POR UMA REVISÃO DA HISTORIOGRAFIA TRADICIONAL
DAS LÍNGUAS GERMÂNICAS: O CONCEITO DE GERMANCE
(Publicado nos Primeiros Trabalhos do VII CNLF, Rio de Janeiro, CiFEFiL, 2003)
Resumo: Este artigo propõe uma nova divisão da história das línguas germânicas, levando em conta a
existência de três diferentes períodos históricos (pré-histórico, proto-histórico e literário) na evolução do
Germânico Comum às modernas línguas germânicas, analogamente ao desenvolvimento das línguas
românicas a partir do Latim Vulgar, no qual três estágios podem ser reconhecidos: o Latino Vulgar (préhistórico), o Romance (proto-histórico) e o literário (histórico). Até agora, somente dois estágios têm sido
considerados na história lingüística do germânico, a saber, o Germânico Comum (hipotético) e as línguas
literárias germânicas (documentadas desde a Idade Média). Devido a essa nova divisão historiográfica,
propõe-se a denominação Germance para o segundo dos três estágios evolutivos do germânico.
Palavras-chave: Germânico Comum; línguas germânicas; lingüística histórica; germance.
Como se sabe, as línguas românicas ou neolatinas descendem diretamente do latim vulgar, numa
evolução constante que em nenhum momento sofreu solução de continuidade, isto é, ruptura do sistema.
Tal fato suscita a questão de sabermos em que instante e por que razão se estabelece o limite entre a
língua latina e suas sucessoras históricas. Da mesma forma, as línguas germânicas derivam de um suposto
germânico primitivo, ou protogermânico, língua que, embora hipotética, por não existir dela nenhum
testemunho escrito, representa para as línguas germânicas o mesmo papel desempenhado pelo latim
vulgar em relação às línguas românicas.
O escopo deste trabalho é revisar a divisão historiográfica tradicional das línguas germânicas, tal
qual é usualmente apresentada em manuais e trabalhos de filologia e lingüística germânica, como os de
Meillet (1917), Karsten et al. (1931), Streitberg (1943) e Krahe (1977), dentre outros. Segundo a
concepção tradicional, a história dessas línguas divide-se em dois períodos básicos: o período préhistórico, ou germânico primitivo, e o período histórico, ou das línguas germânicas modernas. Cremos, no
entanto, que tal divisão não é suficientemente específica para explicar boa parte dos fenômenos de
evolução fonética e de produção lexical dessas línguas, sobretudo no que diz respeito aos empréstimos
vocabulares de origem latina e românica.
Assim, antes de prosseguirmos nossa discussão acerca dessa questão, é prudente definirmos o
conceito de língua em que se baseia a historiografia lingüística tradicional. Para tanto, é particularmente
ilustrativo o que diz Pisani (1939, p. 9 s.):
Il concetto di « lingua » è un’astrazione basata su una serie di fatti reali che sono i singoli atti linguistici, unità
d’espressione corrispondenti ad unità d’intuizione, dei parlanti. Ma questi atti non sono immaginabili fuori della
società, in cui si attuano tutte le capacità umane, ed in cui essi appaiono come delle comunicazioni (un riflesso
delle quali sono anche i colloqui dell’individuo con se stesso, i suoi pensamenti dialettici, cioè, di determinate
intuizioni); comunicazioni che possono aver luogo solo in quanto l’individuo che parla crea la sua espressione
servendosi di certi segni (parole e nessi) da cui l’udente ricrea una intuizione più o meno corrispondente a
quella del suo interlocutore. Perché si svolga questa duplice attività da parte di chi parla e di chi ascolta, occorre
che ambedue annettano ai segni usati, i quali non hanno di per sè alcun rapporto necessario col loro significato,
un valore fondamentalmente uguale. […] Ma naturalmente, servendo ogni volta ad esprimere una nuova
intuizione, il segno non può mai avere un valore identico a quello del suo modello, donde un doppio motivo
d’innovazione: modificazione del valore, pur riproducendosi sostanzialmente immutata la forma fonica del
modello, o modificazione anche della forma fonica di questo.
Solo con una certa approssimazione si può quindi parlare di identità dei segni contenuti negli atti dei singoli
parlanti di una data comunità linguistica. Ma sull’ammissione di questa identità si basa il nostro concetto di
« lingua », il quale abbraccia i segni comuni agli atti linguistici di una determinata quantità di individui o, se si
vuole, il sistema d’isoglosse riunente tali atti linguistici. Cosicché esso può assumere ambito maggiore o
minore, temporalmente e spazialmente, a seconda degli atti singoli considerati. […] Data la natura del concetto
di « lingua », è chiaro […] che la determinazione di certe « lingue » è fatta sulla base di altri principii che non
strettamente glottologici: motivi storici, culturali, tradizionali ci fanno decidere a parlare come di un tutto della
lingua latina dal III o magari dal VI secolo a. C. fino al V–VI d. C. e di una lingua italiana dal duecento al
giorno d’oggi, e non p. es. di tutta una lingua abbracciante la tradizione latina e neolatina […].
