Quilombo de Barrocas em Vitória da Conquista/BA: histórias e tradições de um povo Jamile Santos Melo Silva - UESB Estudante do curso de Licenciatura Plena em Geografia [email protected] Suzane Tosta Souza (Orientadora) Professora do Departamento de Geografia – UESB [email protected] Este artigo busca discutir a resistência dos valores étnico-culturais das comunidades tradicionais, e a importância desses na luta pela permanência do território quilombola, tendo como referencia a comunidadede Corredor de Barrocas, situada no Centro Sul da Bahia. O objetivo é resgatar esses valores presentes na cultura das comunidades, por meio de histórias orais. A metodologia empregada será por meio de entrevistas e conversas com os militantes, bem como com as pessoas mais antigas da respectiva comunidade; associando ao aparato teórico da Geografia e das Ciências afins que enfocam a importância da terra quilombola-camponesa como condição de reprodução social da vida. Esse artigo é parte do trabalho monográfico que traz a discussão da luta e resistência desses povos nos territórios quilombolas, o resgate dos valores camponeses-quilombolas, tendo como realidade especifica o estudo da comunidade de Barrocas. Como resultado preliminar podemos afirmar que estas culturas permanecem vivas, mesmo não tendo a mesma intensidade de antes, dada a migração de parte dos jovens da comunidade para os centros urbanos a procura de trabalho, que, em grande parte, não retornam para suas respectivas comunidades, para que possam dar continuidade as tradições que compõem a identidade destes povos. Palavras Chave: Quilombos,Valores, Território, Campesinato. Introdução O presente estudo considera a Geografia como uma ciência que estuda a produção do espaço, partido da relação dialética sociedade, trabalho e natureza. Circunscreve-se como uma pesquisa no campo da Geografia Agrária e busca compreender as diversas formas de luta e permanência de comunidades quilombolas em suas terras de trabalho, seus espaços de reprodução da vida. Para tanto, nos ancoramos teoricamente na categoria território, considerada espaço apropriado, locus de vida e trabalho dos povos que vivem no campo. Entretanto, compreendemos que tal definição é ainda genérica para expressar, concretamente, a realidade verificada na comunidade de Barrocas, localizada na zona rural do município de Vitória da Conquista, Centro-Sul do Estado do Bahia (Ver mapa 01). Por isso, estamos no processo de elaboração do conceito de Território camponês quilombola. Mapa 01 A Comunidade quilombola camponesa de Barrocas em Vitória da Conquista- BA. Fonte: Setor de Geoprocessamento da Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista, 2013. Assim, o território é compreendido como espaço de reprodução social e se constitui em uma dimensão material e imaterial – lócus de vida e de reprodução de valores, crenças, dentre outros, mas também espaço de luta, de resistência para continuar se reproduzindo na terra. Os sujeitos sociais da pesquisa são considerados ainda camponeses, na medida em que se reproduzem por meio de valores definidos através do trinômio terra-trabalho e família, ou seja, são espaços da terra de trabalho e através desse consegue-se a reprodução social da família. Para tanto, nos ancoramos em autores como Oliveira (2001), Marques (2002), Souza (2008) e outros. Por outro lado, se esses sujeitos podem ser considerados camponeses, por viverem, sobretudo, do trabalho realizado na terra, estes trazem outra especificidade – o fato de serem quilombolas, portanto descendentes diretos de um povo que historicamente foi expropriado dos meios de produção e da terra – os negros, que outro momento de nossa história – a escravidão – sequer dispunha de sua força de trabalho para vender, ou podiam desenvolver relações de produção não capitalistas. Eram, portanto, conforme define Martins (1998), a própria renda capitalizada da terra. Esse passado histórico, aliado as condições concretas hoje de não apropriação da terra e dos meios de produção, relega esses sujeitos sociais a condição de fragilidade e constante exploração de sua força de trabalho. No entanto, tal realidade pode ser, parcialmente, amenizada através da luta pela terra camponesa-quilombola, e