Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 15 • Maio 2015 Edição Especial • Homenageado ARYON DALL'IGNA RODRIGUES ANÁLISE DE COMANDOS DE PRODUÇÃO TEXTUAL DO GÊNERO CONTO EM LIVRO DIDÁTICO Valéria Caimi Marquardt (PROFLETRAS-UNIOESTE)1 [email protected] Terezinha Conceição Costa-Hubes (PPGL-UNIOESTE)2 [email protected] RESUMO: O presente artigo visa discutir a partir de uma perspectiva/ abordagem sociointeracionista da linguagem, os comandos de produção de texto do gênero conto na escola, por meio do livro didático. As discussões teóricas retomam as concepções de linguagem que permeiam a prática docente e o cotidiano escolar. O artigo visa, ainda, observar em que concepção e linguagem os documentos norteadores do Ensino de Língua Portuguesa, no país, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e as Diretrizes Curriculares Estaduais (DCEs-PR), no Paraná. A partir dessas reflexões, serão analisados os comandos de produção textual do gênero conto no Livro Didático Português: Linguagens, 9º Ano, do autores, William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães, orientadas pela Concepção dialógica da Linguagem, a fim de demonstrar a lacunas existentes nos comandos de produção de texto. PALAVRAS-CHAVE: Livro didático, comandos de produção; concepção dialógica; prática docente. ABSTRACT: This present article aims to discuss from a perspective / sociointeractionist approach of the language, the production controls of the genre tale in the school, through the textbook. Theoretical discussions are taken from the language concepts that permeate the teaching practice and the school routine. The article is also intended to observe that design language and the guiding documents of the Portuguese Language Teaching in the country, the National Curriculum Parameters (PCNs) and the State Curriculum Guidelines (DCEs-PR), in Paraná. From this reflection, we will analyze the textual production commands of the genre tale in the Portuguese Textbook: Languages, Ninth Year, from the authors, William Roberto Cereja and Thereza Cochar Magalhães, guided by the dialogical conception of language, in order to demonstrate the existent gaps in the commands of text production. KEYWORDS: Textbooks, production controls; dialogical conception; teaching practice INTRODUÇÃO “Contar e ouvir histórias são atividades das mais antigas do homem. Pessoas de todas as condições sociocultural tem o prazer de ouvir e contar histórias” (MESQUITA, 1994, p.7). Então, por que, na escola, especificamente nas aulas de Língua Portuguesa, 1 Aluna do programa do Mestrado Profissional pela UNIOESTE. 2 Docente do Programa de Mestrado/Doutorado e PROFLETRAS da UNIOESTE. 98 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 15 • Maio 2015 Edição Especial • Homenageado ARYON DALL'IGNA RODRIGUES contar histórias (de forma escrita) é um ato tão desagradável, para a maioria dos alunos? Geralmente, os alunos não veem motivo ou justificativa naquilo que estão tentando produzir. Ou seja, porque escrever uma história se ela não será lida por mais ninguém, que não seja o professor: “Quem escreve, na verdade, escreve para alguém, ou seja, está em interação com outras pessoas. Essa outra pessoa, é a medida, é o parâmetro das decisões que devemos tomar acerca do que dizer, do quando dizer e de como fazê-lo” (ANTUNES, 2007, p. 46). Porém na prática docente, nem sempre o professor consegue fazer valer a função real da escrita, mantendo o processo de interação. Geralmente ele é o único interlocutor do aluno que já sabe o que o professor “gostaria ou não” de ler. O trabalho com a produção de texto é extremamente necessário nas aulas de língua materna. No entanto, é, também, um dos mais difíceis. Com os estudos das correntes linguísticas, advindas do Círculo de Bakhtin, o ensino da língua reconfigurouse nas últimas décadas e, a partir daí, a produção de texto ganhou novo enfoque dentro do ensino da disciplina, porém essa reconfiguração é menos ampla do que espera-se. Ainda, inúmeros materiais didáticos, especialmente o livro didático, parecem não apresentar de forma clara e objetiva alguns elementos essenciais para a produção de textos, como aponta Reinaldo: A partir da década de 90, o saber construído pela linguística de texto/discurso, concebendo