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Maria Angélia Teixeira
A VIOLÊNCIA NO DISCURSO CAPITALISTA: UMA LEITURA PSICANALÍTICA
TESE apresentada ao Programa de PósGraduação em Teoria Psicanalítica, do Instituto
de Psicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como requisito parcial à obtenção do
título de Doutor.
ORIENTADORA: Tânia Coelho dos Santos
Rio de Janeiro
2007
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Maria Angélia Teixeira
A VIOLÊNCIA NO DISCURSO CAPITALISTA: UMA LEITURA PSICANALÍTICA
Tese submetida ao corpo docente da Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de
Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do grau de Doutor.
Aprovada em 29 de outubro 2007.
________________________________________________________
Profª. Drª Tânia Coelho dos Santos - Orientador
________________________________________________________
Profª. Drª Angélica Bastos Grimberg
_______________________________________________________
Profª. Drª Ana Maria Rudge
______________________________________________________
Profª. Drª
Maria Anita Carneiro Ribeiro
________________________________________________________
Profª. Drª Sonia Alberti
Rio de Janeiro
2007
3
A Véra Motta, pela preciosa contribuição.
4
AGRADECIMETOS
À Profª. Drª. Tania Coelho dos Santos, pela rigorosa orientação acadêmica e pelas lúcidas
lições de psicanálise.
À Profª. Drª. Angélica Bastos Grinberg, pelo debate generoso.
Aos professores da Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica.
A Jairo Gerbase, meu marido, pelo apoio incondicional.
Aos colegas do Campo Psicanalítico, pela inestimável interlocução.
Aos queridos amigos e familiares, pela carinhosa tolerância.
A Henrique e Caio, pela solidariedade.
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RESUMO
Esta tese tem a finalidade de analisar a dimensão subjetiva da violência, especialmente a que
se apresenta no discurso do capitalista. Foram adotadas as teorias da pulsão destrutiva e do
supereu formuladas por Sigmund Freud e as teorias dos discursos e do gozo formulada por
Jacques Lacan. Três vetores orientam esta pesquisa: o primeiro está relacionado aos
fundamentos teóricos da constituição subjetiva da violência; o segundo está destinado a
identificar a violência contemporânea como índice da mutação subjetiva produzida pelo
discurso da tecnociência capitalista; o último tem o propósito de analisar e confrontar o poder
de intervenção do discurso psicanalítico frente às manifestações de violência na
contemporaneidade. O mal-estar na civilização que Freud atribuiu à pulsão de morte e ao seu
correlato, o supereu, foi por Lacan atribuído aos avatares dos quatro discursos (do mestre; da
universidade; da histérica; do psicanalista) e suas modalidades de ordenação do desejo e do
gozo nos laços sociais. A violência que é produzida pelo quinto discurso, que é o da
tecnociência capitalista, convoca a ética da psicanálise a uma nova leitura sobre suas
causalidades, seus efeitos e incidências nos laços sociais. A oposição do discurso do mestre,
ao do capitalismo tem a finalidade de confrontar a violência instituída e instituinte do discurso
do mestre (discurso fundante da subjetividade) com a violência que se apresenta como
mutação subjetiva, ruptura dos laços sociais e desregulação do gozo no discurso do capitalista.
A oposição do discurso do capitalista ao do psicanalista tem a finalidade de rediscutir sua
evidência clínica, bem como a participação do psicanalista na construção da atualidade. A
aposta psicanalítica de reinventar o mundo com o vigor das palavras, relançando o gozo da
vida, constitui-se o ponto de partida desta tese.
Palavras-Chaves: Psicanálise; Violência; Destrutividade; Supereu; Pulsão; Gozo; Discursos.
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RESUMÉ
Cette thèse a pour but d‘analyser la dimension subjective de la violence, particulièrement
celle qui se présente dans le discours capitaliste. Pour l‘analyser, nous avons adopté les
théories de la pulsion de destruction et du surmoi formulées par Sigmund Freud et les théories
des discours et de la jouissance formulées par Jacques Lacan. Trois vecteurs orientent cette
recherche: le premier est en lien avec les fondements théoriques de la constitution subjective
de la violence; le second est destiné à identifier la violence contemporaine comme indice de la
mutation subjective produite par le discours de la techno-science capitaliste; le dernier a pour
objet d‘analyser et de confronter le pouvoir d‘intervention du discours psychanalytique face
aux manifestations de violence dans la contemporanéité. Le malaise dans la culture que Freud
a attribué à la pulsion de mort et à son corrélat, le surmoi, a été attribué par Lacan aux avatars
des quatre discours (du maître; de l‘université; de l‘hystérique; du psychanalyste) et à leurs
modalités d‘ordonnancement du désir et de la jouissance dans les liens sociaux. La violence
qui est produite par le cinquième discours, qui est celui de la techno-science capitaliste,
interpelle l‘éthique de la psychanalyse pour une nouvelle lecture de ses causalités, de ses
effets et de ses incidences sur les liens sociaux. L‘opposition du discours du maître à celui du
capitaliste a pour but de confronter la violence instituée et instituante du discours du maître
(discours fondateur de la subjectivité) avec la violence qui se présente comme mutation
subjective, rupture des liens sociaux, dérèglement de la jouissance dans le discours capitaliste.
. L‘opposition du discours du capitaliste à celui du psychanalyste a comme objectif de
remettre en discussion son évidence clinique, de même que la participation du psychanalyste à
la construction de l‘actualité. Le pari psychanalytique de réinventer le monde avec la vigueur
des mots, relançant la jouissance de la vie, constitue le point de départ de cette thèse.
Mots-clés: Pscychanalyse; Violence; Destructivité; Surmoi; Pulsion; Jouissance; Discours.
7
SUMÁRIO
p.
INTRODUÇÃO
8
1
VIOLÊNCIA: AVATAR DA PULSÃO DESTRUTIVA
12
1.1
VIOLÊNCIA, UM DESAFIO CONTEMPORÂNEO À PSICANÁLISE
12
1.2
O PODER DA VIOLÊNCIA EM FREUD
16
1.3
PRIMARIEDADE DA PULSÃO DESTRUTIVA
19
1.4
VICISSITUDES DA PULSÃO DESTRUTIVA
25
1.5
A VIOLÊNCIA DO SUPEREU FREUDIANO
30
2
VIOLÊNCIA, AVATAR DO DISCURSO
37
2.1
PULSÃO DE MORTE E IMPERATIVO DE GOZO DO SUPEREU
37
2.1.1
Pulsão de morte e supereu
37
2.1.2
Imperativo de gozo do significante mestre S1 e do objeto a
48
2.2
O DISCURSO DO CAPITALISTA E A DESREGULAÇÃO DO GOZO
59
2.2.1
O discurso mestre: o advento do sujeito e a recuperação do gozo
61
2.2.2
O discurso do capitalista: uma mutação
67
2.2.3
A violência no discurso capitalista: laço social ou ruptura?
73
3
INCIDÊNCIAS DA VIOLÊNCIA NA CLÍNICA PSICANÁLITICA
82
3.1
VOZES DA VIOLÊNCIA
82
3.1.2
Vozes e silêncios da violência
85
3.2
90
3.2.1
SUPEREU E DISCURSOS: MANIFESTAÇÕES SUBJETIVAS DA
VIOLÊNCIA
A culpa: responsabilidade e gozo
3.2.2
Masoquismo: erótica mortífera do supereu
97
3.2.3
Reação terapêutica negativa: comércio de gozo
102
3.3
104
3.3.1
DISCURSO ANALÍTICO E DISCURSO CAPITALISTA: IMPASSES E
PERSPECTIVAS
Discursos e produtos: oposição
3.3.2
O discurso psicanalítico, uma forma de resistência?
108
3.3.3
Violência: realidade de discurso
112
3.3.4
A participação do psicanalista na construção da atualidade
116
4
CONSIDERAÇÕES FINAIS
121
REFERÊNCIAS
124
93
105
8
INTRODUÇÃO
De reconhecida gravidade e extensão na contemporaneidade, a violência tem sido
tratada em seus múltiplos aspectos por distintos campos do conhecimento. Limitamos-nos
aqui a analisar a dimensão subjetiva da violência, na perspectiva estrita da teoria e da clínica
psicanalítica. Para estudá-la, recortamos alguns aspectos conceituais da obra de Freud e
Lacan.
O início de nossa pesquisa foi determinado, de um lado, pela perplexidade e
impotência em que se vê, inicialmente, um analista, frente às experiências de extrema
violência relatadas por analisandos. De outro, por inquietantes indagações psicanalíticas
relativas aos impasses gerados pela violência na contemporaneidade. É a violência um
conceito psicanalítico? De que espécie de violência pode a psicanálise falar? É o ser humano
essencialmente violento? É a violência um fenômeno inerente à vida psíquica ou pura
patologia? Faz parte do laço social ou é ruptura? Inata ou transmitida? O que mudou da
violência na contemporaneidade? Há recursos técnicos psicanalíticos apropriados para
abordá-la?
Três vetores orientaram nossa pesquisa: o primeiro, relacionado aos fundamentos
teóricos da constituição subjetiva da violência; o segundo, destinado a identificar a violência
contemporânea como índice da mutação subjetiva produzida pelo discurso da tecnociência
capitalista; e, por fim, o propósito de analisar e confrontar o poder de intervenção do discurso
psicanalítico frente às manifestações de violência na atualidade.
A psicanálise define a violência como um modo paradoxal de satisfação pulsional
determinante da constituição da subjetividade e da construção/desconstrução da cultura, como
se pode verificar no exercício das leis, nas guerras, nos sacrifícios e rituais religiosos, nos
dispositivos do poder e no cotidiano das relações humanas. Inerente ao laço social, a violência
se encontra na origem da criação das leis, dos contratos e das organizações sociais.
Desde o final do século XX, vêem-se os psicanalistas obrigados a proceder a uma
revisão reflexiva acerca das múltiplas dimensões da violência, reveladora de uma nova
realidade instaurada pelo discurso capitalista. A subjetividade de hoje não pode ser explicada
apenas com base nas teorias formuladas num período histórico marcado pela determinação de
quatro discursos, a saber, o do mestre, o da histérica, o da universidade e o da psicanálise. A
9
violência que se apresenta na contemporaneidade interpela a ética da psicanálise a uma nova
leitura sobre suas causalidades, seus efeitos e incidências nos laços sociais.
É preciso evidenciar que a violência, além de uma aberração psicopatológica, mal
incurável no ser humano, como pode parecer à primeira vista, é uma vicissitude da vida
mental, inscrita nas dimensões de gozo pulsional dos discursos, e que se modifica com a
civilização.
Para analisá-la, adotaremos as teorias da pulsão destrutiva e do supereu formuladas
por Sigmund Freud e as teorias dos discursos e do gozo formulada por Jacques Lacan.
É necessário salientar que, para abordar a violência hodierna, torna-se imprescindível
analisar como ela é produzida no discurso capitalista. Contudo, escapa à nossa pretensão uma
análise das origens do capitalismo, sem descuidarmos, entretanto, de verificar as razões que
levaram a humanidade a construir uma sociedade, cuja organização política, social e
econômica trabalha, escandalosamente, contra a integridade e a dignidade do ser humano e a
preservação da vida na Terra.
Ao longo do trabalho, procuramos registrar a exacerbação da pulsão destrutiva
desfusionada da pulsão erótica, vicissitude do supereu e do real desarticulado dos registros
simbólico e imaginário, além de sua intensificação com o crescimento da tecnociência e do
capitalismo. A violência globalizada não confirmou a projeção feita por Freud em ―Mal-estar
da civilização‖, segundo a qual a civilização se faz às custas da redução da pulsão destrutiva.
A fórmula se inverteu, e hoje, testemunhamos o estrondoso crescimento da tecnociência
capitalista, que produz epidemicamente a violência.
No primeiro capítulo, intitulado ―Violência: avatar da pulsão destrutiva‖, abordaremos
a constituição subjetiva da violência, de acordo com os pressupostos da segunda tópica
freudiana, em dupla perspectiva: do conceito de pulsão de morte ou de pulsão destrutiva,
como Freud preferiu chamar em 1930, e do conceito de supereu.
Na primeira delas, a violência é apontada como advinda de três vicissitudes da pulsão
de morte formuladas por Freud, nos seguintes termos: a união de Eros com Tânatos, no
sadismo; Tânatos domado e inibido em sua finalidade, portanto sublimado; e a cega fúria
narcísica de destrutividadade, de fundamental importância para o nosso trabalho, por
apresentar a pulsão de morte desfusionada da pulsão erótica.
Na segunda perspectiva, a violência advém dos avatares do supereu, nova instância do
aparelho psíquico, responsável pelos destinos da pulsão de morte, paradoxalmente instituída e
instintuinte da subjetividade e das leis da civilização.
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A concepção de pulsão destrutiva e de supereu, enquanto conseqüências diretas do
―Além do princípio do prazer‖, produziu avanços teóricos de grande valor para analisar
problemas clínicos, especialmente aqueles relativos às violências contemporâneas, seja no
âmbito das manifestações sociais, seja no âmbito das manifestações estritamente subjetivas.
No segundo capítulo, intitulado ―Violência, avatar dos discursos‖, analisaremos a
violência de acordo com as proposições teóricas de J. Lacan, com especial recorte dos
conceito de pulsão de morte, redefinida a partir da categoria do real, e de supereu, redefinido
como imperativo de gozo e correlato da castração nos laços sociais do discurso do mestre.
Se, para Freud, o supereu é paradoxal porque é simultaneamente herdeiro do complexo
de Édipo (do Nome-do-Pai) e do Isso (pulsão destrutiva), para Lacan pode-se dizer que o
supereu é paradoxal porque é herdeiro do S1 (significante-mestre) posicionado no lugar do
comando do discurso do mestre e do objeto a como voz.
O mal-estar na civilização que Freud atribuiu à pulsão de morte e ao seu correlato, o
supereu, foi por Lacan atribuído aos avatares dos quatro discursos e suas modalidades de
ordenação do desejo e do gozo nos laços sociais.
O surgimento do quinto discurso, que é o da tecnociência capitalista, transformou o
mal-estar em devastação. Por esta razão, confrontaremos a violência instituída e instituinte do
discurso do mestre, discurso fundante da subjetividade, regulada pela perda e recuperação de
gozo, nos termos do sujeito e do objeto a, com a violência que se apresenta como mutação
subjetiva, ruptura dos laços sociais, como desregulação do gozo no discurso do capitalista.
No capítulo três, intitulado ―Incidências da violência na clínica psicanalítica‖,
refletiremos sobre aspectos clínicos relativos às vozes e aos silêncios da violência;
confrontaremos impasses e perspectivas do discurso do capitalista com o discurso
psicanalítico e concluiremos evocando a participação do psicanalista na construção da
atualidade.
Dividimos a violência que comparece na clínica psicanalítica em dois grandes planos.
Aquela que poderia ser chamada de social, por se apresentar entre corpos, e aquela que
poderia ser chamada de violência do sujeito, por tomar-se a si próprio, em sua divisão como
outro ou como objeto. Queremos chamar atenção para esta modalidade de violência que,
sendo invisível para o mundo, comparece como pano de fundo na clínica psicanalítica. A
reação terapêutica negativa lhe é exemplar, inclusive para confirmar a primariedade do
masoquismo e do supereu e desvelar a lei insensata, feroz e cruel que o rege. Esta é a matriz
que regula a violência nos quatro discursos; o quinto discurso carece de revisão a esse
respeito.
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Adotamos a proposição feita por Lacan de que o discurso psicanalítico dispõe de
recursos para interpretar os desfuncionamentos subjetivos do discurso do capitalista advindos
dos desvios da relação da ciência com o gozo do saber. Há mais de meio século, o saber
transformado em mercado e a apropriação da mais-valia, pelo capitalista dão a medida da
deriva do sujeito, do objeto, do grande Outro e do saber como privilegiado meio de gozo.
Consideramos ainda, que continua válida a aposta psicanalítica de reinventar o mundo
com o vigor da palavra que supõe saber ao Outro. Na contramão do capitalismo, o método
psicanalítico, sustentado no amor ao saber do inconsciente, tenta resgatar a relação do saber
com a verdade, relançando o gozo da vida.
12
1 VIOLÊNCIA: AVATAR DA PULSÃO DE MORTE
Recorreremos, inicialmente, ao conceito de pulsão formulado por Freud para analisar a
violência segundo a teoria psicanalítica.
Pretendemos fazer uma leitura psicanalítica da violência, desmistificando os
preconceitos, inclusive teóricos e psicopatológicos com os quais habitualmente é abordada,
coisa bastante compreensível, dado o horror que ela própria dissemina, para, de forma
conceitual, poder pensar a respeito da sua constituição, do seu manejo técnico na clínica e se
possível, colaborar com as estratégias coletivas de intervenção sobre a mesma.
1.1 VIOLÊNCIA, UM DESAFIO CONTEMPORÂNEO À PSICANÁLISE
Identificada como um dos graves problemas da atualidade, a violência diz respeito a
todos os segmentos da sociedade, e, embora não tenha ocupado grande parte da reflexão
psicanalítica, não exime os analistas deste debate, posto que tratam, diariamente, do mal-estar
próprio à violência que assola nossos dias.
O laço social produzido pelo discurso psicanalítico, legitimado pela prática de uma
análise, autoriza e convoca os analistas a se pronunciarem amplamente sobre os impasses da
civilização, a exemplo da violência na contemporaneidade, valendo lembrar a afirmação de
Lacan: ―[...] este discurso merece ser elevado à altura dos laços mais fundamentais dentre os
que permanecem para nós em atividade.‖ (LACAN, 1993, p. 31).
Os psicanalistas estão aí para testemunhar que a clínica psicanalítica continua se
apresentando como um eficaz recurso simbólico na abordagem do mal-estar da
contemporaneidade, e que o discurso psicanalítico entrou na cultura operando mudanças
cruciais nos demais discursos e nas diversas áreas do saber.
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Também são os analistas testemunhas da extensão dos efeitos subjetivos e da produção
de novos sintomas gerados pelo discurso do capitalista, devendo-se aí incluir a violência, e
dos esforços deste para produzir o pensamento único e tornar-se discurso hegemônico.
Portanto, nenhuma atitude isenta de responsabilidade é cabível em nome de qualquer suposto
rigor conceitual.
Para estudar a violência, foi necessário recorrer inicialmente à pulsão de morte,
chamada por Freud de pulsão destrutiva em 1930 no artigo, ―O Mal-estar na civilização‖. Ao
tecer considerações sobre o supereu, Freud examina a violência que o sujeito dirige contra si
próprio, e não apenas em direção a outrem, como somos facilmente levados a pensar,
alterando radicalmente, a concepção psicanalítica sobre a violência.
Há mais violência hoje que antes? Quanto a esta pergunta, importa antes de tudo dizer
que há hoje discursos sobre a violência, o que a faz existir de um novo modo, diferentemente
da Antiguidade, quando os atos de violência se explicavam por suas tradições. Hoje, a lei já
não mais outorga amplos direitos sobre a vida, nem ao pai de família, nem à Igreja, restando
algum poder sobre ela ao Estado, quando faz uso da pena de morte e das guerras.
É preciso distinguir a que tipo de violência o discurso do psicanalista dá acesso, em
sua prática. É igualmente necessário saber da amplitude e da extensão das violências, para
além da clínica, a cada época.
Existem três tipos de violência, segundo Soler (2003a, p. 9-18, tradução nossa):
A violência instituída, aquela da ordem, sem oposição entre esta e a lei, entre
o direito e a violência que se pode até pensar, necessária, sendo a própria
regra, de certo modo, uma forma de violência à qual nos submetemos porque
somos civilizados; a da desordem que se apresenta como barbárie, e a
violência instituinte, que desde Freud está colocada entre o sintoma e suas
condições culturais, sendo o sintoma o que não funciona bem na ordem da
civilização, o que faz obstáculo à intenção de felicidade do princípio do
prazer.
Este terceiro tipo proposto pela autora diz respeito à dimensão pulsional da violência,
razão pela qual servirá de referência para nossa tese.
Neste momento histórico é preciso reinterpretar a violência, especialmente a violência
globalizada, cotidiana, repetitiva, nem sempre letal, muitas vezes invisível, tomando-a não
apenas no plano objetivado da realidade, mas da subjetividade, de acordo com as premissas
psicanalíticas.
14
A psicanálise tem contribuições a fazer a respeito das suas causalidades e dos seus
mecanismos. Ademais, é da sua responsabilidade fazê-lo ante os novos sintomas que vão
surgindo ao longo do exercício clínico. A violência generalizada se apresenta na atualidade
como um novo fenômeno inclassificável, ante o qual os psicanalistas devem pronunciar-se,
somando-se a outros campos do conhecimento.
Seria possível analisar a violência segundo alguns conceitos freudianos e lacanianos.
Tem-se, por exemplo, a fantasia, especialmente aquela que Freud isolou clinicamente, como
fantasia fundamental de uma criança espancada; a pulsão, enquanto vicissitude da pulsão de
morte, isto é, gozar da destruição; a identificação, enquanto método inconsciente que reproduz
um significante mestre; e os conceitos de ato, de compulsão a repetição e de passagem ao ato.
Tomando-se como referência a proposição lacaniana que diz: após um ato não se é
mais o mesmo, no caso da violência, trata-se de um ato radical que promove a devastação
subjetiva, na dupla posição daquele que comete o ato e daquele que é alvo do mesmo.
Poderíamos ainda estender à violência a definição lacaniana da angústia: a violência é
um ato que não engana. ‗Ato que não engana‘ porquanto é do real, definido com a categoria
da impossibilidade. O Real, ao contrário do universal, é da ordem do não-todo; impossível de
dizer, inefável; impossível de escrever, sempre no limite do sentido, ou no puro sem sentido e
sem qualquer equivalência com a noção de realidade.
Neste exercício teórico para abordar psicanaliticamente a violência, é preciso também
distingui-la dos fenômenos do ódio, do sadismo e da agressividade, pois, no limite, a
violência resulta da desfusão das pulsões de morte e de vida, (erótica), de acordo com o
pensamento freudiano da segunda tópica.
O ódio é uma das três paixões do ser, além do amor e da ignorância. É um sentimento
acompanhado de mais lucidez que o amor e segundo Lacan (1979b), não deve ser confundido
com o campo da pulsão.
A agressividade, fundamentalmente, se define por sua relação especular, imaginária,
com o outro semelhante. Suas origens se dão, precocemente, no estádio do espelho e fazem
parte do narcisismo e da constituição do eu.
O sadismo é uma vicissitude bem particular da pulsão de morte ou de destruição,
porque está amalgamada com a pulsão de vida, erótica, e, como bem se sabe, presente não
apenas nas práticas eróticas que infligem sofrimentos a outrem, mas nas fantasias sexuais dos
15
seres falantes. Consta da série das violências, embora não seja seu melhor representante na
atualidade.
Entretanto, neste trabalho, recorreremos fundamentalmente aos conceitos de pulsão de
morte e supereu segundo o pensamento de Freud e à teoria dos discursos e do gozo, de
Jacques Lacan, para analisar a dimensão subjetiva da violência no seu aspecto instituinte e
instituída.
Afora certos esforços para localizar algum trauma primevo responsável pelo
aparecimento da violência, há teorias que defendem sua origem antinatural no homem, por
considerá-la ―o negativo absoluto da razão‖, um modo ―irracional‖ de funcionamento, o que é
refutado por Jurandir Freire Costa (1984, p. 12), ao identificar esta posição como não isenta
de preconceitos.
Este, aliás, foi um dos aspectos bem explorados por Lacan (1977): exaltar a
radicalidade do pensamento de Freud, enquanto inventor de uma nova razão, ao formular o
conceito de inconsciente como uma extrapolação ao conceito de pulsão, enquanto
ordenadores do aparelho psíquico.
Um dos objetivos desta pesquisa é demonstrar que a violência se inscreve nestas
premissas, que definem o aparelho psíquico segundo a razão freudiana. A violência é um dos
fenômenos que torna evidente ser a pulsão não irracional, nem o negativo absoluto da razão.
Ao contrário, ela revela a existência de uma outra razão para além da razão cartesiana, que se
sustenta fora da lógica da consciência, porque se inscreve na lógica do inconsciente e da
pulsão, de acordo com a tópica freudiana. De acordo com a álgebra lacaniana, a violência é
um modo de gozar que evidencia a inclusão do sem sentido, do nonsense no campo do
sentido, e o real como impossibilidade na estrutura de linguagem.
Em sua releitura de Freud, Lacan estabelece como ponto de partida uma mudança de
perspectiva fundamental: originário não é o homem natural, nem o homem determinado pela
filogenética (COELHO DOS SANTOS, 2002), porém o homem inscrito na estrutura
significante da linguagem e do laço social, do discurso, desnaturalizado por sua condição de
ser falante, de onde advém o sujeito desejante do inconsciente em sua realidade dividida,
entre seu ser de falta e seu ser de gozo.
A perspectiva psicanalítica de tratar o aparelho psíquico como pulsional, conforme
procedeu Freud e como aparelho de gozo, conforme Lacan não adere à categoria ética do bem
16
supremo de Aristóteles. Portanto, a ética com a qual abordaremos a violência estará
unicamente pautada pela ética que rege a clínica psicanalítica.
Estabelecidas as premissas que orientam este trabalho, passarei a abordar os
pressupostos teóricos formulados por Freud, necessários para definir a violência como uma
vicissitude da pulsão, condição indispensável para analisar a violência generalizada que
constitui a barbárie contemporânea.
1.2 O PODER DA VIOLÊNCIA EM FREUD
O senhor [Einstein] começou com a relação entre o direito e poder. Não se
pode duvidar de que seja este o ponto de partida correto de nossa
investigação. Mas, permita-me substituir a palavra ‗poder‘ pela palavra mais
nua e crua ‗violência‘ [Gewalt]? Atualmente, direito e violência se nos
afiguram como antíteses. No entanto, é fácil mostrar que uma se
desenvolveu da outra; e, se nos reportarmos às origens primeiras e
examinarmos como essas coisas se passaram, resolve-se o problema
facilmente. (FREUD, 1976m p. 246).
A pergunta feita por Albert Einstein a Sigmund Freud há mais de setenta anos, em
cartas trocadas entre ambos sobre o tema, como evitar a guerra, continua na ordem do dia –
pode-se mesmo dizer que todos os atuais movimentos sociais e políticos que lutam contra a
violência ou em nome da paz, igualmente se perguntam por que a guerra e como evitá-la. À
época, Einstein e Freud examinavam questões relativas a Primeira Guerra Mundial, época em
que as guerras eram localizadas no tempo e no espaço. Hoje, além das guerras pontuais, vivese um novo tipo de guerra permanente, configurada pelas diversas modalidades de violência
disseminadas globalmente e responsáveis pela barbárie contemporânea.
Inicio estas reflexões a respeito da violência globalizada que se apresenta na
atualidade, a partir das considerações feitas por Freud no entre - guerras, ocasião em que ele
se viu premido a refazer mais uma vez a teoria da pulsão, admitindo, não ter dimensionado
corretamente a extensão do poder das pulsões de morte, da destrutividade, e da crueldade.
O pacifismo com o qual Freud se declarou a Einstein era reflexo, provavelmente, da
lucidez que possuía para reconhecer a condição humana, dividida entre Eros e Tânatos.
Embora partilhando o repúdio da maioria, Freud não escolheu esconder, ignorar ou denegar a
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presença da destrutividade no universo humano, mas ao contrário, ousou declarar a evidência
das violências reinantes, embora permanentemente camufladas por várias instâncias da
organização social, especialmente pelos fabricantes das armas e das guerras.
Freud declara ser impossível denegar o poder da violência, tanto quanto ignorar ser
este um dos elementos essenciais da história da cultura, como mostra o inesgotável espírito de
guerra dos seres falantes. E, ainda que, em muitas passagens tenha afirmado que a civilização
precisou dominar a violência para progredir, reconhece a inequívoca participação da violência
na construção da própria civilização e na inscrição das leis que tiveram como antecedente a
força bruta, da qual sempre se serviram.
Assim sendo, presentemente, parece estar condenada ao fracasso a tentativa
de substituir a força real pela força das idéias. Estaremos fazendo um cálculo
errado se desprezarmos o fato de que a lei, originalmente, era força bruta e
que, mesmo hoje, não pode prescindir do apoio da violência. (FREUD,
1976m, p. 251).
Sempre atento aos males da alma e da cultura, Freud escreve em 1920 o texto
paradigmático ―Além do princípio do prazer‖, no qual propõe um paradoxal aparelho psíquico
ordenado por duas pulsões contrárias, não mais sexuais e de autopreservação, como fizera em
1915, porém, de vida e de morte: a primeira une, é erótica, a segunda desagrega, é agressiva e
destrutiva.
Entretanto, são os textos escritos em 1929 e 1932, respectivamente, ―O mal-estar na
cultura‖ e ―Por que a guerra?‖, que trarão a noção de uma pulsão agressiva cujo fim estaria
identificado unicamente com a destruição. Freud declara ter resistido por longo tempo a
concluir que a pulsão de morte, ou da destrutividade poderia existir isoladamente, não
necessariamente fusionada com a pulsão de vida, ou pulsão erótica, como afirmara até então.
A confusão decorreu da extensão feita das características do sadismo em amalgamar as
vicissitudes da pulsão erótica, ou de vida, com aquelas da destrutividade, ou de morte, para
outras manifestações. Admite, neste sentido, a pura tendência à destruição dirigida contra o
mundo e os outros seres vivos, para além do par sadismo-masoquismo.
É preciso deixar claro que a pulsão de morte, tal como foi postulada nos anos 1920,
não é suficiente para dar conta da violência. Para abordá-la tal como se apresenta na pósmodernidade, é preciso ir à última teoria da desfusão pulsional, em que a pulsão de morte
opera isoladamente, sem qualquer fusão com a pulsão erótica, ou de vida.