a busca pelo reconhecimento desses territórios. Contudo, observando-se a realidade concreta de Barrocas, percebe-se que as condições de vida das famílias estão muito aquém das garantias concretas de reprodução social desses sujeitos. A terra é insuficiente e a mobilidade do trabalho acaba por ameaçar a permanência da luta na terra e pela terra. Tratando-se, mais especificamente da temática proposta para esse artigo, enfatizamos os valores culturais que se reproduzem de geração a geração nas comunidades quilombolas-camponesas, tomando por locus empírico de pesquisa o Povoado de Barrocas, que encontra-se em processo de reconhecimento, junto a Fundação Cultural Palmares. Considera-se, portanto, que essa dimensão imaterial é fundamental para a luta pela “conquista” e permanência no território de trabalho e de vida. A importância dos valores culturais na permanência do Território CamponêsQuilombola Ao considerar-se as comunidades quilombolas-camponesas como territórios de vida e de lutas, pode-se destacar que esses se definem, também, por seus valores culturais, onde as manifestações sociais constrói não somente o espaço, mas a história de um povo, do seu local de “pertencimento” sendo ela concentrada no campo ou na cidade. Os valores africanos ganharam novas características na história de vida e de lutas desses povos no Brasil. A identidade construída por nossos antecedentes veio a constituir a história do Brasil, mas, muitas vezes, os valores desses povos são deixados no que denominamos “esquecimento”. Para referendar as culturas que essas comunidades tradicionais quilombolas mantêm e perpassam de gerações em gerações, tomaremos como exemplos a localidade quilombola de Barrocas, considerada exemplo de manutenção da história de um povo. Para tanto, nos valemos, sobretudo, da oralidade de pessoas mais antigas, que enfatizam assuntos como: o surgimento da comunidade, as recordações da vida infantil, os valores passados pelos antepassados – orações, danças, crenças, relação com a natureza, recortes folclóricos e tradições que se perderam como também tradições que são mantidas vivas, dando continuidade às raízes de matrizes africanas. Considera-se que o resgate da memoria coletiva e da história da comunidade negra não interessa apenas aos povos de ascendência negra. Essa memoria não pertence somente aos negros, mas a história do país. Pertence a todo povo brasileiro, tendo em vista que a cultura da qual nos alimentamos cotidianamente “é fruto de todos os segmentos étnicos que, apesar das condições desiguais nas quais se desenvolvem, contribuíram cada um de seu modo na formação da identidade nacional” (KABENGELE MUNANGA, 2006, p.100). O geógrafo Rafael Sanzio (2009), estudioso das comunidades quilombolas no Brasil, destaca que o território é uma condição para manutenção dessas culturas: O território é uma condição essencial, porque define o grupo humano que ocupa, onde estão localizados e por que estão naquele espaço (historicidade). A terra – o terreiro – não significa apenas uma dimensão física, mas antes de tudo é um espaço comum, ancestral, que todos têm registros da historia, da experiência pessoal e coletiva do seu povo, em fim, uma instancia do trabalho concreto e das vivencias do passado e do presente. Num quilombo a terra não é pensada e nem praticada como uma propriedade individual, mas como uma instancia de uso comum-coletivo, que é elemento principal da consolidação do território étnico, da manutenção da identidade cultural e da coesão social (ANJOS, 2009, p.108). De acordo com a Cartilha: Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais, publicada em 2013, a religiosidade é uma das manifestações culturais que não sofreu tantas mudanças em sua originalidade, até mesmo pela conservação dos nomes dos caboclos do qual as rezadeiras, mãe e pai de santo utilizam. As comunidades de religiões de matriz africana ou, simplesmente, povos de terreiros, são compostas por grupos ligados a uma casa de terreiro que utilizam espaço comum para a manutenção das tradições de matriz africana, respeito aos ancestrais e forças da natureza, mediante relações pautadas pelo conceito de família ampliada. As pessoas que mantém esta religiosidade utilizam