SISTEMA REPRESENTATIVO E SISTEMA PARTICIPATIVO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988. Gabriela Guimarães Santana1 RESUMO O presente artigo aborda as formas de participação popular previstas na Constituição de 1998: o sufrágio universal, o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. Inicialmente será buscado a definição de sistema representativo, ou seja a democracia indireta, apontando o voto como instrumento de concretização desta forma de participação. No segundo momento será buscada a definição de sistema participativo, que neste viés se apresenta como forma de democracia semi-direta, apontando ao final, igualmente, os institutos de democracia participativa PALAVRAS-CHAVE: sistema representativo, democracia indireta, sistema participativo, democracia semi-direta. INTRODUÇÃO O presente trabalho busca fazer um breve estudo bibliográfico sobre as formas de participação popular previstas na Constituição de 1988, quais sejam elas democracia representativa e democracia participativa, com o fim de, ao final, apontar as falhas do modelo representativo de democracia, e sendo sugerido o modelo participativo como forma de superação deste. 1 Acadêmica do 10º período de Direito da Escola de Direito e Relações Internacionais das Faculdades Integradas do Brasil – UniBrasil. O Brasil se constitui em um Estado Democrático de Direito como expressamente dispõe o preâmbulo e o art. 1º da Carta Constitucional. Se adentrará especificamente nas formas de participação popular previstas na Constituição de 1988, como democracia indireta/representativa, na qual o voto é o instrumento de concretização, e democracia direta/participativa, sob a expressão do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular. Portanto, no item 1 será trabalhado o sistema representativo e no item 2 o sistema participativo. 1 SISTEMA REPRESENTATIVO Sistema representativo é aquele fundado no princípio da delegação de poderes políticos a alguns cidadãos, para que estes representem a totalidade de cidadãos, 2 Neste modelo há a expressiva distinção entre a figura do governante e a do governado, “a idéia de representar está etimologicamente ligada à de tornar presente algo que, na verdade, não está. Nesse sentido o ator representa o personagem, sem se confundir com este.”3 Por meio da representação se dá a participação do povo indiretamente, uma vez que este é titular do poder político. Esta forma de participação é calcada no modelo liberal de Estado, assentado no capitalismo, onde aquele que titulariza o poder não o exerce e aquele que exerce não titulariza o poder4. Atesta, SOARES que “a representação nas democracias modernas manifestou-se cada vez mais política, pública e decisória, considerando que os representantes deviam decidir segundo sua própria consciência em detrimento de interesses pré-constituídos, pelo que, nos alicerces das democracias liberais o sistema representativo transformou-se em ficção jurídica.”5 O 2 REPRESENTATIVO. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad.: Ivone Castilho Benedetti. 4ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 854. 3 BASTOS, Celso Ribeiro. Toeria do Estado e ciência política. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2004. p..133. 4 SALGADO, Eneida Desiree. Constituição e Democracia: tijolo por tijolo em um desenho (quase) lógico: vinte anos de construção do projeto democrático brasileiro. Belo Horizonte: Forúm, 2007. p. 61-62. 5 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: o substrato clássico e os novos paradigmas como pré-compreensão para o Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 130. povo, nesta forma de participação, atua apenas em um primeiro momento, que é a eleição, cabendo ao representante eleito pela maioria governar em nome destes. José Álvaro MOISÉS conceitua democracia representativa como sendo “modelo político que implica que, genericamente, as deliberações coletivas, isto é, as deliberações que dizem respeito à comunidade política como um todo, são tomadas indiretamente, ou seja, por pessoas especialmente eleitas para este fim e não diretamente por todos aqueles que dela fazem parte.”6 A democracia