a língua como um conjunto de variedades linguísticas que se atualiza na enunciação, passou a imprimir algumas alterações nos manuais. Atualmente, muitas das coleções disponíveis no mercado incorporam conceitos dessa perspectiva teórica e muitas outras conservam a perspectiva teórica anterior. Val (2003), por exemplo, verificou, nas coleções analisadas no PNLD/2002, a predominância da sugestão de tema e da observação dos aspectos relacionados à forma do texto (estrutura composicional e conformidade à variação linguística padrão e às convenções da escrita), sem a preocupação de explicitar, ou mesmo de mencionar os componentes da situação de produção do texto solicitado.” (REINALDO, 2006, p. 274) 99 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 15 • Maio 2015 Edição Especial • Homenageado ARYON DALL'IGNA RODRIGUES Atualmente, é consenso entre os educadores a necessidade de levar os educandos a lerem e produzirem ampla variedade de gêneros, sendo que a produção implica em conhecimento profundo de todos os elementos composicionais do gênero a ser produzido. Porém, quando observa-se a prática pedagógica nota-se que há muito mais recursos e métodos desenvolvidos para a leitura do que para a escrita dos mesmos. Afirmação que é confirmada pelas produções dos CADERNOS PDE compostas pelas Produções didático-Pedagógicas e pelos Artigos Científicos elaborados pelos professores PDE (Programa de Desenvolvimento Educacional-PR) que tem como objetivo: [...] o aprofundamento teórico e prático de forma a promover atuações pedagógicas relevantes para o ensino-aprendizagem. Nesse sentido, elaboram e implementam suas Produções Didático-Pedagógicas e, após, sistematizam no Artigo Científico as experiências resultantes daquela intervenção no âmbito escolar. Como culminância desse processo de formação continuada inovador, a série CADERNOS PDE tem a intenção de contribuir para a melhoria da Educação Básica e pública via qualificação profissional.” (PARANÁ, 2008) A partir das análise das sinopses dos Cadernos PDE de Língua Portuguesa dos anos de 2007 e 20083 nota-se que o trabalho com a leitura é extremamente superior, em termos quantitativo, do que com a escrita. Desta forma, destaca-se a dificuldade que há na prática pedagógica em criar, desenvolver-se e descobrir formas, métodos de trabalho e instrumentos que levem os alunos à escrita de textos, que realmente efetivem-se como gêneros. Tal Programa tem real importância, por levar o professor a torna-se um pesquisador de sua prática, buscando alternativas para melhorá-la. Como destaca Bortoni-Ricardo (2008), o professor pesquisador, além de usar o conhecimento produzido em pesquisas, é, também, um “gerador de conhecimentos” dos problemas do 3 Foram consultados somente os dados de 2007 e 2008, pois os dos anos posteriores não estão disponíveis no site da SEED-PR (SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO DO PARANÁ) 100 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 15 • Maio 2015 Edição Especial • Homenageado ARYON DALL'IGNA RODRIGUES seu cotidiano escolar. Cabe a ele, portanto, estar atento a sua prática cotidiana, gerando e implementando novas estratégias de ensino. Porém, a maioria dos professores de Língua Materna, por inúmeras razões que não cabe discutir neste momento, não se vê como um pesquisador de sua práxis, muito menos, com um gerador de conhecimento. Busca no Livro Didático propostas de produção pré-definida para trabalhar com a produção de texto. No entanto, quando analisa-se, mais profundamente, os livros didáticos de Língua Materna percebe-se a falta de alternativa com o trabalho de produção de textos. Observa-se nos comandos de produção uma grande repetição de temas e fórmulas, muitas vezes, sem criatividade e, nem sempre, focada nos gêneros. O governo brasileiro, através do MEC pelo programa PNLD, distribuiu em 2011, 14,1 milhões de livros, número considerável para os avanços da Educação, no país. Nas aulas de Língua Portuguesa, o livro didático é aliado do professor para aulas de leitura, principalmente, porque barateia custos com materiais impressos. Porém, quanto ao trabalho, com produção de texto, nem sempre o livro é o material de apoio mais favorável ao trabalho de escrita com os gêneros. Diante do exposto, este