18
Os argumentos necessários para definir a violência como um avatar da pulsão de
morte encontram-se no sexto capítulo do ‗Mal estar da civilização‘ (FREUD, 1974b). Ali
vamos encontrar reunidas o que poderíamos chamar as três vicissitudes da pulsão de morte na
teoria freudiana: a) a união de Eros com Tânatos no sadismo; b) Tânatos domado e inibido em
sua finalidade, portanto sublimado; c) a terceira, de fundamental valor para o nosso trabalho,
pode ser chamada de cega fúria de destrutividade.
Nada de harmonia no mundo do ser, se ele fala. Da paradoxal exigência de satisfação
da pulsão, concluído seu circuito, resta a impossibilidade de obtenção de satisfação plena.
Neste circuito, a pulsão de morte também se inscreve: ―Evidentemente, não é fácil aos
homens abandonar a satisfação dessa inclinação para a agressão. Sem ela, eles não se sentem
confortáveis.‖ (FREUD, 1974b, p. 136).
A resposta a Einstein mostra a radicalidade do pensamento freudiano sobre o poder da
violência: ―Já vimos que uma comunidade se mantém unida por duas coisas: a força da
violência e os vínculos emocionais (identificação é o nome técnico) entre seus membros.‖
(FREUD, 1976m, p. 251).
Na contramão do senso comum – tentando escapar da manipulação das ideologias
dominantes – Freud desconstrói o ideal universal do amor como único responsável pela união
das pessoas e dos grupos na construção da cultura, destacando a violência também como fator
de união. Curiosamente, divide a força dos grupos entre a violência e o amor:
A vantagem que um grupo cultural, comparativamente pequeno, oferece,
concedendo ao instinto agressivo um escoadouro sob a forma de hostilidade
contra intrusos, não é nada desprezível. É sempre possível unir um
considerável número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas
para receberem as manifestações de sua agressividade. (FREUD, 1976m,
p. 136).
Uma solução ao problema apresentada a Einstein: ―[...] como o senhor mesmo
observou, não há maneira de eliminar as inclinações agressivas dos homens. Pode-se tentar
desviá-los num grau tal que não necessitem encontrar expressão na guerra.‖ (FREUD, 1976m,
p. 255), seguramente não se efetivou, pois o inimaginável progresso científico e tecnológico
do século XX foi insuficiente para barrar as forças desagregadoras do homem na pósmodernidade. Ao contrário, a civilização disseminou a barbárie com muita tecnologia, em
lugar de desviar estas forças para outras finalidades, digamos, sublimadas ou recalcadas. São
19
facilmente observáveis e insanos os níveis de requinte alcançados pelas indústrias
armamentistas na confecção de armas de última geração, como digno de registro é o seu poder
de invenção de guerras na garantia de seu mercado.
1.3 PRIMARIEDADE DA PULSÃO DESTRUTIVA
Para demonstrar a força do argumento de Freud, quanto à primariedade da pulsão
destrutiva, destacarei algumas passagens que configuram o que designo a última teoria da
pulsão de morte na obra do autor, apresentada nos capítulos V, VI e VII do texto ―O mal-estar
na civilização‖, e cuja análise crítica permanece atual, guardadas as devidas circunstâncias
históricas. Algumas considerações e projeções do autor sobre o mal-estar na cultura não se
concretizaram, até porque os problemas da atualidade ganham velocidade e desdobramentos
que não se poderiam calcular, à época.
Freud demonstra a hipótese da autonomia da pulsão agressiva, competitiva, destrutiva,
feroz, cruel, violenta, de luta, precisamente chamada pulsão de morte, que não deixa de passar
pelos desfiladeiros do Outro. É preciso recorrer a Lacan para declinar o outro em todas as suas
possibilidades: do Autre (A), grande Outro ao ‗objeto a‘, passando pelo autre, semelhante
especular, imagem do outro, que se escreve ‗a‘; pelo Outro sexo, pelo corpo como Outro, pelo
Outro gozo, pela falta de um significante no Campo do Outro, e pelo Ideal do Outro,
Duas considerações a respeito do texto freudiano são dignas de nota. Primeiro o
emprego da palavra repúdio, para identificar a reação mais habitual das pessoas diante das
manifestações destrutivas, o que constitui forte razão para se distanciarem destas
manifestações, embora paradoxalmente sejam também por elas atraídas. Pode-se até observar
uma estranha satisfação no próprio repúdio, o que levaria a pensar na existência de certo
‗empuxo‘ à violência, e que pode ser observado na curiosidade manifestada pelas pessoas ao
passarem por acidentes no trânsito e no recorde de leituras das páginas policiais dos jornais. O
segundo aspecto a considerar diz respeito a identificar, ainda que de modo sutil, a violência a
uma verdade, sempre repudiada.
20
O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão
dispostas a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam
ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo
contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta
uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é,
para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas
também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a
explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo
sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhálo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo - Homo homini lupus. Quem,
em face de toda sua experiência da vida e da história, terá a coragem de
discutir essa asserção? Via de regra, essa cruel agressividade espera por
alguma provocação, ou se coloca a serviço de algum outro intuito, cujo
objetivo também poderia ter sido alcançado por medidas mais brandas. Em
circunstâncias que lhe são favoráveis, quando as forças mentais contrárias
que normalmente a inibem se encontram fora de ação, ela também se
manifesta espontaneamente e revela o homem como uma besta selvagem, a
quem a consideração para com sua própria espécie é algo estranho.
(FREUD, 1974b, p. 133).
Freud aponta a mútua hostilidade primária dos seres humanos, como fator ameaçador
da integração da sociedade civilizada, motivo pelo qual se cria, dentre outros, o ideal de ‗amar
ao próximo como a si mesmo‘, numa tentativa de abrandar esta hostilidade.
A existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós
mesmos e supor com justiça que ela está presente nos outros, constitui o
fator que perturba nossos relacionamentos com o nosso próximo e força a
civilização a um tão elevado dispêndio [de energia]. Em conseqüência dessa
mútua hostilidade primária dos seres humanos, a sociedade civilizada se vê
permanentemente ameaçada de desintegração. [...] vem daí, o mandamento
ideal de amar ao próximo como a si mesmo, mandamento que é realmente
justificado pelo fato de nada mais ir tão fortemente contra a natureza original
do homem [...] (FREUD, 1974b, p. 134).
O autor defende a necessidade de certa dose destas inclinações agressivas para
construir a civilização, ao dizer que seria injusto censurar a civilização por tentar eliminar da
atividade humana a luta e a competição, por serem estas indiscutivelmente indispensáveis.
(FREUD, 1974b, p. 134). Ao mesmo tempo, discorda dos argumentos comunistas que
defendem a propriedade privada como a maior causa promotora da destrutividade e
agressividade entre os homens, baseados na hipótese do homem inteiramente bom e bem
disposto para como seu próximo, corrompidos pela instituição da propriedade privada.
Freud verifica o equivoco do ideal comunista ao defender a abolição da propriedade da
riqueza privada – que confere poder ao indivíduo e o induz a maltratar o próximo, propondo,
em contrapartida, que toda a riqueza comum seja partilhada igualmente por todos,
21
eliminando-se, desse modo, a má vontade e a hostilidade entre os homens. Freud considera
este argumento uma simplificação do problema.
Não estou interessado em nenhuma crítica econômica do sistema comunista;
não posso investigar se a abolição da propriedade privada é conveniente ou
vantajosa. Mas sou capaz de reconhecer que as premissas psicológicas em
que o sistema se baseia são uma ilusão insustentável. (FREUD, 1974b, p.
135).
Quanto às teorias que defendem os fatores socioeconômicos como causas prioritárias
da violência em contraposição aos psíquicos, Freud adota uma atitude sem ilusões, afirmando
que a abolição da propriedade privada não eximirá o homem da sua agressividade e das
relações de poder entre eles.
A agressividade não foi criada pela propriedade. Reinou quase sem limites
nos tempos primitivos, quando a propriedade ainda era muito escassa, e já se
apresenta no quarto das crianças, quase antes que a propriedade tenha
abandonado sua forma anal e primária; constitui a base de toda relação de
afeto e amor entre pessoas. (FREUD, 1974b, p. 135).
De forma enigmática, o autor deixa uma única relação humana fora deste embate ―com
a única exceção, talvez, do relacionamento da mãe com seu filho homem.‖ (FREUD, 1974b,
p. 135). Numa outra passagem, acrescenta mais um aspecto importante à discussão, reiterando
sua posição:
Se eliminarmos os direitos pessoais sobre a riqueza material, ainda
permanecem, no campo dos relacionamentos sexuais, prerrogativas fadadas
a se tornarem a fonte da mais intensa antipatia e da mais violenta hostilidade
entre homens que, sob outros aspectos, se encontram em pé de igualdade. Se
também removermos esse fator, permitindo a liberdade completa da vida
sexual, e assim abolirmos a família, célula germinal da civilização, não
podemos, é verdade, prever com facilidade quais os novos caminhos que o
desenvolvimento da civilização vai tomar; uma coisa, porém, podemos
esperar; é que nesse caso, essa característica indestrutível da natureza
humana seguirá a civilização. (FREUD, 1974b, p. 136).
Ao contrapor o progresso à pulsão de morte, Freud volta a condicionar a civilização ao
puro domínio das pulsões destrutivas, perdendo a dimensão paradoxal que às vezes adota.
Se a civilização impõe sacrifícios tão grandes, não apenas à sexualidade do
homem, mas também à sua agressividade, podemos compreender melhor
porque lhe é difícil ser feliz nessa civilização. Na realidade, o homem
primitivo se achava em situação melhor, sem conhecer restrições de instinto.
Em contrapartida, suas perspectivas de desfrutar dessa felicidade, por
qualquer período de tempo, eram muito tênues. O homem civilizado trocou
22
uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de
segurança. (FREUD, 1974b, p. 137).
Nesta passagem, reconhecemos um equívoco por parte do autor. Em primeiro lugar, a
pós-modernidade tem revelado enorme tendência em eliminar sacrifícios às pulsões, nos
termos referidos pelo autor. A sexualidade atual adquiriu ares de liberdade, a das mulheres em
especial, embora o século se finalize marcado pela maldição do sexo. O estigma das doenças
sexualmente transmissíveis, a Aids em particular, a exacerbada exibição pública do sexo, não
pela exibição da nudez, mas das práticas sexuais tão freqüentes nos canais de TV e redes de
Internet, que oferecem variadas possibilidades, dos sexshops, com vasto menu, aos sites de
pedofilia. Se tudo isso são marcas do tempo, seguramente são marcas que confirmam, como
nunca, que ‗não há relação sexual‘, que não há trégua quanto à impossibilidade de fazer o um
complementar na relação sexual.
No que tange às pulsões destrutivas, a violência generalizada e globalizada é o grande
exemplo da ausência de sacrifícios. Revela enorme perda e nenhum ganho de segurança,
configurando a maldição da violência feroz no século XX, também exibida de forma
exacerbada pelos meios de comunicação. Ao contrário, a perda de segurança se espalhou por
todo o planeta de forma nunca antes vista, inclusive nos meios rurais. A barbárie
contemporânea, diferentemente da Antiguidade, nasce com as garantias da tecnociência e do
capital internacional, não sem grandes conseqüências para a humanidade. Se, para Freud, a
fórmula é quanto mais civilização, menor pulsão de destruição, menor selvageria, mais
segurança, o que está posto no século XXI é a fórmula invertida: maior progresso, maior
avanço tecnológico e científico, maior barbárie, maior violência e maior insegurança.
Certamente, se estivesse acompanhando os dias atuais, Freud não faria tão suave
crítica aos americanos, como a que vem a seguir:
O presente estado cultural dos Estados Unidos da América nos
proporcionaria uma boa oportunidade para estudar o prejuízo à civilização,
que assim é de se temer. Evitarei, porém, a tentação de ingressar numa
crítica da civilização americana; não desejo dar a impressão de que eu
mesmo estou empregando métodos americanos. (FREUD, 1974b, p. 138).
Na retrospectiva que faz no sexto capitulo, Freud atualiza a teoria das pulsões para
explicar como a pulsão de morte opera, isoladamente, em silêncio, introduzindo novos
elementos conceituais, com especial destaque para o narcisismo.
23
O autor retoma a teorias das pulsões na seguinte seqüência: inicialmente, os instintos
do ego e os instintos objetais se confrontavam, mutuamente. Para denotar a energia destes
últimos, introduz o termo ‗libido‘. A antítese se verificou entre as pulsões do ego e as pulsões
„libidinais‘ do amor, que eram dirigidas a um objeto. Esta formulação apresentou um pequeno
problema, pois um desses instintos objetais, o instinto sádico, destacou-se do restante, pelo
fato do seu objetivo não ser o amar.
Ademais, ele se encontrava obviamente ligado, sob certos aspectos, aos
instintos do ego, pois não podia ocultar sua estreita afinidade com os
instintos de domínio que não possuem propósito libidinal. Mas essas
discrepâncias foram superadas; pois o sadismo fazia claramente parte da
vida sexual, em cujas atividades a afeição podia ser substituída pela
crueldade. (FREUD, 1974b, p. 140).
Alterações nesta teoria se tornaram essenciais, à medida que as investigações
progrediam das forças reprimidas, para as repressoras, das pulsões objetais, para as do ego.
O decisivo passo à frente consistiu na introdução do conceito de narcisismo,
isto é, a descoberta de que o próprio ego se acha catexizado pela libido, de
que o ego, na verdade, constitui o reduto original dela e continua a ser, até
certo ponto, seu quartel-general. Essa libido narcísica se volta para os
objetos, tornando-se assim libido objetal, podendo transformar-se novamente
em libido narcísica. (FREUD, 1974b, p. 140).
Freud chama a atenção para a importância do conceito de narcisismo, que possibilitou
a obtenção de uma nova compreensão analítica das neuroses traumáticas e de várias afecções
fronteiriças às psicoses, bem como destas últimas. Esse desdobramento deixa o conceito de
libido ameaçado. Como os instintos do ego também eram libidinais, pareceu por certo tempo
inevitável que se tivesse de fazer a libido coincidir com a energia instintiva em geral, como
Jung já o fizera, anteriormente.
Entretanto, Freud não desiste da idéia de que os instintos não podiam ser todos da
mesma espécie. Defende, por um lado, a libido como atributo da pulsão de vida e, por outro, a
força silenciosa da pulsão de morte. O passo seguinte foi dado em 1920 no texto Além do
Princípio do Prazer, quando a compulsão para repetir e o caráter conservador da vida
instintiva atraíram pela primeira vez sua atenção.
Ao lado do instinto para preservar a substância viva e para reuni-la em unidades cada
vez maiores, Freud imaginou haver outro instinto contrário, que abalasse essas unidades para
24
conduzi-las de volta a seu estado primevo e inorgânico (hipótese que não teve a concordância
de Lacan). Assim como Eros, existia também um instinto de morte. Os fenômenos da vida
podiam ser explicados pela ação concorrente, ou mutuamente oposta, desses dois instintos. O
problema, contudo, residia em demonstrar as atividades deste suposto instinto de morte. Se as
manifestações de Eros eram visíveis e bastante ruidosas, as do instinto de morte pareciam
operar silenciosamente dentro do organismo, no sentido de sua destruição, embora não se
constituíssem em prova cabal.
Uma idéia mais fecunda era a de que uma parte do instinto é desviada no
sentido do mundo externo e vem à luz como um instinto de agressividade e
destrutividade. Dessa maneira, o próprio instinto podia ser compelido para o
serviço de Eros, no caso de o organismo destruir alguma outra coisa,
inanimada ou animada, em vez de destruir o seu próprio eu (self).
Inversamente, qualquer restrição dessa agressividade dirigida para fora
estaria fadada a aumentar a autodestruição, a qual, em todo e qualquer caso,
prossegue. (FREUD, 1974b, p. 141).
Os argumentos que vêm a seguir, sempre em torno do sadismo, produziram certas
confusões quanto à conclusão que Freud adotou, a partir deste período, de que a pulsão
destrutiva pode funcionar separada da pulsão de vida. Contudo, vale ressaltar a importância da
distinção teórica entre o masoquismo e o sadismo, enquanto movimentos em que a
destrutividade se dirige para o ego, no caso do primeiro, ou para fora deste, ou seja, para o
outro, no caso do segundo.
Ao mesmo tempo, pode-se suspeitar, a partir desse exemplo, que os dois
tipos de instinto raramente — talvez nunca — aparecem isolados um do
outro, mas que estão mutuamente mesclados em proporções variadas e muito
diferentes, tornando-se assim irreconhecíveis para nosso julgamento. No
sadismo, há muito tempo de nós conhecido como instinto componente da
sexualidade, teríamos à nossa frente um vínculo desse tipo particularmente
forte, isto é, um vínculo entre as tendências para o amor e a pulsão
destrutiva, ao passo que sua contrapartida, o masoquismo, constituiria uma
união entre a destrutividade dirigida para dentro e a sexualidade, união que
transforma aquilo que, de outro modo, é uma tendência imperceptível, numa
outra conspícua e tangível. (FREUD, 1974b, p. 141).
O autor assinala suas resistências em aceitar a existência de um instinto de morte ou de
destruição, aspecto que se manterá com certa atualidade nos diferentes círculos psicanalíticos.
Estou ciente de que existe, antes, uma inclinação freqüente a atribuir o que é
perigoso e hostil no amor a uma bipolaridade original de sua própria
natureza. A princípio, foi apenas experimentalmente que apresentei as
25
opiniões aqui desenvolvidas, mas, com o decorrer do tempo, elas
conseguiram tal poder sobre mim, que não posso mais pensar de outra
maneira. Para mim, elas são muito mais úteis, de um ponto de vista teórico
do que quaisquer outras possíveis; fornecem aquela simplificação, sem
ignorar ou violentar os fatos, pela qual nos esforçamos no trabalho científico.
Sei que no sadismo e no masoquismo sempre vimos diante de nós
manifestações do instinto destrutivo (dirigidas para fora e para dentro),
fortemente mescladas ao erotismo, mas não posso mais entender como foi
que pudemos ter desprezado a ubiqüidade da agressividade e da
destrutividade não eróticas e falhado em conceder-lhe o devido lugar em
nossa interpretação da vida. (O desejo de destruição, quando dirigido para
dentro, de fato foge, grandemente à nossa percepção, a menos que esteja
revestido de erotismo.) Recordo minha própria atitude defensiva quando a
idéia de um instinto de destruição surgiu pela primeira vez na literatura
psicanalítica, e quanto tempo levou até que eu me tornasse receptivo a ela.
Que outros tenham demonstrado, e ainda demonstrem, a mesma atitude de
rejeição, surpreende-me menos [...] (FREUD, 1974b, p. 142).
Freud observa também que as crianças não gostam quando se fala da inclinação
humana para a ‗ruindade‘, a agressividade, a destrutividade e a crueldade, embora constate ao
mesmo tempo, a presença de atos extremamente agressivos e destrutivos na infância. Lembra
que Deus nos criou à imagem de sua própria perfeição e que ninguém deseja ser lembrado
como é difícil conciliar a inegável existência do mal.
Em especial, vale destacar o comentário que o autor faz sobre a natureza
profundamente moral da humanidade ante a agressividade. Este é um dos méritos dessa
teoria, o de evidenciar a força desta dimensão destrutiva e não apenas da dimensão sexual,
contra as quais a moral se insurge e o recalque trabalha.
1.4 VICISSITUDES DA PULSÃO DESTRUTIVA
Três são as vicissitudes da pulsão de morte, desenhadas por Freud, nas quais a
violência é bem representada, exibindo em cada uma delas seu caráter paradoxal, como
veremos a seguir.
O primeiro destino da pulsão de morte é o sadismo. Neste caso, encontram-se
amalgamadas a pulsão de vida, erótica, libidinal, com a pulsão de morte, destrutiva,
26
amplamente exercitada na psicopatologia da vida cotidiana, nas práticas eróticas e tão
presente nas fantasias. O paradoxo aqui incide na junção do erótico com a destruição.
O nome ‗libido‘ pode mais uma vez ser utilizado para denotar as
manifestações do poder de Eros, a fim de distingui-las da energia do instinto
de morte. Deve-se confessar que temos uma dificuldade muito maior em
apreender esse instinto; podemos apenas suspeitá-lo, por assim dizer, como
algo situado em segundo plano, por trás de Eros, fugindo à detecção, a
menos que sua presença seja traída pelo fato de estar ligado a Eros. É no
sadismo — onde o instinto de morte deforma o objetivo erótico em seu
próprio sentido, embora, ao mesmo tempo, satisfaça integralmente o impulso
erótico — que conseguimos obter a mais clara compreensão interna (insight)
de sua natureza e de sua relação com Eros. (FREUD, 1974b, p. 141).
O segundo destino da pulsão de morte é a cega fúria de destrutividade. Essa
vicissitude introduz novo aspecto ao estudo da violência, ao vincular a origem da
destrutividade ao antigo ego narcísico e onipotente. Como responsável pelo alto grau de
satisfação narcísica, o ego realiza antigos desejos onipotentes, especialmente aqueles relativos
à destruição. Freud atribui a mais cega fúria de destrutividade ao ego narcísico, em seu pleno
exercício dos desejos onipotentes. Neste caso, o paradoxo encontra-se na própria constituição
do ego, de um lado, garantindo a autopreservação e os seus laços com a realidade e do outro,
mantendo o ego narcísico onipotente alheio à realidade.
Podemos dizer que esta teoria elaborada por Freud oferece excelentes recursos para
uma possível leitura da atual sociedade, identificada como individualista e narcísica por
alguns teóricos contemporâneos, na qual, aliás, os atos de violência se apresentam como
marcas inconfundíveis. Certamente, este destino da pulsão é o que melhor representa as
violências, sem qualquer relação com a pulsão erótica.
Contudo, mesmo onde ele surge sem qualquer intuito sexual, na mais cega
fúria de destrutividade, não podemos deixar de reconhecer que a satisfação
do instinto se faz acompanhar por um grau extraordinariamente alto de
fruição narcísica, devido ao fato de presentear o ego com a realização de
antigos desejos de onipotência deste último. (FREUD, 1974b, p. 141).
O terceiro destino da pulsão destrutiva está inibido em sua finalidade, portanto
sublimado. O paradoxo aqui incide exatamente na problemática de como satisfazer o impulso
destrutivo através de outra finalidade.
O instinto de destruição, moderado e domado, e, por assim dizer, inibido em
sua finalidade, deve, quando dirigido para objetos, proporcionar ao ego a
27
satisfação de suas necessidades vitais e o controle sobre a natureza.
(FREUD, 1974b, p. 144).
Podemos vincular a inibição da pulsão agressiva, ou seja, a operação da sublimação a
certas medidas de proteção pessoal e grupal e à criação de modo geral. Dentre elas
destacamos as que se transformam em produções artísticas, políticas e sociais, por exemplo os
movimentos pela paz e a posição pessoal de alguns grandes líderes que transformaram suas
vidas em causa comum a todos, contra a violência, ou em nome da paz para a humanidade.
Grandes homens, entre os quais Martin Luther King, John Lennon e Ghandi – cuja posição
radical, no combate à guerra com a paz, em seu ato literal de depor as armas –, pregaram a
paz, a liberdade, iguais direitos e foram provavelmente por esta razão, violentamente
assassinados.
Esse destino da pulsão destrutiva, a inibição da sua finalidade, leva-nos a repensar a
respeito dos resultados obtidos pelos atuais recursos, em particular aqueles do mundo da
imagem, tais como os jornais, o cinema, a televisão, os telejornais em especial e mesmo a
exploração da violência como espetáculo feita pela mídia de modo geral. Possivelmente,
constituem-se em poderosos métodos que devolvem, em grande escala, de forma imaginária e
narcísica, mas também sublimada, os primários desejos narcísicos onipotentes de destruição,
satisfazendo as pulsões destrutivas dos seres falantes. Certamente, assistir na tela realiza algo
que nos distancia da possibilidade de passarmos ao ato.
Estas proposições, feitas por Freud em 1929, em conformidade com os postulados da
segunda tópica, representam uma importante revisão da teoria das pulsões, especialmente da
pulsão de morte. Seguramente, possibilitam algumas leituras psicanalíticas sobre as
violências, especialmente aquelas que comparecem na clínica.
Nesta linha argumentativa, é possível afirmar que há uma teoria da violência em
Freud, ainda que este léxico tenha sido empregado com pouca freqüência em sua obra.
Antes, contudo, de passar ao próximo item no qual apresentarei a importância das
variantes do supereu, em sua estreita relação com a pulsão destrutiva, gostaria de abrir uma
discussão relativa às conseqüências clínicas do advento do conceito de pulsão de morte e dos
seus últimos desdobramentos, na forma de desfusão da pulsão de vida.
É fácil constatar a vasta repercussão das teorias que definem a etiologia sexual das
neuroses e demais estruturas clínicas. Segundo Foucault (2002), este movimento se inicia
28
antes mesmo das teorias formuladas por Freud, em cuja tradição ele, aliás, se inscreve.
Comparativamente, há uma insignificante repercussão e utilização da teoria da pulsão
destrutiva da pulsão de morte, na abordagem da etiologia das doenças psíquicas.
Toda reformulação teórica das pulsões realizada por Freud parece não ser levada
suficientemente em conta. Fica-se, via de regra, agarrado ao primeiro momento quando do
surgimento da pulsão erótica. Rigorosamente, a teoria das pulsões nasce como uma teoria
sobre a sexualidade. Freud escreve ―Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade‖ em 1905,
e, em 1915, ―As pulsões e suas vicissitudes‖, quando sistematiza a primeira teoria das
pulsões. Somente em 1920, propõe opor à pulsão de vida a pulsão de morte. Há, contudo,
forte resistência em considerar esta reviravolta teórica e clínica, em parte, talvez, pelo que a
destrutividade encerra em si mesma. E, segundo o comentário do próprio Freud, a
moralização sobre a destrutividade é maior que sobre qualquer outro destino das pulsões.
O ponto que queremos salientar é que embora Freud tenha reformulado a teoria das
pulsões e dado igual peso à pulsão de morte na etiologia das doenças mentais, recorre-se,
invariavelmente, à pulsão sexual para explicar todas as doenças, desconsiderando a
reviravolta teórica e clínica operada pelo autor. É preciso admitir que esta leitura equivocada
dificulta o reconhecimento de certas manifestações clínicas, que dizem respeito à
destrutividade, agressividade, violência, crueldade, e suas abordagens terapêuticas.
A teorização da pulsão de morte, destrutiva, como fator etiológico, tem sido aplicada
de modo pontual a alguns fenômenos, a exemplo do masoquismo, da reação terapêutica
negativa e da neurose obsessiva.
O problema, entretanto, está exatamente na diferença que há entre os sintomas
próprios da moral sexual vitoriana, que fizeram Freud trabalhar na invenção da psicanálise, e
os que se apresentam na contemporaneidade. O aumento gritante dos índices de violência e
dos seus requintados métodos, favorecidos pela tecnociência, juntamente com novas
manifestações sintomáticas, fazem-nos pensar na força desses outros determinantes para além
do princípio do prazer, da ordem da pulsão de morte, de acordo com o pensamento freudiano.
Em lugar dos sintomas de conversões, legítimos representantes do que retorna do recalcado
sexual, não deveria ser ampliada a pergunta sobre o que retorna da pulsão de morte, ou o que
está posto como efeito da pulsão de morte na etiologia das doenças contemporâneas, também
chamadas sintomas inclassificáveis, que se colocam do lado do pior?
29
Vemos o aumento crescente das violências auto ou heterodestrutivas, a exemplo das
escarificações, bulimias, depressões, obsessões, as compulsões de modo geral, entre outras. A
este respeito há um exemplo recente, o pedido de uma mulher, via Internet, de ser violentada e
assassinada, obtendo para espanto geral, a resposta de seiscentos candidatos. Fantasia ou fato?
Seja o que for, passou a existir na retórica virtual.
Há, por um lado, ampla utilização da etiologia sexual, da pulsão erótica, e das
neuroses e, do outro, uma quase ausência de exploração equivalente para a teoria da pulsão de
morte e destrutiva. As violências, tais quais se apresentam na clínica do fim do século XX e
início do XXI, entretanto, exigem uma revisão, pois a erótica freudiana, tão largamente
utilizada durante o último século, não parece dar conta do horror, que não é da castração,
presente nestes fenômenos deste século. Postular a clínica em sua relação com o supereu,
conforme Freud desenvolveu, sinaliza para o começo de uma nova argumentação relativa aos
paradoxos do gozo na determinação do pathos, que será retomada por Lacan com o conceito
de gozo.
Para dar conta da clínica psicanalítica do século XXI, é preciso recorrer à pulsão de
morte (em sua relação com o supereu e o masoquismo primário) proposta por Freud. Não é
possível escutar o sujeito do inconsciente, hoje, abstraindo essas inter-relações conceituais
para tratar os atos de violência em toda sua extensão auto ou hetero destrutivas. É preciso
fazer um retorno a Freud, para lembrar que a etiologia dos sintomas não é somente sexual, do
recalcado sexual, mas paradoxais formações que abrigam toda a dimensão contraditória das
pulsões encerradas no narcisismo e nas formações do supereu.
O conceito de gozo em Lacan vem nesta direção, ou seja, coloca as causalidades da
subjetividade para além da teoria da sexualidade, inscrevendo-se na tradição da sua época, na
trilha de Bataille e outros de sua geração, que apresentaram os elementos inspiradores para a
concepção do objeto a através do qual Lacan consolida o conceito de gozo.
Para concluir o sexto capítulo, Freud o faz de forma literária e espetacular. Após
refazer todo o caminho da pulsão de morte, termina exaltando a força da vida, Eros e, mais
uma vez, responsabilizando a pulsão de morte por certos impedimentos à civilização.
Contudo, embora advertido do horror do pior e disposto a não esconder suas conseqüências, o
que traz aí de mais importante é sua aposta na força da vida, ao afirmar que a civilização
resultante desta luta de gigantes se resumiria, essencialmente, na luta da espécie humana pela
vida, retificando o que poderia ser interpretado como uma luta primária para construção da
civilização.