palavras africanas que os escravos utilizavam para agradecer ou festejar quando estes se reuniam nas senzalas ou nos quilombos, espaço onde sentiam liberdade para expressar culturas e valores trazidos da África. Sobre isso, Sanzio (2009, p. 75) cita em uma de suas obras algumas expressões utilizadas em nosso dia-a-dia que constituem o português afro-brasileiro como: carimbo, canjica, quitanda, corcunda, caçula, cachaça, cachimbo, canjica, capanga, dendê, dengo, fubá, ginga, macaco, gangorra, macumba, maculêlê, minhoca, muleque, quiabo, dentre outras palavras que foram “aportuguesadas”, mas não deixaram de indicar os traços de nossos antecedentes. Nas comunidades quilombolas, muitas atividades marcam a presença destes povos que deram a característica que o Brasil retém até os dias atuais. Considerando a realidade concreta da comunidade quilombola camponesa de Barrocas, podemos destacar a crença e a fé, como valores que se destacam. Essas se expressam nas palavras transmitidas por pessoas que se dispõem como “instrumentos” para “expressão de Deus”, onde utilizam das orações para ajudar as pessoas que procuram alívio da dor ou sofrimento, como por exemplo, o Senhor Wlisses José da Silva (memoria), lavrador e militante de Barrocas, que aprendeu uma reza com seu pai para desengasgar as pessoas. Esse senhor é apontado pelos entrevistados como um exemplo de vida para os que vivem atualmente na comunidade. Essa reza, teve como origem o seguinte relato: Um senhor viajante, chegou a uma casa pediu abrigo aos moradores e a esposa logo disse: esse homem todo sujo aqui não, se for pra ele ficar que seja lá no poleiro. O marido sem jeito disse ao viajante o que a esposa tinha dito e o senhor aceitou. Quando foi pela noite o filho ainda bebe se engasgou, o casal sem saber o que fazer para desengasga-lo porque estava demorando a passar a esposa disse: vai lá homem talvez aquele velho saiba o que fazer para que nosso filho não morra engasgado. O esposo nervoso e preocupado correu até o poleiro e acordou o senhor. Pediu por favor, senhor viajante! Meu filho engasgou, eu e minha esposa já não sabemos o que fazer, o senhor conhece algum remédio ou o que fazer para desengasgar uma criança? Ele disse: me leve até sua casa. Chegando a casa ele pegou a criança no colo e disse: marido bom e esposa má, esteira velha para São Brás deitar, se foi algo ruim subirá ou se for coisa boa descerá. Ao terminar de falar estas palavras à criança, começou a tossir e respirar fundo, a mulher sem jeito pediu perdão e colocou o homem para dormir em casa (Relato de Moradora entrevistada. Trabalho de Campo realizado em agosto de 2012). Além da oração para desengasgar, ele rezava para amenizar a “dor de dente” e sempre pedia que as pessoas confiassem em Deus e não nele. Além dele, há outras pessoas que fazem orações em outras comunidades como no quilombo São Joaquim de Paulo, território de Vitória da Conquista já reconhecido pela Fundação Cultural Palmares (FCP). Robério Santos, militante desta comunidade compreende a religiosidade dessas comunidades como: (...) O povo de Santo, religião de matriz africana, tinham rezadeiras, e como em todo quilombo, tenho dois irmãos que rezam lá em São Joaquim de Paulo, que é a Josefa (conhecida mais por Tezinha), ela reza de quebrantos e espinhela caída, experiência que tem dado certo para quem a procura, mas lembrando que quem cura é a fé ela é somente um instrumento, e o meu outro irmão o Oscar, se um camarada tem um animal que tem um ferimento que se chama bicheira se for na casa de meu irmão e pedir para ele auxiliar ele reza o animal só pelo rastro, já a vi fazendo e se alguém duvidar eu o levo até minha casa para que ele possa fazer com o animal da pessoa (Entrevista de campo com Robério Santos, realizada em julho de 2013). Na comunidade de Boqueirão, a entrevistada dona Anizia faz uma oração para proteção, destinada a pessoas que vão viajar ou sair da comunidade, ela diz: voz me guie por bons caminhos, onde Jesus anunciou com os seus braços abertos, eu não encontrarei com o demônio nem durante o dia nem pela noite e nem no empino do meio dia, e nem na hora de minha morte amém. O sino toca Maria reza, os santos que adoram bendita é a hora para