trabalho busca analisar os comandos de produção textual do gênero conto no Livro Didático Português Linguagens dos autores William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães (ano). A escolha justifica-se pelo livro pertencer a coleção mais distribuída, no ano de 2014, com 3.172.012 exemplares. A análise será a partir de uma perspectiva/ abordagem sociointeracionista da linguagem. Essa perspectiva de análise dos comandos de produção é enfatizada por Reinaldo: A construção de uma proposta pedagógica sobre o componente “produção de texto” exige a compreensão de dois campos de referência científica – a linguagem e a aprendizagem. Uma forma atual de compreensão da linguagem é a que a considera como um modo de ação social, realizado por meio das práticas sociais de compreender, falar e escrever. Essa compreensão centrada na natureza enunciativa da linguagem tem construído um conjunto de noções necessárias à explicação do ato de produzir um texto como um processo construtivo, sócio interativo e situado. (REINALDO,2006, p. 273) 101 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 15 • Maio 2015 Edição Especial • Homenageado ARYON DALL'IGNA RODRIGUES Quando o aluno não tem as referências sociais básicas para a sua produção, ela tende a ficar comprometida. As práticas de escrita na escola, não costumam favorecer à compreensão da linguagem como modo de ação social. A seguir apresentaremos as concepções da linguagem que permeia a prática docente, posteriormente, analisaremos os comandos de produção textual do gênero conto no Livro Didático Português: Linguagens, 9º Ano, do autores, William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães, à luz dessas concepções. DISCUSSÃO TEÓRICA A escrita é um processo pelo qual os estudantes estão sempre em constante contato. Mesmo assim, são muitos os que dizem não saber escrever, ou não ter ideias perante a folha em branco. Também é fato observar estudantes que acreditam que a arte de escrever bem é para alguns iluminados, ou aqueles que, ainda, pensam que para um bom texto ser produzido é necessário, somente, o domínio de regras gramaticais da língua (KOCH, 2012). Essas concepções são produto de como eles (e, também, nós) concebem (e concebemos) a escrita: “essa pluralidade de respostas nos faz pensar que o modo pelo qual concebemos a escrita não se encontra dissociada do modo pelo qual entendemos a linguagem, o texto e o sujeito que escreve” (KOCH, 2012, p.32). A partir da visão que tem-se da linguagem, texto e escritor há um foco diferenciado em relação a escrita. São três as abordagens que se dão a escrita: foco na língua, no escritor e na interação. Em relação a escrita com foco na língua, segundo Koch, “encontra-se uma concepção de linguagem como um sistema pronto, acabado, devendo o escritor se apropriar desse sistema e de suas regras” (KOCH, 2012, p.32). E acrescenta: Nessa concepção de sujeito como (pré)determinado pelo sistema, o texto é visto como um simples produto de uma codificação realizada 102 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 15 • Maio 2015 Edição Especial • Homenageado ARYON DALL'IGNA RODRIGUES pelo escritor a ser decodificado pelo leitor, bastando a ambos, para tanto, o conhecimento do código utilizado. (KOCH, 2012, p.33) Em relação ao ensino de língua materna, durante muitos anos adotou-se essa perspectiva nos processos de produção de texto. A outra abordagem da escrita tem como foco o escritor: Nessa concepção de língua como representação do pensamento e de sujeito como senhor absoluto de suas ações e de seu dizer, o texto é visto como um produto-lógico- do pensamento (representação mental) do escritor. A escrita, assim, é entendida como uma atividade por meio da qual aquele que escreve expressa seu pensamento, suas intenções, sem levar em conta as experiências e os conhecimentos do leitor ou a interação que envolve esse processo. (KOCH, 2012, p.33) A terceira concepção tem como foco a interação e concebe a escrita como: [...] produção textual, cuja realização exige do produtor ativação de conhecimentos e a mobilização de várias estratégias. Isso significa dizer que o produtor, de forma não linear, “pensa” no que vai escrever e em seu leitor, depois escreve, lê o que escreveu, revê ou reescreve o que julga