30
Em tudo o que se segue, adoto, portanto, o ponto de vista de que a inclinação
para a agressão constitui, no homem, uma disposição instintiva original e
auto-subsistente, e retorno à minha opinião, de que ela é o maior
impedimento à civilização. Em determinado ponto do decorrer dessa
investigação fui conduzido à idéia de que a civilização constituía um
processo especial que a humanidade experimenta, e ainda me acho sob a
influência dela. Posso agora acrescentar que a civilização constitui um
processo a serviço de Eros, cujo propósito é combinar indivíduos humanos
isolados, depois famílias e, depois ainda, raças, povos e nações numa única
grande unidade, a unidade da humanidade. Por que isso tem de acontecer,
não sabemos; o trabalho de Eros é precisamente este. Essas reuniões de
homens devem estar libidinalmente ligadas umas às outras. A necessidade,
as vantagens do trabalho em comum, por si sós, não as manterão unidas.
Mas o natural instinto agressivo do homem, a hostilidade de cada um contra
todos e a de todos contra cada um, se opõe a esse programa da civilização.
Esse instinto agressivo é o derivado e o principal representante do instinto de
morte, que descobrimos lado a lado de Eros e que com este divide o domínio
do mundo. Agora, penso eu, o significado da evolução da civilização não
mais nos é obscuro. Ele deve representar a luta entre Eros e a Morte, entre o
instinto de vida e o instinto de destruição, tal como ela se elabora na espécie
humana. Nessa luta consiste essencialmente toda a vida, e, portanto, a
evolução da civilização pode ser simplesmente descrita como a luta da
espécie humana pela vida. E é essa batalha de gigantes que nossas babás
tentam apaziguar com suas cantigas de ninar sobre o Céu. (FREUD, 1974b,
p. 144).
Ao final, vence a vida, a civilização, porém pagando o preço do mal-estar engendrado
pelo supereu.
1.5 A VIOLÊNCIA DO SUPEREU FREUDIANO
Nascido de uma exigência clínica, o supereu é um conceito formulado por Freud na
segunda tópica, especialmente no texto O Ego e o Id (FREUD, 1976/h). Apresenta-se no
primeiro momento como uma instância psíquica relativa à consciência moral, ao sentimento
de culpa e às interdições, sendo herdeiro do Complexo de Édipo, ou seja, uma introjeção da
autoridade das figuras parentais, representante da lei e regulador da realidade. À primeira
vista, o supereu em Freud parece se apresentar como uma instância que zela pela homeóstase
do aparelho, interditando o incesto e proibindo o gozo da pulsão destrutiva.
31
Contudo deve-se sinalizar para a insuficiência dessa concepção, destacando-se que o
supereu, referido por Freud é paradoxal por ser ao mesmo tempo herdeiro do complexo de
Édipo e do isso. É simultaneamente definido como uma instância cruel, feroz, sem noção da
realidade e regido por uma lei insensata. Suas exigências desmedidas não passam de
exigências morais que o sujeito poderia cumprir, desde que aceitasse abrir mão de seu gozo.
Ao contrário, uma vez cumpridas tais exigências, elas se tornam cada vez maiores e, quanto
mais o sujeito se esforça no sentido de alcançar as virtudes e uma nobreza moral, quanto mais
o sujeito se aproxima de ser santo, tanto mais o supereu faz exigências.
Em 1929, em O mal-estar na civilização, Freud (1974b) define o supereu como uma
instância a serviço pulsão destrutiva, responsável pelos seus destinos. Manifesta no sétimo e
oitavo capítulo do referido texto grande interesse em continuar pesquisando os meios
empregados pela civilização para inibir, transformar a agressividade ou mesmo livrar-se dela.
O problema gira em torno dos métodos utilizados para tornar inofensivo o desejo de destruição e
agressão do ser humano. Nesta nova investida para além do princípio do prazer, o autor articula
a pulsão de morte, destrutiva, ao supereu produtor do sentimento de culpa, que se expressa
como uma necessidade de punição.
Algo notável, que jamais teríamos adivinhado e que, não obstante, é bastante
óbvio. Sua agressividade é introjetada, internalizada; ela é, na realidade,
enviada de volta para o lugar de onde proveio, isto é, dirigida no sentido de
seu próprio ego. Aí, é assumida por uma parte do ego, que se coloca contra o
resto do ego, como superego, e que então, sob a forma de ‗consciência‘, está
pronta para pôr em ação contra o ego a mesma agressividade rude que o ego
teria gostado de satisfazer sobre outros indivíduos, a ele estranhos. A tensão
entre o severo superego e o ego, que a ele se acha sujeito, é por nós chamada
de sentimento de culpa; expressa-se como uma necessidade de punição. A
civilização, portanto, consegue dominar o perigoso desejo de agressão do
indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e estabelecendo no seu interior
um agente para cuidar dele, como uma guarnição numa cidade conquistada.
(FREUD, 1974b, p. 146-147).
Essa severa guarnição, embora esteja a serviço da civilização para dominar o perigoso
desejo de agressão e destruição do indivíduo, cria sérios problemas para este. A operação da
pulsão de morte voltada contra o eu (aspecto, que coincide com uma das quatro vicissitudes
da pulsão, a saber, o retorno ao próprio eu) e dirigindo para essa instância os impulsos
agressivos e destrutivos, foi o modo encontrado por Freud para explicar a ferocidade da culpa
e a crueldade da punição. Se, por um lado, são esforços utilizados pelo sujeito para preservar
o coletivo, por outro são métodos que imprimem violentas conseqüências contra o próprio
32
sujeito, tornando muito cara a construção da civilização. O impasse permanece, pois trocar a
devastação coletiva pela devastação individual não resolve muito bem o problema.
Simultaneamente, Freud mostra o aspecto contraditório da questão ao explicar essas
operações – o sentimento de culpa e a necessidade de punição - como duas grandes
manifestações subjetivas primárias e intrínsecas ao pathos, não necessariamente a serviço do
progresso e da civilização. Aliás, estiveram sempre presentes com o nome de pecado nas mais
diversas práticas religiosas.
A constatação dos efeitos do supereu na clínica e na cultura conduziu Freud a vários
caminhos. Um deles leva à reflexão sobre a indiferenciação originária do ser falante para
julgar o bom e o mau, trazida para explicar como se dá a instauração do julgamento moral.
Inicialmente, Freud o vincula ao desamparo original, à dependência dos cuidados básicos
recebidos dos adultos e ao temor da perda do amor das pessoas primordiais, frequentemente
os primeiros laços parentais.
O que é mau, freqüentemente, não é de modo algum o que é prejudicial ou
perigoso ao ego; pelo contrário, pode ser algo desejável pelo ego e prazeroso
para ele. Aqui, portanto, está em ação uma influência estranha, que decide o
que deve ser chamado de bom ou mau. De uma vez que os próprios
sentimentos de uma pessoa não a conduziriam ao longo desse caminho, ela
deve ter um motivo para submeter-se a essa influência estranha. Esse motivo
é facilmente descoberto no desamparo e na dependência dela em relação a
outras pessoas, e pode ser mais bem designado como medo da perda de
amor. Se ela perde o amor de outra pessoa de quem é dependente, deixa
também de ser protegida de uma série de perigos. (FREUD, 1974b, p. 147).
Freud introduz o elemento do desamparo original em relação ao objeto amoroso,
sugerindo que o maior perigo é ficar exposto a essa pessoa mais forte, que pode mostrar sua
superioridade sob forma de punição. Quanto a isso, cabe fazer algumas atualizações baseadas
em Lacan, no sentido de colocar o problema não apenas no plano imaginário da prematuração
biológica e da dependência dos cuidados e garantias dadas pelo amor dos outros parentais,
mas também na dimensão do desamparo simbólico, ou seja, do desaparelhamento simbólico
originário com o qual o ser falante entra no mundo. Esta é uma das razões pelas quais se faz
necessário distinguir o Outro simbólico da linguagem dos outros semelhantes do plano
imaginário, para dar a essa teorização sua justa medida.
Inicialmente, mau é tudo aquilo que, com a perda do amor, nos ameaça e, por medo,
tentamos evitar. Vislumbra-se, contudo, a possibilidade de o mau poder ser bom e prazeroso
para o ego e provavelmente, neste caso, Freud está se referindo às possíveis relações
33
existentes entre o supereu, enquanto uma instância do aparelho psíquico, o ideal do eu,
enquanto significantes de identificação e a consciência com seus preceitos morais.
Nesta perspectiva teórica, fica estabelecido que, no primeiro tempo, o sentimento de
culpa é apenas um medo da perda de amor, uma ansiedade ‗social‘, como se verifica nas
crianças. Em muitos adultos, ele só se modifica quando o lugar do pai ou dos dois genitores é
ocupado pelas organizações humanas mais amplas.
Por conseguinte, tais pessoas habitualmente se permitem fazer qualquer
coisa má que lhes prometa prazer, enquanto se sentem seguras de que a
autoridade nada saberá a respeito, ou não poderá culpá-las por isso; só têm
medo de serem descobertas. (FREUD, 1974b, p. 148).
Freud prossegue explorando o sentimento de culpa. Quando ele aparece? Ele aparece
quando se faz algo que se sabe ser ‗mau‘ mas, mesmo quando a pessoa não faz uma coisa má,
mas apenas identifica em si mesma uma intenção de fazê-la, pode encarar-se como culpada,
tornando a intenção equivalente ao ato. Em ambos os casos, contudo, o pressuposto é que já
se tenha reconhecido que o mau é repreensível. O supereu, portanto, seria essa instância
interna pronta para instaurar o julgamento, já que a capacidade original para distinguir o bom
do mau não existe. Assim Freud atrela inicialmente a instauração do julgamento de bom e
mau à dependência do temor da perda do amor das pessoas primordiais e ao desamparo do
sujeito.
Nesta discussão, fica necessariamente interrogada a origem da consciência, e a esse
respeito, Freud faz inicialmente uma afirmação paradoxal, admitindo que esta resulta da
renúncia do instinto agressivo, ou que, a renúncia instintiva imposta de fora cria a
consciência, a qual, exige cada vez mais renúncia. Tende a considerar que a consciência surge
da repressão do impulso agressivo, sendo subsequentemente reforçada por novas repressões.
O supereu tem aí papel importante, pois, quanto mais virtuosa é a pessoa, mais severa e mais
desconfiada se torna nos seus comportamentos. Lembra que as pessoas próximas da santidade
são aquelas que se censuram da pior pecaminosidade. ―O sentimento de culpa, a severidade
do supereu, é, portanto o mesmo que a severidade da consciência moral. (FREUD, 1974b, p.
160).‖
Descontente em explorar o sentimento de culpa como conseqüência exclusiva do
desamparo e do temor da perda do amor parental, finalmente Freud apresenta dois extratos do
sentimento de culpa: um oriundo do medo da autoridade externa e outro, do medo da
autoridade interna, ou seja, do supereu, em suas estreitas vinculações com as exigências de
34
satisfação pulsional, e já não mais representante da consciência moral e da ordem. A
postulação freudiana de um tipo de culpa decorrente da consciência moral, dos temores dos
ideais do eu e a serviço da civilização será por nós secundarizada nesta pesquisa,
privilegiando, contudo, a culpa que advém do supereu enquanto instância primária, correlata
da pulsão e do masoquismo primordial.
Conhecemos, assim, duas origens do sentimento de culpa: uma que surge do
medo de uma autoridade, e outra, posterior, que surge do medo do superego.
A primeira insiste numa renúncia às satisfações instintivas; a segunda, ao
mesmo tempo em que faz isso exige punição, de uma vez que a continuação
dos desejos proibidos não pode ser escondida do superego. Aprendemos
também o modo como a severidade do superego - as exigências da
consciência - deve ser entendida. Trata-se simplesmente de uma continuação
da severidade da autoridade externa, à qual sucedeu e que, em parte,
substituiu. [...] Originalmente, a renúncia ao instinto constituía o resultado
do medo de uma autoridade externa: renunciava-se à próprias satisfações
para não se perder o amor da autoridade [...] Quanto ao medo do superego,
porém, o caso é diferente. Aqui, a renúncia instintiva não basta, pois o desejo
persiste e não pode ser escondido do superego. Assim, a despeito da
renúncia efetuada, ocorre um sentimento de culpa. [...] Aqui, a renúncia
instintiva não possui mais um efeito completamente liberador; a continência
virtuosa não é mais recompensada com a certeza do amor. Uma ameaça de
infelicidade externa - perda do amor e castigo por parte da autoridade
externa - foi permutada por uma permanente inferioridade interna, pela
tensão do sentimento de culpa. (FREUD, 1974b, p. 151).
Inscreve-se, desse modo, mais um importante elemento clínico atribuído ao supereu,
que é o ‗sentimento de inferioridade‘ gerado pelo sentimento de culpa. Ao longo do texto vai
ficando cada vez mais clara a formulação freudiana que define o supereu como pulsional em
vinculação indissociável com a pulsão destrutiva, constituindo um novo substrato para
conceber a subjetividade.
São quatro os avatares do supereu: sentimento de culpa, necessidade de punição,
sentimento de inferioridade e angústia. Em última instância, esses deveriam ser considerados
os destinos da pulsão de morte, evidentemente vinculados às manifestações clínicas.
Analisada a questão dessa perspectiva, poder-se-ia dizer que as formulações apresentadas por
Freud sobre o supereu na segunda tópica, constituem uma ampliação da teoria das pulsões,
especialmente da pulsão de morte. Por conseguinte, o mal-estar da cultura está
irremediavelmente associado, em primeira instância, às exigências pulsionais do supereu e aos
seus avatares.
35
Freud apresenta nova consideração clínica relativa ao enlaçamento da pulsão
destrutiva com o supereu: toda neurose oculta uma quota de sentimento de culpa inconsciente
que fortifica os sintomas, utilizando-o como punição. ―Agora parece plausível formular a
seguinte proposição: quando uma tendência instintiva experimenta a repressão, seus
elementos libidinais são transformados em sintomas e seus componentes agressivos em
sentimento de culpa.‖ (FREUD, 1974b, p. 163).
Distiguem-se, pois, dois efeitos do ‗recalque‘, que aparece caracterizado como uma
espécie de operação-base para as pulsões em seu conjunto. No que tange à pulsão erógena,
seu retorno se dá sob a forma de sintoma, como classicamente está consagrado. No que tange
à pulsão destrutiva, seu retorno se dá sob a forma de sentimento de culpa, e é aqui que é
preciso recorrer ao supereu para explicar a equação.
É necessário assinalar que as novas concepções apresentadas por Freud na segunda
tópica e a articulação delas entre si, a saber, a pulsão destrutiva, o supereu, o masoquismo
primário e o narcisismo, mudaram radicalmente a concepção do aparelho psíquico e,
conseqüentemente, a direção da clínica, a escuta e a interpretação psicanalíticas.
Com esta nova perspectiva, adquire-se maior margem de manobra diante de certas
situações-limite na clínica, que, à primeira vista, parecem inabordáveis. A violência e certos
sintomas presentes na contemporaneidade são exemplares para evidenciar que a etiologia
sexual das doenças não dá conta de sua extensão, sendo necessário ir além do princípio do
prazer. Ao propor dois destinos do recalque das pulsões - o que opera sobre a pulsão erótica,
transformando-se em sintoma, e o que opera sobre a pulsão destrutiva, transformando-se em
sentimento de culpa - Freud demonstra grande esforço teórico para dar sustentação ao manejo
clínico do paradoxal gozo da pulsão destrutiva, ou seja, do supereu.
A conclusão do argumento freudiano sobre o supereu não dá margem a que se diga,
categoricamente, que o supereu diz ‗goza‘, mas seguramente ofereceu os indícios para que
Lacan assim o fizesse, posteriormente. Freud coloca, na base dessa instância julgadora e
interditora, herdeira do complexo de Édipo e da lei do pai, o desejo e as forças pulsionais,
diante das quais se pode até renunciar ao impulso, externamente. Este ato, contudo, não
elimina a exigência interna de satisfação, especialmente aquelas relativas aos impulsos
destrutivos. Aí está o paradoxo, ao tempo em que afirma que o supereu é o herdeiro da
interdição da lei do pai, Freud diz que o supereu é o herdeiro dos impulsos do isso, da pulsão
destrutiva.
Contudo, Freud não enfatiza suficientemente o caráter paradoxal do supereu,
insistindo por vezes em reduzi-lo a uma instância normativa, pronta a garantir o
36
consentimento à ordem social, bem instalada nos homens, acrescenta, e bastante discutível nas
mulheres.
Consideramos de grande valor a concepção freudiana dos avatares do supereu, pois,
vieram conferir abrangente abordagem aos impasses clínicos, relativos à melancolia, à
neurose obsessiva, às reações terapêuticas negativas, ao masoquismo, às compulsões, à
angústia e, nesta série de gozar do pior, aos atos de violência que percorrem o sadismo, o
masoquismo e o gozo onipotente do narcisismo primário.
Com a concepção de pulsão destrutiva e de supereu, enquanto conseqüência direta do
Além do princípio do prazer, (em cuja tradição foi formulado o conceito de objeto a e de gozo
em Lacan) Freud produziu avanços conceituais com os quais podemos analisar os problemas
relativos às violências, seja no âmbito das suas manifestações sociais, seja no âmbito das suas
manifestações estritamente subjetivas.
Preferimos adotar os conceitos de supereu e de pulsão de morte, desfusionada da
pulsão de vida, revistos por Freud no texto ―O mal-estar na cultura‖, para analisar a
constituição subjetiva da violência, e a questão inicialmente formulada neste trabalho sobre a
participação da violência na construção da cultura.
37
2 VIOLÊNCIA, AVATAR DO DISCURSO
A pulsão de morte é o real na medida em que ele só pode ser
pensado como impossível. [...] Abordar esse impossível não poderia constituir uma
esperança, posto que é impensável, é a morte – e o fato de a morte não poder ser
pensada é o fundamento do real. (LACAN, 2007, p. 121).
Neste capítulo, recorreremos ao conceito de supereu para introduzir a hipótese da
violência como avatar do discurso. Para tanto, propomo-nos apresentar inicialmente algumas
noções concernentes à dimensão pulsional do supereu, na vertente da pulsão destrutiva relida
por Lacan com o conceito de real.
2.1 PULSÃO DE MORTE E IMPERATIVO DE GOZO DO SUPEREU
2.1.1 Pulsão de morte e supereu
Freud não se furtou a reconhecer a presença de certos fenômenos na clínica
psicanalítica que se apresentavam sob forma de repetição, nomeando-os como sentimento de
culpa, necessidade de punição, sentimento de inferioridade e angústia, e classificando-os
como avatares do supereu. Mais que isso, identificou-os como fatores determinantes em certas
manifestações clínicas, especialmente na paranóia, no masoquismo, na melancolia, na neurose
obsessiva e na reação terapêutica negativa, creditando-lhes a responsabilidade pelos
freqüentes embaraços nos tratamentos a que chamou de resistências do supereu.
Essa série de impasses clínicos moveu Freud (1976g) em um primeiro momento, a
reformular a teoria das pulsões, em 1920, opondo a pulsão de vida à de morte e, em seguida a
propor o conceito de supereu como um esforço a mais para abordar tais impasses. A segunda
tópica vem, desse modo, selar o que estava regulado para além do princípio do prazer e a
teoria da pulsão destrutiva, tendo o supereu como seu maior agente. Revista em 1930, em ―O
38
mal-estar da civilização‖ (FREUD, 1974b), essa concepção representou o momento de
conclusão da teoria da pulsão, modificada dez anos antes. Neste sentido, podemos asseverar
que o conceito de supereu foi a última pedra colocada por Freud na arquitetura do conceito de
pulsão.
Com o propósito de analisar a dimensão pulsional do supereu, seguiremos algumas
proposições e reflexões apresentadas por Ana Maria Rudge, ressaltando o viés da repetição
com que a autora introduz e conclui, clinicamente, a questão.
A clínica psicanalítica nos convoca da maneira mais premente a lidar com a
repetição nos caminhos do sofrimento. Ao mesmo tempo em que a repetição,
em especial a presente em certos sonhos, nos sintomas da neurose
traumática, na reação terapêutica negativa e na compulsão de destino, pode
ser tomada como o maior impasse ao tratamento psicanalítico, esses
fenômenos povoam toda a análise que conduzimos, e constituem a área
própria para a intervenção psicanalítica. Pela irresistível atração pelo
sofrimento que as caracteriza, essas manifestações clínicas foram o estopim
para a maior reformulação da teoria freudiana. Aquela que introduziu a
segunda tópica, e, no seio da nova teoria pulsional, a pulsão de morte, noção
tão ambígua, controvertida e com freqüência recusada, explicitamente ou
não, por tantos psicanalistas. (RUDGE, 2006, p. 79).
Essa virada teórica freudiana provocou grande rejeição e impacto na comunidade
analítica contemporânea a Freud e nos pós-freudianos, dando margem às mais desencontradas
interpretações sobre o tema. ―[...] a hipótese da pulsão de morte foi apresentada como
especulativa, e incorrendo numa extraterritorialidade em relação às outras construções
freudianas.‖ (RUDGE, 2006, p. 80).
Nas diversas reviravoltas teóricas em torno do axioma ―o inconsciente é estruturado
como uma linguagem‖, com o qual buscou uma nova abordagem teórica e clínica para tratar
do aparelho psíquico, Lacan ofereceu ferramentas que possibilitaram dar continuidade à
proposição de Freud de articular a pulsão de morte e o supereu, atualizando-a. Apresentamos
a seguir algumas revisões relativas à noção de pulsão de morte por ele formuladas.
Em primeiro lugar, o conceito psicanalítico de pulsão de morte introduzido por Freud
baseado nas teorias biológicas que defendiam a tendência do ser vivo a voltar ao estado
inorgânico, encontrou forte objeção por parte de Lacan, pautado em outras referências
teóricas, tais como o estruturalismo, as teorias do discurso, as teorias marxistas e,
posteriormente, a topologia, bem distante do paradigma evolucionista do qual partiu o
fundador da psicanálise.
39
O segundo aspecto a ser observado, diz respeito ao que Freud nomeou como ponto de
vista econômico, uma tentativa de explicação do aparelho psíquico através do quantum
energético. Este argumento foi fortemente refutado por Lacan com a proposição do conceito
de gozo, com base no conceito de entropia e declinado nas modalidades de gozo fálico, gozo
sentido e Outro gozo.
Em terceiro lugar, a noção dualista de oposição entre pulsões de vida e de morte,
pressuposto decorrente da primeira tópica, que estabelece o conflito dual originário como
subjacente à organização do aparelho psíquico. Essas formulações freudianas entram em
colapso com as que ele apresentou posteriormente na segunda tópica, ao dividir o aparelho em
três instâncias, inscrevendo três pólos de conflito, estendidos aos sintomas neuróticos e
psicóticos. Ademais, o conflito entre os dois pólos das pulsões não teria lugar para se
desenvolver, posto que, elas se encontravam em todas as instâncias do aparelho psíquico de
forma difusa, circulando desde o início. Daí, Rudge perguntar-se, em que território se travaria
o conflito entre as duas, afora o fato de as pulsões se apresentarem muitas vezes fusionadas,
portanto fora de qualquer conflito. Essa concepção merece revisão no próprio texto de Freud.
Em Lacan, sofre profundas mudanças através das várias leituras que este fez da concepção de
estrutura, especialmente com a noção de real apresentada no nó Borromeu.
Se a pulsão de morte não apresentou aplicação imediata na teoria das
neuroses e dos conflitos subjacentes a elas, qual o motivo de sua persistência
nas elaborações posteriores de Freud? Sem dúvida a forte impressão causada
em Freud pela Primeira Guerra: a violência de que tomou ciência,
estarrecido, ainda o convocava a dar um lugar teórico ao poder, na vida
psíquica, de uma pulsão destrutiva ou agressiva. Além desse nível social,
apresentavam-se na clínica psicanalítica as neuroses traumáticas e
manifestações masoquistas, como a reação terapêutica negativa e os autoataques, que solicitavam serem levados em conta na teoria. E é isso o que faz
Freud, mas não invocando a tendência ao inorgânico por si só. [...] Fica
estabelecida uma diferença de nível entre a definição especulativa e
biológica da pulsão de morte, e o campo da destrutividade do homem, como
verdadeiro tema de interesse clínico. (RUDGE, 2006, p. 81).
Trabalha a autora para demonstrar a impotência dos argumentos tomados de
empréstimo à biologia, para explicar o alcance da pulsão de morte ou destrutiva. Voltamos
sempre à inquietante e embaraçosa pergunta postulada em ―Mal-estar na civlização‖, de onde
vem a pulsão destrutiva? Isso nos leva de volta às clássicas interrogações: tratar-se-ia de
resquícios dos impulsos primitivos selvagens? Seria resultado da essência má, inata no
40
homem? São questões respondidas pelo próprio Freud com as atualizações do conceito de
pulsão e por Lacan com o conceito de real, gozo do real.
Algumas inversões fundamentais foram registradas por Freud no bojo desta nova
construção metapsicológica mais complexa, que além de colocar em discussão os
pressupostos da biologia, oferece mais possibilidades de explicar o que se apresentava até
então, como pontos obscuros e indizíveis do aparelho que Lacan chamou de Real.
A pulsão de morte passou a ser considerada a pulsão que rege primariamente o
aparelho ou, como retoma Lacan, ―toda a pulsão é virtualmente pulsão de morte.‖ (LACAN,
1988a, p. 68). O masoquismo foi considerado originário e se expandiu a toda esfera pulsional,
deixando de ser apenas mais um aspecto parcial da pulsão sadomasoquista. E o supereu,
inicialmente colocado como herdeiro do complexo de Édipo, tornou-se igualmente primário,
transformando-se no núcleo do próprio eu, e passando a ser mais arcaico do que o eu ou,
como observa Lacan, elevado à condição de estrutura.
Recoloquemos clinicamente a discussão:
O supereu representa a continuidade e o amadurecimento de uma elaboração
que, ao nosso ver, fora apenas esboçada com a postulação da pulsão de
morte. Constitui uma ferramenta teórica fundamental sem a qual o
entendimento da operação da pulsão de morte na experiência psicanalítica,
assim como seu manejo, não se torna possível. Na passagem da pulsão de
morte, entendida como força biológica que afeta o ser vivo, para a
destrutividade de ordem psíquica [...] o supereu é uma mediação
indispensável. (RUDGE, 2006, p. 81).
Nasce, desse modo, o supereu inseparavelmente ligado à pulsão de morte, ao
sentimento de culpa e à busca de punição inconscientes, numa espécie de tensão inicial com o
eu, representando a força da pulsão de morte que está psiquicamente ligada pelo supereu e
assim se torna reconhecível. Encontramos aí os elementos necessários para evidenciar um
aspecto teórico e clínico da maior relevância, pois, na medida em que a pulsão de morte vinha
sendo considerada silenciosa, em contraposição ao caráter ruidoso da pulsão de vida,
afirmação que se estendeu até o ―Mal-estar na civlização‖, o reconhecimento dos avatares do
supereu abalou os alicerces dos pressupostos anteriores. Cabe ressaltar que dar vozes ao
imperativo de gozo do supereu, como Lacan o fez, seguramente veio favorecer a eficácia da
clínica psicanalítica.
41
Para responder a um mesmo conjunto de problemas levantados pela clínica
psicanalítica surge, na mesma época, a proposição da pulsão de morte elevada aos níveis do
supereu e do masoquismo, como responsáveis pelo mal-estar primário e pela inexorável
compulsão do humano a repetir a dor, o sofrimento e a crueldade, em toda a sua extensão.
Essas questões continuaram sendo tema central de todas as formulações posteriores de
Freud, já que o raciocínio econômico do quantum energético e do retorno ao inorgânico não
lhe proporcionaram condições para produzir novos avanços.
A pulsão de morte ou destrutiva, desdobrada em supereu arcaico e em masoquismo
primário, foram passos de uma mesma elaboração teórica que visava recobrir a problemática
em torno das conseqüências devastadoras do suposto silêncio da pulsão de morte e do seu
manejo clínico. Entretanto, o avanço do ato analítico desmistifica essa tendência, através do
próprio conceito de supereu, em Freud e do imperativo de gozo do supereu, avatares do real,
em Lacan.
Ao questionar a concepção de dualismo pulsional, Rudge defende a idéia de duas
formas de funcionamento da mesma pulsão, retornando a Lacan:
A distinção entre pulsão de vida e pulsão de morte é verdadeira, na medida
em que manifesta dois aspectos da pulsão. Mas com a condição de conceber
que todas as pulsões sexuais se articulam no nível das significações no
inconsciente, na medida em que, o que elas fazem surgir, é a morte como
significante. (LACAN, 1979b, p. 243).
Ao mesmo tempo, oportunamente, observa que Freud jamais nomeou espécie alguma
de energia psíquica que estivesse a serviço da pulsão de morte, tal como o fez em relação à
pulsão de vida, isolando a noção de libido.
Quanto ao chamado último dualismo pulsional freudiano, Miller (2002)
contrapõe as posições de Freud às de Lacan: enquanto este último foi
monista, o primeiro teria sido dualista. Sem dúvida a retórica freudiana
enfatizou o combate entre Eros e a Pulsão de morte como uma verdadeira
luta de titãs, a tal ponto que o autor expressa seu temor de ter cansado, com
isso, o leitor do texto O mal-estar na cultura. Qual a natureza dos dois
combatentes, até que ponto são independentes? (RUDGE, 2006, p. 82).
Em diversos momentos, Freud parece estar mais perto do monismo. Parece, às vezes,
falar de uma única pulsão, como no final de O mal-estar na cultura: "Quando uma pulsão
instintiva sucumbe ao recalcamento, seus elementos libidinosos se transformam em sintomas,
seus elementos agressivos, em sentimento de culpa." (FREUD, 1974b, p. 139).
42
Lacan defende o monismo das pulsões com base nos pressupostos da estrutura de
linguagem e da teoria do significante, tantas vezes refeita, especialmente em sua última
demonstração através da teoria topológica.