que eu possa sair fora e põe o pé direito na frente e segue adiante e você não há de ver nem um mosquito. (Lagoa de Melquiades, novembro de 2011). Verifica-se, pelos depoimentos dos moradores mais antigos dos quilombos visitados que a religiosidade, muitas vezes, confunde-se com a própria cultura local, que em nosso entendimento é muito mais ampla. Ao analisar os valores camponeses Teodor Shanin (1980), uma das principais referenciais em estudos sobre o campesinato, também enfatiza a importância da religiosidade nas comunidades camponesas, aliado a relação com os vizinhos e toda localidade, o respeito à família e a autoridade dos pais. Esses mesmos valores, guardam as diferenças de tempo e espaço, podem ser observados na realidade concreta de Barrocas, embora já se evidencie mudanças mais atuais impostas pela influência de valores externos, dada a saída constante de jovens, a proximidade com a cidade de Vitória da Conquista e outros aspectos que serão melhores abordados pela referida pesquisa. Os depoimentos evidenciam ainda uma íntima relação entre religião e medicina popular, e não raramente a própria carência de serviços médicos oficiais fez com que essa comunidade desenvolvesse um jeito próprio de lidar e resolver os problemas de saúde mais comuns. Nessa relação, o apego à natureza e o uso de remédios naturais, como chás, folhas, etc., reproduziu um saber popular que permanece até a atualidade. Na comunidade quilombola de Barrocas é mantida a tradição dos festejos juninos e dos ternos de reis – o qual o representante, organizador do grupo, era o Sr. Teobaldo, apelidado por Tió. Essa atividade ocorria/ocorre no mês de dezembro, período em que o grupo saia sete dias cantando e dançando, anunciando o nascimento de Cristo. Com o falecimento de seu primeiro organizador o grupo ficou um ano sem dar continuidade ao reisado. No ano de 2011 o Sr. Ednito, do assentamento Amaralina, assumiu o compromisso dando seguimento ao oficio que outras pessoas iniciaram. Segundo o entrevistado Sr. Robério Santos, o Sr. Teobaldo adquiriu e deu continuidade ao trabalho do pai dele, que se chamava Laudionor. Este, por sua vez, tinha aprendido a organizar o reisado com seu avô paterno o Sr. Genosino Manoel dos Santos, evidenciando a relação direta entre as gerações familiares e a reprodução dos valores culturais. Após um período de não realização do reisado na comunidade, a atividade foi retomada pelo Sr. Teobaldo (Tió) junto com seu irmão o Sr. Jaimilton sanfoneiro ( conhecido como Jair). O Terno de Reis passou então a ser conhecido como trio barroquiano. Como podemos observar, as tradições são experiências de vida construídas e passadas em sua maioria de pai para filho, e esses valores religiosos, culturais, como também o conhecimento popular medicinal vem a compor a história da origem dessas comunidades tradicionais quilombolas. Em trabalho de campo, através da conversa com uma das pessoas mais idosas da comunidade, essa relembra como ocorriam os festejos juninos e natalinos, nas quais as mulheres sambavam em presépios equilibrando uma garrafa na cabeça, sem deixar cair, quem deixasse cair tinha que jogar versos (era como que pagar uma prenda) para que a brincadeira ou tradição ficasse mais animada. Todas as moças participavam da brincadeira, como os entrevistados relatam sem maldade alguma, todos sempre animados nas festas ao som do pandeiro, da sanfona e do triangulo, instrumentos mais utilizados na época. Segundo eles os bailes (festas), começavam sempre pela tarde a partir das 16h por não ter energia elétrica no local, e quando chegava à noite usavam-se os lampiões (espécie de candeeiros com algodão e querosene ou cera de abelha) para que pudessem iluminar o ambiente da festa. A Sr.