▼ Questão 9 Os excertos abaixo foram extraídos do Auto da barca do inferno, de Gil Vicente. (...) FIDALGO: Que leixo na outra vida e todo vosso senhorio. quem reze sempre por mi. Vós irês mais espaçoso DIABO: (...) E tu viveste a teu prazer, com fumosa senhoria, cuidando cá guarecer cuidando na tirania por que rezem lá por ti!…(…) do pobre povo queixoso; ANJO: Que querês? e porque, de generoso, FIDALGO: Que me digais, desprezastes os pequenos, pois parti tão sem aviso, achar-vos-eis tanto menos se a barca do paraíso quanto mais fostes fumoso. (…) é esta em que navegais. SAPATEIRO: (...) E pera onde é a viagem? ANJO: Esta é; que me demandais? DIABO: Pera o lago dos danados. FIDALGO: Que me leixês embarcar. SAPATEIRO: Os que morrem confessados, sô fidalgo de solar, onde têm sua passagem? é bem que me recolhais. DIABO: Nom cures de mais linguagem! ANJO: Não se embarca tirania Esta é a tua barca, esta! neste batel divinal. (...) E tu morreste excomungado: FIDALGO: Não sei por que haveis por mal não o quiseste dizer. Que entr’a minha senhoria. Esperavas de viver, ANJO: Pera vossa fantesia calaste dous mil enganos... mui estreita é esta barca. tu roubaste bem trint'anos FIDALGO: Pera senhor de tal marca o povo com teu mester. (...) nom há aqui mais cortesia? (...) SAPATEIRO: Pois digo-te que não quero! ANJO: Não vindes vós de maneira DIABO: Que te pês, hás-de ir, si, si! pera ir neste navio. SAPATEIRO: Quantas missas eu ouvi, Essoutro vai mais vazio: não me hão elas de prestar? a cadeira entrará DIABO: Ouvir missa, então roubar, e o rabo caberá é caminho per'aqui. (Gil Vicente, Auto da barca do inferno, em Cleonice Berardinelli (org.), Antologia do teatro de Gil Vicente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Brasília: INL, 1984, p. 57-59 e 68-69.) a) Por que razão específica o fidalgo é condenado a seguir na barca do inferno? E o sapateiro? b) Além das faltas específicas desses personagens, há uma outra, comum a ambos e bastante praticada à época, que Gil Vicente condena. Identifique essa falta e indique de que modo ela aparece em cada um dos personagens. Resolução a) O fidalgo é considerado um indivíduo vaidoso e de comportamento arrogante, o que pode ser comprovado no excerto pelas falas em que enfrenta o anjo, reforçando sua importância: “sô fidalgo de solar, / é bem que me recolhais.” ou ainda “Pera senhor de tal marca / nom há aqui mais cortesia?”. No momento específico da condenação, o anjo declara que a barca do céu era muito pequena para conter toda empáfia de um passageiro como aquele, além de lembrá-lo de sua tirania e de seu desprezo pelos de menor importância social. Quanto ao sapateiro, o motivo de sua condenação está relacionado ao fato de ele ter roubado de seus fregueses enquanto estava vivo, como fica explícito na fala do diabo: “tu roubaste bem trint´anos / o povo com teu mester.” b) Uma falta condenada de forma recorrente pelo dramaturgo é o fato de as personagens acreditarem que a participação em um rito cristão (aparência) equivalia à manifestação efetiva de fé (essência). O fidalgo acredita poder fiar-se nas orações que sua esposa estaria fazendo por sua alma, ou ainda em sua condição de “fidalgo de solar”. A argumentação do sapateiro, por sua vez, baseia-se nas missas a que assistiu e nas confissões que fez. Apesar de ele supostamente ter cumprido suas obrigações religiosas, o fato de não ter agido em conformidade com os princípios cristãos lhe valeu a condenação ao inferno. Em sua sentença final, o diabo declara: “Ouvir missas, então roubar, / é caminho per´aqui.”