os peixes possuem importância econômica e ecológica enquanto componentes do ecossistema do Pantanal. Os grandes estoques pesqueiros, provavelmente, representam um dos maiores compartimentos de reserva viva de nutrientes e de energia do sistema, com implicações na circulação e no fluxo desses elementos. Os peixes, entre outras funções, atuam como dispersores de sementes e constituem a alimentação básica para parte da fauna aquática e terrestre (EMBRAPA, 2008). A ictiofauna local também é a principal fonte de proteína para a população ribeirinha, além de sustentar os setores de pesca esportiva e profissional (EMBRAPA, 2008). A maior riqueza de peixes foi encontrada nas proximidades da Baía Mandioré, com 18 espécies em 34 indivíduos capturados. Nessa localidade o piquira Characidium sp. foi a espécie mais abundante, com 6 exemplares. Foi capturado também 1 exemplar de tuvirão Sternopygus macrurus, gênero que pode apresentar outra espécie ainda não confirmada para o Pantanal. Na Baía Mandioré foram capturados peixes em estádio juvenil, sendo 1 pacu de 25 cm e 1 cachara com 31 cm, e são um indício de que o local funciona como berçário natural de ictiofauna. 1.7.4.2 Procedimentos para a Caracterização da Ictiofauna A caracterização da ictiofauna da RPPN EEB e do entorno foi realizada em coletas entre 8 e 10 de dezembro de 2006. Foram amostradas cinco localidades: na confluência dos rios Paraguai e São João; no leito do Rio Paraguai nas proximidades do Porto de São Pedro; no Canal do Bonfim nas proximidades da Baía Mandioré; na baía; no Canal do Bonfim nas proximidades do Rio Paraguai; e no corixo Mata Cachorro. No leito do Rio Paraguai, entre as imediações do Porto São Pedro, foram capturadas 10 espécies com um total de 65 indivíduos, sendo a sardinha Triportheus spp. a mais abundante, com 18 indivíduos. Na Baía do Bonfim foram capturadas 8 espécies e 38 exemplares, onde a mais abundante também foi a sardinha Triportheus spp., com 13 indivíduos capturados. Na confluência dos rios Paraguai e João foi capturado apenas um indivíduo de pacu. Para a captura de exemplares da ictiofauna, utilizou-se rede de multifilamento de náilon de malha 180 mm; rede de monofilamento de náilon de malha 80 mm; tarrafas de monofilamento de náilon de 100 mm e de 20 mm, e peneira de aço de malha de 0.2 mm. No corixo Mata Cachorro foram capturadas 3 espécies e 13 exemplares, sendo o curimbatá Prochilodus lineatus o mais abundante, com 6 indivíduos. Essa área merece atenção por abrigar a espécie de tucunaré Cichla sp., espécie alóctone endêmica da Bacia Amazônica, introduzida artificialmente no Pantanal. A maior parte dos peixes capturados foi identificada no local da captura, com base na experiência da equipe e em consulta à literatura (BRITSKI et al., 1999). Foram escolhidos para coleta apenas peixes migratórios, sendo duas espécies de Siluriformes, o pintado Pseudoplatystoma corruscans e o cachara Pseudoplatystoma fasciatum, e duas de Characiformes, o pacu Piaractus mesopotamicus e o curimbatá Prochilodus lineatusi. Outras espécies da ictiofauna foram soltas no mesmo local da captura, imediatamente após a identificação. Na Baía Mandioré e no Canal do Bonfim destacam-se 7 espécies de peixes ornamentais: cará Aequidens sp., piquira Characidium sp., cascudinho Otocinclus sp., rapa-canoa Pseudohemiodon sp., camboatá Hoplosternum sp., branquinha Poptella sp. e lambari Astyanax sp. Os exemplares adultos de espécies migratórias coletados foram levados até o Porto São Pedro para identificação e aferimento de características morfológicas. Foi medido o comprimento total e Foram capturados 21 exemplares de espécies migratórias, sendo 12 73 Plano de Manejo da RPPN Eng. Eliezer Batista DIAGNÓSTICO pertencentes à família Anostomidae (p.ex. Leporinus friderici), Pimelodidae (p.ex. Pimelodus maculatus) e Doradidae (p.ex. Oxydoras kneri e Pterodoras granulosus) (OLIVEIRA, 2003). Porém, pouco se conhece sobre o impacto da colonização do mexilhão-dourado sobre as comunidades aquáticas nativas no