UM TEXTO INÉDITO DE PIERRE BOURDIEU1 Publicado no Jornal Le Monde Diplomatique,, edição Portuguesa, n. 35 Ano 3 – Fevereiro 2002 – página 3, Editora Campo da Comunição – Av. 5 de Outubro, 176, 4º. Andar Direito – Apartado 14296 – 1064-004 – Lisboa – Portugal – Telefones (00.Cód. Operadora) (351) 217 613.210/4 – Fax: 217.613.219 - E-mail: [email protected] Um saber comprometido Pierre Bourdieu fez a sua última intervenção política em Atenas, por ocasião de um encontro com os sindicatos e os investigadores gregos, realizado na Grécia entre 3 e 6 de Maio de 2001 sob a égide da associação de Raisons d’Agir. Se é atualmente importante, se não necessário, que um certo número de investigadores independentes se associem ao movimento social, é porque estamos confrontados com uma política de globalização. (Digo propositadamente uma “política de globalização”, não falo de “globalização” como se de um processo natural se tratasse!). Esta política é, em grande medida, mantida em segredo no que se refere à sua produção e à sua difusão. Só para conseguir descobri-la antes que seja posta em prática, é já necessário fazer um verdadeiro trabalho de investigação. Mais ainda, esta política tem conseqüências que podem ser previstas utilizando os recursos da ciência social, mas que, a curto prazo, são ainda invisíveis para a maioria das pessoas. Outra característica desta política é ser em certa medida produzida por investigadores. A questão que se coloca é saber se aqueles que, por via do seu conhecimento científico, podem antecipar as conseqüências desastrosas desta política podem e devem permanecer silenciosos. Ou se esse silêncio não equivale a uma espécie de “não-assistência a pessoas em perigo”. Se é verdade que o planeta está sob a ameaça de graves calamidades, então aqueles que crêem conhecer essas calamidades 1 A responsabilidade pela transcrição desse texto do Jornal Lê Monde Diplomatique, edição portuguesa, é de inteira responsabilidade de Aristides Moysés, coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas Urbanas e Regionais do Centro-Oeste – GEPUR-CO e pesquisador do Observatório das Metrópoles. antecipadamente não terão o dever de abandonar o tradicional recato que os cientistas impõem a si próprios? Na cabeça da maioria das pessoas instruídas, e sobretudo na área das ciências sociais, existe uma dicotomia que me parece completamente desastrosa: a dicotomia entre scholarship e commitment – entre aqueles que se dedicam ao trabalho científico, que é feito segundo métodos eruditos para agradar a outros eruditos, e aqueles que assumem uma atitude de empenhamento e comunicam o seu saber ao exterior. Esta oposição é artificial e, de facto, só um cientista que trabalha com autonomia e segundo as regras do scholarship poderá produzir um conhecimento empenhado, isto é, um scholarship with commitment. Para se ser verdadeiramente um cientista empenhado, justamente empenhado, é necessário empenhar-se num saber. E esse saber apenas pode ser adquirido no trabalho científico, submetido às regras da comunidade científica. Dito de outro modo, é necessário rebentar com um certo número de contradições que só existem nas nossas cabeças e que servem para autorizar várias formas de demissão, a começar pela demissão do sábio que se encerra na sua torre de marfim. A dicotomia entre scholarship e commitment tranquiliza a boca consciência do investigador porque ele recebe a aprovação da comunidade científica. É como se os cientistas se considerassem duplamente sapientes pelo facto de não usarem a sua ciência para nada. No caso dos biólogos, isto pode ser criminoso. Mas é igualmente grave quando se trata de criminólogos. Este recato, este refúgio na pureza, tem consequências sociais muito graves. Pessoas como eu, pagas pelo Estado para fazer investigação, deveriam guardar cuidadosamente entre si e os seus colegas os resultados de suas investigações? É absolutamente necessário submeter em primeiro lugar à crítica dos colegas aquilo que acreditamos ser uma descoberta; mas por que razão