necessário, em um movimento constante e on-line guiado pelo princípio interacional. (KOCH, 2012, p.35) Atualmente os documentos norteadores do Ensino de Língua Portuguesa, no país e no estado, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e as Diretrizes Curriculares Estaduais (DCEs-PR), respectivamente, fundamentam-se nas reflexões de Bakhtin em relação ao aspecto interacional da linguagem, e o estudo do gênero. Sendo assim, há um grande empenho por parte dos professores em escolher livros didáticos que estejam pautados, nessa visão. Como afirma Marcuschi: Hoje a cena já é bastante mudada em relação às últimas gerações de manuais didáticos, tendo em vista o processo de avaliação por parte do MEC, no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Já se cuida mais da presença uma maior diversidade de gêneros, de um tratamento mais adequado da oralidade e da variação linguística, bem como de 103 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 15 • Maio 2015 Edição Especial • Homenageado ARYON DALL'IGNA RODRIGUES um tratamento mais claro da compreensão. (MARCUSCHI,2008, p.53) Para Bakhtin: “Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem” (BAKTHIN, 2010, p.262). Sendo que “A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana.” (BAKTHIN, 2010, p.262). Desta forma, deve-se entender que o gênero não foi inventado para a aula de Língua Materna, mas ele está presente na atividade humana de muitas formas, se configurando e reconfigurando através dos tempos. O trabalho com o gênero já não é mais novidade entre estudiosos, pesquisadores, e professores de Língua Materna. Em termos teórico são grande os avanços conseguidos: muito se escreve, se fala sobre gênero; no entanto, há uma enorme dificuldade na prática docente para que os textos produzidos em sala de aula não fiquem somente como uma atividade de pratica de escrita. Os próprios livros didáticos buscam apontar alternativas para o trabalho com a produção de texto de forma que ela efetive-se em gêneros que circulam socialmente. Mas isso nem sempre é possível. Uma vez apresentadas as concepções que podem orientar a escrita, nosso passo seguinte consiste na análise do LD à luz dessas concepções. ANÁLISE DO LIVRO DIDÁTICO Neste artigo analisamos os comandos de produção textual do gênero conto, na Unidade 2 do livro didático Português Linguagens, 9º. Ano, dos autores William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães. O livro é dividido em 4 unidade temáticas, que se subdivide em três capítulos. Na Unidade 2, cada capítulo possui um subtítulo com textos referentes ao tema “Amor”. O trabalho com a produção de textos, nessa unidade, é focada no gênero conto, que aparece em todos os capítulos das unidades, como os seguintes subtítulos: O Conto (I), O Conto (II) e O Conto (III). Pode-se considerar que o Livro Português: linguagens apresenta conceitos pautados nas 104 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 15 • Maio 2015 Edição Especial • Homenageado ARYON DALL'IGNA RODRIGUES concepções interacionista de Bakhtin e construtivista de Vygotsky. Sendo destaque o trabalho com a leitura e produção de textos. O livro atual (2012), na 7ª. Edição reformulado, os autores ampliam o olhar sobre a questão da produção de texto: “uma proposta de produção textual apoiada na teoria do gêneros textuais ou discursivos e na linguística textual.” (CEREJA; MAGALHÃES, 2012, p.4). Observa-se que, os autores, tentam dar sentido à produção de textos, criando situações de interlocução para as produções das unidades. Para isso, há no livro uma secção denominada “Intervalo” ao final de cada unidade, que se baseia sempre na execução de um projeto relacionado aos conteúdos estudados. Com afirmamos anteriormente, o livro organiza-se em temáticas. Na Unidade 2, logo no Primeiro Capítulo o conto para leitura e estudo é “Felicidade Clandestina”, de Clarice Lispector, (p.70-71) que traz uma abordagem diferente do tema amor à que os adolescentes estão acostumados. No item “Produção de texto” “O Conto (I)” (p. 75), através das questões, há uma retomada dos elementos da narrativa como base para a produção que o aluno terá que realizar em “Agora é sua vez” (p.75-76). Nesse item, comando de produção textual apresenta o início de três contos de escritores