representativa é apenas a participação mínima dos governados, pois estes não participam das decisões fundamentais do governo do Estado, sendo sua natureza política a de representação de interesses, haja vista que são os interesses gerais da coletividade construídos sobre as forças políticas e sociais da sociedade; o fundamento jurídico da representação política se assenta no procedimento eleitoral uma vez que é este que estabelece a composição dos órgãos representativos.7 O Brasil é um país de grandes proporções e de grande densidade populacional. Em razão disto nossa forma de democracia é a indireta/representativa, onde o povo não toma decisões políticas, mas detêm o poder, esta forma foi adotada no país desde a Carta Constitucional de 1824.8 Portanto as decisões políticas são tomadas por um corpo de representantes eleitos pelo povo, para que em seu nome represente seus interesses e escolham os caminhos a serem seguidos.9 Enfatiza com propriedade Norberto BOBBIO : A expressão democracia representativa significa genericamente que as deliberações coletivas, isto é, as deliberações que dizem respeito à coletividade inteira, são tomadas não diretamente por aqueles que dela fazem parte mas por pessoas eleitas para esta finalidade(...), um Estado representativo é um Estado no qual as principais deliberações políticas são tomadas por representantes eleitos, importando pouco se os órgãos de decisão são o parlamento, o presidente da república, o parlamento mais os conselhos regionais, etc.10 6 MOISÉS, José Álvaro. Cidadania e Participação: ensaio sobre o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular legislativa na Nova Constituição. São Paulo: Marco Zero,1990. p. 45. 7 SANTANA, Jair Eduardo. Democracia e cidadania: o referendo como instrumento de participação política. Bleo Horizonte: Del Rey, 1995. p. 43-47. 8 Ibidem, p. 111. 9 AGRA, Walber de Moura. Manual de direito constitucional. São Paulo: RT, 2002. p. 111. 10 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Trad: Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2000, 7. ed. p. 56-57. Como já tratado, as raízes do sistema representativo são liberais, uma vez que após a Revolução Francesa houve a abertura da forma de governo, que antes era absolutista, para uma forma de governo que possibilitasse a delegação do poder advindo do povo através da escolha de representantes eleitos. ...os cidadãos do Estado liberal eram considerados elementos passivos, pois não intervinham diretamente no funcionamento das instituições políticas. O exercício da soberania popular era monopolizado pelos representantes eleitos, de acordo com o sistema representativo burguês (...). Neste sentido, o sistema representativo mostrava-se contraditório nas democracias liberais, não refletindo a vontade popular11 A representação democrática nada mais é, nas palavras de Soares, que uma “autorização outorgada a um órgão soberano, institucionalmente legitimado pela Constituição, para agir autonomamente em nome do povo e dos interesses deste.” 12 Em contrapartida, sob a ótica de Carl Schmitt, o sistema representativo não nasceria da lógica democrática e sim nasceria da metafísica liberal, ao passo que no sistema representativo, pela sua característica, não haveria identidade entre governantes e governados, sendo esta identidade requisito essencial para existência de democracia. Chantal MOUFFE apontando o entendimento de Carl Schmitt assevera que: ... existe uma contradição, localizada no cerne do regime liberal democrático, uma vez que o liberalismo nega a democracia e a democracia nega o liberalismo. (...) O que a torna possível, é a identificação a que procede Schmitt, da democracia como soberania popular com o princípio da identidade entre governantes e governados. Ele afirma que a democracia consiste na identidade da lei com a vontade popular. (...) o liberalismo tende a impedir, precisamente, a realização completa desta lógica da identidade e daí a contradição que localiza entre a lógica do liberalismo e a da democracia.13 O professor CANOTILHO aponta duas formas de representação: a representação democrática formal e a representação democrática material. A primeira 11 SOARES, Mário Lúcio Quintão.Teoria do Estado: o substrato clássico e os novos paradigmas.como pré-compreensão para o Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 130. 