Pantanal, uma vez que essa espécie de molusco bivalve é exótica e invasora, teve seu primeiro registro local em 1998. O mexilhão-dourado pode acumular metais tóxicos, como o mercúrio, que podem ser diretamente transferidos, por meio da cadeia trófica, aos seus predadores (OLIVEIRA, 2003). pacus, 6 curimbatás, 2 cacharas e 1 pintado, cujas aferições são apresentadas na Tabela 3. Onze exemplares de pacu, capturados no Rio Paraguai, estavam na Fase III de maturação gonadal e 1 exemplar na Fase IV, evidenciando que essa espécie encontrava-se no auge de sua atividade reprodutiva. Os exemplares de curimbatá encontravam-se em repouso gonadal, na Fase I de sua atividade reprodutiva. Os exemplares de cachara e pintado demonstraram estar em maturação gonadal, ou seja, na Fase II de sua atividade reprodutiva. Os peixes de valor econômico encontrados na RPPN EEB, na RN EEB e nos seus entornos, como pacu, curimbatá, pintado e cachara são espécies migratórias que se deslocam no Rio Paraguai, no período reprodutivo, e dependem do ciclo anual de cheia e seca. Nesse sentido, a construção de barragens nos rios a montante da RPPN EEB e da RN EEB, como no Rio Manso, pode afetar a reprodução e a reposição de estoques de peixes em todo o Rio Paraguai. Oito dos 12 indivíduos de pacu não continham conteúdo estomacal. Quatro estômagos continham exclusivamente material vegetal, provavelmente, macrófitas aquáticas, e um estava repleto de mexilhão-dourado Limnoperna fortunei. A foto abaixo mostra conchas de mexilhão-dourado encontradas no conteúdo estomacal do pacu. Os seis estômagos de curimbatás estavam vazios. Dos estômagos de Muitas espécies da ictiofauna encontram-se associadas às regiões de média e baixa inundação na planície, habitando baías, lagoas, canais naturais de drenagem e corixos (cursos d´água temporários) (EMBRAPA, 2008), ambientes que chegam a representar 58 % da cobertura da RPPN EEB e da RN EEB juntas. As espécies de pequeno porte, que constituem o alimento de peixes maiores, permanecem nas lagoas remanescentes durante o período de estiagem. A grande quantidade de peixes retida nos ambientes aquáticos temporários constitui durante a seca a principal fonte de alimento para parte da fauna, especialmente para as espécies de aves aquáticas que se reproduzem nessa época (EMBRAPA, 2008). Algumas das espécies de pequeno porte ficam retidas em lagoas perenes onde se preparam para a reprodução na cheia do ano seguinte, quando a lagoa se conectar novamente com o rio. Outras se cachara analisados, um estava vazio e outro continha pacu-peva Mylossoma orbignyanum e sairu Potamorhina sp. O único exemplar de pintado analisado apresentou estômago vazio. O mexilhão-dourado pode constituir o item alimentar exclusivo da dieta do pacu em determinadas épocas do ano (OLIVEIRA, 2003). Outros peixes também incluem o mexilhão-dourado na dieta, como espécies 74 Plano de Manejo da RPPN Eng. Eliezer Batista DIAGNÓSTICO Tabela – 3. Caracterização da atividade reprodutiva através da maturação gonadal das espécies migratórias coletadas na RPPN EEB e no entorno, Corumbá, Mato Grosso do Sul. Espécie Indivíduo Local CT sexo MG Piaractus mesopotamicus 1 1 Piaractus mesopotamicus 2 2 45 macho III 50 macho III Piaractus mesopotamicus 3 Piaractus mesopotamicus 4 2 50 macho III 2 45 fêmea III Piaractus mesopotamicus Piaractus mesopotamicus 5 2 41 macho III 6 2 50 fêmea IV Piaractus mesopotamicus 7 2 45 fêmea III Piaractus mesopotamicus 8 2 44 fêmea III Piaractus mesopotamicus 9 2 45 fêmea III Piaractus mesopotamicus 10 2 43 macho III Piaractus mesopotamicus 11 2 43 macho III Piaractus mesopotamicus 12 2 46 macho III Pseudoplatystoma corruscans 1 2 86 macho II Pseudoplatystoma fasciatum 2 2 85 fêmea II Pseudoplatystoma fasciatum 3 2 92 macho II Prochilodus lineatus 1 5 35 fêmea I Prochilodus lineatus 2 5 38 fêmea I Prochilodus lineatus 3 5 31 fêmea I Prochilodus lineatus 4 5 34 fêmea I Prochilodus lineatus 5 5 30 fêmea I Prochilodus lineatus 6 5 28 macho I Legenda CT- comprimento total. MG – maturação gonadal: I – repouso reprodutivo, II - maturação, III – maduro, IV – esgotado, V - regressão (GODOY; SCHUBART, 1940). Local de coleta:- 1. confluência dos rios Paraguai e São João; 2. leito do Rio Paraguai nas proximidades do Porto de São Pedro; 5. corixo Mata Cachorro. 