OS GÊNEROS E A FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE LÍNGUA PORTUGUESA: MUITAS PEDRAS NO CAMINHO. Tânia Cristina Lemes Machado (UFMT)* Novos horizontes, velhas práticas A formação docente tem sido cada vez mais questionada e criticada, envolta sempre pelo discurso do fracasso e da necessidade de reformulação do ensino e das práticas pedagógicas. O professor de Língua Portuguesa (LP), dentro desse contexto, parece atravessar uma crise de identidade. A ele não cabe mais o papel de “guardião” da língua, sempre à caça de “erros” por parte daqueles que não utilizam o modelo padrão de língua, a norma culta, única e “correta”, instituída dentro de um passado marcado pelo poder de uma elite dominante e de influência portuguesa. Como esse professor também não domina essa língua, ele tornou-se então um especialista, repetindo o tradicional ensino recebido em sua formação, pautado no discurso sobre a língua, a metalinguagem. Diante das críticas a esse ensino descontextualizado, centrado na norma, na gramática, o ensino de Língua Portuguesa no Brasil sofreu mudanças significativas a partir da década de 80, quando os avanços decorrentes de pesquisas nas diversas áreas da Lingüística contribuíram para a reflexão e reformulação do ensino dessa disciplina. Esse cenário resultou, na década de 1990, em um novo paradigma para o ensino de LP apontado pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), documento oficial instituído pelo governo e elaborado por um grupo de autores, especialistas da área e pesquisadores, que traz orientações sobre o ensino nas diversas áreas do conhecimento, incluindo o ensino de Língua Portuguesa, partindo do pressuposto de que esse ensino deve se dar a partir de dois eixos uso e reflexão sobre a língua. Os PCN propõem um trabalho no qual o ponto de partida e chegada seja o uso da linguagem e, para isso, eles privilegiam o trabalho com os gêneros. O presente artigo constitui o relato de parte de uma pesquisa, ainda em desenvolvimento, acerca da relevância do trabalho com os gêneros discursivos, sua indicação como objeto de ensino-aprendizagem nas aulas de Língua Portuguesa (PCN, 1998) e das perspectivas e dificuldades reveladas pelos professores em relação à prática efetiva desse trabalho, focalizando a formação inicial e continuada do professor de LP. Dentre os objetivos da pesquisa destacamos a reflexão acerca do distanciamento entre teoria e prática, uma vez que o processo de formação, na maioria das vezes, pauta-se na transmissão de conhecimentos, deixando, talvez, menor ou * Mestranda em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). nenhum espaço para a discussão sobre as dificuldades encontradas pelos docentes na sua prática efetiva. Como parte desse objetivo, temos, também, a oportunidade de observar o trabalho de um grupo de professores de LP, que atuam na rede pública de ensino, dando-lhes vez e voz, a fim de expressarem suas dúvidas e contribuições diante desse novo paradigma, permitindo, assim, uma análise do processo de ensino no qual estão inseridos. A principal questão que deu origem a este estudo é saber quais as implicações existentes entre o trabalho com gêneros discursivos, proposto pelos PCN, e a formação do professor de Língua Portuguesa. Na tentativa de responder a essa questão direcionamos nosso olhar através das lentes teórico-metodológicas das teorias enunciativo-discursiva (Bakhtin), e sociointeracionista (Vygotsky), por acreditarmos que ambas representam também uma mudança paradigmática, fruto de suas insatisfações e críticas ao objetivismo ampliando o conceito de ciência a partir de um novo olhar sobre a forma de conceber e interpretar os fatos humanos, um olhar que inclui e valoriza as dimensões ético e estética. Os gêneros discursivos e Bakhtin: abrindo novos caminhos Refletir sobre a linguagem é ter à frente um universo de possibilidades. Podemos seguir pelos mais diferentes caminhos, pois todos eles revelam a importância do estudo da linguagem em qualquer área do conhecimento, pois estudá-la é estudar o homem, suas relações sociais, sua história. Dentre os estudiosos da linguagem destaca-se o nome do russo Mikhail Bakhtin, que, com sua teoria do enunciado concreto e dos gêneros discursivos, tem cada vez mais ocupado espaço nas discussões e nos estudos lingüísticos contemporâneos. O pensamento bakhtiniano, em sua perspectiva dialógica e sócio-histórica da linguagem, constitui os pilares do presente trabalho, que tem o conceito de gêneros do discurso, tal como postulado pelo filósofo russo, como norteador de nossa caminhada e das análises a serem realizadas, uma vez que tal conceito tornou-se um dos