ª Dalila, relembra um dos versos que sempre jogava na roda, que dizia: Quando casei com minha mulher ela parecia uma rosa branca. Agora olho pra ela e só vejo couro e pelanca (Srª Dalila, Comunidade de Barrocas, entrevista concedida em fevereiro de 2013). Atualmente, a comunidade não apresenta ternos de reis nem as brincadeiras que as moças faziam nas casas dos parentes. A necessidade do trabalho levou ao deslocamento de muitas pessoas da localidade, sobretudo dos jovens, para o município de Vitoria da Conquista, comunidades e cidades vizinhas como também para outros estados. As famílias, foram aos poucos se privando de (re)viver suas tradições culturais ou religiosas, que foram guardadas nas memorias dos pais e avos e que deveriam ser passadas aos filhos e netos – o prazer de reunir todos os componentes familiares em todas as datas comemorativas ou finais de semana, para festejar e conservar as características e identidade de seus antecedentes. Conforme destaca Anjos (2009, p. 149): A dinâmica demográfica acontece para os grandes centros urbanos, geralmente capitais e cidades próximas, para completar os estudos e/ou trabalhar. Uma das consequências imediatas desse processo de expulsão crescente dos jovens (homens e mulheres), deslocando para as periferias urbanas, é a possibilidade real de uma ruptura na transmissão da tradição oral, isso porque ficam nos territórios os mais idosos e as crianças. Os jovens, que poderiam aprender e assimilar e receber as informações e os conhecimentos, não estão fisicamente nos seus territórios de origem. Dessa maneira, esse processo de desestruturação da comunidade tradicional afrobrasileira pelo fluxo migratório põe em risco um dos componentes fundamentais da sua sobrevivência, dos seus conhecimentos acumulados, das suas identidades e da resistência no território étnico, que é a transmissão dos saberes pela oralidade. Também reforçando a importância da permanência e luta pelo território quilombola, Ratts (2004) destaca que: (...) o território quilombola se constitui enquanto um agrupamento de pessoas que se reconhecem com a mesma ascendência étnica, que passam por inúmeros processos de transformações culturais como forma de adaptações resultantes do caminhar da história, mas se mantém, se fortalecem e redimensionam as suas redes de solidariedade. (RATTS, as etnias e os outros: as espacialidades dos encontros/confrontos. In: revista espaço e cultura n°17-18,RJ 2004,p.77-88). Esta realidade não ocorre somente em comunidades tradicionais quilombolas, mas também nas comunidades indígenas, como destaca Ataíde (2012) ao demonstrar o trecho da entrevista de uma militante indígena: Quando a gente cita tudo isso não pode deixar de fora a questão da territorialidade, e o território indígena não é apenas terra para plantar e para colher, mas é terra para viver, para viver a cultura, para viver as crenças, para viver os costumes, para viver a tradição, a educação que os mais velhos nos deixam. (Aldeia Pipipã - Travessão do Ouro, Indígena: Dona Carolina Parteira, Dezembro de 2012 In:Ataíde, 2012). As comunidades tradicionais tem em si uma grande preocupação com a preservação de suas originalidades, uma vez que o número de jovens que saem de suas respectivas localidades em busca de trabalho é cada vez maior, vindo essa mobilidade a comprometer a permanência dos valores culturais repassados historicamente, de geração a geração, com destaque aos saberes praticados oralmente ou os que são materializados através do trabalho ou da produção de artesanatos como: a esteira – que utiliza a palha de coco ou a tabua (planta aquática encontrada em lagoas), a panela, filtros e potes de barro – com a utilização da argila, a cabaça – utilizada para armazenar a água, dentre outros conhecimentos que aos poucos estão deixando de ser praticados, valorizados e materializados pela sociedade jovem, que em sua maioria estão inseridos nas periferias urbanas em busca de “melhores condições de vida”. Esses jovens, por sua vez, não saem das comunidades por opção, mas, sobretudo, pela necessidade de obterem recursos para adquirir produtos que eles não podem retirar da terra. Com relação à comunidade de Barrocas, pode-se enfatizar ainda que a pouca quantidade de terras, insuficiente para garantir o sustento de mais de 200 famílias, além da fragmentação dos já pequenos lotes, leva muitos moradores a se tornarem sem terra e terem que sair em busca do trabalho, geralmente precarizado. Esse processo referenda uma desefetivação do trabalho camponês e as influencias externas que pode levar ao distanciamento dos jovens de suas terras de trabalho, condição fundamental de permanência nas localidades e mesmo expansão da luta em prol de novos