75 77 Plano de Manejo da RPPN Eng. Eliezer Batista 78 79 80 Plano de Manejo da RPPN Eng. Eliezer Batista DIAGNÓSTICO com indicadores geoambientais de áreas potenciais para ocupação humana, como aterros, margens estáveis de rios e lagos e desembocaduras de rios, bem como áreas de afloramentos rochosos. 1.8 Aspectos Históricos e Culturais (Patrimônio Material e Imaterial) No total, foram levantados 15 pontos de amostragem englobando a maioria dos contextos ambientais da área, porém limitado às condições de navegabilidade e acesso. Sendo assim, os locais avistados referemse tanto a terrenos de sedimentação estáveis como a áreas de afloramentos rochosos, todos marginais aos corpos d'água, ou, quando afastados, com deslocamento inferior a uma hora desde a margem. Um único ponto localizado fora da RPPN EEB e da RN EEB, distante cerca de 2,5 km a montante do Rio Paraguai, foi amostrado tendo em vista apresentar fortes indicativos da presença de material cerâmico. 1.8.1 Aspectos Arqueológicos Há consenso entre os arqueólogos sobre o atual estágio incipiente de conhecimento da Arqueologia no Pantanal, em especial nas suas porções mais isoladas, onde se incluem as regiões das grandes baías (Mandioré, Gaíva, Uberaba e Vermelha), dos aterros erguidos nas áreas suavemente elevadas da planície pantaneira e nas principais desembocaduras dos tributários do Rio Paraguai. Existe carência de trabalhos sistemáticos no Pantanal que permitam melhor identificação, análise e correlação entre os diversos grupos étnicos que aí habitaram e habitam desde, certamente, os últimos 6 mil anos. 1.8.1.2 Resultados e Conclusão A região de estudo é complexa do ponto de vista arqueológico, tendo sido ocupada por grupos étnicos bastante diversificados, com padrões distintos de assentamentos, comportamento social variado e diferenciações lingüísticas. Alguns grupos eram nômades, exclusivamente, caçadores, pescadores e coletores, outros eram agricultores estabelecidos em grandes aldeamentos. Uma equipe de Arqueologia do Instituto do Patrimônio Histórico e Arquitetônico Nacional (Iphan) realizou duas expedições científicas a convite do IHP à região da RPPN EEB, com o objetivo de sinalizar a importância e a necessidade da realização de estudos arqueológicos. Além da necessidade de conhecimento detalhado dos atributos socioambientais da região da RPPN EEB e da RN EEB, tais levantamentos também foram motivados pelo fato de Corumbá sediar expressiva pesquisa acerca do patrimônio histórico e arqueológico regional para a composição do acervo do Museu do Pantanal, que resgatará a história da ocupação humana desde, aproximadamente, há 8 mil anos. A problemática arqueológica da região é ampliada diante da sobreposição cultural e transitória entre os diversos grupos que vieram ocupar as mesmas áreas, em distintos momentos, neste lapso de tempo do Holoceno. É possível enumerar alguns grupos importantes que estiveram presentes nas terras da planície pantaneira e nas terras altas circundantes, nos últimos milênios, como Payaguá, Guaicuru, Guató, Xaray e Chané. 1.8.1.1 Procedimentos Adotados Com base nessas expedições pode-se concluir que existem pelo menos dois ambientes de potencial arqueológico na área: o primeiro de baixo potencial, representado por terrenos de sedimentação bastante recente, composto basicamente de areia sistematicamente remobilizada e modificada pelo sistema fluvial, ocupando a maior parte da RPPN EEB, sobretudo na porção sul. O segundo, de alto potencial arqueológico, correlacionado com áreas de sedimentação mais antigas e mais estáveis, circundando as morrarias da Serra do Amolar. Esse ambiente potencial é preferencial para identificação positiva de material arqueológico. A região de mais alto potencial arqueológico, com a