objetos de ensino-aprendizagem de língua materna no Brasil, a partir da elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1998: 23): Os textos organizam-se sempre dentro de certas restrições de natureza temática, composicional e estilística, que os caracterizam como pertencentes a este ou aquele gênero. Desse modo, a noção de gênero, constitutiva do texto, precisa ser tomada como objeto de ensino. Para Bakhtin (1997), a linguagem está relacionada a todas as esferas da atividade humana, pois, sempre que utilizamos a língua, independentemente de quem o faz ou da esfera em que se encontra, o fazemos em forma de enunciados, sejam eles orais ou escritos. Os enunciados, apesar de serem únicos e não reiteráveis, encerram em si especificidades da esfera na qual circulam, compondo assim “tipos relativamente estáveis”, que Bakhtin denomina “gêneros do discurso”. As especificidades e as finalidades de cada esfera de atividade humana, presentes nos enunciados, são observadas através da tríade que compõe o gênero: o conteúdo temático, o estilo e a estrutura composicional. Essas partes são indissociáveis e determinadas em função da vontade discursiva do falante ao eleger determinado gênero e, principalmente, das especificidades das esferas de comunicação a que pertence tal gênero. O estudo dos gêneros é essencial, pois ao interagirmos em qualquer situação ou esfera, o fazemos através de determinados gêneros do discurso. Cada vez que escolhemos um gênero não fazemos antes uma classificação ou criamos um novo gênero. Apesar de sua plasticidade e relativa estabilidade, eles nos são dados. Nas palavras de Bakhtin (idem, p. 283): Nós aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de gênero e, quando ouvimos o discurso alheio, já adivinhamos o seu gênero pelas primeiras palavras, adivinhamos um determinado volume (isto é, uma extensão aproximada do conjunto do discurso), uma determinada construção composicional, prevemos o fim, isto é, desde o início temos a sensação do conjunto do discurso que em seguida apenas se diferencia no processo da fala. Se os gêneros do discurso não existissem e nós não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo do discurso, de construir livremente e pela primeira vez cada enunciado, a comunicação discursiva seria quase impossível. Defendemos o trabalho com gêneros discursivos por acreditarmos que, pelo seu caráter social, cultural e histórico, essa prática pode amenizar a lacuna existente entre as práticas de letramento propostas na esfera escolar e as específicas de outras esferas sociais, das quais os alunos fazem parte. Essa aproximação é essencial quando temos em mente o trabalho com a linguagem a partir do seu uso, como prática social, uma questão que nos coloca em consonância com as palavras de Kleiman (apud. MENDONÇA & BUNZEN, 2006, p. 17): (...) quanto mais a escola se aproxima das práticas sociais em outras instituições, mais o aluno poderá trazer conhecimentos relevantes das práticas que já conhece, e mais fáceis serão as adequações, adaptações e transferências que ele virá a fazer para outras situações da vida real. Quando tratamos dos gêneros, o fazemos na perspectiva discursiva, como proposto por Bakhtin (1997), mas faz-se necessário tecer um contraponto com outra vertente que também vem sendo discutida, pois está muito presente na formação e na prática de muitos professores, inclusive dos que participam deste estudo, e que trata da questão dos gêneros numa outra perspectiva, a textual. Gêneros discursivos e gêneros textuais: aproximações e distanciamentos A noção de gêneros da teoria bakhtiniana vem sendo retomada e reelaborada por diferentes correntes teóricas, dentre elas a que nos interessa nesse momento, dada a sua influência nos PCN (1998), é a corrente do Interacionismo Sócio-discursivo (FIGUEIREDO, 2005), representada por um grupo de pesquisadores da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra, destacando-se Bronckart, Schneuwly e Dolz. Esses autores adotam, diferentemente de Bakhtin (1997), a expressão ”gêneros de texto”. Essa escolha reflete um aspecto importante dessa teoria, pois nota-se que a preocupação está voltada para aspectos cognitivos relacionados à produção e organização interna dos textos. Para Figueiredo (2005)1, a descrição dos textos e dos gêneros, a busca por um modelo que represente as condições de produção e organização dos textos revelam que o foco parece estar na materialidade do texto, o que distancia essa teoria do pensamento bakhtiniano, voltado para a significação. Outra característica dessa corrente teórica levantada por Rojo (2005, p. 188) é a aproximação das “noções de gênero, texto