Sigamos tentando afastar a pulsão de morte do domínio biológico. Segundo Rudge,
não seria invocando uma outra qualidade de energia, mantendo-se no plano apenas
econômico, que Freud daria conta dos fenômenos clínicos que o levaram a teorizar a pulsão
de morte e um funcionamento psíquico além do princípio do prazer. O que Freud reputa como
uma elaboração metapsicológica é aquela que aborda um processo psíquico dos três pontos de
vista, o econômico, o topográfico e o dinâmico. Lembra que a explicação puramente
econômica não faz sentido na teoria freudiana e que as metáforas econômicas levaram muitas
vezes a interpretações bastante simplificadoras, como ocorreu com o princípio de Nirvana.
O princípio do Nirvana, apresentado como correlato da pulsão de morte na
época em que esta foi introduzida, representa a tendência para o retorno ao
inanimado. Ora, a pulsão de morte, em sua forma de apresentar-se na
experiência analítica, como adverte Lacan, é sem dúvida uma experiência de
discurso. (RUDGE, 2006, p. 84).
O problema essencial é que é preciso um permanente trabalho para manter a pulsão
operando dentro dos limites do princípio de prazer, uma vez que, ela apresenta essas duas
faces que podem se alternar, a de uma descarga total e a do repouso absoluto,
paradoxalmente.
Rudge assinala a atualidade do conceito de supereu, argumentando que a repetição
funciona de modo inverso ao da adaptação, e justificando-a pela existência, nos humanos, do
meio de linguagem. Adota a inversão proposta por Miller, “a pulsão de morte é pulsão do
supereu"(MILLER, 2002, p. 30-31) e se manifesta pela repetição indomada, não temperada
pelo princípio do prazer.
Com relação ao papel das identificações na origem do supereu, a autora evoca a
presença das mais arcaicas, que estão referidas na experiência da prematuração do filho do
homem ao nascer tal, como observou Freud.
[...] que o leva a depender dos cuidados recebidos do adulto falante, e muito
o ouvirá falar enquanto lhe prodigaliza esses cuidados. É nesse processo
mesmo que surge o supereu, que se erige a partir das impressões dessa
época, sobretudo das palavras ouvidas (FREUD, 1923/1975, p.52-53). A
formação do supereu resulta do que podemos tomar como um trauma
43
estrutural, e representa um resíduo das primeiríssimas identificações,
constituindo, como vimos, o próprio núcleo do eu. (RUDGE, 2006, p. 85).
A concepção do supereu constituído pelas primeiras identificações diz respeito ao
traço unário enquanto identificação fundamental que está no centro da repetição. No
seminário A Identificação, Lacan (2003) vai afirmar que o procurado na repetição é sua
unicidade significante. A repetição pressupõe o fundamento do Um primordial, constituído no
lugar de uma falta. Sugerindo que o sujeito, o eu e o supereu nascem no mesmo lugar – no
encontro do homem com o significante.
Baseado na lógica do significante e na topologia da estrutura real, imaginária e
simbólica da linguagem, Lacan retoma o supereu como uma espécie de trauma constitutivo
(lembrando Rudge) do ser de fala, uma escolha forçada, e isto é imperativo, pois só há a
realidade do discurso. Uma espécie de trauma constituinte que, longe de ser da ordem do
temor das perdas e do desamparo, é da ordem da entrada na linguagem.
São os mesmos caminhos que o levaram a conceber o masoquismo primário como
estrutural e tributário da dependência originária ao Outro da alienação constitutiva, Outro da
linguagem, do assujeitamento ao imperativo do significante e da sua necessária incidência
sobre o corpo do ser de fala. Sem dúvidas tais argumentos distanciaram Lacan de Freud.
O trauma original para Lacan é a própria entrada do ser na ordem do discurso, que
para advir sujeito aliena-se ao desejo e à Demanda do Outro, nos desfiladeiros do significante,
operação que pode mortificar ou vivificar o corpo do vivo, constituindo-se como a condição
necessária para fazê-lo existir como um ser pulsional. Tem-se assim o nascimento do ser
falante, do sujeito desejante e do objeto que determina seu gozo nas redes da linguagem, na
circulação dos discursos e nos ciframentos de gozo da pulsão, portanto do supereu.
Podemos esboçar uma genealogia da crueldade que se coloque para além do biológico,
do natural e do energético, baseando-nos nas teorias que definem o sujeito do inconsciente
como efeito do significante, numa estrutura de modalidades de gozo dos discursos.
Poderíamos minimamente distingui-las: a crueldade própria da pulsão destrutiva, em todos os
seus níveis, que vai dos atos mais banais do cotidiano às guerras; a crueldade do sujeito para
com ele próprio, nas formas do masoquismo moral e sexual; a crueldade feroz do supereu, que
obriga o sujeito a gozar num jogo mortífero com a razão, entre luzes e obscurantismo.
Esses fenômenos estão vinculados à origem do ser falante, marcada pela servidão ao
Outro do simbólico, pelos diversos níveis de submetimento ao outro semelhante e pela
44
condição inicial de objeto de capricho e gozo do Outro, imperativos da estrutura de linguagem
e de discurso, cuja silhueta se assemelha à perversão. Ou seja, o desamparo inicial, mais que
decorrente da prematuração e da dependência inicial ao outro semelhante, decorre do fato de
nascermos desaparelhados do simbólico, dependentes da instauração das operações
significantes da alienação e separação no campo do Outro e do real de onde o sujeito advém.
Ao inscrever-se este momento inaugural da subjetividade, inscrevem-se também as formas do
supereu e do masoquismo primário como correlatos da castração e do recalque originário,
operações pulsionais que se fazem nos circuitos da repetição, traduzida por Lacan por
autômaton e tiquê.
São muitos os caminhos percorridos por Lacan para tratar da repetição e da pulsão de
morte. Segundo Rudge o faz em três momentos precisos: no estádio do espelho, onde está
centrado nas imagos e ―sugere que a pulsão de vida e de morte estão imbricadas na relação
que se estabelece entre o corpo-organismo e o corpo imaginário unificado, em que este não
apenas é ideal mas também objeto de agressividade.‖ (RUDGE, 2006, p. 87). No Discurso de
Roma, a pulsão de morte passa a depender estreitamente da fala e do significante, como um
conceito antibiológico. Aí a ênfase está colocada na ―morte simbólica como uma segunda
morte diversa da biológica, que por um lado a antecipa, mas por outro a transcende, ao
garantir ao homem uma sobrevida significante, apoiada na transmissão.‖ (RUDGE, 2006, p.
87). Final dos anos sessenta a compulsão à repetição será tomada na vertente do gozo e do
real que volta sempre ao mesmo lugar. ―O corpo está envolvido no gozo, mas o papel do
significante na sua produção, ao invés do recurso à biologia, justifica a idéia de que é a
identificação ao supereu e as suas injunções, que dá conta do que é da pulsão de morte na
clínica psicanalítica. (RUDGE, 2006, p. 88).‖
Segundo Tânia Coelho dos Santos, o que condiciona a pulsão de morte ao supereu, e a
repetição é a marca de gozo do significante, pura e simples repetição que em última instância
visa o gozo. Dois aspectos, aqui, merecem relevo: O primeiro, relativo à distinção da pulsão
em Freud e Lacan e o segundo voltado para as distintas modalidades lacanianas do gozo.
Esse Outro gozo, Freud o definiu por meio de uma energética, onde se opõe
a pulsão regulada pelo princípio da constância, e a pulsão de morte, como
vontade de retornar ao inanimado, ao zero de tensão libidinal. O phallus, é o
número que confere ao princípio do prazer sua medida de regulação [...] O
Outro gozo, em termos freudianos, é o regime da pulsão de morte. Introduzo
aqui meu argumento: a invenção do real de Lacan é um suplemento à
energética freudiana. O real é sem lei, sem nome, sem a medida fálica que
regula e submete todo gozo ao princípio do prazer. (COELHO DOS
SANTOS, 2006e, p. 59).
45
É preciso lembrar que foi na experiência analítica que o supereu se fez ouvir e se
ofereceu à leitura do psicanalista. Fez ouvir os ditos e os dizeres do sofrimento em forma de
crueldade, de sacrifício e violência, enfim, do ―empuxo‖ ao pior e ao gozo mortífero,
atualizados na transferência e na repetição. Com isso, revelou-se a sua materialidade
significante e seu referente, o objeto a, referências sem as quais se torna difícil abordar,
analiticamente, a pulsão de morte, gozo da pulsão destrutiva.
Por caminhos estritamente clínicos, o gozo do supereu se impôs a Freud do mesmo
modo que o gozo do objeto a, ou do real, se impôs a Lacan. Aliás, é digno de nota quão
pouco valorizado é o conceito de supereu na construção do conceito de gozo em Lacan,
articulação aqui necessária para introduzir a abordagem da violência pelas vias dos aparelhos
de discurso.
Vejamos que razões nos levam a articular supereu e discurso. Inicialmente, é preciso
lembrar que tudo que se transmite no mundo de linguagem e cultura dos seres falantes é efeito
de discurso. Portanto, o que está em jogo no supereu se transmite pela estrutura significante e
pelo objeto voz, que vocifera e ao mesmo tempo faz declarações de amor. Originário mundo
humano dos sons, das vozes e das falas, mundo falado no contraponto ao olhar.
Em parcial discordância com Freud, Lacan define o supereu essencialmente como
imperativo de gozo, rediscutindo sua condição de representante do pai, da interdição do gozo,
herdeiro do complexo de Édipo, embora identifique o supereu como uma instância paradoxal
nas teses de ambos. Numa análise macroscópica, a diferença entre eles residiria no fato de
Freud dar demasiada ênfase ao supereu como a instância que interdita o gozo, ao passo que
Lacan o coloca a serviço do gozo de modo muito particular.
Lacan nos surpreende ao definir o supereu como imperativo de gozo, e sua
discordância essencial em relação a Freud assenta-se em torno da definição da função do pai,
da interdição e da castração. Veremos adiante que a retomada do conceito do supereu
realizada por Lacan não se fará pelos caminhos do pai.
Trazer este conceito para o campo lacaniano, significa definir o supereu como
modalidades de gozo, e identificá-lo como a única instância que ordena gozar, em confronto
com a consciência moral, os ideais do eu, os imperativos éticos e as interdições postuladas
pela lei.
46
O imperativo de gozo em Lacan (1988a) corresponde ao que ele vai tratar no
seminário A ética da Psicanálise como paradoxo do gozo, que introduz uma ética que não é a
do bem, no sentido do bem-estar. O comando Goza! não equivale a tenha prazer.
Se, para Freud, o supereu se apresenta por um lado, como a instância que interdita que
proíbe o gozo destrutivo, por outro é ele que revela essas estranhas formações que são o
sentimento de culpa e a necessidade de punição, eventos mentais precoces e amplamente
presentes na vida psíquica. Freud os identifica como importantes modos de satisfação urdidos
pelo supereu a serviço da pulsão destrutiva. Lacan apenas explicita que elas não passavam de
modalidades de gozo e não o faria sem a precedente elaboração do problema formulado pelo
mestre.
O imperativo de gozo formulado por Lacan no seminário ―A ética da psicanálise‖ é o
paradoxo do gozo do supereu, na medida em que o gozo está atrelado a um bem absoluto,
impossível, que se traduz em mal-estar. É o bem em sua versão kantiana – praticar o bem do
outro à imagem do seu próprio bem não vale grande coisa; para que tenha valor moral, é
preciso que o bem esteja separado de qualquer comodidade. A lei é formulada como razão
prática, impondo-se em termos puros de razão, isto é, para além de todo afeto, ou seja, sem
nenhum motivo que interesse ao sujeito. Uma lei cruel, tirânica, que se opõe ao desejo, e ao
sujeito. A transgressão dessa lei não libera o desejo, mas reforça a inibição e a interdição.
Pergunta-se Lacan (1988a) no referido Seminário VII, em nome de quê a
agressividade é contida e responde que é em nome do atentar à imagem do outro, por ser a
imagem sobre a qual nos formamos. Esta base do altruísmo, de uma certa lei de igualdade, de
vontade geral, encerra contradições, segregação e guerras. Associamos essas formulações ao
pensamento desenvolvido por Freud (1976d) em Psicologia das massas e análise do eu, sobre
a pulsão gregária, onde diz que o homem não é primariamente gregário. O homem é uma
criatura individual numa horda conduzida por um chefe
É na medida em que o sujeito faz com que a agressividade se volte contra si mesmo,
que provém a energia do supereu. Uma vez que se entra nessa via, não há mais limites – ele
engendra uma agressão cada vez mais pesada do eu. Ele a engendra no limite, ou seja, na
medida em que a mediação, que é a da lei, acaba por faltar.
O mandamento amarás a teu próximo como a ti mesmo é da ordem do impossível,
conforme analisamos no capítulo anterior. Exortação e interdição são uma única e mesma
coisa. São faces do imperativo de gozo. Portanto, recuo de amar meu próximo como a mim
47
mesmo, na medida em que nesse horizonte há algo que participa de uma crueldade
intolerável. Nessa via, amar meu próximo pode ser a via mais cruel. (SOEIRO, 2005)
Tânia Coelho dos Santos (2001a) chama atenção para as conseqüências da relação
primitiva do significante com o gozo em dupla relação. De um lado, há o desperdício de gozo,
entropia, situada como efeito do significante, mas uma perda significantizada. De outro,
aquilo que é reencontrado aí, é um suplemento de gozo, introduzido com o objeto a como
mais de gozar, suplemento da perda de gozo.
Nesta trilha, deixa-se a topografia freudiana para passar à topologia moebiana do
direito e do avesso, redefinindo a relação do exterior com o interior na constituição da
subjetividade, favoráveis a esclarecer alguns aspectos do supereu. Lacan o faz em outras
bases, afirmando que o que é incorporado do exterior, enquanto estrutura significante de
linguagem, está posto para além do que vem do casal parental e do romance familiar,
privilegiando o estrutural em lugar do cultural, por entender que a realidade psíquica se
ordena como aparelhos de discurso.
Lacan soube precisamente destacar a extrema crueldade do supereu referida por Freud,
suas exigências desmedidas e sua falta de conexão com a realidade, guiada por uma lei
insensata, uma lei que, no limite, é a própria negação da lei ou o próprio desconhecimento da
lei. Relembra que, quanto mais o sujeito se esforça para obedecer aos imperativos categóricos
kantianos, tanto mais o supereu se torna exigente, recuperando do texto de Freud um aspecto
clínico essencial que rege a cena: a crueldade dessa figura feroz e obscena está primariamente
dirigida ao próprio sujeito nas modalidades da angústia, da culpa, da punição, da inferioridade
e do masoquismo, conforme se vê nas diversas manifestações clínicas.
Voltou ao conceito de supereu em vários seminários, dizendo que esta é a grande
novidade da segunda tópica freudiana e, surpreendentemente, afirma no Seminário XVIII, que
jamais falou dele. No seminário XX, ―Mais ainda‖, Lacan conclui categoricamente – o
supereu é essa instância que diz: Goza! ―Nada obriga o sujeito a gozar, senão o supereu.‖
(LACAN, 1982, p. 11).
48
2.1.2 Imperativo de gozo do significante mestre (S1) e do objeto a.
Tomemos como referência fundamental para abordar o supereu em Lacan uma
mudança de perspectiva que está posta em ―Televisão‖, onde este autor desenvolve
interessante diálogo com o texto freudiano ―O Mal-estar na Civilização.‖
O que está em jogo é a concepção de estrutura. O supereu, a castração, o sintoma, e o
recalque seriam resultantes da repressão engendrada pela família, pela civilização ou ao
contrario, civilização, a família, a própria sociedade e o capitalismo, seriam produzidos pelos
efeitos do recalque, da castração, do supereu, operações significantes primordiais inerentes à
estruturação da subjetividade?
Passemos ao texto no qual se pode também vislumbrar forte retificação à leitura dos
pós-freudianos sobre a segunda tópica:
[...] Freud não disse que o recalque provinha da repressão: que a castração
seja devida ao fato de que papai, a seu menino mexendo no peruzinho,
brada: ―é certo que vão cortá-lo se você tornar a tocá-lo‖. Eis no conjunto, a
báscula da segunda tópica. A gulodice com a qual ele denota o supereu é
estrutural, não efeito da civilização, mas mal-estar (sintoma) na civilização.
De maneira que convém tornar a tratar da prova, a partir do fato de que seja
o recalque que produza a repressão. Por que a família, a própria sociedade
não seriam criações a se edificarem a partir do recalque? [...] mas poderia ser
assim porque o inconsciente ex-siste, é motivado pela estrutura, ou seja, pela
linguagem. (LACAN, 1993, p. 52-53).
Comecemos pela expressão ―gulodice do supereu‖, que vem demarcar a origem
pulsional dessa instância psíquica, determinada pelo gozo insaciável da pulsão. Se
traduzirmos a concepção de pulsão em Freud pelo real nas espécies do objeto a em Lacan
(2005), temos como resultado, o supereu como herdeiro do objeto a, neste caso encarnado no
objeto voz, dimensão explorada desde o Seminário X Angústia. A referência ao supereu como
voz que aparece neste seminário é de suma importância, pois daí em diante, Lacan o vincula
ao objeto a e o distingue definitivamente da instância do ideal do eu e do pai.
Temos assim uma avançada concepção do supereu, que reúne as duas dimensões
necessárias, a saber, o significante mestre e o objeto a. A dimensão significante comporta a
estrutura, daí porque Lacan afirmou o supereu é estrutural, é mal-estar, é sintoma na
civilização e não efeito da civilização. O supereu é correlato da castração, do recalque e sua
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origem advém do S1, situado no lugar do agente no discurso do mestre, que corresponde ao
primeiro tempo lógico da efetuação da estrutura do aparelho psíquico.
A teoria dos discursos apresentada no Seminário XVII, O avesso da psicanálise, vem
em nosso auxílio demonstrar uma avançada concepção da estrutura de gozo da linguagem, da
qual o supereu é tributário.
O que prefiro, disse, e até proclamei um dia, é um discurso sem palavras.É
que sem palavras, na verdade, ele pode muito bem subsistir. Subsiste em
certas relações fundamentais. Estas, literalmente, não poderiam se manter
sem a linguagem. Mediante o instrumento da linguagem instaura-se um certo
número de relações estáveis, no interior das quais certamente pode inscreverse algo bem mais amplo, que vai bem longe do que as enunciações efetivas.
Não há necessidade destas para que nossa conduta, nossos atos,
eventualmente, se inscrevam no âmbito de certos enunciados primordiais. Se
não fosse assim, o que seria do que encontramos na experiência,
especialmente a analítica [...], o que seria do que se encontra para nós sob o
aspecto do supereu? (LACAN, 1992, p.11).
Ao redefinir o supereu, é a própria concepção do aparelho psíquico que Lacan
radicalmente pôs em jogo nos seus termos, e não mais nos de Freud. Desde cedo, Lacan
formulou a teoria da cadeia significante e da estrutura de linguagem para ordenar a
subjetividade, posteriormente concebida como aparelho de discurso.
Ao longo desses
caminhos, o supereu se inscreveu dentre os ―enunciados primordiais‖ da estrutura dos
discursos.
Lacan também surpreende ao dizer que o supereu apareceu inicialmente na história da
teoria freudiana sob a forma de censura, de acordo com o modelo proposto na carta 52. A
perspectiva adotada é a de que ―A censura e o supereu devem ser situados no mesmo registro
da lei‖ (LACAN, 1985, p. 199), porém uma ―lei desprovida de sentido, mas que, entretanto,
só se sustenta de linguagem.‖ (LACAN, 1979a, p. 11). A gênese do supereu, embora se
coloque na relação da lei com o significante é uma lei insensata. (LACAN, 1979a, p. 123).
Para prosseguir nossa análise, é necessário precisar dois pares de conceitos.
Comecemos fazendo o exercício de separar o significante mestre do objeto a, para então
separar a função do pai da castração. No que tange à voz, é necessário distinguir o significante
mestre do objeto a, para dar a justa medida do supereu como voz, pois a voz é uma das
espécies do objeto a.
Poder-se-ia dizer que Freud e Lacan estão de acordo a respeito deste ponto,
que esta voz herda as ‗vozes primeiras‘, as vozes vindas dos primeiros
50
objetos. Para Freud, é uma voz herdada do pai da criança, já que é uma voz
que veicula o interdito. Para Lacan, não é ‗herdada do pai‘, ele diz ‗herdada
do Outro original‘, do dito primeiro, portanto, herdada do Outro da
linguagem. (SOLER, 2001c, p. 83).
Quero ressaltar que a diferença entre esses elementos só pode ser elucidada com a
teoria dos discursos, além do fato de que tudo que se situa além dos laços de parentesco são os
laços sociais, sustentados nas práticas discursivas.
A hipótese estrutural do supereu em Lacan exige que se diga de saída que o Édipo é
um mito. A castração é outra coisa. A castração é produzida estruturalmente pela linguagem, e
não pela ordem paterna. A tese formulada no Seminário O avesso da psicanálise é esta: não é
o pai que determina a castração, é o significante - mestre que determina a castração. ―A lei da
limitação de gozo é gerada pelo S1 ( e se diz lei porque ela se impõe a todo sujeito que entra
na linguagem), porém não é uma lei da ordem social, não é uma lei da civilização nem do
regime patriarcal, é uma lei da estrutura.‖ (SOLER, 2001c, p. 85). O supereu está identificado
aos imperativos do S1 que repousa sobre uma lei insensata cuja significação é desconhecida.
Esta é sua origem.
Quanto à função do pai, em Lacan, ―não é o interditor, o pai é aquele que encarna uma
solução de desejo possível com a lei.‖ (SOLER, 2001c, p. 84). Sua responsabilidade incide no
ponto em que o desejo recalcado e a lei, que formam uma única coisa, fazem limite ao gozo,
regulando-o. O supereu é justo o que aí se intromete.
Com essas teses apresentadas no Seminário XVII, O avesso da psicanálise, Lacan
refuta a idéia de a castração se constituir como o enunciado da interdição. Vejamos como ele
desenvolve essa inversão, baseado no conceito do real.
E a interdição só vem do pai na condição do pai morto por ser aquele que
tem o gozo sob sua guarda, é de onde partiu a interdição do gozo [...] Que o
pai morto seja o gozo, isto se apresenta a nós como sinal do próprio
impossível [...] O real é o impossível. Impossível do ponto de vista lógico,
daquilo que do simbólico se enuncia como impossível (LACAN, 1992, p.
116).
A rigor, Lacan reduz o mito do pai do totem e tabu ao enunciado do impossível,
reconhecendo para além do mito do Édipo um operador estrutural que é o pai real: ―Agente da
castração que apresenta um impossível,‖ (LACAN, 1992, p. 116) asseverando uma nova
formulação: ―Somos aí enviados a uma referência completamente outra, a da castração, a
51
partir do momento em que a definimos como princípio do significante-mestre.‖ (LACAN,
1992, p. 117).
Em síntese, Lacan extrai deste real impossível da castração, operação do S1, a força
da lei insensata do supereu, com o que favorece distingui-lo do pai em sua relação ao desejo e
a lei.
O supereu como imperativo de gozo é correlato da castração porque ordena algo em si
mesmo impossível. O imperativo de gozo, que marca o modo de operar do Supereu, está
ancorado no que Lacan desenvolveu no seminário VII, A ética da psicanálise, acerca da
psicanálise como ―paradoxo do gozo‖. Essa formulação faz conexão com o que Lacan
desenvolve nos seminários posteriores, sobre a figura de Deus, enquanto operador de uma lei
tirânica. Em relação a este aspecto, no capítulo intitulado ―A feroz ignorância de Yahvé‖,
Seminário XVII, O avesso da psicanálise, Lacan afirma que o discurso do mestre é o discurso
de Deus, numa posição radical da sua feroz ignorância. Yahvé está provido do amor, do ódio
e da ignorância, ele representa faces do supereu.
Um aspecto importante a ressaltar é que embora uma das faces do imperativo de gozo
do supereu seja a exortação, contudo, exortação e interdição são faces de um funcionamento
que empurra para o excesso.
Quem se aplica a submeter-se à lei moral, sempre vê reforçadas as exigências mais
minuciosas, mais tirânicas do seu Supereu. Quem que avança na via do gozo sem freio
encontra obstáculos, que se apresentam de inúmeras formas, como nossa experiência nos
mostra todos os dias. (SOEIRO, 2005).
Como já foi anunciada, a outra dimensão do supereu é a de objeto voz, ou seja, o
objeto a não é um significante, embora uma voz seja sempre solidária à cadeia significante,
podendo ser confundida com o significante mestre. É preciso correlacionar este objeto na sua
função de causa de desejo e mais de gozar com a função do supereu. Soler afirma que, se o
supereu é instrumento de gozo interno, intrasubjetivo, é também causa de tormenta para o
sujeito. Dentre outras razões igualmente importantes, permite-nos distinguir a função do
supereu da função do analista.
Do supereu, é preciso lembrar que é de início, e essencialmente, uma voz
que censura, razão pela qual Freud pode dizer que o obsessivo, às vezes, se
presta a uma confusão com o melancólico porque todos os dois têm uma
voz interior que lhes buzina nos ouvidos. Freud comenta dizendo que a
presença desta voz indica que há nesses sujeitos uma diminuição do que ele
52
chama a estima de si mesmo, talvez, uma aversão por si mesmo, que pode
chegar, certamente, ao que Lacan chamou o ódio de si, uma voz, portanto,
que condena, denigre e que, no extremo, insulta.
É preciso notar que o supereu é tão persecutório quanto as vozes da psicose,
a única diferença, no que diz respeito a este traço do supereu, é a atribuição
subjetiva: no supereu do obsessivo, ou do melancólico, a voz não é atribuída
ao Outro, ela não surge, tampouco, no real. Finalmente, as palavras do
supereu têm a mesma estrutura que toda atribuição vinda do Outro,
atribuição que se formula sob a forma de um ―tu és... isto ou aquilo‖, que o
sujeito pode retomar sob a forma de um ―eu sou...‖, o ― eu sou‖ sendo,
muitas vezes, a inversão deste ―tu és...‖ , que vem do Outro. (SOLER,
[2001c], p. 83).
Lacan ressalta no seminário ―A angústia‖, que as angústias do supereu não são sem
objeto e que este objeto é localizado, precisamente, do lado do ser do sujeito. Ressalta
também que o supereu gera a angústia não do fracasso, mas do êxito, angústia também
paradoxal em relação ao bom senso e ao princípio do prazer. Explorar a dimensão de voz do
supereu dada por Lacan permite esclarecer o trabalho clínico, especialmente no que tange aos
chamados sintomas contemporâneos não classificáveis.
Tudo que se relaciona ao supereu tem enorme pertinência clínica, especialmente na
clínica contemporânea das compulsões, depressões, impulsões, das várias formas de
violência, das doenças das mentalidades, não regidas pelo gozo fálico. Essas manifestações
devem ser abordadas na perspectiva da clínica dos discursos, conforme propõe Coelho dos
Santos, que adverte sobre o poder das vozes do supereu.
A voz é o objeto patológico, resto da Coisa (das Ding) que ressurge
parcializada sob as espécies do gozo não-todo, o objeto a. Por isso, o
discurso analítico promove o objeto a voz no lugar do agente, extraindo o ser
falante da sujeição à voz do supereu, como se pode ver na fórmula do
discurso analítico. (COELHO DOS SANTOS, 2005b, p. 76).
Há ainda certas situações de peso na experiência analítica que dizem respeito às
angústias superegóicas que são as mais difíceis de tratar; talvez sejam, também, as mais
mórbidas, já que o supereu funciona como uma espécie de lei de ferro que oprime o sujeito, o
que por si só não seria um grande problema, se ela própria não fosse uma lei desregulada e
insensata.
A reação terapêutica negativa é exemplar nesta série. Nela o sujeito está submetido a
uma voz que vaticina piorar, gozar do pior. Observa Soler que Freud já atribuía ao supereu a
reação terapêutica negativa como sendo irredutível em alguns sujeitos, aqueles que são
53
estranhamente habitados por algo, como uma recusa feroz de qualquer melhora, de qualquer
pacificação. São esses sujeitos que ficam mal quando a vida melhora!
Apresenta Freud o supereu como um cortejo de afetos entre angústia e
culpabilidade, e Lacan sugere que Freud não conseguiu separar o supereu da
função do pai pela presença destes dois afetos que produzem o supereu, a
saber, a famosa dupla angústia e culpa. Acredita que Freud estabeleceu uma
série causal do pai ao supereu, na medida em que ele reencontra a angústia e
a culpabilidade em relação ao pai nos fenômenos do supereu. (SOLER,
[2001c], p. 87).
O mito do totem e tabu que para Freud viria resolver este impasse - o pai primitivo,
gozador, cujo assassinato teria gerado a culpabilidade dos filhos, a partir daí, submetidos à lei
-, é por Lacan esvaziado, só se salvando dele a estrutura. Soler realiza uma leitura precisa
sobre este aspecto fundamental do supereu no ensino de Lacan.
Lacan defende o ponto de vista de que a culpabilidade não diz respeito ao
pai, que ela provém, em realidade, do impossível que o mito cobre, isto é,
disto que ele chamou de coupabilité, a culpabilidade, que evoca, ao mesmo
tempo, o corte – o gozo cortado, fragmentado – e depois isso evoca também,
o coup, o golpe. A culpabilidade é o afeto do sujeito à medida em que ele
tomba sob o golpe de um gozo cortado, limitado. Donde a tese: O S1
determina a castração. Contrariamente ao que Freud acreditou, o supereu não
vem do interdito, mas sim do impossível. O próprio interdito vem do
impossível. (SOLER, [2001c], p. 91).
A tese apresentada em ―Subversão do Sujeito e dialética do desejo‖ (LACAN, 1998g)
e vinte anos mais tarde no seminário ―Mais ainda‖ é que o fundamento da culpabilidade não
está ligado ao fato de gozar, mas à falta do gozo, ou seja, ao fato de que o gozo é sempre
perdido, parcial, limitado, insuficiente. Imaginar que o que torna o sujeito culpável é aceder
aos gozos não corresponde à tese de Lacan, que sustenta que ser culpável advém da
insuficiência dos gozos, ou seja, da impossibilidade própria da estrutura. Assim, o gozo que
falta advém da estrutura do significante, que em última instância é o responsável pela divisão
do sujeito, e é aí que está o verdadeiro fator causal da culpabilidade. É dessa culpabilidade
originada na divisão do sujeito e do impossível de gozar que o supereu retira sua força
obscena.