territórios quilombolas. Ao tratar de tais influencias externas no universo camponês Marques afirma que: (...) O mundo camponês vem sendo invadido por um conjunto de mudanças e forçado a se ajustar a elas, para se reproduzir enquanto tal, ora a campesinidade surge como um projeto de vida para os trabalhadores sem terra do campo e da cidade, tornando-se realidade por meio da luta e a partir de sua reprodução contraditória no seio da sociedade urbana. (MARQUES, 2003, p.151). Estas mudanças comprometem a identidade das comunidades tradicionais que fazem de tudo para conservar sua história, cultura e conhecimentos populares, que juntas constituem cada comunidade específica, garantindo que tais valores não desapareçam. O trabalho empírico realizado na comunidade de Barrocas expressa bem essa realidade contraditória, posto que, ao mesmo tempo em que parte dos jovens saem da comunidade em busca do trabalho ou de estudos, os que permanecem na comunidade tem garantido a reprodução desses valores camponeses-quilombolas, tão importante para a permanência das famílias na terra, no território de reprodução da vida. Do nome ao território: reconhecendo sua identidade Através da vivência e realização de entrevistas com sujeitos que vivem na comunidade quilombola de Barrocas, e do contato com camponeses e outras localidades próximas, pode-se considerar que cada uma apresenta sua própria identidade, muito embora verifica-se uma relação entre ambas, inclusive um forte grau de parentesco. Uma das expressões da constituição do território quilombola diz respeito ao nome da comunidade que, geralmente, é definido logo inicio de sua formação, sendo essa denominação presenciada pelos primeiros moradores. Essas histórias perpassam de geração em geração, constituindo, posteriormente, um forte elemento na identidade com o local, com o território onde se reproduz a vida. A origem do nome de Barrocas, segundo relato de Sr. Edivaldo Santos Melo, que ouviu essa história de seus avós, surgiu quando na fazenda de Pedro Ferraz descobriram que tinha um barro “liguento” (solo argiloso), que dava para fazer telhas, e os trabalhadores foram escavando e abrindo vários buracos, retirando o barro e fazendo fornos. Um dia o dono da fazenda veio fazer uma visita para ver como estava o trabalho e disse: nossa! Quantas barrocas vocês já abriram por aqui? Então o mesmo indagou: Porque não colocar, o nome desse lugar de Fazenda Barrocas? O entrevistado, então declarou: “Nós nem sabia que barroca vinha de buraco. E ele não falou com nós também, né? Talvez se agente soubesse nem tinha deixado”. Como todos que trabalhavam ali gostaram do nome, agente começou a chamar de Barrocas. Passou um tempo, chegou um vereador e disse que não tinha o porquê agente chamar de fazenda, porque os moradores (o povo) era uma comunidade independente e não pertencia a nenhum fazendeiro. Então aconteceu que os moradores se juntaram e trocaram o nome de fazenda por Povoado de Barrocas e este nome é registrado até os dias de hoje, graças à luta que os moradores mais antigos fizeram. Segundo informações coletadas em campo, os primeiros habitantes foram pessoas vindas da localidade vizinha denominada São Joaquim de Paulo e de outras próximas. Por isso, pode-se considerar a comunidade de Barrocas enquanto remanescente quilombola de São Joaquim de Paulo, sendo essa titulada como território quilombola em junho de 2006. A origem desses moradores, por sua vez, era de trabalhadores expulsos de fazendas, locais em que eram escravizados. Relembram alguns dos moradores entrevistados que a Fazenda Casa de Telha era um dos locais em que ocorriam muitas barbaridades. Nesta fazenda era corrompido o direito à liberdade de expressão, de relações humanas e de trabalho, dentre outras condições próprias para uma vida digna e liberta, na qual o homem pudesse expressar sua opinião própria sem marcas de repressão. Ao tomar por referência o território de Barrocas, considera-se que é preciso inseri-lo na luta quilombola e camponesa do Centro Sul da Bahia, vinculando-a, portanto, a experiência de resistência via movimentos sociais, com destaque as questões da luta quilombola pelos seus territórios de vida e trabalho, com vários valores que abarcam