e discurso, diluindo a existência social do gênero enquanto universal concreto”. Nesse sentido, é possível afirmar que reconhecer e compreender essa distinção é imprescindível para o trabalho com gêneros, já que o posicionamento frente a uma outra abordagem implicará sensivelmente no processo de ensino-aprendizagem, pois 1 A autora nos apresenta uma síntese que detalha essas distinções e que contribui para a compreensão das aproximações e distanciamentos entre essas duas correntes teóricas. se refletirá na ação didática. Essa questão nos remete ao foco de nosso estudo, a formação do professor de Língua Portuguesa e o trabalho com gêneros. As pedras no caminho da formação docente A incansável busca por um ensino de qualidade e por reformas na educação, a elaboração de documentos oficias, como os PCN, a criação de órgãos responsáveis pela avaliação, como o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e instituição de agências de controle, como o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), todos esses objetivos e ações não podem ser alcançados e efetivados sem uma adequada formação do professores. Não há como negar a necessidade de reformulação dos cursos e programas de formação docente, pois se alteraram os paradigmas da ciência, da tecnologia e das fronteiras do saber. Os alunos dos cursos de Letras não são mais os mesmos, a desvalorização da profissão docente e os baixos salários atraem alunos advindos de contextos com práticas precárias de leitura e de produção textual. No entanto, esses cursos ainda permanecem presos às suas “grades curriculares”, preocupadas com a reprodução e acumulação do saber. Essa abordagem reprodutiva, segundo Castro e Romero (2006, p. 127), “não é conducente à construção da criticidade, nem de um sujeito capaz de lidar com um mundo em constante transformação, em que – marca de novo milênio – tudo não tem a característica estável do ser, mas se equilibra na dinâmica do estar”. Outro ponto a ser questionado é a formação continuada dos professores, oferecida pelos governos e que são marcadas pela desarticulação e descontinuidade, principalmente em virtude das mudanças de planos a cada troca de governo. À luz desse cenário encontram-se os professores de LP, sempre em constante pressão, frente a uma instabilidade desconcertante e que, embora munidos de grande preocupação em melhorar sua ação didática, parecem atravessar uma crise de identidade. Os professores estão diante de um novo desafio, novos paradigmas são elaborados para o ensino de LP, mas esses profissionais estão preparados para essas mudanças? Eles compreendem crítica e teoricamente o que a eles é “proposto” como parâmetro? A sua formação possibilitou sua autonomia para efetivar esse trabalho em sala de aula? Essas reflexões aliadas às perguntas de pesquisa apresentadas anteriormente, nos levaram a uma outra realidade: a sala de aula. Os encontros Sob as lentes teórico-metodológicas que nos guiaram, partimos para a pesquisa, ainda em fase de análise, razão pela qual apresentaremos observações parciais de nossa investigação. As colaboradoras, um grupo de quatro professoras de Língua Portuguesa, atuam em escolas das redes municipal e estadual de ensino das cidades de Cuiabá e Várzea Grande, no Estado de Mato Grosso. Os critérios utilizados para a escolha dos sujeitos de pesquisa foram o fato de as professores estarem atuando na disciplina LP, realizarem o trabalho com gêneros, pertencerem ao quadro efetivo da escola e aceitarem participar da pesquisa. A metodologia utilizada foi a pesquisa qualitativa e a coleta de dados aconteceu em momentos distintos. Inicialmente, foram realizadas entrevistas com as professoras, juntamente com a aplicação de um questionário. Em um segundo momento, assistimos às aulas de cada professora, registrando os dados através da observação participante. Após a observação das aulas, realizamos outra entrevista com as professoras, discutindo alguns pontos levantados durante as aulas e o trabalho com gêneros discursivos. Dentre os aspectos observados, podemos afirmar que as professoras não tiveram acesso à teoria dos gêneros discursivos e o contato com a teoria dos gêneros se deu na perspectiva textual, em cursos de formação continuada, prática que é evidenciada na sala de aula, permeada por inúmeras dúvidas, incertezas, e que será discutida em outro momento. Como a análise ainda não foi concluída, queremos destacar e nos deter em um aspecto que se revelou essencial para nossa pesquisa, as diferentes concepções das professoras acerca do papel do professor de Língua Portuguesa na atualidade. Vejamos alguns segmentos: P1: Preparar o educando para a