indicação de pontos com amostragem positiva de vestígios, é apresentada na Figura 38. As visitas de campo foram realizadas em duas ocasiões, sendo a primeira nos dias 18 e 19 de novembro de 2006, durante a expedição de reconhecimento no período chuvoso, e a segunda entre os dias 8 e 10 de dezembro de 2007. Para a realização dos trabalhos de campo, foram selecionados pontos 81 Plano de Manejo da RPPN Eng. Eliezer Batista DIAGNÓSTICO Figura 38 – Apresentação de pontos com identificação positiva de material arqueológico na região da RPPN EEB, Corumbá, Mato Grosso do Sul. No detalhe, é apresentada a região mais ao norte da RPPN EEB, onde também foram encontrados vestígios arqueológicos. 82 Plano de Manejo da RPPN Eng. Eliezer Batista DIAGNÓSTICO comerciais que buscavam rotas de acesso ao interior através dos rios – que chegavam até a região para trocar produtos pelo ouro explorado localmente. Esses aventureiros foram os primeiros a adentrar o Pantanal, descendo o Rio Taquari do planalto até a foz, para então subir os rios Paraguai, Cuiabá e São Lourenço. A identificação de vestígios arqueológicos foi positiva nos pontos 1, 2 e 3, sendo que o ponto 3 está localizado em área próxima à RPPN EEB. Nos sítios 2 e 3 há incidências esparsas de fragmentos cerâmicos. O sítio 1, por sua vez, localizado às margens da Baía Mandioré, exibiu bastante material cerâmico, mostrando ser um local de alto interesse arqueológico. Os índios da região ofereceram dura resistência à chegada do homem branco, sobretudo dentro do Pantanal, tornando o processo de ocupação moroso e as expedições mais esporádicas (SOUZA, 1986). Na área do Morro do Chané, existem fortes indícios da existência de material arqueológico, sustentados principalmente pela informação de moradores antigos que, continuamente, referem-se à essa área quando questionados da existência de materiais de antigos povos da região. Infelizmente, devido às condições de navegabilidade e acessibilidade, não foi possível atingir essa porção da unidade. . Segundo moradores, o Morro do Chané é alcançado pelo sistema fluvial somente nas cheias. No período da seca, é necessário caminhar por 1 dia em áreas alagadiças, para conseguir chegar ao local. Após a criação da capitania de Mato Grosso (1748) e a assinatura do Tratado de Madri (1750) que definiu uma fronteira entre os domínios portugueses e espanhóis, muito similar aos atuais limites brasileiros, iniciou-se, ainda que lentamente, uma ocupação militar mais sistematizada no interior da planície, com a fundação do Presídio de Coimbra (1775), a povoação de Albuquerque (1778), hoje Corumbá, Cáceres (1778) e Poconé (1791). Esses assentamentos não só consolidaram o domínio português na região, mas intimidaram os ataques indígenas às monções e outras expedições de reconhecimento (SOUZA, 1986). O fato de outros pontos amostrais não terem indicado vestígios positivos de material arqueológico, não deve representar a sua inexistência. Ainda que as incursões realizadas e os condicionantes ambientais apontem para a inexistência de tais vestígios, eles devem ser confirmados em levantamentos mais detalhados. A Guerra do Paraguai (1864-1870) foi um evento histórico de grande relevância para a formação da sociedade pantaneira, materializado, principalmente, nas fortificações construídas para defesa, hoje quase todas em ruínas, e na influência cultural paraguaia, com grande penetração na planície. Ao longo de 1864 e 1865, durante a primeira fase da guerra, marcada pela ofensiva Paraguaia, o exército comandando por Solano Lopez atacou e dominou o Forte Coimbra, às margens do Rio Paraguai, seguindo até Corumbá e Albuquerque. Outra coluna avançou por terra, tomando Dourados, Miranda e Coxim (na fronteira leste do Pantanal). Nesse sentido, grande parte da porção sul da bacia foi dominada por, pelo menos 2 anos, forças paraguaias até que a Coroa Brasileira conseguisse enviar reforços. Corumbá só foi retomada em 1867. A região da Baía Mandioré é sabidamente área de concentração de sítios arqueológicos de