12 Ibidem, p. 319. 13 MOUFFE, Chantal. Pensando a democracia com, e contra, Carl Schmitt. Disponível em: < http://www.almg.gov.br/CadernosEscol/Caderno2/teoria.pdf>. Acesso em: 12 de outubro de 2009. seria a autorização dada pelo cidadão a um órgão soberano, que por sua vez é legitimado pela Constituição, para agir em seu nome. Já a representação democrática material seria o conteúdo dos atos deste órgão soberano que age em nome do cidadão.14 Portanto, o sistema representativo apresenta caráter técnico uma vez que se reduz a um procedimento que é o voto, onde são escolhidas pessoas para desempenhar as funções governamentais. A democracia representativa pressupõe um conjunto de instituições que disciplinam a participação popular no processo político, que vêm a formar os direitos políticos que qualificam a cidadania, tais como as eleições, os sistemas eleitorais, os partidos políticos, etc. Mas nela a participação é indireta, periódica e formal, por via das instituições eleitorais que visam a disciplinar as técnicas de escolha dos representantes do povo. (…) ela é procedimento técnico para a designação de pessoas para o exercício de funções governamentais. (…). Realmente, nas democracias de partido e sufrágio universal as eleições tendem a ultrapassar a pura função designatória, para se transformarem num instrumento pelo qual o povo adere a uma política e confere seu consentimento, e por conseqüência, legitima, às autoridades governamentais. É assim, o modo pelo qual o povo, nas democracias representativas, participa na formação da vontade do governo e no processo político.15 A representação do povo se legitima com o mandato público, que é a concessão de poderes ao representante eleito,16 que por sua vez é livre para discutir e decidir qualquer assunto não estando limitado à circunscrição eleitoral que o elegeu.17 O sistema representativo reflete a democracia na forma de sistema de instituições em que indivíduos competem para fazer parte de um corpo que irá tomar as decisões políticas, assim em relação a este posicionamento de sistema representativo o regime democrático nada mais seria que um método em que homens 14 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 282-283. 15 SILVA, José Afonso. Poder Constituinte e Poder Popular: Estudos Sobre a Constituição. São Paulo: Malheiros Editores LTDA, 2002. p. 47-48. 16 BERLOFFA, Ricardo Ribas da Costa. Introdução ao Curso de Teoria Geral do Estado e Ciências Políticas. Campinas: Bookseller, 2004. p. 232. 17 DUARTE NETO, José. A iniciativa popular na Constituição Federal. São Paulo: RT, 2005. p.36. buscassem votos em uma competição regrada previamente e com a aceitação de todos.18 O jurista AGRA alude que as eleições, característica do sistema representativo, poderão ser feitas pelo povo de forma direta ou indireta como transcrito a seguir: Em uma democracia representativa ou indireta, existe a necessidade de haver eleições para escolher os mandatários que representarão a sociedade. As eleições podem ser diretas – quando o povo escolhe sem intermediação seus representantes - ou indiretas – quando a população escolhe representantes e estes escolhem os mandatários populares. Assim aconteceu com Tancredo Neves e José Sarney, que foram escolhidos em uma eleição indireta, realizada pelo Congresso Nacional.19 A democracia representativa tem caráter indireto porque a participação popular é indireta, pois a população apenas escolhe quem irá tomar as decisões em seu nome; tem caráter periódico, pois o período de tempo em que a população deverá ser chamada para escolher seus representantes é previsto em lei e se dá em intervalos regulares não permitindo a vitaliciedade dos mandatos; e por fim tem caráter formal, porque é lei específica que estabelece como e em que forma esta participação deverá ocorrer, devendo tudo isto se realizar através do processo eleitoral. Benjamin Constant foi grande defensor do sistema representativo, sustentando que a participação direta