Tradicionalmente, divide-se a história lingüística do latim em três etapas: latim arcaico, latim
clássico e baixo latim ou latim medieval. Paralelamente ao latim clássico e medieval, de caráter culto e
literário, falava-se o latim vulgar, do qual derivam as línguas românicas. Esse latim vulgar na verdade
nunca se constituiu numa língua fixa e estável. Com efeito, era falado ao longo de uma grande extensão
territorial, que incluía a Ibéria, a Gália, a Itália, os Alpes, a África do Norte, etc., e, em cada uma dessas
regiões, se havia sobreposto a uma língua preexistente, a que chamamos língua de substrato, falada pelas
populações autóctones antes da conquista romana, e que, por vezes, deixou traços na fonética, na
morfologia e no léxico do latim dessas populações. É, pois, natural que a diversidade dialetal do latim
vulgar fosse bastante significativa. Não obstante, enquanto o Império Romano sobreviveu, a comunicação
entre as diversas províncias permaneceu suficientemente intensa para impedir que divergências dialetais
se aprofundassem a ponto de romper a possibilidade de intercompreensão. Já a partir do definitivo
esfacelamento do Império, no século V de nossa era, as comunicações se tornaram mais difíceis, as
relações comerciais entre as províncias cessaram e a cultura literária, outro importantíssimo fator de união
entre os falantes do latim, experimentou um período de extrema decadência. Some-se a isso a invasão dos
territórios romanizados por povos germânicos que, embora em muitos casos adotando a língua latina —
ou melhor, seus dialetos locais —, aportavam a esses dialetos seus hábitos lingüísticos próprios,
contribuindo assim para aumentar a diversificação lingüística entre as regiões. As línguas germânicas
representavam, desse modo, línguas de superstrato em relação ao latim vulgar das províncias invadidas.
Inicia-se assim um novo período na história da língua, em que não mais convém falar-se de um latim
vulgar, mas sim de um romance, ou, antes, de vários romances.
O período romance principia com a queda do Império Romano do Ocidente e se estende até o
momento em que alguns de seus dialetos ascendem à posição de línguas literárias e de cultura, passando
os demais dialetos a ser vistos não mais como dialetos do latim ou do romance, mas sim como variedades
regionais das línguas literárias utilizadas nos territórios em que são falados.
Percebe-se assim que a história lingüística latina pode ser dividida didaticamente em três grandes
períodos: um período latino vulgar, um período romance e um período neolatino, que por sua vez se
dividirá em antigo (séculos IX a XI), médio (séculos XII a XV) e moderno (a partir do século XVI ).
Uma divisão historiográfica semelhante pode ser aplicada ao domínio das línguas germânicas. É
bem verdade que as obras tradicionais de filologia germânica distinguem apenas dois períodos, um
chamado de germânico comum, e outro em que já aparecem os testemunhos escritos dos dialetos
germânicos, dando origem ao período literário. Contudo, se observarmos mais atentamente a história dos
povos germânicos, veremos que muito do que dissemos acerca da tradição latina em suas várias fases se
aplica também ao germânico. Em primeiro lugar, o germânico primitivo, também chamado de
protogermânico, embora nunca tenha sido documentado, tendo sido reconstruído por comparação com as
demais línguas indo-européias e a partir das evidências de suas línguas sucessoras, apresenta uma fase
arcaica, comumente denominada pré-germânico, postulada pelos germanistas para explicar a transição
entre o indo-europeu e o germânico propriamente dito, e uma fase de aparentemente maior estabilidade
lingüística, em que os principais traços das línguas germânicas já estão consolidados: trata-se do acima
citado germânico comum. A exemplo do latim vulgar, o germânico comum provavelmente nunca foi uma
língua unitária, mas antes um conjunto de dialetos de origem indo-européia portadores de isoglossas
comuns, que os aproximavam mutuamente e, ao mesmo tempo, os distinguiam dos demais dialetos indoeuropeus: dialetos itálicos, célticos, gregos, bálticos, etc. Nessa etapa, tais dialetos eram ainda
suficientemente próximos, em virtude de as tribos que os falavam se encontrarem circunscritas a um
território relativamente pouco extenso. Entretanto, a partir sobretudo do século V, impelidos pela invasão
dos hunos de Átila vindos do Oriente, os germanos dispersaram-se progressivamente, especialmente nas
direções oeste e sul, havendo inclusive algumas tribos invadido o território romano e fundido-se aos
povos aborígines, como é o caso dos francos na Gália. A partir desse momento, a diversidade lingüística
entre os germanos também começa a intensificar-se, de modo a podermos dizer que tal fase de sua
história se compara ao período romance, razão pela qual propomos aqui denominar o germânico dessa
época de germance, por analogia ao romance.