brasileiros e sugere: “Escolha um deles e dê continuidade à narrativa. Se preferir, escreva um conto com um assunto diferente dos propostos.” Fragmento 1 O telefonema pegou-a de surpresa. Atendeu com impaciência, os olhos presos a um livro que tinha nas mãos, uma história policial que não conseguia parar de ler. Era bom estar sozinha, lendo um livro de suspense numa noite de ventania. O sábado já estava quase no fim e ela ali, presa naquelas páginas. O som do telefone era uma intromissão, um estorvo. Atendeu a contragosto. (Heloísa Seixas. Contos mínimos. Rio de Janeiro: Record, 2001.p. 43) Fragmento 2 —Até que enfim chegou a minha vez, Camila. Tatá reclamou com razão. Quase todo mundo já tinha respondido as perguntas do caderno de Camila. Ele esperou, esperou, esperou com paciência, com calma, com o canto do olho, com uma vontade doida 105 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 15 • Maio 2015 Edição Especial • Homenageado ARYON DALL'IGNA RODRIGUES de pegar aquele caderno espiral de capa ensebada de tanto passar de mão. Às vezes, ficava com a ligeira impressão de que Camila sabia dessa sua ansiedade-e, pior, sabia do motivo da ansiedade e por isso negava silenciosamente o direito de Tatá registrar suas respostas no caderno dela. —A tá que enfim... (Edson Gabriel Garcia. Contos de amor novo. 3.ed, São Paulo: Atual, 1999, p. 50) Fragmento 3 Este barulho todo é o Nilo chegando. Jogou os livros e cadernos no sofá e gritou para a mãe que queria comer. —Como se eu não soubesse—disse ela. —Mas primeiro, ó—apontou para os livros no sofá-e depois, ó: lavar as mãos. —É para já. —ele disse. Pegou os livros, levou-os para o quarto e voltou correndo. E enquanto enxugava as mãos se olhando no espelho da pia, gritou para a cozinha: —Mãe, tenho uma novidade... (José J. Veiga. Torvelinho dia e noite. São Paulo: Difel,1985. p. 11) Na sequência da atividade os autores buscam dar sentido a produção, apresentando em três itens (a, b e c) a sequência de produção: No item a apresentam-se os interlocutores/leitores e o suporte: a) Tenha em mente que seu conto será lido por colegas, professores, familiares e amigos, pois ele fará parte do livro que seu grupo irá produzir e expor na mostra Que conta um conto aumenta um ponto, proposta no Capítulo Intervalo desta unidade. ( p.76) No item b os autores retomam os elementos da narrativa como introdução, complicação, clímax e desfecho. Afim de que o aluno tenha claramente o gênero que será produzido, ou seja elabore seu projeto de dizer. 106 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 15 • Maio 2015 Edição Especial • Homenageado ARYON DALL'IGNA RODRIGUES b) Antes de escrever, imagine o conflito, ou seja, a situação problemática que as personagens viverão, e como ocorrerá sua superação. Além disso, planeje a organização dos fatos, estruturando o enredo em partes (introdução, complicação, clímax e desfecho) ou encontrando uma maneira de subverter essa estrutura. No caso de sua escolha ter recaído sobre um dos inícios sugeridos, a introdução já está feita. ( p.76) Já no item “c” desenvolve-se o projeto de dizer: c) Ao redigir, empregue uma variedade de acordo com a normapadrão da língua. Faça um rascunho e, antes de passar seu conto a limpo, revise-o cuidadosamente, seguindo as orientações do boxe Avalie seu conto. Refaça o texto quantas vezes achar necessário. ( p.76) O boxe para avaliação da produção apresenta os seguintes critérios: Observe se seu conto é uma narrativa ficcional curta; se apresenta poucas personagens, poucas ações e tempo e espaço reduzidos; se o enredo está estruturado em introdução, complicação, clímax e desfecho (ou subverte intencionalmente esse estrutura); se a linguagem empregada está de acordo com a norma-padrão da língua. (p.76) Os encaminhamentos dessa seção de produção de texto apontam para as afirmações de Koch (2012), em relação a escrita: A escrita é um trabalho no qual o sujeito tem algo a dizer e o faz sempre em relação ao outro (o seu interlocutor/leitor) com um certo propósito. Em razão do objetivo pretendido (para que escrever?), do interlocutor/leitor (para que escrever?), do quadro espacial-temporal (onde? Quando?) e do suporte de veiculação, o produtor elabora um projeto de dizer e desenvolve esse projeto recorrendo