do povo nas decisões coletivas acarretaria em submissão do indivíduo a autoridade do todo, que a liberdade política garantida se referia não ao direito de participar diretamente da vida pública e sim se constituía em um direito de não aborrecer do poder público20 assim em suas palavras “não podemos mais desfrutar da liberdade dos antigos, a qual se compunha da participação ativa e constante no 18 RIBEIRO, Ednaldo Aparecido. Cultuta política e teoria democrática: implicações empíricas de um debate teórico. In:Democracia e participação: os Conselhos Gestores do Paraná. ORG. fuks, Mario; PERISSINOTTO, Renato M.; SOUZA, Nelson Rosário de. Curitiba: Editora UFPR, 2004. p.224. 19 AGRA, Walber de Moura. op. cit., p. 111. 20 ATCHE, Elusa Crsitina Costa Silveira. Rousseau e Benjamin Constant:Participação e Representação Política. In: WOLKMER, Antônio Carlos. (Org.). Introdução à História do Pensamento Político. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 200-202. poder coletivo. Nossa liberdade deve compor-se do exercício pacífico da independência privada”.21 O caput do art. 14 da Constituição de 1988 estabelece que “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, (…)”, à vista disso é claro que a opção feita pelo constituinte foi a de sistema representativo calcado no princípio do sufrágio universal e no voto, que nada mais é que um instrumento de exercício do direito de sufrágio no plano prático, sendo este legitimador de tal ação.22 O voto é uma das manifestações do direito de sufrágio. É uma emanação no plano prático. Ele compreende outras espécies além do ato político que corresponde ao exercício do direito de sufrágio. (...) O voto é simultaneamente um direito e um dever. Como direito público subjetivo, é exercitado pelo cidadão, que poderá inclusive se valer de medidas jurídicas coercitivas no caso de a autoridade competente lhe tolher o exercício. Mas é simultaneamente um dever na medida em que aquele que não vota incorre em sanções definidas em lei. Há quem fale que o voto é uma função. A nós nos parece que não se deva utilizar esta expressão para qualificar o voto23 O voto, atualmente, nada mais é que um “ato exclusivamente com a finalidade de eleger quem deverá decidir e não, como em tempos pretéritos, o ato de decidir.”24 Na atualidade do Estado democrático de direito, o sistema representativo tem por base a soberania popular, como resultado do poder legítimo do povo; o sufrágio universal, do qual vem do termo latim sufragium, que significa aprovação, ou seja o direito de participação política na democracia representativa25, com diversidade de candidatos e partidos políticos; a igualdade de todos formalmente, ou seja perante a lei; liberdades públicas de todos os tipos manifestação tal como religiosa, de associação, opinião; e a periodicidade dos mandatos eletivos, já tratado neste sub item.26 21 CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. Trad. Silveira, Loura. Porto Alegre: L&PM, v.2, 1985. p. 15. 22 BERLOFFA, Ricardo Ribas da Costa. op. cit., p. 232-233. 23 BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Cometários a Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.São Paulo: Saraiva, 1989, 2vol. P. 580 24 DEMOCRACIA. In: BARRETO, Vicente de Paulo. Dicionário de Filosofia do Direito. São Leopoldo:2006. p.191. 25 DUARTE NETO, José. op. cit., p.109. 26 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 19.ed. São Paulo: Saraiva, 1998. .p. 274. 2 MODELO PARTICIPATIVO Há autores que tratam o modelo participativo de democracia como sendo forma de democracia direta. No entanto, o entendimento adotado, no presente trabalho, é o de que a democracia participativa é forma de democracia semi-direta, ao passo que entendemos ser democracia direta aquela praticada pelos gregos na Ágora.27 A democracia participativa teve origem no século XIX e, como já dito, consiste em ser a forma de participação semi-direta do povo nas decisões governamentais conferindo maior legitimidade a estas, haja vista que um dos fundamentos da democracia é a participação. Nas palavras de Paulo BONAVIDES “O povo não só elege, como legisla.”28 Relaciona-se a democracia participativa