O período germance se inicia, portanto, a partir da grande onda de invasões e incursões realizadas
pelos germanos ao Império Romano (especialmente durante os séculos IV e V) e perdura até o início da
tradição literária das línguas germânicas.
Em síntese, propomos a divisão da história do germânico em três etapas distintas, a saber: um
período germânico comum, um período germance e um período neogermânico.
A postulação de um estágio intermediário entre o germânico comum e as línguas germânicas
historicamente documentadas, que estamos aqui denominando período germance, é, a nosso ver, de suma
importância para o estudo da lingüística germânica, uma vez que muitos fenômenos fonéticos,
morfológicos e léxicos comumente atribuídos ao germânico comum ocorreram na verdade já no período
germance, como, por exemplo, a passagem de ē germânico a ā (por exemplo, germânico *lētan > antigo
alto alemão lāZZen), o fenômeno da fratura vocálica (por exemplo, germânico *gulþam > inglês gold), o
desaparecimento do dual e das declinações e o empréstimo de vocábulos gregos e latinos, contemporâneo
da intensificação do contato entre romanos e germanos.
Como se sabe, o grego e o latim, únicas línguas de cultura da época, possuíam por isso mesmo um
estatuto hierárquico superior em relação às línguas vulgares, tanto românicas quanto germânicas. Estas se
desenvolveram como línguas literárias segundo o modelo greco-latino. Desse modo, o parentesco
existente entre o latim clássico e as línguas românicas, por ser indireto, já que, como vimos, as mesmas na
verdade provêm do latim vulgar, não torna tais línguas mais propícias ao influxo das línguas clássicas do
que o seriam as línguas germânicas. Nesse sentido, o efeito da influência greco-latina é exatamente o
mesmo sobre ambas as famílias lingüísticas. Esquematizemos, então, o processo evolutivo dessas línguas
e a relação existente entre as mesmas e as línguas clássicas da seguinte maneira:
grego clássico*
latim clássico*
baixo latim*
latim vulgar**
romance***
línguas
românicas
****
*
**
***
****
germânico comum**
ocidental: ibérico, provençal,
alto italiano, etc.
setentrional: galo, rético, etc.
oriental: baixo italiano, dácio,
sardo, dalmático, etc.
português
espanhol
catalão
francês
provençal
italiano
rético
romeno
germance***
línguas
germânicas
****
ocidental: anglo, saxão, francônio,
bávaro, frísio, alemânico, alto
alemão, baixo alemão, etc.
setentrional: nórdico, etc.
oriental: gótico, burgúndio, etc.
norueguês
sueco
dinamarquês
islandês
inglês
alemão
holandês
flamengo
línguas clássicas → influenciam a norma culta das línguas vulgares
línguas não documentadas diretamente
línguas pouco documentadas (séculos V a IX)
línguas plenamente documentadas (a partir dos séculos VIII–IX)
O período romance/germance é de fundamental importância para a gênese da Civilização Ocidental,
pois é exatamente nessa etapa histórica que se dá o cruzamento entre as duas culturas básicas que
compõem essa civilização: a cultura greco-romano-cristã e a cultura germânica. Durante o período
latino/germânico primitivo, a maior parte do acervo léxico dessas línguas era autóctone, com uns poucos
empréstimos feitos ao céltico e ao grego (no caso do latim). Na fase romance/germance, o intercâmbio de
valores culturais e ideológicos (cristianismo, feudalismo, cavalheirismo, amor cortês, direito
consuetudinário, etc.) implicou o intercâmbio de palavras. Nesse momento, os diversos romances se
povoam de expressões germânicas (por exemplo, português guardar < germance wardan < germânico
*wardōn, português dançar < germance *dintjan < germânico *dantjōn, etc.), ao mesmo tempo que os
germances recebem contribuições léxicas românicas (por exemplo, inglês cup < romance cuppa < latim
cuppa, inglês dish < romance discu < latim discus, etc.).
Como dissemos anteriormente, a postulação de uma etapa lingüística germance entre o germânico
comum e as línguas germânicas que conhecemos hoje é fundamental para a explicação e a compreensão
de uma série de fenômenos que, de outra forma, são analisados e interpretados de modo muito mais
complexo e, às vezes, errôneo.
Referências bibliograficas
KARSTEN, T. E.; MOSSE, F.; MEILLET, A. (1931) Anciens germains: introduction à l’étude des
langues et des civilisations germaniques. Paris, Payot.
KRAHE, H. (1977) Lingüística germánica. Tradução de Maria Teresa Zurdo. Madrid, Ediciones Cátedra.
MEILLET, A. (1917) Caractères généraux des langues germaniques. Paris, Hachette.
PISANI, V. (1939) Introduzione alla linguistica indeuropea. Roma, Edizioni Universitarie.
STREITBERG, W. (1943) Urgermanische Grammatik. Einführung in das vergleichende Studium der
altgermanischen Dialekte. Heidelberg, s.ed.
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