profissionalização (...) Os professores têm buscado fazer seu papel desmistificando a Língua Portuguesa, trazendo-a para mais próximo do aluno. P2: O papel do professor é fazer com que nossos alunos sejam capazes de ler, escrever, interpretar textos e sejam também cidadãos críticos. P3: (...) O professor de Língua Portuguesa é um mediador da comunicação, o nosso papel é mostrar aos nossos alunos a importância de se conhecer as variantes lingüísticas na comunicação. P4: É o papel de, primeiramente, alguém em quem os alunos confiam, uma vez que muitos alunos chegam ao 6º ano soletrando e têm vergonha de ler ou escrever (...) além da confiança na pessoa do professor, é necessário que confiem no profissional, aquele que dará a ele condições de incluir-se. Percebemos além da preocupação com o ensino, o reflexo dos discursos oficiais que permeiam a área educacional, a preocupação com o reconhecimento da diversidade lingüística, com a questão afetiva, ressaltando a confiança no profissional e na pessoa do professor e, ainda, com a inclusão, termo que vem sendo muito usado nas propagandas dos órgãos governamentais, mas que pouco se percebe na prática efetiva. Observamos as múltiplas funções que devem ser assumidas pelo professor em função das exigências do mundo atual. Além de se adaptar às novas tecnologias, ele precisa, segundo Silva et al (apud, CORACINI, 2003, p. 245), “ter conhecimentos de psicologia, uma sensibilidade e observação aguçadas para compreender as dificuldades dos alunos e as diversas situações em que se encontram (...)”. Esse acúmulo de funções gera dificuldades e incertezas, pois coloca em confronto a imagem idealizada do professor, o ser vocacionado, detentor do saber, disposto a ajudar a resolver os mais diversos problemas dos alunos, com a dura realidade, que traz um profissional desvalorizado, com uma carga excessiva de trabalho, muitas vezes em condições precárias, perdendo sua autoridade e sua autonomia em função de uma formação cada vez mais questionada. Em meio a essa tensão, esses profissionais continuam a caminhada, tentando fazer o melhor possível entre a frustração diante do modelo ideal, a incerteza na efetivação dos parâmetros impostos oficialmente (por vezes, sem compreendê-los teórica e criticamente) e os momentos solitários de alegria e perseverança quando aquele aluno, enfim, mostra que realmente aprendeu. Considerações finais Diante disso, reiteramos a necessidade de repensar a formação, tanto inicial quanto continuada, pautada sempre pela prática reflexiva por parte do professor, amparada por uma estrutura institucional que possibilite essa reflexão. É, sem dúvida, uma situação complexa. Temos, sim, um novo paradigma para o ensino de LP, mas para efetivar essa mudança é necessário muito mais que um documento oficial. É necessário não apenas repensar os cursos de graduação e a relação teoria-prática através da transposição didática, como também redefinir os programas de formação contínua oferecidos pelas instâncias do governo. É fundamental que esses programas de formação tenham como objetivo promover a educação e não as ações de um determinado governo, de forma que sejam articulados, contínuos e que ofereçam aos professores não modelos e receitas, mas, principalmente, suporte teórico para que possam fundamentar sua ação docente e refletir sobre sua prática na sala de aula. Por fim, porém não menos importante, há que se lembrar do importante papel das universidades e das pesquisas acadêmicas nesse contexto, uma vez que através do diálogo com os professores é possível considerar suas necessidades de conhecimento e contribuir para a melhoria de sua formação. Referências bibliográficas BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais para 3º e 4º Ciclos do Ensino Fundamental - Língua Portuguesa. Brasília, DF: MEC/SEF, 1998 CASTRO, S. T. R., SILVA, E. R. (orgs.) Formação do profissional docente: contribuições de pesquisas em Lingüística Aplicada. Taubaté, SP: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2006. CORACINI, M. J. R. F. Subjetividade e identidade do (a) professor (a) de português. In: CORACINI, M. J. R. F. (org.) Identidade & discurso: (des)construindo subjetividades. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003. FIGUEIREDO, L. I. B. Gêneros Discursivos/Textuais e Cidadania: Um estudo comparativo entre os PCN de Língua Portuguesa e os Parâmetros em Ação. Dissertação de Mestrado, PUC – SP/LAEL, 2005. MENDONÇA, M.; BUNZEN, C. Sobre o ensino de língua materna no ensino médio e a formação de professores: introdução dialogada. In: BUNZEN, C.; MENDONÇA, M. (orgs.) Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.