com a democracia deliberativa, sobre a exegese de que a segunda “consiste na idéia de que a produção legítima de leis deriva da deliberação pública dos cidadãos”29 atendendo ao princípio democrático, que por sua vez entende-se ser concretizado com a democracia participativa. Para a professora Adriana SCHIER a participação consiste em “um direito fundamental definido em normas constitucionais que decorrem diretamente do princípio do Estado de Direito e do princípio Democrático.”30 Sob uma perspectiva antropológica CANOTILHO articula que “o homem só se transforma em homem através da autodeterminação e a autodeterminação reside primariamente na participação política”31, ou seja é através da participação que o homem exerce seu direito de ser cidadão, de participar dos processos de decisões políticas. 27 Sobre autores que tratam a democracia semi-direta como sendo democracia direta ver SANTANA, Jair Eduardo. Democracia e cidadania: o referendo como instrumento de participação política. p. 83. quando afirma que “referendo e plebiscito são institutos diversos. Seriam, de fato? Inegável que ambos pertencem a uma mesma categoria: a dos instrumentos da democracia direta.” 28 BONAVIDES, Paulo. Ciência... . p. 275. 29 DEMOCRACIA DELIBERATIVA. In: BARRETO, Vicente de Paulo. Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: 2006. p.195. 30 SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. A participação popular na administração pública: o direito da reclamação. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2002, p.27. 31 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. op. cit., p. 278. Jair Eduardo SANTANA trata a democracia semi-direta como democracia mista, e afirma que esta surge sobre as falhas do sistema representativo substituindo-as e incrementando-as.32 Foi Jean Jacques Rousseau um dos defensores do sistema participativo, pois acreditava não ser possível conciliar soberania com representação política, ao passo que para ele a soberania é inalienável e indivisível, por não poder ser transmitida e por traduzir a vontade geral.33 Declara, que os representantes apenas exercem a função de comissários não podendo decidir nada definitivamente. Jean Jacques Rousseau chega a afirmar que toda lei que não passe pela ratificação do povo é nula, e que o povo só é livre durante a eleição tornando-se escravo após este momento, para exemplificar tal assertiva utiliza-se do modelo inglês.34 No Estado brasileiro, foi com a Constituição de 1988 que a democracia participativa ganhou maior relevância, sendo por meio da inclusão de mecanismos de participação política semi-direta na carta, com o objetivo de proporcionar debates sobre assuntos de grande relevância social. SALGADO, em relação aos mecanismos de democracia participativa previstos na Constituição de 1988, faz apontamentos quanto aos obstáculos que a mesma impõe sobre tais mecanismos alegando que “a idéia de autodeterminação, de auto-legislação, de exercício popular da soberania” não foram abordados de forma ampla e satisfatória na mesma, e que os requisitos para convocação de plebiscito e referendo, bem como para apresentação de iniciativa popular dificultam a utilização dos mecanismos de participação popular.35 O artigo 14, inciso I, II e III da Constituição de 1988 elenca quais os mecanismos de democracia participativa existentes no país: Art. 14 - A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I – plebiscito; II – referendo; III – iniciativa popular. 32 SANTANA, Jair Eduardo. op. cit., p.47. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. op. cit., p. 107. 34 MIRANDA, Jorge. Formas e sistemas de governo. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 45. 35 SALGADO, Eneida Desiree. op. cit., p. 228. 33 O mecanismo previsto no inciso I, o plebiscito, possui grande semelhança com o mecanismo previsto no inciso II, o referendo. Ambos os mecanismos destinam-se a consultar o povo a respeito de determinadas leis, se diferenciando apenas pela anterioridade.36 Contudo, é vasta a discussão doutrinária sobre a diferença semântica do termo plebiscito e referendo como apontado por Maria Victoria de Mesquita BENEVIDES Tanto referendo quanto plebiscito são entendidos como modos de expressão da opinião ou da vontade dos cidadãos em votação livre e secreta – sobre uma medida que foi ou poderá vir a ser adotada pelos poderes constituídos, no plano nacional ou local. A equivalência semântica dos termos extrapola o meio político.