a estratégias linguísticas, textuais, pragmáticas, cognitivas, discursivas e interacionais, vendo e revendo, no próprio percurso da a atividade, a sua produção. (KOCH, 2012, p. 34) 107 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 15 • Maio 2015 Edição Especial • Homenageado ARYON DALL'IGNA RODRIGUES Sendo assim, a forma como são conduzidos os comandos de produção confirmam a concepção interacional dialógica da língua, adotada pelos autores. Nessa concepção interacional (dialógica) da língua, tanto aquele que escreve como aquele para quem escreve são vistos como atores/construtores sociais, sujeitos ativos que- dialogicamente- se constroem e são construídos no texto, este considerado um evento comunicativo para o qual concorrem aspectos linguísticos, cognitivos, sociais e interacionais. (KOCH, 2012, 34 apud Beaugrande, 1997) Percebe-se a intenção de oferecer aos docentes um material, embasado nas correntes ligadas a análise do discurso e ao interacionismo, que defendem que interação ocorre por meio da linguagem, daí sua dimensão discursiva. No Capítulo “O Conto (II) (p. 92-93) destaca-se o trabalho como os elementos do enredo tempo, espaço e a técnica do flashback desse gênero. Como texto base para estudo, apresenta-se “Pausa” (Moacyr Scliar). Na sequência, há uma exposição teórica dos tipos de tempo e espaço e a proposta 1 de produção com o seguinte comando: “Escolha um dos inícios de conto a seguir e dê continuidade, à história, empregado o tempo cronológico.” ( p.95). Como na proposta de “O Conto (I)” são apresentados três fragmentos iniciais de contos. Porém, nesse comando não são observadas relação com a concepção interacional (dialógica) da língua. Já na proposta dois é retomada essa concepção: Escreva um conto empregando a técnica do flashback. O assunto pode ser, por exemplo, um acontecimento na escola, um presentesurpresa, uma discussão familiar, um encontro inesperado, uma viagem, uma comemoração e família. Inicie a narração com fatos que se dão no tempo presente. Apresente a(s) personagem (ns), faça referências ao tempo e ao espaço em que acontece a história. Depois introduza na narração fatos do passado, empregando a técnica do flashback. Feito isso, retome o tempo presente e encaminhe a narração dos fatos para o desfecho, que pode ser surpreendente, engraçado, trágico, absurdo, etc. (p. 95). 108 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 15 • Maio 2015 Edição Especial • Homenageado ARYON DALL'IGNA RODRIGUES “Ao escrever seus textos, siga as instruções, apresentadas na proposta de produção de texto do capítulo anterior, na página 76” (p. 95). As instruções para a produção, já citadas anteriormente, seguem os apontamentos feitos por Irandé Antunes: Lembro que, em toda atividade de escrita, o aluno deve ser levado a vivenciar a experiência de: a) primeiro, planejar; b) depois, escrever – o que seria a primeira versão de seu texto; c) e, em seguida, revisar e reformular seu texto, conforme cada caso, para deixa-lo na versão definitiva. (ANTUNES, 2003, p.115-116). No terceiro e último capítulo sobre produção de texto “O Conto” (III), mais uma vez é desenvolvido o trabalho com a leitura. Há 5 contos para a leitura: “Me responda, sargento” (Dalton Trevisan); “Vigília” (João Anzanello Carrascoza); “Teste de vista” (Moacyr Godoy Moreira); “O Espelho de Narciso” (Modesto Carrone); “Fumaça” (Ronaldo Correia de Brito). Todavia, contraditoriamente ao título do Capítulo, não há nenhuma solicitação de produção de texto. “Da época das narrativas orais feitas pelos povos antigos em volta da fogueiras até os dias atuais, o conto sofreu muitas alterações.” Modernamente, essa forma de narrativa tornou-se mais concentrada, e a estruturação de seu enredo em apresentação, complicação e clímax nem sempre se mantém. Com frequência, tal estrutura chega mesmo a ser substituída pela de outros gêneros textuais. Leia os contos a seguir. O primeiro “Me responda, sargento” é construído por meio de um diálogo em que não existe a fala do interlocutor; “Vigília” “Teste de vista”, “O Espelho de Narciso”, “Fumaça”, são minicontos.” (CEREJA; MAGALHÃES, 2012, p.111) O comando é de leitura e não de produção, neste capítulo, o que não deixa claro o objetivo da proposição. Se observarmos atentamente, percebemos