a preservação da cultura, da religiosidade, da política, dentre outros. No caso da comunidade Quilombola de Barrocas, essa luta pela permanência no território pode ser evidenciada na presença das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) – vinculada a Igreja Católica, aos Sindicatos de Trabalhadores Rurais e outros, das Organizações do Movimento Negro Unificado (MNU), de parlamentares, militantes, dentre outros sujeitos e entidades sociais. A luta via movimentos sociais é uma das formas dos moradores se organizarem para terem seus direitos reconhecidos. Uma das expressões mais relevantes é a busca por políticas públicas voltadas as necessidades das referidas comunidades, como a busca de reconhecimento desse território camponêsquilombola, pressionando o estado, via órgãos como: o Conselho Regional, na organização das associações e documentações dessas comunidades, para serem beneficiadas com projetos via entidades ou politicas publicas, seja em nível municipal, estadual ou federal. Por outro lado, os camponeses-quilombolas contam com o apoio de entidades que abraçam a defendem seus interesses, inclusive no reconhecimento a terra quilombola de trabalho, na qual as gerações vêm reproduzindo a vida. Dentre essas se destaca a Comissão Pastoral da Terra (CPT), que vem defendendo os princípios camponeses, principalmente a terra, o trabalho e a família, as Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s), no apoio as lutas pela permanência do homem do campo em suas referentes comunidades. Nos dias atuais temos outros grupos e entidades que se somam aos movimentos sociais para enfrentar o Estado, para que o mesmo interfira no processo de reconhecimento do trabalho do homem e mulher camponesa, como também no processo de reconhecimento e titulação das comunidades quilombolas constituídas historicamente. Considerações finais Apesar de o presente artigo ser parte de uma pesquisa monográfica em andamento, o trabalho de campo associado a uma vivência na área enquanto camponesa-quilombola e o aparato teórico conceitual buscado na Geografia e em áreas afins, permite-nos concluir a relevância da luta pela permanência do território quilombola, a relação desses sujeitos com a terra, com a sua história e os valores culturais passados de geração em geração. Tomando como foco mais específico desse artigo a importância dos valores camponeses na preservação do território e na luta por outros territórios quilombolas ressalta-se, tomando por locus empírico a comunidade de Barrocas, que embora a pouca quantidade de terras, insuficiente para a reprodução das famílias que vivem na área, tenha intensificado a mobilidade, sobretudo dos jovens, em busca do trabalho em outras localidades, sobretudo no espaço urbano de Vitória da Conquista, tais valores vêm sendo reproduzidos pelos que permanecem, bem como torna-se verificável o apego com o local por parte daqueles que “estão fora”. Considera-se que a cultura reproduzida nas comunidades quilombolas camponesas compõe a história do Brasil, menos que esta seja mantida com menor intensidade, ou até mesmo desvalorizada por parte dos setores públicos que não investem para que estes povos possam ter como manter viva a memoria de seus ancestrais. Para isso, se faz necessário o reconhecimento de cada sujeito dessas comunidades enquanto quilombola, assumindo sua verdadeira identidade, mesmo que migrem para os centros urbanos em busca de trabalho. É preciso que se valorize as tradições e culturas que perpassam de gerações em gerações, mas, mais do que isso, lutar pela permanência do território quilombola camponês, bem como organizar frentes de luta para a conquista de novas terras, onde possam, efetivamente, se reproduzir com base nos valores da terra, do trabalho e da família. Referências ANJOS, Rafael Sânzio Araújo dos. Quilombos – Geografia Africana, Cartografia, Étnica, Territórios Tradicionais. Brasília: Mapas Editora e Consultoria, 2009. BERNARDO, Teresinha. Memória em branco e negro – olhares sobre São Paulo. SP :Educ, UNESP, 1998. BRASIL. Cartilha da Promoção da Igualdade de Gênero e Raça no Trabalho. (Novembro, 2010. SETRE). BRASIL. Estatuto da Igualdade Racial. 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