(...) No Brasil, Pontes de Miranda define o plebiscito como um instituto de “poder constituinte” do povo, estabelecendo, com o referendo, apenas uma distinção entre gênero e a espécie: “Ao povo dá-se ou mantém-se o poder constituinte: a) Em plebiscito, quer respondendo a perguntas acerca de regras constitucionais propostas, quer propondo regras constitucionais. b) Em plebiscito (referendo) sobre o todo da Constituição proposta ou já em vigor” (1970, . 127). Nelson de Souza Sampaio e José Afonso da Silva identificam o plebiscito com a democracia direta(pelo qual o povo julga o regime ou uma pessoa, sem participação, em princípio, de órgãos do Poder Público); já o referendo seria um ato de democracia semidireta, quando o povo participa do processo de formação das leis. Paulo Bonavides considera que ambos são pronunciamentos populares sobre assuntos de importância constitucional; mas, unindo os dois termos, define “referendo plebiscitário” como a manifestação que signifique julgamento ou arbitragem, distinto do mero “referendo consultivo” (1983, p.342).37 Como já dito anteriormente o critério utilizado no presente trabalho é o da anterioridade em relação a opinião popular. O plebiscito teve origem na república romana, sendo considerada a reunião popular para deliberação de assuntos prédeterminados sob o nome de plebiscitum.38 Será utilizado este mecanismo quando houver a necessidade de convocar o povo para que ele se posicione acerca de uma lei ou ato normativo antes da sua promulgação39, desse modo a matéria a ser consultada por meio de plebiscito é aquela que ainda não fora objeto de apreciação pelo 36 A Lei 9.709, de 18 de novembro de 1998, regulamentou o artigo 14 e seus incisos da Constituição Federal de 1988, adotando o critério da anterioridade para diferenciar o plebiscito do referendo. 37 BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A cidadania ativa: referendo, plebiscito e iniciativa popular. São Paulo: Editora Ática, 1998. p. 34-35. 38 DUARTE NETO, José. op. cit., p.47. 39 AGRA, Walber de Moura. op. cit., p. 263. legislativo e tenha relevância constitucional, sendo que o que for decidido se sobrepõe à vontade do legislativo.40 As normas emanadas do plebiscito são passíveis controle de constitucionalidade. A Constituição de 1988, no artigo 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, já previa a ocorrência de um plebiscito marcado para o dia 7 de setembro de 1993 com a finalidade de decidir a forma e o sistema de governo (república ou monarquia constitucional e presidencialismo ou parlamentarismo) a ser adotado no país. Foi a única vez, desde a entrada em vigor da Constituição de 1988, que ocorreu um plebiscito41, contudo a Constituição prevê no artigo 18, parágrafos 3º e 4º a realização de plebiscito territorial para a criação de estados e território federais, criação, incorporação, fusão e desmembramento de municípios.42 Por sua vez, fala-se que o referendo vem do termo ad referendum, e teve sua origem no século XV, nos cantões de Valais e Grisons na Suíça.43 Este mecanismo será utilizado quando o povo for chamado para deliberar sobre determinada lei que já passou pelo legislativo44, diante disto destina-se a aprovar ou não matéria já aprovada pelo legislativo45 e sanciona-las, “é instrumento político de participação popular que possibilita ao corpo eleitoral a manifestação positiva ou negativa, por intermédio do sufrágio, acerca das resoluções de um ou vários órgãos constituídos, seja legislativo ou seja administrativo.”46 O professor SILVA entende serem quatro as características do referendo. Segundo o autor, a primeira seria a facultatividade ou obrigatoriedade, facultativo quando fosse faculdade do titular utilizar ou não deste mecanismo para validar uma lei, e obrigatório quando para a lei ter validade fosse necessário a realização do referendo; a segunda característica seria a de ser deliberativo, sob a justificativa de que se decide definitivamente sobre o ato objeto do referendo; a terceira característica seria a de ser 40 BERLOFFA, Ricardo Ribas da Costa. op.cit., p. 227-228. MOISÉS, José Álvaro. Cidadania e Participação: ensaio sobre o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular legislativa na Nova Constituição. São Paulo: Marco Zero,1990. p. 79. 