De saída, o gozo está barrado pelas operações de discurso da linguagem, só podendo
advir limitado, e este é o fundamento da sua impossibilidade. O supereu como legítimo
herdeiro do discurso se coloca a serviço do que aí se transmite, portanto quando diz ―jouis!‖,
54
(―goza‖!) profere uma ordem impossível. Daí sua natureza feroz; trata-se de uma ordem que
não pode ser cumprida , já que, não importa o que o sujeito fizer, ainda que seja o máximo,
seu esforço jamais será suficiente. E o supereu dirá sempre para que se esforce mais, ainda.
As respostas do sujeito ao supereu podem ser muitas, porém a impossibilidade lhe
estará assegurada. Se ele obedece às suas ordens, a culpa não terá fim, e se ele as desafia,
passando ao ato e incorrendo nas transgressões, o castigo também estará assegurado, com ou
sem culpa. Contudo, é preciso ficar atento ao problema da culpabilidade, pois alguma coisa
muda na história das culpabilidades, que se deslocam tal qual o sintoma.
Em Lacan, o supereu está posto desde o começo como uma instância que participa da
entrada do sujeito na linguagem e do seu encontro com uma perda de gozo que se desvela
pelo sofrimento de não encontrar no mundo nenhum objeto que o garanta, o satisfaça, o
complete e o apazigúe. Ao mesmo tempo, o que o sujeito não aceita é a impossibilidade de
gozar, e o supereu é paradoxalmente posto a trabalhar para anulá-la. Neste sentido, o supereu
participa desta dupla operação de gozo na instituição do sujeito, realizando o trabalho de
Sísifo.
Este é o argumento apresentado por Lacan no Seminário XVII, O avesso da
psicanálise, ―Isso não se articula por um forçamento ou uma transgressão. [...] é precisamente
isso, não se transgride nada. Entrar de fininho não é transgredir. Ver uma porta entreaberta
não é transpô-la. [...] não se trata aqui de transgressão, mas antes de irrupção, queda no campo
de algo que é da ordem do gozo – um bônus.‖ (LACAN, 1992, p. 17). O que está em jogo é
que o imperativo de gozo do supereu não configura nenhuma transgressão, apenas obedece as
estas leis do gozo.
Percorridos os desdobramentos apresentados por Freud, Lacan e outros autores, há
uma questão sobre o supereu que merece atenção e encontra eco no texto de Zizek, com o que
propõe chamar a ―loucura da razão.‖ (ZIZEK, 2006, p.80). O autor baseia-se na tese segunda
a qual a pulsão de morte é o nome para o excesso de negatividade e o objeto a em si, apenas
vestígios de certa falta, ilustrando-a com o seguinte exemplo: ―o crime sádico não é a loucura
empírica; é a loucura da razão. Somente a razão, em sua perversidade, pode imaginar um
crime tão radical.‖ (ZIZEK, 2006, p.81). Seu ponto de partida incide na ruptura com qualquer
trama biológica na concepção da subjetividade e adota a categoria de real como um limite
impossível, proposta por Lacan, partindo da certeza de que algo da razão não funcionará bem,
porque jamais funcionará da maneira esperada.
55
Ao refletir sobre tais proposições, tendemos a concluir que o supereu, em última
instância, seria uma espécie de doença da própria razão, uma espécie de hipertrofia da razão
que jaz no coração do pathos. Poder-se-ia afirmar, então, ser o supereu a doença da pulsão?
Seguindo a tradição da inversão lacaniana, poder-se-ia dizer que o que adoece o ser falante
não é o instinto animal que quer se satisfazer selvagemmente, a todo custo, porque foi
reprimido, mas a imponderável presença do desejo e do gozo que o causa, tecidos de
linguagem nas malhas da razão. A concepção segundo a qual a doença advém de uma nova
razão é tributária da razão freudiana, esta que articula desejo, lei e gozo.
De acordo com a concepção de primariedade do supereu e do que se transmite dos
aparelhos de discurso na construção da subjetividade, pode-se dizer que o homem conhece a
violência desde que se torna ser de fala e de linguagem e advém sujeito dividido. Em vista
disso, o sofrimento é primário, como também o masoquismo e o sadismo o são, posto que se
situam no campo do Outro. É importante que se reafirme que não existe um instinto de
violência inerente ao ser humano. A pulsão, própria da razão que Lacan chamou estrutura de
linguagem, tem no supereu a instância psíquica que atesta a existência da razão que os
discursos veiculam. Atesta também que a impossibilidade de gozar é um imperativo. Mais do
que repetição incansável, o supereu emprega métodos extremos para realizar suas metas.
Exibe de forma paroxística a crueldade e a violência, lembrando que antes de tudo são
significantes veiculados na cultura ou mais precisamente nos discursos.
As manifestações chamadas de efeitos do supereu revelaram a primariedade dessa
instância mortífera, violenta, cruel, que não cessa de confirmar, exaustiva e paradoxalmente, a
existência da razão. Ou seja, que o real como impossível revela o impensável da razão. Que se
tome o supereu, portanto, como causa e não como efeito, e que se o coloque como um
conceito fundamental para pensar o aparelho psíquico tal Freud o concebeu.
Se, para Freud, o supereu é paradoxal porque é simultaneamente herdeiro do complexo
de Édipo (do Nome-do-Pai) e do Isso (pulsão destrutiva), em Lacan pode-se dizer que é
paradoxal porque, sendo herdeiro do S1 (significante-mestre) e do objeto a, objeto voz, está
duplamente submetido à impossibilidade ditada pelo real configurado no discurso do mestre.
Desenvolver e demonstrar essas afirmações requer alguns reajustes conceituais que
foram renovados por Lacan com a teoria dos discursos, como também exige de nós
admitirmos os pressupostos básicos: o inconsciente é estruturado como uma linguagem; o
sujeito é o que S1 representa para S2, só há realidade de discurso. No matema do discurso do
56
mestre, quatro operações fundamentais, comandadas por quatro letras que se posicionam em
quatro lugares fixos, se apresentam.
Tudo começa com o S1, significante-mestre desprovido de qualquer significação,
posicionado como agente no discurso do mestre. Tem-se aí a inscrição da castração como
princípio primordial do S1, que advém da impossibilidade estrutural do gozo todo, tendo o
supereu como seu correlato. A inscrição do significante mestre, S1, produz três operações
subjetivas fundantes: a castração, o recalque originário e imperativamente a inscrição do
supereu, comandado por uma lei insensata e sem sentido.
Passemos ao lugar do outro que é ocupado pelo S2, o saber, o outro significante, de
onde emerge o campo do sentido e da significação decorrente da articulação de S 1 com S2. O
máximo valor do S2 está dado, entretanto, pelo valor de gozo que comporta, neste caso,
situado como meio- de-gozo. (LACAN, 1992, p. 175). Para o mestre, o outro é o escravo,
aquele que tem o saber, do qual o mestre se serve, em toda sua extensão, visando seu gozo e
especialmente explorando seu trabalho. Assim, seja no âmbito da história, ou da constituição
da subjetividade, problemas cruciais da humanidade já estão postos nessa estrutura, a exemplo
da servidão e da escravidão, marcas maiores da exploração de um homem por outro e da
dependência de um homem ao outro, marcas instituintes da violência.
O terceiro lugar ocupado pelo terceiro termo é o sujeito do inconsciente, $, sujeito
barrado, que aparece no lugar da verdade como efeito evanescente dessa estrutura, na qual o
significante-mestre, que é extimo à cadeia, o representa para o segundo significante,
deflagrando a articulação da cadeia e instaurando o campo do sentido. Está feita sua marca,
seu traço unário e seu assujeitamento ao campo do Outro, sacrifício inaugural.
Entretanto no quarto lugar, há um segundo efeito dessa operação significante no
campo do Outro que é a produção de um objeto muito particular, que se escreve objeto a,
identificado como um mais de gozar na regência da economia pulsional desse aparelho de
discurso.
O discurso do mestre nos mostra o gozo como vindo ao Outro- é ele quem
tem os meios. O que é linguagem não o obtém a não ser insistindo até
produzir a perda de onde o mais-de-gozar toma corpo. (LACAN, 1992, p.
117).
Assim, sujeito dividido e objeto a aparecem como duplo efeito das operações
significantes constitutivas da subjetividade. Embora homólogos, o sujeito dividido é o puro
57
efeito da operação da alienação ao Outro, enquanto o objeto a é a operação separadora. Dois
tempos lógicos da efetuação da estrutura.
Discurso do Mestre (LACAN, 1992)
Nessa máquina discursiva estruturante estão dadas as condições de objeto através das
quais o filho do homem, originariamente, entra no mundo. Trata-se da condição de alienação
ao Outro para se humanizar, ao preço da originária e radical escravidão e servidão ao Outro,
sendo este o maior fundamento para o masoquismo primário. Ai reside o radical desamparo
do filho do homem, para além de qualquer argumentação biológica baseada na prematuração,
ou no ponto de vista energético apresentados por Freud.
A outra dimensão do supereu apresentada por Lacan como sendo da ordem do objeto
a, neste caso comparece como objeto voz. É uma atribuição de extremo valor, seja no plano
simbólico, seja no plano imaginário, dada sua importância na existência e veiculação do
significante, enquanto imagem acústica, e não menos importante na presentificação do outro
imaginário que se apresenta, originariamente, não só como olhar, mas também como voz. A
voz, portanto, se apresenta como imperativo do Outro da linguagem e do outro semelhante do
imaginário, sem esquecer sua dimensão real.
No discurso do mestre, que é considerado fundante da subjetividade, aluvião do
inconsciente, encontra-se o sujeito na mesma posição que o objeto, condição de entrada no
mundo simbólico, momento crucial da constituição do aparelho psíquico, marcado pela
alienação ao Outro (simbólico) e pela separação do outro (imaginário). Seja como senhor ou
escravo, encontramos a máxima demonstração da alienação originária, do assujeitamento do
ser falante à estrutura de linguagem, ao significante, ao gozo do significante, apresentando-se,
em contrapartida o objeto a, mais de gozar separador.
Esse discurso é imperativo e sem negociação, impondo a ferro e fogo as regras do
jogo da linguagem, os códigos, a língua, o campo do Outro. Esta é a razão pela qual o
discurso do mestre instaura o mal-estar da cultura, pelas vias do supereu. A violência própria
ao mal-estar da cultura é produto dessa trama de operações significantes primárias de gozo.
58
O mestre ordena submeter-se à lei da linguagem. Diante dessa impossibilidade, algo
(dele próprio) fica fora da lei, o que não impede que seu discurso seja o laço civilizador
fundante, que exige renúncia pulsional e que retorna em forma de imperativo de gozo do
supereu. O sentimento de culpa é o índice do que retorna, primariamente, através do olhar que
vigia e da voz que censura. Portanto, o discurso do mestre é aquele que produz o objeto maisde-gozar, que é causa de desejo, e faz girar a civilização comandada pelas vozes imperativas
do supereu.
Estaria, então, o gozo do supereu no registro do gozo fálico, S1 gozo sexual. De acordo
com o desenvolvimento até aqui realizado, pode-se também situar o gozo imposto pelo
supereu, seja em sua vertente de S1, seja em sua vertente de objeto a, como o gozo do Outro,
gozo não-todo, nomeado por Lacan como suplementar ao gozo fálico, que não encontra
limites nem barreiras. Aqui está o paradoxo do supereu, em Lacan, a argumentação será
desenvolvida no próximo capítulo.
Consideremos as observações feitas por Marcus do Rio Teixeira sobre a dimensão de
gozo não-todo do supereu.
Impossível de ser cumprido este mandato de gozar, justamente, porque, ao
cumprir este mandato, ao seguir ao pé da letra o imperativo do supereu, o
sujeito encontraria sua própria morte, ou seja, o seu próprio desaparecimento
enquanto sujeito porque se o sujeito for ao extremo do gozo do Outro, este
gozo que não encontra o limite, a única coisa que poderá detê-lo será,
justamente, a morte, ou seja, é um gozo que consome o sujeito no sentido
que uma vela é consumida pela chama. Ela vai desaparecendo até acabar e o
modelo mais próximo da nossa clínica é, justamente, o modelo da
toxicomania, isto é o gozo do toxicômano que vai até o fim, até encontrar a
overdose porque ele não tem este limite do gozo fálico, não tem este
significante que possa detê-lo em determinado ponto. (RIO TEIXEIRA,
2004, p. 136).
Interessa-nos visualizar as possíveis modalidades imperativas de gozo do supereu no
laço social, principalmente aquelas relativas à violência. Compreendemos que Lacan acaba
sugerindo que todo aquele que se dedica a submeter-se à lei moral, sempre vê reforçadas as
exigências mais minuciosas, mais cruéis de seu Supereu. Todavia, todo aquele que se instala
na via do gozo desmedido, encontra igualmente obstáculos, pois, seja em um caso, ou no
outro, é preciso uma disposição de sacrifício para atender as exigências do Supereu. Posto que
é imperativo trabalhar incessantemente em nome da impossibilidade de gozar.
59
2.2 O DISCURSO DO CAPITALISTA E A DESREGULAÇÃO DO GOZO
No item anterior, introduzimos a violência configurada como avatar do imperativo de
gozo do supereu, relido por Lacan como imperativo de gozo do discurso. Recorrendo à lógica
dos discursos e aos princípios que os articulam entre si, seguiremos analisando a violência
como avatar do discurso do mestre e do discurso do capitalista.
O mal-estar na civilização foi abordado por Freud com a teoria da pulsão de morte
(destrutiva) e seu correlato, o supereu, e por Lacan com a teoria dos Discursos. O que Freud
chamou civilização, Lacan chamou discurso, laço social, modalidades de ordenação do desejo
e do gozo nos laços sociais.
Lacan propôs, inicialmente, quatro discursos constitutivos da civilização: o do mestre,
da histérica, da universidade e o do psicanalista, acrescentando posteriormente um quinto, a
que chamou discurso do capitalista.
De acordo com sua concepção, as práticas que estabelecem os laços sociais ou
discursos mudam de acordo com as conjunturas, transformando, subsequentemente, as
manifestações subjetivas. O que não muda no discurso é sua regulação, que está condicionada
à estrutura de linguagem. Apesar de a teoria dos discursos inaugurar uma nova etapa do
ensino de Lacan, baseada no efeito de gozo de alíngua para conceber a subjetividade, isso não
significa que estejamos fora da tradição do inconsciente ser estruturado como uma linguagem.
O que vem a ser o social no campo da psicanálise? Segundo Alberti (2005, p. ?), na
teoria de Freud, é preciso começar pela definição do eu, pois,
[...] o eu é sempre outra coisa, o eu é o outro, o eu é dividido, ou, como o
introduz Lacan, que o sujeito mantém, em relação ao Outro uma posição de
alienação e de separação e onde o social faz tanto parte da realidade psíquica
do sujeito quanto qualquer outra representação mais ou menos investida.
Podemos dizer que, para ambos, a complexa origem da constituição do social depende
primeiro da realidade psíquica do sujeito — do que é possível interpretar do campo do Outro
— porém não sem relação ao que lhe é anterior, seja na história dos ancestrais em Freud, seja
na articulação dos significantes ordenados pelos discursos, em Lacan.
60
Aos discursos ou quadrípodes giratórias, considerados aparelhos de linguagem
reguladores da subjetividade e da entropia do gozo, Lacan chamou campo do gozo. São as
modalidades de gozo que concernem aos laços sociais, ou às práticas discursivas que regem
os distintos modos dos seres falantes viverem suas realidades, o que equivale dizer que a
sociedade humana não existe como entidade natural.
O campo do gozo, com seus discursos, é a interpretação dada por Lacan ao mal-estar
na civilização provocada, não pelo entre-guerras, como aconteceu com Freud, mas pelo
movimento estudantil de maio de 1968, na França, que se caracterizou pela contestação geral
à autoridade constituída. Protestavam os estudantes contra as conseqüências políticas e sociais
advindas da queda do comunismo. Por um lado, estavam impregnados da consciência
revolucionária pregada pela revolução cultural chinesa de Mão-Tsé-Tung, a chamada
esquerda maoísta, e, por outro, pelos ideais libertários da revolução sexual e a democratização
dos costumes.
Lacan analisa o mal estar próprio à sua época com as ferramentas dos discursos. O ato
de governar, o ato de educar, o ato de psicanalisar, conforme estabeleceu Freud, e o ato
histérico de fazer desejar, acrescentado por Lacan, representam quatro distintas formas de
cernir a impossibilidade já evocada por Freud. São quatro modalidades de tratamento deste
impossível da castração, sendo que o mal-estar aí presente se regula entre a perda e a
recuperação de gozo nas formas do mais-de-gozar dos laços sociais. O problema é que o
discurso do capitalista está fora desta regulação de gozo, e pode ser configurado como uma
patologia do gozo nos laços sociais.
Lacan retoma o mal-estar decorrente das três fontes de sofrimentos evocadas por
Freud, especialmente aquele que julgava ser o mais importante, que é a relação entre as
pessoas, nos termos dos discursos e da relação deles entre si. Ou seja, a questão da relação do
sujeito com as outras pessoas, abordada por Freud com o conceito de identificação, é tratada
por Lacan como laços que obedecem às leis significantes que ordenam os discursos.
Quanto ao sujeito do inconsciente, Lacan o recupera nas formas de modalizações de
gozo estabelecidas pelos lugares que ocupa em cada um dos discursos, assim como da
passagem de Um discurso a Outro, condicionado pela ex-sistência do inconsciente.
Neste ensino de Lacan, em que o sintoma e o laço social equivalem a quatro
discursos, que se articulam numa ordem precisa e se apóiam na tese de que o real é
impossível, pode-se pensar a violência. Como então articular o real impossível à teoria da
61
violência? Será que ela também é uma modalidade de sintoma ou de laço social? Será que ela
também se ordena segundo a lógica dos quatro discursos de Lacan?
A baliza do mal-estar do ser falante ao longo da civilização sempre esteve
condicionada pelas modalidades da violência advindas do supereu, sendo este o fator
constante a imprimir o caráter paradoxal atribuído ao aparelho psíquico. Com o advento da
ciência e do capitalismo, a violência se apresenta não mais como forte indicador do paradoxo
que regula o gozo, enquanto avatar da impossibilidade manifestada entre perda e mais-degozar, mas como conseqüência da desregulação do gozo, como mutação na regulação do
gozo, rompimento do pacto que os discursos mantinham entre si.
Caberia refletir sobre a pergunta: a violência na contemporaneidade se coloca como
uma resposta em ato, uma espécie de anulação da angústia e da culpa superegóica instituídas
pelo discurso do mestre?
Lacan constrói os quatro discursos para falar das vicissitudes das pulsões, das
modalidades de gozo, do pathos do ser de fala, do mal-estar na civilização. As violências que
aí circulam estão submetidas às leis dos discursos e aquelas da pulsão destrutiva que se
apresentam nas formas do supereu, conforme estabeleceu Freud. A violência do discurso
neoliberal é outra coisa, é ruptura, que se caracteriza como impasse, devastação, mutação dos
laços sociais.
2.2.1 O discurso do mestre: o advento do sujeito e a recuperação de gozo
O discurso do mestre foi considerado "o discurso eterno, fundamental" (LACAN,
1984, p. 47), simplesmente porque existe a estrutura de linguagem. Se não existisse a
linguagem não existiria o mestre, o verdadeiro, aquele que comanda, que é o significantemestre, S1. A ele se obedece antes de tudo, porque existe a linguagem, a qual o ser falante está
submetido. Pergunta-se Lacan: "onde, no reino animal, se viu o discurso do mestre?"
(LACAN, 1984, p. 47), lembrando o aspecto demasiadamente humano que esta concepção
encerra. É por esta primariedade, este simples privilégio, esta simples existência inaugural
dada pelo significante no campo da linguagem, que o discurso do mestre funciona. O termo
62
funcionar é utilizado propositadamente nesta teoria para situar o que constitui o interesse
maior do mestre: "isso é tudo o que o mestre precisa, ou seja, que funcione." (LACAN, 1984,
p. 48). Comandado, como está, pelo S1, só interessa do sujeito sua afânise, seu
desaparecimento.
Deve-se evidenciar a questão essencial que está em jogo nos efeitos da linguagem que
os discursos vêm revelar, especialmente o discurso do mestre, que é o sujeito e sua
causalidade. Os enunciados de Lacan, "o inconsciente é estruturado como uma linguagem" e
"o sujeito é aquilo que um significante representa para um outro significante," podem ser
demonstrados através do discurso do mestre, e ressaltam o momento inaugural da constituição
do sujeito. Neste discurso, fica estabelecido que a estrutura se ordena a partir do princípio
segundo o qual o S1, definido como o significante mestre, representa o sujeito para um outro
significante, o S2, definido como o saber.
O que Freud (1976d) propôs como primeira identificação a partir da idealização do
líder no capitulo VII de ―Psicologia das massas‖, Lacan retomou nos termos do S1 na
estrutura dos discursos. Pode-se fazer uma variação da leitura desse discurso no que diz
respeito ao lugar do agente. Considerando-se que a estrutura se ordena a partir da
incompletude do campo do gozo e sendo o objeto causa de desejo sem referente, ficam
criadas as condições para Lacan nomear o lugar do agente, lugar do comando-, também como
o lugar do semblante. O que é que isso representa?
Isto quer dizer, que doravante qualquer uma das letras pode ocupar este lugar,
podendo fazê-lo como recobrimento de um lugar vazio. E tanto ele é vazio que dá margem
para que as demais letras possam circular, ocupando-o de diversas formas. Neste caso, ocupar
este lugar com o S1, o significante-mestre, que pode ser também chamado de pai real,
equivale dizer que o pai, igualmente, não passa de semblante na estrutura. O semblante,
portanto, é uma espécie de encobrimento significante do vazio, e o nome-do-pai, enquanto
significante fundante, deve ser substituído por outro significante, como mostram os outros
discursos.
63
Os lugares na estrutura de linguagem, ou na estrutura dos discursos são vazios. Para
demonstrar sua hipótese, Lacan recorreu inicialmente ao que tão bem elucidou Émile
Benveniste, ao formular a teoria dos pronomes pessoais. A proposição de Benveniste é que
linguagem e subjetividade se equivalem. Considera, em última análise, que a temporalidade
humana, com todo o seu aparato lingüistico, revela a subjetividade inerente ao próprio
exercício da linguagem. A linguagem é, para ele, a possibilidade da subjetividade, pelo fato
de conter sempre as formas lingüisticas apropriadas à sua expressão; afirma também que o
discurso provoca a emergência da subjetividade, pelo fato de consistir de instâncias discretas.
A linguagem de algum modo propõe formas 'vazias' das quais cada locutor
em exercício de discurso se apropria e às quais refere à sua 'pessoa',
definindo-se ao mesmo tempo a si mesmo como eu e a um parceiro como tu.
A instância de discurso é assim constitutiva de todas as coordenadas que
definem o sujeito e das quais apenas designamos sumariamente as mais
aparentes. (BENVENISTE, 1995, p. 285) .
Benveniste apresenta o aspecto da alteridade da língua e da linguagem, através dos
pronomes pessoais e construída sobre a dinâmica de um espaço vazio na estrutura. Se o
locutor diz eu, dirigindo-se ao alocutário que imediatamente é constituído como tu, isso não
quer dizer que fixa o nome-próprio; ao contrário, no momento seguinte, em que o alocutário
tomar a palavra, ele falará como eu, sem esquecer, contudo, que falam de uma terceira pessoa,
ele que, igualmente por ser vazia, pode ser substituída. (TEIXEIRA, 2001).
A razão essencial para considerarmos que a teoria dos discursos proposta por Lacan
corresponderia à segunda tópica na obra de Freud, cujo fundamento é o mais-além do
princípio do prazer, tem como marco a castração, concebida mais-além do Édipo, mais-além
do pai simbólico, equivalendo à impossibilidade real instaurada pelo S1 dominante no
discurso do mestre. Essa mudança de perspectiva, geradora de uma nova atribuição de gozo
ao S1, estende-se às demais letras ou termos deste discurso, escrevendo novas modalidades de
gozo que trazem modificações radicais no que tange à relação do Um ao Outro.
Tem-se um novo princípio que é conseqüência da escritura dos discursos: as relações
primordiais, constitutivas, não mais estão projetadas entre o Sujeito e o outro, mas
radicalmente entre os significantes e suas modalidades de gozo, de onde o sujeito advém.
64
No campo do Outro, o sujeito não encontrará um significante que o represente. Por
isso os sintomas, discursos e laços sociais são semblantes, suplências da relação do Um com
Outro, posteriormente retomado por Lacan como ―Outro sexo que não existe‖.
No discurso do mestre, o dominante é o S1, o significante mestre que irrompe no real,
faz existir o Um e com ele a primeira lei da linguagem. Embora sendo uma lei sem sentido e
insensata, é como imperativo de gozo que se enoda ao simbólico. A posição do S1,
significante-mestre é de aguardar no lugar do outro o S2, a cadeia significante articulada, o
campo do Outro, que traz o sentido e o campo do saber como meio de gozo, com o qual o S 1
irá se relacionar. Daí a escrita do S2 estar condicionada à do S1, razão pela qual, a rigor,
dever-se-ia escrever S1  S2.
1
Desta relação do Um (S1) posicionado como agente com o Outro (S2) que o saber
inscreve, advém o sujeito dividido, primeira conseqüência que o discurso do mestre exibe.
A neurose é natural? Ela não é natural, a não ser, na medida em que, em um
homem, há um simbólico, e o fato de que haja um simbólico implica em que
um significante novo possa emergir, um significante novo ao qual o eu, isto
é, a consciência se identificaria. Mas, o que há de próprio ao significante que
chamei pelo nome de S1, é que não há senão uma relação que o defina, a
relação que ele tem com S2:
S1  S2.
É na medida em que o sujeito está dividido entre esse S1 e esse S2, que ele se
suporta, de modo que não se pode dizer que seja um único dos dois
significantes que o representa. (LACAN, 1977, p.).
Natural em um falasser, dado que é ser de linguagem, é o simbólico. A utopia de
Lacan é a de que seria possível emergir um significante novo ao qual o sujeito se identificaria.
Dito de outra maneira, não há nada mais natural no falasser que o significante, que, aliás, o
representa para outro significante, o que quer dizer que nenhum significante sozinho é capaz
de representar o sujeito.
O sujeito não é um significante, ele é o primeiro efeito da relação significante S 1S2,
conseqüência da operação de perda de gozo que aí se dá. Seu lugar neste discurso é o da
verdade, sendo esta sua condição, a de revelá-la, dividida, não toda. Em razão de sua
1
A conexão S1—S2 advém do axioma do par ordenado obedecendo a ordem que consiste em
tomar os dois elementos do conjunto para escrever um outro formado pelos subconjuntos de
tais elementos.
(S1 ---S2) = [ (S1), (S1---S2)]
65
alienação aos significantes do Outro, o sujeito nasce dividido, S , se manifesta de modo
pontual e evanescente, e nada supõe, ao contrário, é pura suposição na ordem do discurso.
Este sujeito lacaniano corresponde ao sintoma. ―Lembro-lhes, de passagem, que o
discurso, o que ao menos podemos dizer, é que nele o sentido foi velado‖ (LACAN, 2003,
inédito), pelo sujeito. ―Como no caso do sintoma, a verdade no discurso é velada, mas, é ela,
no fundo, que sustenta o discurso. Se o sintoma assume o lugar, na teoria de Lacan, de sempre
meio dizer da verdade do ser do sujeito- já que não é possível dizê-la toda, porque ela escapa
ao saber -, o discurso será sempre do semblante.‖ (ALBERTI, 2005, p. ). A verdade do
discurso, portanto, é da ordem do semblante, mesmo o discurso do psicanalista, quando, aliás,
o saber e a verdade revelam seu caráter de ficção. (ALBERTI, 2005). Resta ao sujeito e ao
sintoma revelarem a verdade do recalque que configura o semblante, uma forma de dizer a
meia verdade do sentido.
O segundo efeito dessa relação S1  S2 é a operação de recuperação do gozo, que se
dá através do objeto a, mais-de-gozar, por isso causa de desejo do sujeito. O objeto a é o que
o discurso do mestre produz, vem nomear a falta de objeto, falta que dá chance ao desejo,
causando-o em sua condição de ser um objeto sem referente, pronto para ser revestido pelos
objetos parciais da pulsão.
O objeto a é uma dedução lógica que decide a estrutura do discurso. A operação do
discurso do mestre não se conclui, se não se produz este excedente de gozo ou mais-de-gozar
chamado objeto a. Ele se inscreve como um elemento heterogêneo ao significante,
descompletando a estrutura da cadeia significante e configurando-se suplementar e êxtimo a
esta. Trata-se de um conceito impreciso na obra de Lacan, até o aparecimento do artigo
intitulado ―Kant com Sade.‖ (LACAN, 1998h, p. 776-806).
Até este período, a estrutura era demonstrada com o algoritmo da metáfora, enquanto
uma operação estritamente significante. No artigo ―Do Trieb de Freud ao desejo do
psicanalista‖ (LACAN, 1998i, p. 865-868) aparece, enfim, o sujeito causado pelo objeto a,
configurando um gozo que retorna do real.
Uma vez constituídas essas quatro letras, em sua relação aos lugares fundamentais de
captação significante, estão criadas as condições para a concepção do discurso, que inaugura
uma nova definição do inconsciente definido como saber, não sem relação com a verdade. A
estrutura de discurso torna presente o impossível determinado pela estrutura de linguagem
com seus aparelhos de gozo, em sua relação com o real.
66
O inconsciente, não é nada mais que um termo metafórico para designar o
saber que se sustenta apresentando-se como impossível, para que assim se
confirme por ser real. (LACAN, 1970, p. 77).