haveríamos de reservar só para esses colegas um conhecimento colectivamente adquirido e avaliado? Parece-me que hoje em dia o investigador não tem grande escolha: se tem a convicção de que existe uma correlação entre as políticas neoliberais e as taxas de delinquência, uma correlação entre as políticas neoliberais e as taxas de criminalidade, uma correlação entre políticas neoliberais e todos os sinais daquilo que Durkheim teria designado como anomia, então como poderia não o afirmar? Não deveríamos limitar-nos a não o censurar, deveríamos felicitá-lo por o fazer. (Talvez esteja a fazer uma apologia da minha própria posição...). O que vai o investigador fazer Agora, o que vai este investigador fazer no movimento social? Em primeiro lugar, não vai dar lições – como faziam certos intelectuais orgânicos que, não sendo capazes de colocar as suas mercadorias no mercado científico, onde a competição é difícil, iam fazer de intelectuais junto dos não-intelectuais, mesmo afirmando a inexistência do intelectual. A função de um investigador não é fazer profecias nem ensinar os outros a pensar. Deve inventar um novo e difícil papel: deve escutar, deve investigar e inventar; deve procurar ajudar as organizações que afirmam ter como missão resistir contra a política neoliberal – infelizmente estas organizações, incluindo os sindicatos, fazem-no cada vez com menor vigor. O investigador deve atribuir a si próprio a tarefa de as auxiliar fornecendo instrumentos, especialmente instrumentos contra o efeito simbólico que é exercido pelos “especialistas” comprometidos com as grandes empresas multinacionais. É preciso chamar as coisas pelos nomes. Por exemplo, a actual política de educação é decidida pela UNICE, pelo Transatlantic Institute, etc.1. É suficiente ler o relatório da Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre os serviços para ficarmos a conhecer a política de educação que teremos daqui a cinco anos. O Ministério da Educação Nacional não faz mais do que repercutir os mandamentos elaborados por juristas, sociólogos e economistas e que são postos em circulação assim que tomam a forma de procedimentos jurídicos. Os investigadores podem ainda fazer algo mais original, mas difícil: favorecer o aparecimento das condições organizacionais para a produção colectiva da intenção de inventar um projecto político e, em segundo lugar, favorecer o aparecimento das condições organizacionais para o sucesso da invenção de um dado projecto político; este será evidentemente um projecto colectivo. Afinal de contas, a Assembléia Constituinte de 1789 e a Assembléia de Filadélfia eram compostas por gente como vocês e eu, que tinham conhecimentos jurídicos, que tinham lido Montesquieu e que inventaram estruturas democráticas. Do mesmo modo, hoje é necessário inventar coisas novas... Pode, evidentemente, dizer-se: “Existem parlamentos, uma confederação européia de sindicatos e todo o tipo de instituições de quem se espera que cumpram esse papel razoavelmente”. Não apresentarei aqui a demonstração do que digo, mas é forçoso constatar que esse papel não é cumprido. Portanto, é necessário criar as condições favoráveis a esta invenção. É preciso ajudar a remover os obstáculos a esta invenção, obstáculos que em certa medida residem no próprio movimento social que está encarregue de os remover – designadamente nos sindicatos... Que razões há para podermos estar optimistas? Penso que podemos falar em termos de hipóteses razoáveis de sucesso, pois este é o momento do Kairos, o momento oportuno. Quando tínhamos este discurso por volta de 1995, o que havia em comum entre nós era o facto de não sermos compreendidos e de passarmos por loucos. Todos aqueles que, como Cassandra, anunciavam catástrofes eram motivo de riso, objecto de ataques (por parte dos jornalistas) e de insultos. Agora isso acontece um pouco menos. Porquê? Porque foi sendo feito trabalho. Aconteceu Seattle e todo um conjunto de manifestações. Além disso, começam a ser visíveis as consequências da política neoliberal, as quais