42 BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. op. cit., p.130. 43 Ibidem, p.34. 44 AGRA, Walber de Moura. op. cit., p. 263. 45 BERLOFFA, Ricardo Ribas da Costa. op. cit,. p. 228. 46 SANTANA, Jair Eduardo. op. cit., p.73. 41 de iniciativa parlamentar, pois só poderia ser convocado mediante a iniciativa de um terço dos membros da Câmara de Deputados ou do Senado Federal, dependendo de aprovação do Congresso Nacional através de decreto legislativo, não sendo permitida a sua convocação pelo Presidente da República e pelo povo; e a quarta e última característica seria a de que o referendo é ab-rogativo, pois ao povo seria dada a possibilidade de se opor a uma lei vigente, votando este pela sua revogação.47 Em suma, o referendo quando for realizado já haverá disposição normativa no ordenamento sobre a matéria posta a apreciação, foi o caso do referendo sobre o desarmamento que ocorreu em 2005, no qual já existia um estatuto. BONAVIDES aponta vantagens do exercício do referendo ...serve de anteparo à onipotência eventual das assembléias parlamentares; torna verdadeiramente legitima pelo assenso popular a obra legislativa dos parlamentares; dá ao eleitor uma arma com que sacudir o “jugo dos partidos”; faz do povo, menos aquele espectador, não raro adormecido ou indiferente Às questões públicas, do que um colaborador ativo para a solução de problemas delicados e da mais alta significação social; promove a educação dos cidadãos; bane das casa legislativas a influência perniciosa das camarilhas políticas; retira dos “bosses” o domínio que exercitam sobre o governo48 Há requisitos a serem seguidos quanto ao processo de convocação de plebiscito e referendo e atos posteriores ao acontecimento destes. O referendo deverá ser autorizado pelo Congresso Nacional, enquanto o plebiscito deverá ser convocado pelo mesmo, nos termos do artigo 49, inciso XV da Constituição de 1988, sendo o quórum necessário para aprovação de leis e atos administrativos a maioria simples da população. O efeito produzido pelas normas advindas de plebiscito e referendo são mandamentais, sendo de tal natureza pela razão de serem fruto da soberania popular. Aprovada a lei por plebiscito esta deverá ser obrigatoriamente homologada pelo Poder Legislativo e promulgada.49 47 SILVA, José Afonso da. Processo constitucional de formação das leis. São Paulo: Malheiros Editores LTDA, 2006. p. 246-247. 48 BONAVIDES, Paulo. Ciência... .p. 285. 49 AGRA, Walber de Moura. op. cit., p. 263- 264. O prazo para a convocação de referendo é de 30 dias, a partir da promulgação da lei ou da adoção de medida legislativa (art. 11 da Lei 9.709/1998), e se dá mediante decreto legislativo do Congresso Nacional, no qual deverá ser proposta por um terço dos membros que fazem parte de qualquer das Casas do Congresso Nacional. Se a lei que foi objeto de referendo já estava em vigor, ela, após o referendo, continuará vigorando; por sua vez se a lei não estava em vigor e houver a convocação para o referendo, esta não obstacularizará a entrada em vigor da lei.50 O terceiro mecanismo de partição popular é a iniciativa popular, que consiste em o povo iniciar o processo legislativo propondo a casa legislativa competente que elabore norma específica sobre um único assunto.51 Para tanto, é necessário um por cento do eleitorado nacional, sendo estes distribuídos em no mínimo cinco Estados brasileiros, com a obtenção do apoio de no mínimo três décimos por cento de eleitores em cada um deles52 para a apresentação do projeto de lei a respectiva casa legislativa que deverá obrigatoriamente, se preenchido os requisitos, receber e deliberar. É necessária a assinatura de cada eleitor acompanhado do nome completo legível deste, o endereço e demais dados53 que