que o trabalho com a leitura é realizado de maneira satisfatória no livro, no entanto, no que tange a escrita, ainda, fica aquém do razoável. Apenas o texto que emprega a técnica do flashback, (p. 95), dos três 109 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 15 • Maio 2015 Edição Especial • Homenageado ARYON DALL'IGNA RODRIGUES produzidos, será inteiramente de autoria do aluno, Os outros dois serão continuação de contos já existentes e servem como pretexto para observar se o aluno realmente sabe aplicar os elementos da narrativa, abordados em cada propostas: complicação, clímax e desfecho e o uso do tempo cronológico. Da forma como são propostos os textos, não é possível efetivar a proposição do capítulo “Intervalo”, nesta unidade, relacionada à publicação de um livro de contos: “Individualmente, você deverá montar um livro com os contos que produziu no transcorrer desta unidade e outros, também de sua autoria, que queira publicar” (CEREJA; MAGALHÃES, 2012, p.132). Nesse momento, deve haver a interferência do professor. Cabe-lhe fazer a adaptação da proposta do livro didático para a sua prática docente. Talvez a produção e publicação de um único livro pela turma fosse o mais adequado. CONSIDERAÇÕES FINAIS São consideráveis os avanços do Ensino da Língua Materna nas últimas décadas. Inclusive os Livros didáticos tem procurado adequar-se as tendências atuais dos estudos interacionistas da linguagem. No entanto, ainda percebe-se algumas lacunas no LD em relação aos comandos de produção de textos e a efetivação destas produções como gêneros textuais. Vale aqui fazer uma ressalva sobre o livro Português: Linguagens. É notória a busca dos autores para a adequação do trabalho com a diversidade dos gêneros textuais em toda a coleção, tanto do Ensino Fundamental, quanto do Ensino Médio. No livro analisado, observa-se a tentativa do desenvolvimento de uma proposta pautada nas concepções interacionistas e do gênero textual. Todavia, como destacamos anteriormente, nem sempre isso acontece. São mais comandos de prática de escrita, do que de autoria. 110 Web-Revista SOCIODIALETO • www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 • Volume 5 • Número 15 • Maio 2015 Edição Especial • Homenageado ARYON DALL'IGNA RODRIGUES Para que o ensino da Língua Materna esteja em consonância com as concepções interacionistas (dialógicas) da linguagem requer um novo olhar do professor sobre tudo o que envolve a sua prática docente. Principalmente, sobre os processos de produção de texto presentes nos materiais didáticos, adaptando e adequando-os a sua realidade de sala de aula. REFERÊNCIAS ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro e interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003. BAKHTIN, Mikhail M. Estética da Criação Verbal. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. BORTONI-RICARDO, Stella Maris. 2008. O professor pesquisador: introdução à pesquisa qualitativa. São Paulo: Parábola CEREJA, William Roberto, Português: Linguagens, volume 3 /Willian Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães – 7. ed. Reform. – São Paulo: Saraiva, 2012. GOTLIB, Nádia Battela. Teoria do Conto. Série Princípios. São Paulo: Ática, 2003. KOCH, Ingedore V. e ELIAS, Vanda M. Ler e Escrever – estratégias de produção textual.2. ed. 1ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2012. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção de texto, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. BRASIL. Ministério da Educação: Fundo Nacional De Desenvolvimento Da Educação. Programa Nacional do Livro Didático – PNLD-2014. Disponível em: <http://www.fnde.gov.br/arquivos/category/125-guias?download=8499:colecoes-maisdistribuidas-por-componente-curricular-ensino-fundamental> Acesso: 20 de nov. 2014. REINALDO, Maria Augusta de Macedo Saberes sobre produção de texto e avaliação de material didático na formação continuada. Trab. Ling. Aplic., Campinas, 45(2): 271292, Jul./Dez. 2006 PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação do Paraná. CADERNOS PDE <http://www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=623)> Acesso em: 28 de janeiro de 2014. Recebido Para Publicação em 28 de fevereiro de 2015. Aprovado Para Publicação em 30 de abril de 2015. 111