É preciso dar prioridade ao discurso do mestre, naquilo em que ele apresenta de
ordenamento inaugural da estrutura significante do discurso. Afinal, tudo que é da lógica do
significante e da sua cadeia ordena-se a partir do S1, situado no lugar do agente, por ser o
ponto inaugural do recalque primário, primeira afirmação, Behajung constitutiva segundo
Freud.
O discurso do mestre vem mostrar a primazia do significante na constituição do
sujeito, revelando simultaneamente o objeto que o causa, produtor de um excedente de gozo
ou mais-de-gozar que ao tempo em que é efeito é também causa. É um equivoco pensar que o
inconsciente se limita ao discurso do mestre, pois se eles coincidem em algo, é justamente
naquilo que legitima o S1 como fundante, como momento inaugural.
Dentre essas pequenas fórmulas que giram, está contida a maneira pela qual se
estrutura o discurso do mestre, que se encontra exatamente em oposição ao discurso do
analista. Mas é preciso que o significante-mestre, S1, esteja situado no lugar do agente, do
comando, servindo de fundamento para o enunciado "Há o Um", para que o analista possa
deflagrar seu trabalho.
O significante é o que introduz no mundo o Um, e é suficiente que haja o
Um para que tudo comece, para que S1 comande o S2, quer dizer, que ao
significante que vem depois, depois que o Um funciona, ele obedece. O que
é maravilhoso é que para obedecer é preciso que ele saiba algo. O que é
próprio do escravo, como se exprimia Hegel, é saber algo. Se ele não
soubesse nada, nem valeria a pena comandá-lo [...] (LACAN, 1984, p. 47).
No discurso do mestre, o dominante é a lei que inscreve o vivente na linguagem,
imperativos do S1, cujos efeitos recolhemos na clínica nas formações do supereu. A violência
subjetiva primária advém do supereu que está na base da divisão do sujeito entre S1 e S2.
Podemos reconhecer tal violência na báscula do Um ao Outro, mas também na recuperação de
gozo instaurado pelo objeto mais de gozar.
É também no âmbito dos laços sociais que regem o discurso do mestre que
encontramos as guerras, todas as formas de desigualdades e segregações, toda gama das
crueldades e violências. Nada, porém, se compara à barbárie contemporânea que pretende,
com seu caráter globalizado, anular todas as diferenças, especialmente as subjetivas,
67
prometendo felicidade em forma de mercadorias. No discurso da tecnociência capitalista,
proliferam condições inusuais do trauma, tão à mostra nas formas contemporâneas da
violência.
Na passagem do discurso do mestre para o discurso do capitalista, o que ocorreu mais
que uma torção, foi uma mutação, um curto-circuito que impossibilita sua rotação com os
demais discursos.
Na primeira teoria dos discursos, Lacan atribuiu demasiada importância ao discurso do
mestre, tomando-o como o avesso do discurso analítico. Em um segundo momento, enfatizou
a torção que sofreu o discurso do mestre, do mestre antigo, para dar lugar ao discurso do
capitalista, da tecnociência, do mestre moderno. Isto permite dizer que o discurso do mestre,
na atualidade, sofre a concorrência do discurso do capitalismo, que se tornou hegemônico,
ameaçando, e muitas vezes devastando a relação dos demais discursos entre si, ferindo os
princípios que os regem.
2.2.2 O discurso do capitalista: uma mutação
Na concepção de Almeida (2002, p. 13), já no final do século XV ou início do XVI
emerge o modo de produção capitalista, na sua expressão mercantilista, trazendo o germe de
outra forma reguladora: a do Mercado. Nas eras que se seguiram ao desenvolvimento da
acumulação, irá corresponder uma crescente força da economia na definição dos
comportamentos e condutas, consoante aos seus interesses, ao passo que as ideologias antes
hegemônicas — a judaico-cristã e a da aristocracia — vão enfraquecendo, abrindo espaço aos
modelos de condução capitalista.
Lacan não se recusou a refletir acerca dos efeitos subjetivos produzidos pelo
capitalismo e pela ciência. Com a teoria dos discursos, criou essa possibilidade. Inicialmente,
escreveu quatro discursos. Quatro também são os termos ou letras que circulam nos quatro
lugares fixos numa permutação circular, sem a possibilidade de nenhuma comutação. O
quinto discurso, que denominou de discurso do capitalista, não obedece a esses princípios.
68
Há uma inegável mudança na teoria dos quatro discursos com a inclusão do capitalista.
Lacan construiu o campo dos discursos sobre a tese de que a Revolução Francesa introduziu
no mundo o grande R do Real, isto é, o sintoma, a mais-valia, a única prova de que o sujeito
foi separado do seu gozo. Formulou o quinto discurso numa conferência proferida em Milão,
em 1972 (LACAN, 1984). Entretanto, o antecipou de algum modo em 1969, no Seminário 17.
Em minha primeira enunciação, [...], partimos de que o saber, no primeiro
estatuto do discurso do senhor, é a parte do escravo. Pensei ter indicado [...]
que o que se opera entre o discurso do senhor antigo e o do senhor moderno,
que se chama capitalista, é uma modificação no lugar do saber. (LACAN,
1992, p. 29-30).
A referência inicial ao discurso do senhor moderno diz respeito ao saber. O saber do
escravo está colocado no centro do discurso do senhor antigo, e no discurso do senhor
moderno, apresentando-se como tirania do saber, com valor de mercadoria. Segundo a
dialética hegeliana, o mestre comandava o saber e o saber-fazer do escravo para fazê-lo
produzir. Nesse discurso, aquilo que era perda para o escravo, significava ganho para o
mestre. Algo essencial da produção do saber do escravo, que representava o mais-de-gozar, se
69
transformou. O mais-de-gozar passou a contar, se contabilizar, totalizando-se, o que resultou
em acumulação de capital. (SOUEIX, 1997, p. 43).
Para falar do mestre contemporâneo que é o capitalista, Lacan recorreu ao conceito de
mais-valia de Marx, dele extraindo o conceito de mais-de-gozar. Com o conceito de maisvalia, Marx destacou algo que já estava no jogo capitalista. Lacan partiu da lógica capitalista
delineada na escrita de Marx para também, a partir daí, derivar o conceito de mais-de-gozar.
Na teoria marxista, o valor está vinculado ao trabalho. A mais-valia refere-se a trabalho não
pago. Foi pela escrita de Marx que algo que estava fora do discurso inscreveu-se. O gozo
produzido neste discurso ganha uma feição contábil, quando passa a valor relativo a um
mercado. Em se tratando de seres falantes e discursos, já havia função mais-de-gozar. No
capitalismo, entretanto, o plus-de-gozo, produzido e condensado por meio do objeto a,
ganhou o caráter de um plus de valor produzido e condensado em mercadorias. Lá onde
estava o mais-de-gozar, adveio a mercadoria. (GONÇALVES, 2000, p. 54).
Essas articulações resultaram em uma outra relação entre o mestre/empregador e o
trabalhador/empregado. Este último coloca seu saber-fazer a serviço do primeiro, o qual tem
como tarefa primordial a extração da mais-valia, cuja acumulação faz-se necessária à
manutenção do processo produtivo do sistema capitalista. A partir de um certo momento da
evolução do conhecimento e das forças produtivas, o mestre passou a se apropriar do saber do
trabalho que pertencia ao escravo, deste que mais tarde se transformou em proletário. Lacan
refere-se ao proletário dizendo tratar-se de uma conseqüência do discurso do mestre, e
acrescenta que a filosofia teve o papel de constituir um saber de mestre e senhor, subtraído do
saber do escravo. (FIDELIS, 2007, p. 56). O proletário passou a ser aquele que ―não é
simplesmente explorado, ele é aquele que foi despojado de sua função de saber.‖ (LACAN,
1992, p. 140).
O que dizer do capitalismo contemporâneo? A passagem do discurso do mestre antigo
para o discurso do mestre moderno deslocou-se do discurso do mestre, para o discurso da
universidade que se sustenta da burocracia, até chegar à sua forma final, que é o capitalismo.
Trata-se, essencialmente, de registrar os modos pelos quais o saber se desloca em relação aos
lugares.
Lacan escreveu o novo algoritmo do discurso do capitalismo, caracterizando-o como
uma torção de um quarto de giro no discurso do mestre, estabelecendo apenas uma inversão,
entre a posição sujeito/significante-mestre, de S1 S para S S1, mantendo inalteradas as
70
posições das letras situadas do lado direito. S1 passa a ocupar o lugar da verdade e não mais o
do agente, como no discurso do mestre, e S vai ocupar o lugar de agente, como no discurso
histérico. O que esta inversão pode produzir? Em primeira mão, podemos asseverar que esta
alteração parcial parece comprometer toda a ética que até então regia os discursos.
Ressaltamos ainda, que a supressão das flechas oblíquas, ou das duas arestas do
tetraedro, que são obtidas por uma manobra obtida mediante torção, apresenta uma situação
diferente da encontrada nos demais discursos, nos quais nenhum termo é isolado e "cada um
alimenta o outro numa reação em cadeia cuja tendência é o arrebatamento." (DARMON,
1994, p. 223). Verifica-se, claramente, que o lugar da verdade não está mais protegido e que
os quatro vértices se alimentam uns aos outros suprimindo a hiância e a disjunção que há
entre o lugar da produção e o da verdade. O que o capitalista quer é apagar este efeito de
impossibilidade ou, em outras palavras, qualquer evocação da fantasia, para manter o sujeito
insatisfeito de modo bem particular.
Contudo, a inversão das posições de S1 e S não constitui a principal mudança nesse
matema. O essencial são as flechas, que formam um circuito fechado onde cada termo é
comandado pelo precedente e orienta o seguinte. Isso significa que o sujeito comanda a cadeia
da linguagem, e o objeto a, por sua vez, pode também comandar o sujeito, fazendo um
circuito fechado. É este circuito fechado que não permite a circulação do discurso do
capitalista com os demais.
Segundo Soler (2005, p. 15), nesta realidade discursiva o único laço que se estabelece
é entre o sujeito em falta com o objeto a. Sem dúvida, este é ―um laço pouco social pois não
se realiza entre indivíduos. Isto deixa cada sujeito sozinho com suas buscas, buscas estas, bem
pouco sublimatórias.‖ (SOLER, 2005, p. 15). O que a autora sugere é que esta seria uma
ordem sem o grande Outro, que reduziria a linguagem a um instrumento de mercado, uma
espécie de aparelho a ser reproduzido pela ciência e pela tecnologia. Um aparelho que tanto
produz quanto incita o apetite a consumir.
71
Se, para o mestre antigo interessava, sobretudo, que as coisas funcionassem,
para o capitalista interessa sustentar a insaciedade como um modo de
insatisfação do sujeito. Essa insaciedade deve garantir um mercado para o
qual não há falta, nem falta objeto, e onde tudo é possível. A dimensão
lógica do ―não há relação‖, modo pelo qual se escreve a impossibilidade,
está foracluída. O objeto, neste caso, é produzido em escala veloz para ser
imperativamente consumido, suprimindo a desproporção entre o que se
busca e o que se alcança. A demanda perde valor para a oferta embrutecida.
Gadjet é o nome do seu produto. (RIO TEIXEIRA, 1997, p. 75).
O discurso do capitalista, por um lado, promove o sujeito à posição de mestre, ou seja,
o comando é exercido por um sujeito barrado e não pela tradição impessoal; ao mesmo tempo
o apaga, ao diluir as expressões individuais de comando na estrutura do próprio discurso.
Dessa forma, o ideal do sujeito autônomo, senhor do seu destino, que está na base não
somente da economia liberal, mas da própria sociedade leiga moderna, sofre um violento
abalo. Como pensar que esse sujeito com o seu desejo, é quem comanda, se esse mesmo
desejo é causado por um objeto em relação ao qual o sujeito não tem controle? Assim, embora
o lugar de comando seja ocupado pelo sujeito, que se exibe na expressão de suas escolhas e de
sua liberdade, o verdadeiro comando é exercido pelo objeto de consumo, que sustenta de fato
o discurso. Nesse regime, é preciso que o consumo seja maníaco, levando ao paroxismo a
máxima de Lacan: ―o gozo, uma vez que o temos, é para gastá-lo, desperdiçá-lo.‖ (LACAN,
1992, p. 60)
Encontramos em todo o ensino de Lacan referências a Karl Marx que nos permitem
fazer aproximações entre ambos.
Neste sentido, podemos situar três eixos em torno dos quais a herança de
Marx se apresenta em Lacan: ―o conceito de mais-valia; Marx, inventor do
sintoma; e o semblante no discurso do capitalista.É o conceito marxista de
mais-valia, tal como assinalamos atrás, que sustenta a noção de mais-degozar lacaniana. Gozo a mais, não passível de entrar no regime do gozo
fálico, um resto, impossível de simbolizar. (ALBERTI, 2005) .
―O que Marx denuncia na mais-valia é a espoliação do gozo‖ (LACAN, 1992, p. 92),
argumento utilizado por Alberti para mostrar que a sociedade de consumo faz equivaler o
objeto mais-de-gozar a mais-valia, degradando e aviltando todo objeto que porta a marca do
desejo, e da singularidade.
72
Lacan e Marx sabiam que algo sempre esteve velado no discurso capitalista, e não se
recusaram a reconhecer e a declarar o fracasso do laço social nesse discurso. Lacan,
entretanto, não parece ter tido as mesmas ilusões de Marx, quanto ao porvir.
A formulação do discurso do capitalista aproxima-se de uma nova articulação
discursiva, decorrente da evolução do conhecimento científico ou, como diria Marx, da
evolução das forças produtivas, para atender a uma nova configuração do laço social, que de
certo modo substituiu o discurso do mestre. Trata-se de discutir se há laço ou ruptura do laço
social, no discurso capitalista.
Numa perspectiva marxista, essa visão faz-nos retroceder aos estágios
primitivos de produção econômica, o escravismo e o feudalismo, onde
predominava a hegemonia do discurso do mestre, vinculada à tradição
medieval. Ou seja, a lógica do capitalismo moderno difere da que prevaleceu
nas sociedades primitivas, em função da maneira como é utilizado o
excedente de produção. Em vez de utilizar esse excedente para a acumulação
de riqueza, como nas sociedades pré-capitalistas, o sistema de produção
capitalista caracteriza-se pela utilização de recursos materiais em um
processo produtivo dinâmico, numa relação social, visando gerar
mercadorias a serem transacionadas no mercado, assumindo a qualidade de
valor de troca. Nesse sistema, ao contrário do que ocorre naquelas
sociedades, o trabalho assalariado permite a geração de um lucro que só
pode existir se o empregador paga ao trabalhador menos do que o valor
daquilo que ele produz. Essa diferença dá origem à mais-valia — o trabalho
não remunerado que reverte ao capitalista permitindo a circularidade da
fórmula D-M-D‘ [dinheiro — mercadoria — dinheiro] — fórmula pela qual
Marx esquematiza a metamorfose repetitiva e expansiva do capital.
(FIDELIS, 2007, p. 50).
Pode-se levantar a hipótese de que o discurso do mestre aproxima-se mais de um
momento histórico pré-capitalista, como o escravismo e o feudalismo, podendo também ter se
estendido aos estágios iniciais do sistema capitalista. Contudo, só a partir do momento em que
a produção da mais-valia passa a ser contabilizada é que se desfaz a disjunção existente, no
discurso do mestre, entre o S e o objeto a, reaprendendo esse novo mestre a gozar do objeto
que o outro produz, e acrescentando a mais-valia ao capital.
No seminário intitulado ―O saber do psicanalista‖ Lacan (1997) comenta que o
discurso do mestre viveu durante séculos de um modo proveitoso para todo mundo, até um
certo desvio, no qual se tornou o discurso do capitalista.
Em Televisão, o autor volta ás questões do sistema capitalista, referindo-se ao
proletário como o ―[ ] trabalhador ideal, aquele de quem Marx fez a nata da economia
73
capitalista, na esperança de vê-lo dar continuidade ao discurso do mestre: o que de fato
aconteceu [...]‖ (LACAN, 1993, p. 517).
Pode-se acompanhar, desde o Seminário 16, o interesse demonstrado por Lacan em
refletir teoricamente acerca da substituição do discurso do mestre pelo discurso capitalista.
O mais-de-gozar nos laços sociais, inicialmente sistematizado no discurso do mestre,
foi modificado pelo capitalismo em mais-valia, representando não a renúncia de gozo do
discurso do mestre, mas a perda de gozo por parte do trabalhador, por não poder dispor na
íntegra do que produz, porque foi ―apropriado pelo capitalista em forma de mais-valia a ser
acumulada segundo a fórmula denunciada por Marx como mola propulsora da expansão da
produção.‖ (FIDELIS, 2007, p. 52).
Lacan e Marx introduziram o sintoma na ordem do saber, porém é a questão da
verdade que tem proeminência na teoria lacaniana. Nas suas conferências publicadas com o
título O saber do psicanalista, podemos localizar a seguinte passagem.
Destacarei, entretanto, que [...] sintoma tem o sentido de valor de verdade.
[...] É bastante curioso, mas, aliás, isso tem esse correspondente histórico
que demonstra que este sentido da palavra sintoma foi descoberto,
denunciado, antes que a psicanálise entrasse em jogo. Como eu sublinho
frequentemente, é, falando muito propriamente, o passo essencial dado pelo
pensamento marxista, esta equivalência. (LACAN, 1997, p. 29)
Marx e Freud, por sua vez, quer recortando a sociedade burguesa, quer o aparelho
psíquico, demonstram a natureza do sintoma como contradição estrutural. Embora só possam
ser situados a partir do discurso da ciência, dela se distinguem ao tomar o sintoma como
ponto de partida e também de chegada, posto que para ambos o sintoma só pôde ser
concebido a partir do discurso capitalista e do discurso científico.
2.2.3 A violência no discurso capitalista: laço social ou ruptura?2
A introdução de um quinto discurso, o discurso do capitalista, apresenta uma ruptura
com a lógica articulada em que se sucedem os quatro discursos: o discurso do mestre, da
2
Partes do texto que aparece em 2.2.3 foi extraído do artigo de autoria de Coelho dos Santos,
T. e Teixeira M. A., intitulado Violência: laço social ou ruptura? Integrante da ―Psicologia em
Revista‖. Editora PUCMINAS, 2006. v.12, n.20.
74
histérica, da universidade e do analista. Esses discursos partem do pressuposto segundo o qual
o real é impossível, e que não há outro modo de articulá-lo senão por meio da lei. Essa
formação de princípios, contudo, não vale para o discurso, do capitalista.
O valor da proibição como representação mítica do real impossível esvaziou-se desde
os movimentos de maio de 1968, que promoveram o imperativo contemporâneo ―é proibido
proibir!‖. O real que promove a nossa economia globalizada não precisa da forma da lei que
proíbe para se articular. A economia globalizada abole a profunda dissimetria da enunciação
da lei e, no seu lugar, surgem as regulamentações e contratos entre pares. Essa prática rebaixa
o funcionamento jurídico à gestão admistrativa. A nova ordem avança, devastando os laços
sociais e os sintomas, promovendo a metonímia do gozo, e incitando à caça desembestada ao
mais-de-gozar. Esse novo discurso, que recusa o discurso do mestre, abole o valor das
relações inconscientes, destitui toda pergunta sobre a causa do desejo e somente promove e
enaltece o êxtase da satisfação de um corpo que consome, ou do capital que se acumula.
O problema é não desvencilhar o real de sua simbolização por meio da lei. Entretanto,
sem o apoio mítico na proibição, será o real ainda impossível? Pensamos que não. Quando o
real não pode articular-se à proibição, todos os elementos (S1, S , S2 e a), que se articulavam
na forma de um discurso, ficam à deriva. O eixo dos quatro discursos é a primazia do discurso
do mestre, imperativo de renúncia que reduz o gozo a migalhas e o condena a só existir sob as
espécies do objeto a.
O discurso do capitalismo, contudo, não tem o mesmo eixo. Nele, S ocupa o lugar do
agente, numa espécie de giro que se desloca para baixo dele S1. Consequentemente, o real não
é mais impossível, tudo é permitido, não há mais impossível, em lugar algum. De fato, Deus
está morto, e quando Deus está morto, Lacan já o antevia, a conseqüência é o seguinte
paradoxo: nada é permitido. A violência é uma manifestação dessa estrutura. Quando tudo é
permitido, a ética do desejo dá lugar unicamente ao fardo pesado do imperativo do gozo. A
satisfação se efetua sem o apoio na singularidade da fantasia. É a lógica do resultado
imediato, direto, o declínio da diferença sexual. Proliferam os gozos autistas, regidos pela
lógica da exceção absoluta, onde cada gozo é autônomo.
Os efeitos dessa lógica aparecem como zonas de devastação no campo do Sujeito e do
Outro na contemporaneidade. Os sintomas contemporâneos são inclassificáveis, e isto está de
acordo com a foraclusão generalizada do Nome-do-pai, enquanto mito do gozo proibido. A
lógica articulada dos quatro discursos supunha que o Nome-do–pai desempenhasse, na
75
fantasia, a junção do desejo com a lei, transferindo a potência simbólica do significante para o
imaginário e permitindo transmutar o real do gozo impossível para as vias imaginárias de um
real do gozo proibido.
A violência dá provas de uma falência da função do imaginário da proibição.
Pensamos que a eclosão generalizada da violência no campo social, aponta os efeitos
devastadores do discurso do capitalismo. Hoje, o gozo não é mais impossível, pois a via da
fantasia não garante mais que o gozo se limite à transgressão da lei. O gozo emerge sob a pura
forma de um real sem lei, e não contra a lei, na contemporaneidade. Ele não se opõe a essa ou
aquela restrição legal. Ele se apresenta desencadeado pelas vias do simbólico, desarticulado
do imaginário e do real, como puro sem sentido. Poderíamos avançar na direção de pensar
suas relações com o capricho e com a diversidade de modalidades do gozo não-todo de fazer
suplência à desproporção entre o simbólico e o real. Nesse caso, a violência não seria um
sintoma, e seu lugar seria ao lado da psicose, do gozo místico, do capricho e da exceção.
As manifestações epidêmicas de violência, presença devastadora no cotidiano das
pessoas, independem de classe sócio-econômica, idade, cor, credo, ou até mesmo país, um
fenômeno absolutamente atual com características próprias e diferentes de outras épocas da
história da cultura. Ressaltamos sua relação com a autonomia dos implementos, termo
empregado por Hanna Arendt e largamente oferecidos pela tecnologia capitalista, que podem
ser vinculados à dissolução progressiva do valor do laço social no contemporâneo, em
proveito da produção de indivíduos, cujo gozo é regulado pelo consumo dos objetos.
Os discursos do psicanalista, da universidade, do mestre e da histérica são impotentes
para pensar essa configuração subjetiva. Pensamos, contudo, que só podemos esclarecê-la a
partir do discurso do capitalista, pois ele aciona um novo imperativo, o de um gozo não-todo,
completamente desvinculado da lógica fálica. Este discurso fere alguns dos princípios
essenciais, que regulam os discursos, bem como a relação deles entre si, ao abolir o campo da
impossibilidade, dando lugar unicamente à impotência. E o que se passa, finalmente, é que
seu regime torna possível todos os gozos.
Não seria a violência então um fenômeno contemporâneo, produzido pelo discurso do
capitalismo? Seria esta a manifestação, por excelência, do sujeito submetido ao
enfraquecimento dos laços simbólicos, à prevalência das imagens e dos funcionamentos
imaginários favorecidos pela tecnologia?
76
Ressaltamos que a relação dos discursos entre si é necessária à constituição da
subjetividade. A lógica fálica/edipiana, ao situar o real como o gozo impossível, propriedade
do pai morto e incompatível com a existência do vivo, cumpre um papel de proibir/permitir o
gozo. Somente a partir dessa âncora podemos pensar na singularidade do sujeito que não se
reduz à identificação com nenhum mestre. A violência, como efeito do discurso capitalista,
toma como parâmetro o rompimento do laço em permutação circular dos discursos. Nossa
hipótese, portanto, é que o discurso do capitalista tem uma relação de estrutura com a
manifestação da violência contemporânea e pode nos servir de recurso para elevá-la à
dimensão de um conceito em psicanálise.
Que tipo de sujeito emerge do laço capitalista? Que objetos se apresentam além dos
objetos de consumo? Quais os poderes da psicanálise na abordagem desse sujeito? Quais as
conseqüências para o sujeito da globalização da economia de mercado, ou seja, a
universalização do mercado e das mercadorias, independentemente da diversidade das
culturas? Como esclarecer a relação entre o estágio atual do capitalismo e a violência
generalizada? Essas são questões relevantes a serem aprofundadas em pesquisas analíticas que
apontem para possíveis efeitos decorrentes do discurso capitalista sobre a constituição
subjetiva e as construções imaginárias. Os discursos podem colaborar nesta leitura, pois não
foram teorizados buscando explicações psicopatológicas. Visavam saber a respeito das
posições de desejo e gozo do sujeito no laço social.
Decorre daí toda vinculação feita entre as vicissitudes do sujeito com o discurso
capitalista,
especialmente
na
abordagem
das
enfermidades
que
caracterizam
a
contemporaneidade: toxicomania, depressão, síndrome do pânico, anorexia/bulimia e, em
especial, a violência generalizada, aqui considerada o sintoma capitalista por excelência.
Alguns fatores podem ser registrados como os principais pontos que marcam os efeitos
sobre o sujeito decorrentes do discurso do capitalista. Esses pontos, que designam a própria
estrutura desse discurso, podem ser vistos no âmbito dos efeitos desta nova posição do
sujeito; do que muda no estatuto do saber e da verdade; nas mutações do objeto a.
No discurso do capitalista, a relação do sujeito ( S ) com o saber do inconsciente,
definido com não-saber, vai se dar de maneira a mascarar a divisão subjetiva. Trata-se de uma
situação que pode ser caracterizada como uma operação de Verwerfung, ou seja, um certo tipo
de rejeição da castração. Ao ocupar esse lugar de dominância, o sujeito adquire a condição de
semblante de mestre, como se tivesse se tornado o centro do comando, podendo, através do
77
saber, controlar a produção e o consumo do próprio objeto mais-de-gozar. Desse modo, no
discurso do capitalista, o sujeito ao mesmo tempo em que controla a produção e o consumo
do objeto, passa também a ser por este comandado, embora com os limites impostos pelas leis
do mercado.
O discurso do capitalista cria, então, um sujeito que se confronta com os objetos de
consumo produzidos pelo saber científico e tecnológico, financiados pelo capital. Daí os
imperativos de consumo, da moda, do utilitarismo e do capital não deixarem espaço para a
falta, ou seja, para o desejo do sujeito. Em síntese, é o discurso que rejeita a castração, sendo
regulado unicamente pelas leis do mercado.
O saber, quando passa a receber o estatuto de objeto, adquire a condição de um bem de
consumo que deve ser produzido em larga escala para ser consumido cada vez mais. São
objetos que passam a ser fabricados em produção industrial cada vez maior e com a
expectativa de serem também ―melhores‖ que os anteriores, numa retroalimentação em cadeia
da competição mercadológica movida por uma obsolescência com ciclos de vida cada vez
menores.
O saber passa a valer o quanto se pode dele comprar ou vender. Assim, o próprio
proletário (trabalhador) torna-se também um valor de mercado a ser intercambiado como uma
mercadoria, cujo preço passa a ser medido pelas leis da oferta e da procura, reguladas em um
novo mercado, a que a economia política denomina de mercado de trabalho. (FIDELIS, 2007,
p. 55).
Enquanto no discurso do mestre a ―mestria‖ do sujeito designa a autoridade,
independente de seu poder econômico, no discurso do capitalista o sujeito, em posição de
mestre, turva a fantasia, o desejo, sem poder se prevalecer desse lugar, como faz o histérico.
Ele vai se autorizar daquilo que é mais-valia acumulada. Essa condição vai resultar numa
incoerência da estrutura com conseqüências sobre o sujeito: uma má distribuição dos objetos
de gozo nos diversos extratos sociais, fato que determina no sujeito diferentes insatisfações.
Isso que lhe é tirado, ele atribui como um fato que é da responsabilidade do outro. Essa
desigualdade na distribuição dos objetos de gozo caracteriza-se como uma reclamação à
função paterna, como uma fragilidade em sua autoridade, que vem produzir desigualdade e
desequilíbrio, enfraquecendo os laços sociais.
Partimos da teoria dos discursos e o ponto de orientação nesta pesquisa é, portanto, a
definição do ―inconsciente como ex-sistente aos discursos‖, regido pelo real como impossível.
78
Essa formulação é uma atualização de duas outras, de igual importância e que lhe antecedem,
que são: ―o inconsciente é estruturado como uma linguagem‖ e ―o inconsciente é o discurso
do Outro‖.
Se adotarmos a tese da ex-sistência do inconsciente em relação aos discursos, seguemse algumas conseqüências. Primeiramente, o inconsciente nem está representado
exclusivamente, nem está aprisionado por nenhum discurso. Inversamente, é a posição de
extimidade do inconsciente, em referência aos discursos que confere legitimidade à passagem
de um discurso ao outro, como evidenciou o advento do discurso do psicanalista. Isso implica
pensar seus efeitos para além do discurso do mestre, representante da lógica fálica e edipiana
na organização dos outros três. A teoria dos quatro discursos não escapa à lógica
fálico/edipiana, que gira em torno da oposição entre o ―ao menos um‖, fora da castração, e
―todos‖, submetidos à castração como demonstra o discurso do mestre.
Podemos também acolher as formulações de Lacan no Seminário XX, num tempo
posterior em que ele estava também preocupado em acolher os efeitos do discurso do
capitalismo. Neste seminário, ele nos apresenta conclusivamente outra formulação, que
permite pensar o gozo feminino na vizinhança do gozo fálico. Ele obedece a uma outra lógica,
na qual rearticula a lógica do ―ao menos Um/todos‖, a lógica do não-todo. Essa outra lógica,
pela primeira vez apresentada nesse seminário, permite-nos pensar acerca da singularidade
dos sujeitos, um por um, que se reúnem num conjunto inconsistente e aberto. Esse conjunto,
ao contrário daquele que é formado pela lógica do ao menos Um/todos, não constitui uma
classe. Neste conjunto, não há uma exceção do lado de fora, pois cada elemento do conjunto
inconsistente é único e, por isso mesmo, não há exceção quando não há regras universais para
todos.