tínhamos previsto, mas de um modo abstracto. E agora as pessoas compreendem... Mesmo os jornalistas mais limitados e mais teimosos sabem que quando uma empresa não realiza 15 por cento de lucros faz despedimentos. Começam a concretizar-se as mais catastróficas profecias dos profetas da desgraça (que apenas estavam mais bem informados que os outros). Não é demasiado cedo. Mas também não é demasiado tarde. Por que isto é apenas um princípio, porque as catástrofes ainda estão a começar. Ainda é tempo de sacudir os governos sociaisdemocratas, perante os quais os intelectuais são cegos, sobretudo quando essa cegueira lhes permite ter acesso a todo o tipo de benefícios sociais. Tornar eficazes os movimentos sociais A meu ver, o movimento social europeu só terá hipótese de ser eficaz se reunir três componentes: sindicatos, movimento social e investigadores – na condição, evidentemente, de os integrar, em vez de se limitar à sua justaposição. Ontem dizia aos sindicalistas que existem divergências profundas quanto aos conteúdos e aos meios de actuação entre os movimentos sociais e os sindicatos, em todos os países da Europa. Os movimentos sociais deram corpo aos objectivos políticos que os sindicatos e os partidos tinham abandonado, esquecido ou recusado. Por outro lado, os movimentos sociais trouxeram métodos de actuação que os sindicatos, uma vez mais, foram, a pouco e pouco, abandonando, esquecendo ou recusando. Contribuíram particularmente com métodos de ação pessoal: as actividades dos movimentos sociais recorrem à eficácia simbólica, uma eficácia simbólica que depende, em certa medida, do empenhamento pessoal daqueles que se manifestam; um empenhamento pessoal que é também um empenhamento corporal. Torna-se necessário correr riscos. Não se trata de desfilar de braço dado, como é tradicionalmente feito pelos sindicalistas no 1º de Maio. É preciso desenvolver acções, ocupações de locais, etc. Isto exige simultaneamente imaginação e coragem. Mas não quero deixar de dizer isto: “Atenção, não entrem em ‘sindicalofobia’. Existe uma lógica própria dos aparelhos sindicais e é preciso compreendê-la”. Por que razão digo eu aos sindicalistas coisas que se aproximam dos pontos de vista que os movimentos sociais têm sobre eles e por que razão vou depois dizer aos movimentos sociais coisas que estão próximas da visão que os sindicalistas têm deles? Porque só mediante a condição de cada um dos grupos olhar para si próprio como olha para os outros poderemos vir a ultrapassar as divisões que contribuem para enfraquecer os dois grupos, que à partida são muito frágeis. O movimento de resistência à política neoliberal é globalmente muito frágil e é enfraquecido pelas suas divisões internas: funciona como um motor que gasta 80 por cento da sua energia em calor, isto é, sob a forma de tensões, fricções, conflitos, etc. E que poderia caminhar muito mais depressa e ir muito mais longe se... Os obstáculos à criação de um movimento social europeu unificado são de vários tipos. Existem os obstáculos linguísticos, que são muito importantes, por exemplo na comunicação entre os sindicatos e os movimentos sociais – os patrões e os quadros falam muito mais línguas estrangeiras do que os sindicalistas e os militantes. Por isso tem sido tão difícil a internacionalização dos movimentos sociais ou dos sindicatos. Para além disso, existem os obstáculos ligados aos hábitos, aos modos de pensar e à força que têm as estruturas sociais e as estruturas sindicais. Qual pode ser o papel do investigador em tudo isso? O de trabalhar para uma invenção colectiva das estruturas colectivas de invenção que fará nascer um novo movimento social, ou seja, novos conteúdos, novos objectivos e novos meios internacionais de acção. 1 Ler Europe Inc. Liaisons dangereuses entre institutions et milieux des affaires européens, CEO, Agone, Marselha, 2000. * Pierre Bourdieu na edição portuguesa do Le Monde diplomatique: “Por um movimento social europeu”, Junho de 1999. “A nova vulgata planetária” (com Loïc Wacquant), Maio de 2000.