possibilitem identificar a inscrição eleitoral.54 Neste diapasão de iniciativa popular BASTOS e Ives Gandra MARTINS, em Comentários à Constituição do Brasil, afirmam que “A iniciativa popular consiste na transmissão da faculdade de iniciar o procedimento de elaboração legislativa, tanto ordinária quanto constitucional, a uma determinada fração do corpo eleitoral.”55 Poderá ser objeto de iniciativa popular lei ou ato infraconstitucional (iniciativa legislativa) e a Constituição, quando for emenda ou revisão (iniciativa constituinte). Ainda, poderá a iniciativa ser simples, quando a asserção apenas apresentar as medidas entendidas como convenientes ao legislativo, para que este elabore a lei ou iniciativa 50 SILVA, José Afonso da. Processo Constitucional de formação das leis. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. p.246-247. 51 BERLOFFA, Ricardo Ribas da Costa. op. cit., p. 229. 52 Em relação a iniciativa popular ver artigo. 61, parágrafo 2º da Constituição de 1988. 53 Em relação, ver Regimento Interno da Câmara dos Deputados, artigo 252. 54 AGRA, Walber de Moura. op. cit., p. 264. 55 BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Cometários a Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.São Paulo: Saraiva, 1989, 2vol. p. 574 formulada, quando a iniciativa já se apresenta em forma de lei. 56 A iniciativa popular não poderá ser rejeitada por vícios de forma, cabendo a Câmara dos Deputados corrigir os eventuais erros.57 No Brasil os limites as normas advindas da iniciativa popular, referendo e plebiscito, estão limitadas aos mandamentos constitucionais principalmente as cláusulas pétreas.58 Segundo Boaventura, de Sousa SANTOS e Leonardo AVRITZER “no caso brasileiro, a motivação pela participação é parte de uma lembrança comum do processo de democratização que levou atores sociais democráticos, especialmente aqueles oriundos do movimento comunitário, a disputarem o significado do termo participação.”59 Cabe-nos salientar, que apesar da Constituição de 1988 prever mecanismos de democracia participativa até agora só houve duas manifestações dessas: o plebiscito, em razão de um mandamento expresso na Constituição, no artigo 2º dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias;60 e o referendo do desarmamento de 2005. Sobre o referendo de 2005 pode-se comentar que quanto a sua formulação, haja vista que o entendimento dado sobre o sim e o não causou confusão nos eleitores no sentido de sua interpretação. Muitos eleitores não sabiam se votando sim estariam optando pela proibição da venda de armas de fogo e munições para civis, ou se era pela continuação da venda de armas de fogo e munições, da mesma forma aconteceu com o não. Fica demonstrado que a falta de prática participativa no Brasil, no sentido de participação política, é fator que contribuiu para os equívocos ocorridos no referendo de 2005. Assim, concluí-se o presente trabalho com as palavras da professora Eneida Desiree SALGADO :“A política não saiu de nossas veias. Encontra-se entorpecida pelos desvios de seu significado, pela redução do seu alcance, pelo filtro nefasto da 56 SANTANA, Jair Eduardo. op. cit., p.52. SILVA, José Afonso da. Processo... . p. 162. 58 AGRA, Walber de Moura. op. cit., p. 263. 59 AVRITZER, Leonardo; SANTOS, Boaventura de Sousa. Para ampliar o cânone democrático. In: SANTOS, Boaventura de Sousa(org.) Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. 3.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 65. 60 AGRA, Walber de Moura. op. cit., p.111. 57 representação política descontrolada. Mas pode ser reanimada com a adoção de canais de exercício do poder político pelos cidadãos”.61 61 SALGADO, Eneida Desiree. op. cit., p.40. REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. AGRA, Walber de Moura. Manual de direito constitucional. São Paulo: RT, 2002 BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Jurisdição constitucional: constitucionalismo e democracia. Belo Horizonte: Fórum, 2007. entre BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. 6. ed. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2004. 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