Aceitar a existência dessas lógicas implica na anulação de qualquer pensamento que
conceba o inconsciente como uma operação interna, solitária, individualista e intimista que
encontra perfeito abrigo na clínica psicanalítica para seus secretos e obscuros desejos.
Significa reconhecer que só há sujeito na dimensão do desejo e do gozo inconscientes, cuja
constituição significante depende da presença do Outro na estrutura do discurso, bem como
do Outro gozo, regidos pela ex-sistência do real.
A via que apontamos consiste em particularizar o modo de gozar próprio à
contemporaneidade pós-moderna, por vezes relativista e até cínica, em que, aparentemente, a
função paterna e o discurso universal declinam em favor de um avanço da exceção e da
singularidade. Para isso, é preciso ir além da função do pai, sem perder de vista a centralidade
79
dessa função. É preciso saber encontrá-la, reconhecê-la, mesmo onde ela se manifesta
denegada, abolida, humilhada e denegrida.
Os efeitos do declínio da função paterna manifestam-se em diferentes aspectos do laço
com o simbólico. Por exemplo, a aproximação entre o discurso da ciência e o da universidade,
durante certo período, produziu o lento esvaziamento do valor de real do saber científico .O
saber parece estar por toda parte, tudo é verdade e nada é real. O saber reduziu-se à ficção.
Restabelecer o laço entre o saber e o real deve ser uma das ambições do discurso analítico,
hoje.
O mundo antigo ordenava-se por meio das modalidades tradicionais de organização
familiar que investiam o pai, legalmente, de plenos poderes sobre as mulheres e as crianças,
reprimindo as manifestações da sexualidade, dos conflitos e das diferenças de modo geral.
Assistimos na modernidade à queda do saber e do poder incontestáveis do pai. O declínio da
função paterna exacerbou-se em escala mundial, com o avanço do capitalismo nas últimas
décadas. Já não vivemos simplesmente as conseqüências da passagem do mundo da tradição
para o mundo da ciência. No mundo antigo, a religião agregava em torno do nome de Deus,
os mais diferentes domínios da experiência humana. O advento da ciência fez um corte com o
mundo da tradição, produzindo mudanças sobre a subjetividade. A crença se tornou artigo de
escolha individual, problema de consciência individual, onde cada um crê ou não, de acordo
com sua consciência, diferentemente do mundo antigo, quando o humano era obrigado a ser
regido pela crença religiosa. Viver fora disso significava recusar o mundo em que vivia e se
tornar um herege. Deus passou a ser assunto de consciência individual e a isso Lacan
(1938/2001) chamou de declínio do nome do pai.
Os sintomas contemporâneos são conseqüência dessa nova lógica que se espalha,
radicalizando o declínio da função paterna. À lógica fálica, universalizante, vimos
acrescentar-se com predominância a lógica do não-todo. A cultura feminilizou-se no rastro da
liberação da sexualidade e do feminismo. Essa lógica que, em princípio, nos parecia trazer um
ganho de liberdade e de respeito à singularidade de cada um, lentamente parece autonomizarse com relação à lógica fálica. A psicanálise, como filha da ciência, nasceu em um mundo
moderno já descrente e, com o Édipo, com a crença no pai, Freud pretendeu dar certa
consistência à função do pai.
Se concordarmos com Lacan que a psicanálise freudiana foi a seu tempo uma
suplência ao declínio da função paterna, podemos perguntar-nos de que modo a psicanálise
enfrenta um mundo, onde a lógica do não-todo se coloca a serviço da denegação da função do
80
falo, um mundo onde a diferença sexual parece condenada à obsolecência, à não
essencialidade, e em que o imperativo do gozo não-todo progride em oposição a toda
dimensão da castração enquanto sinal do real impossível.
A psicanálise surgiu no mundo como o discurso que progrediu na direção contrária ao
discurso do mestre, onde reinava o ideal absoluto para todos. Que relações ela pode ter com o
mestre contemporâneo, com o discurso do capitalista, que provoca a deriva dos sujeitos na
caça ao mais de gozar? Como a psicanálise tem se constituído em uma alternativa a esse
discurso?
Interessa-nos pensar, analiticamente, sobre as manifestações da violência que se
apresentam neste momento histórico, recorrendo às determinações dos discursos,
particularmente o do capitalista, porque este se tornou o discurso hegemônico, que trabalha
incessantemente para instaurar o pensamento único globalizado, gerador do evidente
crescimento, também globalizado, da violência.
O que se apresenta da violência em certas práticas capitalistas é o horror despido de
qualquer revestimento simbólico, em estreita relação com o fascínio pelo suposto objeto que
realizaria o desejo e supriria o campo das necessidades. É preciso evidenciar a existência de
novas dimensões da organização social que dizem respeito ao caráter público, midiático,
televisivo, globalizado da violência cotidianamente mostrada nos noticiários nacionais e
internacionais, reveladores de sua banalização, bem como de novas manifestações subjetivas
decorrentes do poder da imagem e da prevalência do imaginário nos laços sociais. Por fim, a
violência virou espetáculo televisivo, cinematográfico e jornalístico, cujas imagens
globalizadas imprimem, simultaneamente, o efeito de horror e fascínio.
Às reações pessoais aos explícitos atos individuais de violência, físicas ou morais,
soma-se a existência de tantas outras mais ou menos implícitas que se realizam em nome da
ciência, da religião, dos ideais políticos, do progresso. Aliás, foi assim em todas as épocas e
cabe perguntar sobre o alcance das novas formas subliminares, insistindo sobre aquelas do
mundo virtual. Mais além da violência diária com armas de fogo que se dá corpo-a-corpo em
dimensões globalizadas, vale lembrar aquelas infligidas pelo biopoder, pelo poder da mídia
globalizada, que entre outros aspectos, banaliza e veicula a violência como espetáculo
cotidiano, em todas as horas, mesmo nos programas infantis. Há também outros poderes das
estratégias do capitalismo neoliberal, que faz do capital seu único interesse, reduzindo os
humanos a meros consumidores.
81
Diante dessas considerações, cabe interrogar sobre a participação da psicanálise na
construção dessas ―desfunções‖, porquanto ela se inscreve na tradição do advento do direito à
individualidade e à subjetividade na modernidade. Por esta razão, é preciso distinguir o que
vem a ser o individualismo egoísta e o direito à individualidade, para situar a ética da
psicanálise e a sua responsabilidade na preservação do campo simbólico, que é o seu por
excelência, e que, embora mantenha sua força, tem sofrido, se não abalos, ao menos
profundas mudanças decorrentes do capitalismo, que vimos desfilar ao longo do século XX.
Diante da barbárie da tecnociência, garantida pelo discurso capitalista, interessa-nos
interrogar, como abordar psicanaliticamente as modalidades brutais, violentas e segregadoras
que se apresentam neste momento histórico.
Vivemos submetidos à comunicação mercantil desenvolvida pelos meios de
comunicação e pela biotecnologia em toda a sua extensão, cuja lógica do pós-humano está
baseada no próprio capital, e em que duas possibilidades se apresentam para o ser humano: ou
se é mercadoria, ou se é dejeto excedente. Ademais, as sociedades atuais apresentam um novo
fascismo, que é o do consumo, no qual não é necessário usar a força física. (TEIXEIRA,
2004b).
O capital impõe a violência da exclusão a todos os sentimentos humanos,
transformando-os em doenças. Urge discutir os efeitos do discurso capitalista, pois é preciso
reconhecer seus efeitos subjetivos não apenas no âmbito coletivo, como no individual. Há,
porém, um aspecto a valorizar, em que pese o fato do discurso capitalista ser hegemônico: ele
não tem o poder de excluir nenhum discurso, restando sempre brechas para que a
subjetividade se faça imponderável e particular. Este é um campo a ser explorado pelos
psicanalistas, e, longe de ter sido esgotado por qualquer autor, provoca-nos a reiniciar o
debate.
82
3 INCIDÊNCIAS DA VIOLÊNCIA NA CLÍNICA PSICANALÍTICA
Sou no lugar de onde se vocifera que o universo é uma falha na pureza do
Não-Ser. (LACAN, 1998g, p. 834).
Neste capítulo, analisaremos a dimensão subjetiva da violência na perspectiva do
discurso psicanalítico e da sua relação com o discurso do capitalista.
Procuramos cernir três questões fundamentais relativas à violência: a constituição
subjetiva da violência; as manifestações contemporâneas da violência como índice da
mutação subjetiva do discurso da tecnociência capitalista; e, por fim, procuramos analisar o
poder de intervenção, técnico e ético, do discurso psicanalítico frente às manifestações de
violência na atualidade.
3.1 VOZES DA VIOLÊNCIA
A incidência da violência na clínica psicanalítica se dá de muitas formas. A título de
delimitação do problema, proponho dividi-la em dois grandes planos. A violência social, que
se apresenta (individualmente ou em grupo), no plano do convívio interpessoal nas sociedades
humanas, que vem do mundo externo ou, como prefiro situar, de acordo com o pensamento
lacaniano, que vem do outro semelhante, fenômeno especular que se dá entre corpos. No
outro plano, aquele que vem do mundo interno, que chamo de estritamente subjetivo, a
violência emana do sujeito contra si mesmo, e tem origem, mais precisamente, na divisão do
sujeito. É quando, e não raramente o sujeito, em sua divisão, toma a si mesmo como objeto de
tormento. Conquanto ambas as situações estejam comandadas, individualmente, pela pulsão
destrutiva em suas diferentes versões do supereu, ou pelos imperativos de gozo nos laços
83
sociais dos discursos, é a segunda que revela, explicitamente, sua face subjetiva, como
confere a clínica, razão pela qual será aqui explorada.
Certamente a violência-crueldade poderia ser estudada do ponto de vista da perversão,
especialmente o sadismo, em conformidade com o próprio corpo conceitual da psicanálise.
Entretanto, não exploraremos essa possibilidade, porquanto nossa análise procede pela via da
efetuação da estrutura apresentada no matema do discurso do mestre, e pela deriva do
discurso capitalista, com o possível resgate operado pelo discurso psicanalítico.
Temos ainda uma terceira situação que se inscreve parcialmente na clínica. Refiro-me
não àqueles que sofreram a violência, porém aqueles que a praticam contra outrem. Essa
situação aparece em pequena escala na nossa experiência clínica, razão pela qual a tomamos
como extrapolação das outras duas. Agregamos os atos de violência próprios do capitalismo
contemporâneo às três situações acima referidas.
Num esforço de síntese, parafraseando Lacan ao se referir à gramática das pulsões
(LACAN, 1979b), poderíamos conclusivamente dizer que os atos de violência-crueldade são
comandados pelas vozes do verbo, nas três modalidades conhecidas: passiva, reflexiva e ativa.
Em todas as manifestações da violência, o risco é o analista ser jogado fora da transferência,
privado assim das suas armas privilegiadas para convocar a pulsão de vida/erótica, condição
necessária para jogar a partida com a pulsão de morte/destrutiva. Ademais, queremos crer que
cada uma dessas modalidades de violência pode servir para esclarecer as formas pelas quais
ela se manifesta.
Sabemos um pouco mais sobre os efeitos devastadores da violência no âmbito social,
ou de domínio público e muito pouco sobre seus efeitos no domínio privado, ou seja, do
indivíduo na solidão de sua relação com o objeto. O trabalho clínico do psicanalista pode
iluminar um pouco essa dimensão mais obscura e desconhecida, contribuindo para esclarecer
a face menos visível e mais silenciosa da violência, aquela que incide, propriamente, no
âmbito da subjetividade.
Em contrapartida, a experiência de analisandos que sofreram atos de violência pode
nos dar uma idéia das transformações psíquicas irreversíveis que um encontro traumático com
o real sem lei, real que de direito deveria ser impossível, mas que se apresenta na dimensão do
possível, sem a máscara da lei que proíbe, causa a esses sujeitos. Esses casos colocam em
dúvida a potência da palavra em recalcar o trauma. Exibem, em toda a sua extensão, a
84
devastação psíquica e a gravidade dessa condição a que estamos cada vez mais expostos,
especialmente em algumas partes do planeta.
Para tanto, identificamos e apresentamos alguns deles: o aparecimento de certos
medos relativos ao funcionamento do cotidiano, que poderíamos chamar de uma espécie de
fobia social; angústias incontroláveis; a instalação do estado de inibição e apatia durante um
longo período; o desencadeamento de doenças graves como as psicoses e a melancolia; a
manifestação de raiva intensa, chegando à fúria, às vezes seguida de passagens ao ato como a
mudança abrupta de profissão e de parceiros amoroso-sexuais, e a colocação em ato, de
fantasias sexuais.
Um fragmento de caso clínico pode mostrar como um ato de violência foi o fator
desencadeante para o adoecimento, sem possibilidades de reversão. Trata-se de um
profissional liberal, casado, com filhos, que, após brutal experiência de assassinato de um ente
querido, passa a caçar homossexuais nas ruas, negando-se a pagar pelos serviços sexuais
recebidos. Esse ato transforma-se numa compulsão que o expõe em muitas oportunidades a
ser espancado ou mesmo ficar em perigo de morte, colocando-o na iminência de repetir a cena
do crime, na qual, poderíamos dizer, ficou petrificado. A violência brutal que surge do real
tem o efeito prolongado de quebra da mediação simbólica, como aconteceu neste caso,
acrescido da fixação de um gozo mortífero, da ordem do horror do crime, do assassinato. O
estado de adoecimento que se instaurou neste homem, que cometeu várias tentativas de
suicídio, produziu o aparecimento de um sintoma inclassificável. A sexualidade foi desviada
do circuito da fantasia e do princípio do prazer, servindo a um gozo que não é da ordem da
transgressão, mas um gozo louco, sem lei. Esse caso desvela que o imperativo do gozo nãotodo, do gozo não regulado pelo gozo fálico, ao reger uma estrutura, não cede lugar para o
desejo sexual. (COELHO SANTOS; TEIXEIRA, 2006 , p. 170).3
No caso da clínica psicanalítica, para além de todas as modalidades do crime, da
crueldade e violência, seu ponto de partida incide nas experiências de devastação que dividem
os sujeitos que aí chegam. Seu desafio é poder produzir efeitos analíticos que resgatem o
sujeito desta deriva de gozo.
A violência é inata ou transmitida? Segundo as teorias psicanalíticas adotadas neste
trabalho, poderíamos inicialmente afirmar que a violência não é inata nem transmitida com o
3
O fragmento de caso clínico acima apresentado foi extraído do artigo de autoria de Coelho
dos Santos, T. e Teixeira, M. A., intitulado Violência: laço social ou ruptura? Integrante da
Psicologia em Revista. Editora PUCMINAS, 2006. v.12, n.20, p. 170.
85
exemplo das autoridades parentais ou dos próximos, posto que, constitutivamente, a violência
não é um problema de ordem pedagógica. Tampouco concordaremos com a idéia do senso
comum que defende ser violento aquele que sofreu a violência, especialmente na infância,
palco de todos os horrores.
O homem pensa com a ajuda das palavras e é no encontro entre estas
palavras e seu corpo que algo se esboça. Por outro lado, ousarei dizer a
respeito do termo inato – se não houvesse palavras, de que poderia
testemunhar o homem? Ali se coloca o sentido. (LACAN, 1988f, p. 125).
Como e quando, historicamente, a violência começou? Resposta impossível. O fato é
que a violência está aí desde sempre participando da civilização. Sobre esta pergunta,
adotamos o mesmo raciocínio usado por Lacan para o nascimento da linguagem: como, onde,
e por quê? Nada antes interessa, pois só conta a partir das suas mais remotas marcas
simbólicas, a exemplo dos primitivos desenhos das caças encontradas nas cavernas; ali havia
cultura. Utilizamos o mesmo raciocínio para a violência, desde que o homem fez o primeiro
instrumento, seja a flecha de madeira, ou o machado de pedra, para se defender, ou para
sobreviver, pouco importa. Ali havia simbólico. Não se tratava mais do registro da fúria
selvagem do animal para sobreviver, defender seu território ou disputar a fêmea.
3.1.2 Vozes e silêncios da Violência
Três episódios, exemplares da grande violência contemporânea relatados por
analisandos, moveram-nos inicialmente a essa pesquisa.
No primeiro deles uma jovem, acompanhada do namorado, relata que havia parado o
carro para comprar cigarros numa banca de revista, aproximadamente às onze horas da noite,
quando são assaltados por dois homens, e levados a uma estrada deserta, onde mais dois
homens os esperam. Antes, porém, de trocarem os carros entre eles e partirem, três dos
assaltantes a estupraram, deixando-os no local. Essa tragédia se prolongou na infertilidade
decorrente de doenças sexualmente transmissíveis, resultando no trabalho analítico, em
recorrentes actings-out e passagens ao ato.
86
O segundo episódio envolve a rotina familiar. Após pegar a filha de dez anos na
escola, o pai estaciona o carro em um caixa eletrônico para realizar um saque, quando foram
assaltados por dois homens. Diante da impossibilidade momentânea de obterem o dinheiro
exigido, levaram a menina como refém para um hotel, numa cidade próxima a Salvador,
retendo-a por quatro dias consecutivos. Essa jovem analisanda, entre outras manifestações,
teve o sono gravemente perturbado durante alguns anos e estabeleceu uma espécie de
mutismo que marcou seus modus operandi no trabalho analítico.
Na terceira situação, a violência sofrida pelo pai e pelo irmão do analisando se
constituiu em fator desencadeante para a psicose. Como de hábito, seu pai, acompanhado do
filho pequeno, se dirigiu muito cedo para a fazenda, numa sexta-feira, para fazer o pagamento
dos funcionários, quando, ainda na entrada, foram assassinados com requintes de crueldade,
sem que jamais se tivesse identificado a origem desse crime.
É sem dúvida impactante testemunhar tamanha violência, uma vez que essas situações
não oferecem muita margem de manobra teórica e técnica. Entretanto, os problemas relativos
à crueldade que os analistas testemunham, não se limitam à contingência de alguém ser alvo
de ataques por parte de terceiros. Há também aquela que não se dá entre corpos humanos.
À primeira vista, a violência que nos detém apresenta o caráter explícito de crueldade
e brutalidade nos laços sociais, a exemplo dos casos apresentados acima. Em especial quando
ganham visibilidade em algum espaço público, e, sobretudo, quando configuram crimes
hediondos que são amplamente divulgados e explorados como espetáculo pela mídia.
Entretanto, se nos detivermos sobre os problemas relativos à violência que surgem na
clínica e ampliarmos nossa escuta e leituras psicanalíticas, além de relatos de fatos trágicos de
violência ocorridos com os analisandos, ou com pessoas próximas a eles, outro nível de
violência, que passamos a chamar de estritamente subjetiva, é encontrado com certa
freqüência.
As reflexões clínicas e as pesquisas teóricas com base no estudo da pulsão de morte e
do seu correlato, o supereu, em Freud, e a análise feita por Lacan acerca da dimensão
subjetiva da violência nos laços sociais, nos levam conclusivamente, a reconhecer a forte
presença de outro nível de violência manifestada em alguns sujeitos, emanada não do outro
para o sujeito, mas do sujeito em direção a si mesmo.
Interessa-nos, fundamentalmente, descortinar esse tipo de violência menos visível,
chegando muitas vezes a ser quase irreconhecível, que transparece em relatos de crueldade e
87
violência na esfera estritamente mental, subjetiva, experimentada, invariavelmente, como
devastação por certos analisandos.
Esses sintomas estão especialmente presentes em algumas manifestações clínicas, tais
como a melancolia, algumas psicoses, a neurose obsessiva, as reações terapêuticas negativas,
a anorexia, a bulimia, a escarificação, os quadros graves de angústias e são acompanhados do
sentimento de culpa, da necessidade de punição e do sentimento de inferioridade,
configurados de certa forma nas modalidades do masoquismo.
Freud e Lacan, como salientamos nos capítulos anteriores, assinalam que tais
manifestações são comandadas pela lei insensata, feroz, cruel e obscena do supereu, mais
precisamente pelos imperativos de gozo do supereu. Se, nos três episódios acima relatados, a
origem da violência apoiava-se na exterioridade (vinda de terceiros), com reflexos no trabalho
analítico do analisando, ou seja, a violência tem como constituinte o espetáculo, a cena
trágica, nessa outra espécie de violência a que nos referimos o cenário original é, mais
propriamente, a cena da ação psíquica, como salienta Freud (1977).
Apresento a seguir cinco fragmentos clínicos sobre o que estou propondo chamar de
violência ou crueldade, estritamente subjetiva, caracterizando-os como avatares do supereu,
tão impactantes quanto aqueles anteriormente citados, com especial destaque para o último
exemplo.
O sujeito experimentava a mais profunda culpa, que o tornava incapaz de usufruir dos
resultados exitosos das suas honestas e esforçadas ações pessoais e profissionais. Achava
imperdoável ter tantos recursos comparados aos dos pais e irmãos, que tinham tão pouco, fato
que o levava, invariavelmente, a dividir seus ganhos com eles. Sua posição subjetiva de oblata
resultava quase sempre no ultrapassamento de seus limites financeiros. O problema é que, se
não o fizesse, sentia-se indigno, avaro, perdia o sono diante de tanta angústia. Tal ritual era
acompanhado de intenso temor da morte dos pais, a ponto de ter uma linha telefônica
destinada unicamente a ser usada para comunicar alguma emergência que pudesse acontecer
com um deles. Ao mesmo tempo, vivia o martírio de pensar compulsivamente a circunstância
da morte dos pais, ocupando-se de detalhes acerca do seu sepultamento, com a certeza de que
não iria sobreviver a essa experiência.
No segundo caso, o sujeito apresentava intenso sentimento de inferioridade,
acompanhado da idéia fixa de ser julgado, recriminado e condenado, todo o tempo, por todos.
No fundo, sentia-se um falsário, não merecedor da carreira, de fato promissora, que construiu
88
nos longos anos de trabalho. Diariamente, tinha que relembrar todos os esforços
empreendidos para chegar aonde chegou, seguido imediatamente da operação de anulação,
desqualificação do que fez, e dúvidas quanto ao seu mérito. Todo sinal de reconhecimento
emitido pelo outro se tornava indício de que estavam prestes a descobrir que sua vida era uma
farsa. Torturava-se com a idéia de não ser verdadeiramente merecedor das suas conquistas.
Tudo que poderia qualificá-lo virava motivo de tormento, pois ―no fundo, todos deviam saber
que era um homem sem valor‖, apenas favorecido pela sorte.
No terceiro caso, a tortura do sujeito, um perfeccionista, começa após cometer um erro
na atuação profissional e ter sido, por esta razão, ameaçado de ser processado, fato que não se
consumou. A culpa paralisa parte da sua vida profissional, com extenso prejuízo durante certo
período. Acusa-se e torna-se refém da ruminação das suas próprias dúvidas, iniciando vários
rituais obsessivos – compulsivos, que praticamente não lhe permitiam sair de casa. ―A vida
perdeu o sentido‖ e virou uma ―tortura mental‖. ―Não posso mais ser o mesmo‖.
No quarto caso, três tentativas de suicídio foram cometidas durante o ano que sucedeu
a dois importantes eventos na vida deste homem: a publicação de um livro no qual faz
exaustiva análise sociopolítica da violência, do crime e da corrupção, e sobre o qual, após um
ano, declara em sessão: ―este livro comeu tudo o que eu tinha‖. O segundo refere-se à
agressão física desferida contra o cônjuge, o que resultou em separação, e de onde advém
mortífera auto-recriminação. Na última tentativa de suicídio, golpeia-se furiosamente com
uma faca nos punhos: ―sou duro de morrer, mas não tenho nenhuma razão para viver‖,
conclui.
Há ainda a experiência de um púbere que sente forte impulso de cortar-se e o faz,
especialmente nos braços e punhos, com gilete. Na ausência deste instrumento, escolhe algo
pontiagudo que provoque o derramamento de sangue, alvo almejado: ―a dor não é nada
comparada ao prazer de ver jorrar o sangue do meu corpo‖; ―a carne dilacerada é a única coisa
que me resta‖. Da lâmina, diz em outro verso do mesmo poema, ―ela me corta com eterno
pudor‖.
As evidências desses atos de crueldade que provocam o sofrimento no próprio sujeito,
seja na forma paroxística da culpa, da autopunição, da inferioridade, dos rituais de tortura
física e psíquica, indo até as formas extremas dos atos masoquistas, seja no ato de tentar
suicídio, vêm merecendo especial análise desde Freud. Não há como negar que o seu nome é
violência. Violência do supereu, vaticinou Freud. Imperativo de gozo do supereu ratifica
Lacan.
89
Sem a pretensão de abrir qualquer discussão diagnóstica ou terapêutica quanto aos
casos apresentados, lembro que essas modalidades de violência, estritamente subjetivas,
avatares do supereu, circulam nas três estruturas clínicas convencionadas desde Freud:
neurose, psicose e perversão.
Deve-se também registrar outra evidência clínica: retornar ao estudo do supereu exige do
analista uma atualização do seu ato. Ou, dito de outro modo, não se é mais o mesmo depois de
mergulhar na teoria e na clínica do supereu e dos discursos. Faz-se uma espécie de ritual de
passagem, para além de qualquer resquício inocente de restringir a direção da cura ao vetor da
erótica freudiana e ao princípio do prazer, evidentemente sem dele prescindir.
Freud estava suficientemente instrumentalizado e especialmente advertido quanto ao
domínio do supereu e à importância do seu manejo na clínica psicanalítica. Apresenta em
―Inibição, Sintoma e Angústia‖ quatro modalidades de resistência, sendo a do supereu
considerada a mais difícil de abordar: ―A quinta, proveniente do superego e a última a ser
descoberta é também a mais obscura, embora nem sempre a menos poderosa. Parece originarse do sentimento de culpa ou da necessidade de punição.‖ (FREUD, 1976i, p. 185). No sétimo
capítulo do ―Mal-estar na civilização‖ faz uma recomendação quanto à necessidade de
intervenção do analista para amenizar a ferocidade do supereu contra o sujeito. (FREUD,
1974b, p. 168).
Lacan, por sua vez, convoca os analistas a manejarem a angústia antes que ela afogue
o sujeito. (LACAN, 1979b) A lição continua válida: é preciso manejar a transferência para
operar alguma mudança no âmbito do supereu. Neste jogo, é preciso recorrer à força da
demanda e à dimensão libidinal veiculada pelo valor da palavra sob transferência para, nos
termos de Freud, não deixar a pulsão de morte ou o gozo mortífero agir, desfusionado da
pulsão erótica, ou seja, é preciso fazer valer o poder do gozo fálico. Ou, nos termos do último
ensino de Lacan, é preciso emendar, suturar, quando possível, o imaginário, o simbólico e o
real.
90
3.2 SUPEREU E DISCURSO: MANIFESTAÇÕES SUBJETIVAS DA
VIOLÊNCIA
Dentre os sintomas para os quais as operações do supereu são reguladoras, tais como a
neurose obsessiva, a reação terapêutica negativa, a melancolia, os fracassados pelo êxito, os
atos compulsivos, a angústia, as inibições, o sadismo e os atos criminosos, escolhemos a
culpa, o masoquismo e a reação terapêutica negativa para abordar clinicamente a constituição
subjetiva da violência como avatar do supereu, de acordo com a proposição de Freud, relida
por Lacan como avatar do discurso.
A concepção de pulsão destrutiva e supereu, enquanto conseqüência direta do segundo
paradigma freudiano da pulsão, concernente ao além do princípio do prazer, e em cuja
tradição foram formulados os conceitos lacanianos de objeto a, gozo e discurso, são
produções de grande valor clínico para abordar os problemas relativos à violência, em
especial no âmbito das suas manifestações estritamente subjetivas, conferindo aos postulados
freudianos da segunda tópica, alentadas contribuições teóricas, técnicas e, sobretudo, éticas.
Nosso ponto de partida é considerar as vicissitudes do supereu como sendo as
verdadeiras vicissitudes da pulsão de morte. A instância psíquica que Freud nomeou supereu,
tornou-se indispensável para pensar a estruturação do aparelho psíquico desde a segunda
tópica, atribuindo-se-lhe o gigantesco trabalho de ordenar os destinos da pulsão destrutiva,
pulsão de morte, e simultaneamente transmitir ao sujeito os códigos, as leis e os princípios
civilizatórios com os quais a violência caminha a par e par. Este registro não deve ser
confundido com aquele da consciência moral e dos ideais do eu, de onde estes advêm,
secundariamente.
Lacan, por seu turno, definiu o supereu como imperativo de gozo, projetando-o
posteriormente nos discursos e nos laços sociais e vinculando-o, originariamente, ao discurso
do mestre, considerado o discurso civilizador e tirano. Credita ao S1, no lugar do comando, a
representação primeira da lei e a entrada imperativa do sujeito na linguagem, razão pela qual é
o fundamento do supereu. Nesta máquina discursiva instituinte, o supereu é também
representado como objeto voz, uma das espécies do objeto a. ―Lá está, tão na origem quanto o
pode estar o vocativo do comando.‖ (LACAN, 1982, p. 36).
91
Como foi apresentado no segundo capítulo, seja em Freud, seja em Lacan, o supereu é
primário e responsável pela primeira divisão do sujeito. Seu caráter paradoxal equivale ao
pathos da estrutura de linguagem que, longe de oferecer garantias ao sujeito, oferece o Outro
barrado, inconsistente, posto que não há Outro do Outro, não há metalinguagem.
A elaboração dos quatro discursos traz a particularidade de selar a relação dos
significantes com o gozo e inscrever as pulsões como modalidades de gozo dos discursos.
