PRIVATIZAR AS TERRAS DA COROA1 O problema da privatização não é novo. Há mais de 200 anos Adam Smith dizia: De facto, a Coroa só vendia terras quando obrigada pela pressão da dívida pública. Mais nada justificava perder Poder. Mais nada compensava diminuir a sua capacidade de manobra para servir a sua clientela. " Em todas as grandes monarquias da Europa a venda das terras da Coroa renderia uma larga soma de dinheiro, o qual, aplicado no pagamento da dívida pública, libertaria da hipoteca muito maior rédito do que o de qualquer que essas terras jamais proporcionaram à Coroa. ... Quando as terras da Coroa se tivessem tornado propriedade privada, poderiam, no decorrer de alguns anos, tornar-se altamente melhoradas e bem cultivadas. ... Seria em todos os casos do interesse da sociedade restituir à Coroa este rédito por meio de outro rédito igual e repartir as terras pelo povo, o que não poderia ser feito melhor talvez do que apresentá-las em hasta pública." (A Riqueza das Nações, p.483) Em nome do bem-comum? Claro, mas interpretado pela Coroa ... As vantagens da privatização eram, todavia, evidentes. Mostrava a experiência que os incentivos aos "gestores" das terras da Coroa não iam no sentido da sua melhor produtividade, sendo difícil resolver conflitos entre os objectivos puramente comerciais e as considerações de ordem social e política. O entusiasmo da Coroa pela venda de terras foi sempre pequeno. Porquê? As terras privatizadas "tornavam-se altamente melhoradas e bem cultivadas". A Coroa ia buscar à posse da terra mais do que rendimento. Ia buscar Poder. Entregava a sua exploração a quem lhe fosse leal. Distribuía os benesses conforme lhe conviesse. Os custos diminuíam, libertavam-se recursos para outras actividades, surgia a inovação e o próprio volume de produção aumentava. Quando as terras privatizadas produziam para mercados em monopólio ou oligopólio, medidas apropriadas de Em nome do bem-comum? Claro, mas interpretado pela Coroa ... 1 Artigo publicado em Julho de 1989 no semanário O LIBERAL 1 regulação impediam os abusos potenciais, ao contrário do que se passava com os monopólios públicos. preço igual ao valor actualizado de réditos futuros? Seria verdade que os estrangeiros conseguiam rentabilizar melhor os investimentos, trazendo know how, novas técnicas de produção, mais competitividade, novos mercados, etc.? Talvez. Em qualquer caso, sabia-se que muitas terras só poderiam ser rentáveis se houvesse capitais e capacidade de gestão de origem estrangeira. O preço oferecido pelos nacionais não poderia deixar de reflectir todos estes dados. Aliás, mostrava a experiência que os eventuais delitos dos "gestores" das terras privadas eram mais facilmente controlados. Em contrapartida, o concubinato de interesses entre a "corporação de gestores" das terras públicas e a Coroa convidava à corrupção política e económica. As desvantagens da privatização eram, em contrapartida, inexpressivas. Também era preciso não esquecer o seguinte. Ou as fronteiras eram fechadas e os réditos ficavam na nação ou, pelo contrário, a nação estava inserida num "espaço sem fronteiras" e a livre circulação de pessoas e réditos tornava ineficaz qualquer tentativa de controlar o destino último dos réditos. De facto, a reduzida dimensão da nação e a sua inserção num "espaço sem fronteiras" tornavam a questão num falso problema. Colocar o problema no contexto da privatização era atirar areia aos olhos do povo. Havia boas razões para se concluir tratar-se de um estratagema "bem construído" no sentido de diminuir o valor de licitação para os nacionais. Depois, se quisessem, poderiam vir a vendê-las a outros (estrangeiros?), realizando assim saborosas mais-valias. A propaganda da Coroa dizia que a venda de terras teria de ser gradual, pois o povo não tinha suficiente liquidez para as adquirir. Esquecia-se a Coroa de que o bem-comum nada tem a ver com a máxima transferência de riqueza do povo para a Coroa. Quanto muito, era o contrário que devia acontecer. Aumentar a produtividade das terras era aumentar o bem-comum. E quanto mais depressa se fizesse mais rapidamente se aumentava a riqueza da nação. Não o fazendo, a Coroa prejudicava o povo. A propaganda da Coroa (e não só) dizia que era preciso não deixar que o controlo das terras nacionais passasse para o estrangeiro. Dizia-se que a venda em hasta pública atirava as terras para as mãos dos estrangeiros, pois estes ofereciam melhor preço. Mas não é o 2 De facto, a resistência da Coroa à venda de terras só era vencida sob pressão da dívida pública. Privatizar todas as terras públicas era bom para a nação: aumentava a riqueza da nação e transferia Poder para o povo. Ser pela democracia era ser pela privatização. Infelizmente, a amortização das dívidas do passado parecia facilitar a manutenção da incontinência das suas despesas no presente, incluindo a compra de outras terras (era preciso compensar os que serviam a Coroa...). Privatizar todas as terras públicas era mau para a Coroa: tirava-lhe capacidade de manobra para distribuir favores pela sua clientela, isto é diminuía-lhe o Poder. Ser pela privatização total era ser pelo enfraquecimento da Coroa. A Coroa não podia ser a favor de semelhante coisa. Privatizar? Só quando não houvesse outro remédio! E, se possível, pagar o menos possível àqueles a quem as terras haviam sido inicialmente tiradas. Mandava a ética que, simultaneamente com o pagamento das dívidas do passado, novas dívidas não fossem criadas. Mandava ainda a ética que não fosse esquecida a justa compensação daqueles a quem as terras haviam sido anteriormente tiradas pela Coroa. Bradava aos céus ouvir a Coroa dizer: "Se pagarmos o que devemos, fica-nos pouco da venda das terras. Não convém aumentar os impostos para pagar a dívida; é preferível sacrificar meia dúzia de pessoas." Era surpreendente ver a ética e a justiça a serem vendidas no mercado... Afinal o que era mais importante? A riqueza da nação ou o poder da Coroa? Será mera casualidade qualquer semelhança entre a história e o presente? Fernando Adão da Fonseca Infelizmente, qualquer que fosse o Rei, a Coroa tinha a sua lógica própria em que a ética era um instrumento e não uma exigência de acção. Manter o Poder, isso sim, era o objectivo principal. 3