populações originais, sendo que hipóteses correntes apontam a existência, no passado, de grupos canoeiros de grande mobilidade espacial associados à tradição do Pantanal (OLIVEIRA, 1998). Essas hipóteses associam os agrupamentos humanos à presença de corpos d'água perenes, permitindo aos grupos tal movimentação espacial, bem como provisão adequada de bens e serviços ambientais, essenciais à sua sobrevivência, como água, peixes, caça, plantas medicinais, forrageiras, proteção, abrigo e via de movimentação. Os achados mais consistentes constituem-se em um apanhado de informações coletadas com as populações tradicionais da região e, a partir de várias indicações e suspeitas, foram encontrados vários cacos de cerâmica dos tipos corrugada e lisa (comunicação pessoal). Nesse sentido, existe a possibilidade desses achados corroborarem as hipóteses referidas após análise mais criteriosa. Após a chegada dos europeus, houve massacres indígenas e guerras. No início do século XX, a sociedade pantaneira era caracterizada pela mistura de sangue europeu, português e espanhol, vinda por leste e pelo sudoeste do Paraguai,o indígena e o negro. Naquela época, a região estava relativamente isolada do resto do Brasil, haja vista a dificuldade de atravessar o planalto rumo ao litoral. A principal rota era pelos rios da bacia, até o Estuário do Prata, levando a população da região a ter mais contato com o Paraguai, a Argentina e o Uruguai. 1.8.2 Aspectos Históricos da Formação da Sociedade Pantaneira O pantaneiro hoje é fruto dessa mistura e, assentado na região há mais de um século, desenvolveu costumes adequados à realidade ecológica – às vezes inóspita – tendo hoje uma bagagem cultural importante e peculiar (DOUROJEANNI, 2006). Dois atores sociais típicos merecem destaque: (1) o boiadeiro, responsável por quase dois séculos de tradição de pecuária extensiva, com estilo próprio na lida com os cavalos e os bois, desenvolve a técnica de aproveitar a oferta sazonal de pastagens nativas, reconhecendo os limites impostos pelo ambiente, e desloca os rebanhos para os locais secos na época de enchente; e (2) o pescador, conhecedor dos rios e seus ciclos naturais, desvenda os locais e épocas certas para capturar os peixes que lhes são mais valiosos. A Bacia do Alto Paraguai e parte do Pantanal foram habitadas por diversas etnias autóctones desde, pelo menos, 8.200 anos atrás até meados do século XIX. Quando da chegada dos europeus na região, registra-se a ocorrência de aproximadamente 70 nações pertencentes aos grupos lingüísticos Tupi-Guarani e Arawak (BERTELLI, 1988). A maior parte, com destaque aos Guaicuru, Kadiweu, Kaiowá, Terena, Bororo e Paresi, habitava o entorno mais alto, não-alagável. Porém, alguns grupos estabeleceram-se bem no interior da planície, como os Guató e Paiaguá, em regiões próximas à RPPN EEB. Esses grupos desenvolveram um modo de vida intimamente relacionado aos recursos naturais ali existentes, sendo exímios pescadores e fabricantes de canoas. No entanto, com a decadência da atividade pecuária, o advento do turismo, do garimpo e a crescente urbanização, as tradições estão mudando. Hoje, famílias antigas deslocam-se para os centros urbanos em busca de outras oportunidades e de, sobretudo, proporcionar meios de educação formal para os filhos menores. Dessa forma, as famílias se desmembram, permanecendo nas fazendas apenas os mais velhos. Embora, pelo Tratado de Tordesilhas, essa região tenha sido ocupada pelos espanhóis, foram os portugueses os primeiros a se instalar, através das bandeiras paulistas motivadas pela busca por indígenas para mãode-obra e, posteriormente, por ouro e outros metais preciosos descobertos. Em 1719 e 1722 foram fundadas Cuiabá e Vila Bela da Santíssima Trindade, os primeiros povoados. Naquela mesma época, iniciaram-se as monções – expedições Nos estudos realizados para a elaboração deste plano de manejo, não foram identificados na área da RN EEB e da RPPN EEB locais de práticas místico-religiosas ou outras manifestações culturais. 83 84