Segundo Coelho dos Santos (2001a), a noção de discurso torna a relação do significante com
o gozo primitiva e originária, traduzindo a repetição significante como um retorno que visa ao
gozo, e que tem como efeito identificar a pulsão ao gozo do significante. Lembra a autora que
esta mudança de perspectiva encontra-se no Seminário XVII, quando Lacan apresentou nova
economia na regulação do gozo pulsional, com base no princípio da entropia.
―Lacan reinterpreta o movimento entrópico da pulsão de morte tal como Freud o havia
descrito nos seguintes termos: a entropia obriga o mais-de-gozar a recuperar, a tomar corpo e
o mais-de-gozar toma corpo a partir de uma perda.‖ (COELHO DOS SANTOS, 2001a).
Lacan passa a definir a economia de gozo que rege os aparelhos de discurso não pela via da
transgressão, mas pela via da entropia, do desperdício e da sua recuperação, produzida pelas
operações primárias do discurso do mestre.
Retornamos ao discurso do mestre, desta vez para explorar um pouco mais as
dimensões de gozo que este comporta, fazendo-as equivaler aos imperativos de gozo do
supereu. Comecemos pela entropia de gozo que o significante-mestre, S1, instaura. Ao mesmo
tempo, ele configura uma espécie de irrupção de gozo e uma perda de gozo vinculada à
divisão do sujeito. O saber, S2, é meio de gozo no duplo sentido em que o efeito de falta
produz o mais de gozar suplementar. ―Quanto ao significante índice 2, S2, aí é o artesão que,
por meio da conjunção de dois significantes, é capaz de produzir o que chamei de objeto
pequeno a.‖ (LACAN, 2007, p. 24). Esses efeitos de gozo do discurso trazem a dimensão de
que o gozo é barrado, interditado, limitado pela falta que a linguagem comporta, operando
com a perda de gozo, por um lado, e recuperação, por outro. É este princípio, baseado na
entropia, que regula a lógica do gozo fálico como interditado e o Outro gozo, mais de gozar,
como suplementar.
O gozo do supereu no discurso do mestre estaria situado, pois, entre o gozo fálico,
gozo do Um, e o mais de gozar, o objeto a. O imperativo de gozo do supereu tira sua força do
poder do gozo fálico que, embora limitado e pouco durável, por estar fixado ao Um do
comando, preside todas as formas de poder em todas as esferas que comanda, não apenas a
92
sexual. O problema é que o gozo fálico, o gozo do S1, como mostra Lacan na topologia do nó
borromeu, tem um pedaço de real, ou seja, o gozo fálico está situado entre o registro do real e
do simbólico. Some-se a essa inserção real do gozo fálico no supereu àquela dada pelo real de
gozo do objeto a, cujas conseqüências veremos adiante.
Recorrendo à estrutura borromeana, encontramos outra forma de pensar o que se
coloca para além do gozo fálico, que é o gozo suplementar, o Outro gozo que está situado
entre o real e o imaginário.
A dimensão simbólica do gozo fálico está assegurada pelo que ele pode,
metaforicamente, reintegrar da realidade, fazendo-lhe suplência. No que tange à função real
do gozo fálico e à função real do Outro gozo, precisemos o conceito de real para melhor
explicar a dimensão real do gozo do supereu: o real é o impossível (LACAN, 2007, p. 121), o
impensável sobre a morte (LACAN, 2007, p. 121), é o sem sentido (LACAN, 2007, p. 62), é
o sem lei (LACAN, 2007, p. 133), sua condição é de ex-sistência (LACAN, 2007, p. 133).
Essa concepção do real levou Lacan a propor um Outro gozo com o qual redefine a pulsão de
morte, que tem, como conseqüência teórica e clínica imediata, a pregnância do real no
supereu tão bem revelada nos sintomas.
Arriscaríamos inverter a fórmula dizendo que é em razão de o supereu estar regido
pelo gozo fálico e pelo Outro gozo e situado entre o simbólico e o rea, que se pode explicar o
caráter paradoxal da própria lei dos homens que ele apenas duplica. A lei o rege, e ele como
operador da subjetividade, a assegura e transmite.
O supereu enoda, emenda esses dois registros paradoxais, simbólico e real, de tal
modo que um dos imperativos da estrutura de linguagem é a violência, em suas mais estreitas
relações com a lei tal como no discurso do mestre que a um só tempo é instituída e instituinte.
A contra partida reside no supereu regido pelo Outro gozo fundado no enlace do real com o
imaginário, onde produz o imperativo da violência nas formas extremas da destrutividade e da
morbidez.
Desse modo a violência, produzida primariamente pelo supereu, constitui uma das
versões da divisão do sujeito. É quando algo relativo à agressividade, ao ódio, à destrutividade
do sujeito aparece dirigido contra o próprio sujeito, tomando-o por um objeto. Dentre todas as
manifestações do supereu reveladoras dessa realidade psíquica, o masoquismo primário é
exemplar para demonstrá-la, e seu equivalente na clínica é a reação terapêutica negativa.
93
Vejamos como a culpa, o masoquismo e a reação terapêutica negativa podem
contribuir para esclarecer a respeito da constituição subjetiva da violência.
3.2.1 A culpa: responsabilidade e gozo
É bastante concebível que tampouco o sentimento de culpa produzido pela
civilização seja percebido como tal, e em grande parte permaneça
inconsciente, ou apareça como uma espécie de mal-estar, uma insatisfação,
para a qual as pessoas buscam outras motivações. (FREUD, 1974b, p. 160).
A culpa foi um dos primeiros antecessores do supereu na obra de Freud. Porém é
preciso distingui-los, pois a culpa nasce do supereu. Segundo Gerez-Ambertin, na complexa
constelação do supereu podem-se detectar três diferentes registros da culpa. (GEREZAMBERTINI, 2003, p. 115). O primeiro deles, a culpa consciente ou sentimento de culpa,
surge como percepção no eu de uma crítica sem misericórdia que provém claramente do
supereu.
A culpa inconsciente, por sua vez remete à posição do sujeito na estrutura da falta,
onde se enoda com a angústia de castração, angústia da consciência moral e de morte e foi
delimitada por Freud como culpa universal. Por fim, a culpa muda, que não tem expressão no
eu, nem na angústia da consciência moral e tenta escapar à submissão por outras vias. Na
culpa muda há apenas uma busca compulsiva e silenciosa de satisfação no castigo e no
padecimento.
Freud vincula a condição humana a uma perda fundamental originária do assassinato
do pai da horda primeva. Trata-se de uma perda estrutural que não deve ser confundida com
um crime passível de absolvição, sobre a qual se fundam a civilização e o laço social. Todo
aquele que fala porta uma dívida, sendo a culpa humana universal própria da estrutura que
está colocada além da contingência do sentimento de culpa.
Para Lacan, o mito do pai morto inscreve uma falta estrutural representada pela
castração do Outro, que vem explicar a impossibilidade estrutural do gozo, o limite do gozo.
A equivalência entre o pai morto e o gozo retira a dimensão do mito, configurando-o em um
94
operador estrutural. Para esta falta do Outro que é a base da culpa, Lacan propõe o matema,
[S ( Α )].
Nos termos de Freud, entretanto, o trabalho de transformação da perda originária ou da
falta da estrutura, em culpa, é da responsabilidade do supereu e não da consciência moral, da
ética ou das crenças nos mitos, inclusive o bíblico.
Para abordar essa causa real da culpa é preciso separar a culpa do mito imaginário do
pai, que não dá conta da estrutura em jogo, razão pela qual é preciso ir além-do-Édipo para
que a teoria analítica da culpabilidade não se reduza à fantasia do neurótico.
Segundo Soler (2001c), alguns ajustes sobre os desenvolvimentos da culpa foram
feitos por Lacan nos textos ―Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente
freudiano‖ (LACAN, 1998g, p.834-835), que ela considera o texto-chave dos Escritos sobre o
assunto, e Televisão, treze anos depois, onde as referências situam a problemática da
culpabilidade em relação às conjunturas do gozo, com a idéia de que o sujeito, finalmente,
sustenta o gozo e portanto, a falta.
No primeiro texto, poder-se-ia dizer que Lacan faz uma espécie de dedução da gênese
da culpabilidade ao sugerir que o gozo do vivo, o sexo e a existência não estão mais inscritos
no Outro porque, embora o Outro seja o lugar da linguagem, é inconsistente, o que quer dizer
que não existe, enquanto sujeito, vivente, sendo apenas um lugar que não pode suportar o
gozo, cabendo ao sujeito fazê-lo.
É importante entender que não é por um mau arranjo da sociedade, como o crêm, que
o gozo é impossível, mas por causa do Outro, se o Outro existisse, mas, como o Outro não
existe –o acesso ao gozo pleno é impossível.
A problemática gira em torno da impossibilidade inerente à linguagem, pois, em
última instância, ela é o obstáculo ao gozo: ―não existindo o Outro, só me resta impugnar a
culpa ao Eu, isto é, acreditar naquilo que a experiência nos conduz a todos, com Freud na
dianteira: ao pecado original.‖ (LACAN, 1998, p.834).
Em Televisão, Lacan evoca a culpa e o pecado original, juntamente com o gay sçavoir,
para lembrar que a crença religiosa ou o mito, pelo que comportam de imaginário, não
alcançam o real da castração, a limitação real do gozo da linguagem que está em jogo na
culpa: “o que implica que o gaio saber, no final, faça dela [a virtude] apenas a queda, o
retorno ao pecado.‖ (LACAN, 1993, p.45). Conclui, ―a culpabilidade é correlata ao limite do
gozo, sob o efeito da linguagem.‖ (LACAN, 1993, p.45).
95
Diversas são as formas de apresentação da culpa. A culpa universal se exterioriza na
neurose, no registro de uma demanda de amor, vinculando a fantasia à demanda ao Outro
pelas vias do amor. Deste modo, a demanda amorosa é um recurso para fazer ceder o mandato
do supereu, um recurso para barrar o gozo pelas vias do desejo. Estamos falando da aposta
feita por Lacan de que ―só o amor permite ao gozo condescender ao desejo.‖ (LACAN, 2005,
p.197).
A estratégia utilizada pelo sujeito neurótico para negociar desejo e gozo com o
supereu se faz apelando ao amor do Pai. A demanda ao Outro, enquanto demanda de amor, se
apresenta na clínica de muitas maneiras: arrependimento, vergonha, culpa inconsciente e
consciente e nas variações do masoquismo. A resposta a este apelo ao Outro às vezes é
fracassada, o que implica em abalos do sujeito no âmbito da fantasia, resultando na ferocidade
implacável do supereu sem negociação.
A culpa diante do imperativo de gozo do supereu sofre dois destinos: pela demanda ao
Outro ( S ◊ D), tentar escapar do imperativo, inscrevendo-se com uma frase na fantasia ( S ◊ a)
ou, pela via da submissão ao gozo não regulado pela função fálica, demonstrar o triunfo da
voz do supereu. (GEREZ-AMBERTINI, 2003).
Na culpa o sujeito fica em suspenso, oscilando entre a demanda ao Outro e o objeto a,
o que resulta em algumas respostas possíveis, entre as quais a inibição, o sintoma e a angústia.
Ao recorrer à culpa como um apelo ao Outro, o sujeito consegue se sustentar no simbólico e
se fazer representar por seus significantes, fazendo barreira ao gozo com o emolduramento da
fantasia. Caso contrário, o sujeito cai como objeto a. (GEREZ-AMBERTINI, 2003, p. 270).
Nessa perspectiva, o neurótico pede desculpas, apela ao Nome do Pai, recorrendo à demanda
ao recusar o gozo do supereu e sustentar sua posição desejante. Dessa maneira, a culpa é um
ardil do neurótico para se amarrar ao mundo e não ser dele ejetado, uma tentativa de sustentar
a demanda contra a angústia. Um dos efeitos da culpa é diminuir a força da angustia, na
medida em que promove sua articulação com o significante, tal como se observa na fobia.
(GEREZ-AMBERTINI, 2003).
Quanto ao suposto amor do supereu, Lacan assinala que, com tudo o que ele coloca no
caminho do fracasso, o que se teme é o êxito, é sempre o “isto não falta”? (LACAN, 2005, p.
62).
96
A culpa pode ser reconhecida nos três registros: na forma de sentimento, relativa ao
registro imaginário; no simbólico, como desejo inconsciente na fantasia, e nas formas
extremas de devastação, no registro real, como excedente de gozo.
Baseada na topologia desenvolvida por Lacan, através do nó borromeu, Ambertín
apresenta o trevo da culpa. (GEREZ-AMBERTINI, 2003, p. 277).
Como se pode depreender da figura acima, o sentimento de culpa ou mea culpa do eu
se exterioriza como queixa consciente e está situada entre o imaginário e o simbólico. A
demanda culposa, como invocação à falta do Outro, se situa entre o simbólico e o real, e
corresponde à culpa inconsciente. A culpa muda equivale à voracidade superegóica de gozo e
está situada entre o imaginário e o real.
Vale chamar a atenção para certo ângulo de leitura feita por Lacan sobre a culpa. Ele
dá a entender que há na culpa certo nível de consentimento no que se refere à falta ante o
desejo do Outro, podendo também vislumbrar a falta de gozo do sujeito. Pode-se também
deduzir que, em certas circunstâncias da culpa, o sujeito se faz responsável pelo seu desejo e
pelo gozo que o causa.
A culpa, portanto, é este elemento clínico que vem mostrar uma das faces da falta
radical que o aparelho psíquico comporta, quer do sujeito, quer do Outro. A culpa manifesta a
castração como a impossibilidade lógica de plenitude do gozo, quando se trata do
inconsciente estruturado como uma linguagem.
Quando concorre com a angústia e pode substituí-la, a culpa tem a função de atar,
fusionar o gozo mortífero do supereu através da demanda que metonimiza o desejo com o
gozo fálico. Esta é sua função primordial. Quando esta operação fracassa, deixa aparecer a
97
potência do simbólico fazer suplência ao real, mostrando o fracasso dos semblantes dos
discursos e deixando aparecer a crua dimensão real sem lei que rege os laços sociais,
manifesto nos atos de violência.
3.2.2 O masoquismo: erótica mortífera do supereu
―A vida não quer sarar‖
Lacan (1985, p. 292).
Freud considerava que ―a existência de uma tendência masoquista na vida instintiva
dos seres humanos pode corretamente ser descrita como misteriosa desde o ponto de vista
econômico.‖ (FREUD, 1976ij, p. 199). Ao escrever o ‗Problema econômico do masoquismo‘
ultrapassou a noção do masoquismo como perversão, instituiu o masoquismo primário, cuja
causa creditou ao Supereu.
O supereu definido como legítimo representante da pulsão de morte foi o ponto de
onde Freud partiu para apresentar as três formas do masoquismo: masoquismo erógeno,
masoquismo feminino, e masoquismo moral.
O primeiro deles é o masoquismo erógeno, um modo de gozo sexual perverso que
consiste no prazer da dor. Este masoquismo é primário, pois conjuga a pulsão de morte e a
pulsão de vida; seu objeto é o próprio sujeito. (FREUD, 1976j).
Um segundo tipo de masoquismo é o masoquismo feminino, que não corresponde
exatamente a um masoquismo de gênero, mas a posição feminina tal como se apresenta na
fantasia de homens masoquistas perversos. (FREUD, 1976j, p. 180).
O terceiro tipo, o masoquismo moral, que mais interessa à nossa tese, desempenha um
papel especial no sentimento inconsciente de culpa. Consiste numa agressividade feroz do
supereu em relação ao eu, ou, dito de outra maneira, do Outro em relação ao sujeito,
conformando, sujeito e Outro, um verdadeiro par sadomasoquista.
Nos dois primeiros está mantida a fusão da pulsão de destrutiva com a pulsão de vida,
preservada pela relação com o objeto erógeno externo. No masoquismo moral o erotismo está
presente, mas a particularidade incide no detalhe do sofrimento não precisar do objeto
98
erógeno externo, pois o sujeito visa o sofrimento em si mesmo. Libidiniza o outro da sua
própria divisão, ou nos termos da segunda tópica freudiana, o eu em sua divisão se toma a si
mesmo como objeto revestido de libido, e igualmente revestido de pulsão destrutiva. Caberia
perguntar, qual outra formação subjetiva poderia concorrer com tamanha gulodice, voracidade
e ferocidade do supereu.
O masoquismo moral se demonstra bem na neurose obsessiva, isto é, na consciência
de culpa, na culpa narcísica de se imaginar perfeito e inatacável. Trata-se de um masoquismo
secundário, caso em que o sadismo se volta contra o eu. O masoquista moral dá a impressão
de ser inibido e dominado por uma consciência intransigente.
Igualmente, o masoquismo moral transparece na depressão, isto é, na autorecriminação melancólica, que pode atingir o cúmulo no delírio de vileza. Chamamos de autorecriminação, mas poderíamos chamar também de recriminação, se considerarmos o supereu
como uma instância que marca a divisão que recrimina o eu. O mesmo se poderia dizer nos
termos de Lacan: o Outro recrimina o sujeito.
É preciso diferenciar, todavia, o sadismo do supereu do masoquismo moral, caso em
que o sujeito busca punição, seja do supereu, seja do Outro. O sadismo do supereu é
consciente, ao passo que o masoquismo moral é inconsciente. (FREUD, 1976j, p. 186).
No masoquismo, o sujeito é levado a efetuar ações pecaminosas, que devem então ser
expiadas pela censura da consciência sádica. Para ser punido pelo destino, o masoquista faz o
que é desaconselhável, agindo contra seus próprios interesses e arruinando as perspectivas que
se abrem para ele na vida real.
Já o sadismo que retorna contra o eu se deve à supressão cultural dos impulsos
destrutivos. Ele retorna contra o eu com uma intensificação do masoquismo. Porém, o
sadismo do supereu e o masoquismo do eu suplementam-se, mutuamente, e se unem para
produzir os mesmos efeitos. (FREUD, 1976j, p. 187). A consciência moral se torna tão mais
severa e mais sensível quanto mais se abstém da agressão contra os outros. (FREUD, 1976j,
p. 187). No entanto, esse masoquismo moral, a devastação de si mesmo, não pode se realizar
sem um gozo libidinal. (FREUD, 1976j, p. 188).
Não podemos compreender a saída masoquista sem a dimensão do simbólico. Ela se
situa no ponto de junção entre o imaginário e o simbólico. Em sua forma estrutural, ele se
chama masoquismo fundamental. É também aí que se deve situar o que se chama de pulsão de
morte ou real, constituinte da posição fundamental do sujeito. Para Lacan ―[...]o gozo do real
99
comporta o masoquismo, tal como Freud notou. O masoquismo é o ápice do gozo dado pelo
real.‖ (LACAN, 2007, p. 76).
Quando Freud descreveu o masoquismo fundamental, o encarnou em um jogo da
infância. Ele observou que a criança substitui a tensão dolorosa da experiência inevitável da
presença e ausência do objeto amado, por um jogo em que um carretel, preso a uma linha lhe
permite o leva-e-traz do objeto. (LACAN, 2007, p. 200).
Trata-se, em realidade, de substituir a experiência impossível de alternância do
significante, o que se evidencia no fato de que este jogo se acompanha de uma verbalização,
característica e fundamento da linguagem, isto é, da oposição significante fort/da [lá/cá]. É a
primeira manifestação da linguagem sob a forma de um binário, de uma oposição que a
criança alcança no plano simbólico, tornando-se mestre da coisa, na exata medida em que a
destrói.
O momento em que o desejo se humaniza é também aquele em que a criança nasce
para a linguagem. O sujeito não domina apenas a privação do objeto assumindo-o, mas
implica seu desejo nessa mesma operação. Sua ação destrói o objeto que ele faz aparecer e
desaparecer também pela voz, na provocação antecipatória da ausência e presença. Ele
negativiza o desejo para se tornar seu próprio objeto, que toma corpo simbólico nos
significantes fort/da. Assim o desejo do sujeito se torna o desejo do Outro. Dirigindo-se
doravante a um objeto imaginário ou real, o sujeito aprende a manejar o sim e o não, a
presença e a ausência, a ausência evocada na presença e a presença evocada na ausência. Essa
inversão dos símbolos anula a coisa existente e abre o mundo da negatividade, que constitui
ao mesmo tempo o discurso do sujeito e a realidade humana. O masoquismo primordial deve
ser situado em torno dessa primeira negativação, do assassínio originário da coisa. (LACAN,
1985, p. 292).
Uma das primeiras atividades que pude constatar em uma menininha que não
tinha nada de especialmente feroz, em uma idade em que ainda engatinhava
em um jardim de interior onde estava refugiada, foi se ocupar tranquilamente
em atirar uma pedra bem grande na cabeça de um camaradinha vizinho, que
era aquele em torno do qual ela fazia suas primeiras identificações; o gesto
de Caim não tem necessidade de esperar uma grande completude motora
para se realizar do modo mais espontâneo, devo dizer mesmo o mais triunfal,
pois ela não experimentou nenhum sentimento de culpa. ‗Eu quebrar cabeça
dele...‘ ela formulava com segurança e tranqüilidade. Eu não prevejo, no
entanto nenhum futuro criminoso. Ela manifesta a estrutura mais
fundamental do ser humano, no plano imaginário: destruir aquele que é a
sede da alienação. (LACAN, 1979a, p. 199).
100
Poderíamos articular ainda a experiência do fort/da com a seguinte frase de Lacan: "O
que cria a estrutura é a maneira como a linguagem emerge de saída, em um ser humano‖
(LACAN, 1976, p. 13), se considerarmos este jogo de presença/ausência como sendo a
inscrição do falasser na cadeia significante. Na entrada do falasser na cadeia significante,
neste par de oposição que funciona como um intervalo significante, onde o significante não
está lá para representar a significação, mas, principalmente, para completar as hiâncias de
uma significação que não significa nada, pode-se encontrar a matriz da fantasia.
O masoquismo tem suas bases assentadas na submissão do sujeito ao Outro da
linguagem. O fort-da seria a primeira forma de apresentação dessa submissão, que escande a
história de estruturação do sujeito. Trata-se aí das conjunturas, isto é, dos momentos de
efetuação da estrutura, feitos de arranjos significantes, na medida em que cada sujeito é
convocado a responder a determinadas conjunturas e para isto será preciso fazer um novo
arranjo, uma nova combinatória significante. Neste encontro do real, neste padecer próprio
do sujeito, aparece o submetimento ao masoquismo como primordial e acrescenta Lacan, ―[...]
uma relação que constitui a forma derradeira do que chamamos, na análise, de masoquismo,
isto é, aquilo mediante o qual o sujeito apreende a dor de existir.‖ (LACAN, 1979a, p. 266).
O masoquismo primário advém ainda da submissão do sujeito ao Outro da linguagem
devido à sua prematuridade simbólica e biológica, razão da sua impotência originária e sua
dependência ao Outro simbólico e ao outro imaginário. Mais precisamente, sua dependência
ao significante o faz entrar no mundo em posição de objeto, antes de advir sujeito. Nas
primárias operações significantes de alienação e separação que se instauram no discurso do
mestre e constituem a subjetividade, estão as bases da estruturação do supereu, do
masoquismo primário e da pulsão de morte.
A teoria freudiana parece explicar até mesmo a morte segundo a teoria da libido e o
princípio do prazer. A coalescência da libido com o que lhe é contrário, aparentemente, a
agressividade, é explicada pela identificação imaginária. Em vez de quebrar a cabeça do outro
que está diante de si, o sujeito se identifica e retorna contra si mesmo esta doce agressividade,
concebida como uma relação libidinal de objeto e fundada sobre as pulsões do eu, ou seja,
sobre as necessidades de ordem e de harmonia.
A aventura libidinal é a objetividade na ordem do vivo e supõe que o comportamento
humano, a agressividade, esteja condicionada e explicada por um desejo fundamentalmente
adequado ao seu objeto. Porém o ‗Além do princípio do prazer‘ indica que isso não basta.
101
O masoquismo não é um sadismo invertido, o fenômeno da agressividade
não se explica apenas como identificação imaginária. O que Freud nos
ensina com o masoquismo primordial é que a derradeira palavra da vida[...]
só pode ser a maldição derradeira que se expressa no fim de Édipo em
Colona. A vida não quer sarar. A reação terapêutica negativa lhe é
fundamentalmente própria. (LACAN, 1985, p. 292).
A trilogia freudiana pulsão de morte, supereu e masoquismo primário constitui o além
do princípio do prazer, permitindo a Lacan reformular a satisfação pulsional como
modalidades de gozo.
O masoquismo primário mostra que há um ponto de real no eu. Ou seja, há algo de
real no eu que pode deslizar ao infinito, sem a limitação do princípio do prazer, reafirmando o
ponto de real redobrado pelo S1 e pelo objeto a, ao mostrar a divisão do sujeito. Em última
instância, verifica-se que é o supereu que produz a divisão do aparelho psíquico, seja nos
termos de Freud, seja nos termos de Lacan.
O masoquismo revela a violência no mais estrito âmbito da subjetividade, pois
misteriosamente toma o próprio eu, ou o próprio corpo como objeto de maltrato, tornando-se
algoz dele próprio como se fora um outro. Este mistério se redobra na medida em que um
sujeito empresta-se como objeto de maltrato para um outro, um outro corpo.
Além da culpa, o masoquismo é a outra face da falta radical que o aparelho psíquico
comporta. Na primeira a castração, como impossibilidade lógica de gozar, aparece na
operação da alienação que se paga com as libras de carne do masoquismo primário. Na
operação da separação, igualmente necessária para advir sujeito do discurso, operação,
contudo, nem pacífica nem harmônica, como se verifica na análise, pagam-se também as
cotas de violência, pois o objeto a, elemento separador, é uma das modalidades do real do
gozo, ou seja, uma das vicissitudes do supereu. (SOLER, 2003a, p. 14).
A constituição do sujeito depende das operações primárias da estrutura de linguagem
que são aquelas dos discursos. A dimensão da falta radical da estrutura do aparelho psíquico,
que torna impossível a existência da garantia do Outro e a existência de um objeto no mundo,
que possa completar o sujeito - condição para as manifestações que estou propondo chamar de
violência estritamente subjetiva – constitui a causa do desamparo inicial do filho do homem
no plano subjetivo, fazendo concorrência a prematuridade biológica, que exige cuidados
absolutos quanto às necessidades básicas iniciais que garantem a sobrevivência. A demanda
incondicional de amor ao outro, neste duplo contexto, tem lugar de honra.
A alienação primária ao Outro do simbólico e ao outro semelhante no plano
imaginário, e sua contrapartida na separação que o objeto a imprime são constitutivas da
102
subjetividade, necessárias para o entendimento da noção, segundo a qual somos escravos do
outro porque nascemos escravos do Outro da linguagem, assujeitados ao significante. As
outras dependências vêm apenas duplicar essa estrutura.
A pulsão, como entropia de gozo dos aparelhos de discurso que inscreve a realidade
do sujeito entre falta e excesso é a razão da inexistência da homeostase do ser falante. A lei
assimilada pelo sujeito pode ser muito tirana, como demonstram os avatares do supereu, em
tudo condicionada à anterioridade dos discursos que comandam definitivamente as
modalizações do sujeito.
No que tange ao masoquismo primário, sua força está localizada na fusão da pulsão
erótica com a pulsão destrutiva nos termos de Freud, ou no laço do gozo fálico com o Outro
gozo, nos termos de Lacan, causa da divisão do sujeito que condiciona todo o espectro que
comporta a dimensão subjetiva da violência. Esta é uma das razões pelas quais cada humano
conhece, desde sempre, a violência que lhe é constitutiva, reconhecendo-a quando aparece do
lado do outro, nas formas do sadismo, ou quando aparece no mal-estar da civilização e dos
discursos.
3.2.3 Reação terapêutica negativa: comércio de gozo
Piorar ao melhorar foi a paradoxal manifestação encontrada por Freud na experiência
clínica, por ele nomeada reação terapêutica negativa, RTN, confirmação da pulsão destrutiva
na conjunção do supereu e do masoquismo.
Ela é outro modo de apresentação do masoquismo moral. Desde o início, Freud
buscou formalizar os obstáculos que eram encontrados no curso de uma análise. A
experiência mostrou a existência de um especial obstáculo que o fez questionar, apesar de seu
otimismo, a evidência da terapêutica psicanalítica.
Ao final de seu ensino, ele observa que em vez de indagar a evidência da análise, seria
melhor se perguntar sobre os obstáculos que se colocam na direção da cura. (FREUD, 1975,
p.252).
103
A reação terapêutica negativa, ou RTN, constitui um destes obstáculos, e é o maior
perigo para o êxito do tratamento analítico, constituindo-se como um marco nas formulações
sobre as vicissitudes da transferência no tratamento. Não deve, entretanto, ser confundida com
o que Freud nomeou transferência negativa, nem com o fenômeno identificado naqueles que
fracassam ao triunfar.
Os pós-freudianos consideram esta descoberta freudiana um fracasso terapêutico; por
isso, preferem orientar a direção da análise no sentido das identificações, sobretudo, da
identificação ao analista, reconciliando o sujeito com seus ideais. Ao contrário, podemos hoje
dizer, que é devido ao êxito da psicanálise que podemos inscrevê-la nos avatares do supereu e
do masoquismo, e nas modalidades de gozo, franqueando novas considerações sobre seu
manejo e destino na clínica psicanalítica.
Lacan trata o efeito desta descoberta freudiana como um eixo que possibilita abordar a
questão do final de análise, sem ignorar ou recusar o enfrentamento dessa enigmática
tendência masoquista, dessa maldição assumida ou consentida, tal como é demonstrada pela
experiência clínica. (LACAN, 1988a).
A RTN é inicialmente apresentada por Freud como um fenômeno paradoxal que
aparece durante o tratamento. A própria condição da melhora reduz o grau da recuperação,
diminuindo a força pulsional que o impele para a recuperação. Representa na clínica a
presença de um gozo irredutível à interpretação.
A RTN ganha maior precisão conceitual a partir da segunda tópica, em ―O Ego e o Id‖
(FREUD, 1976h), quando é apresentada como um fato clínico, que é atribuído a um desafio
do sujeito que se empenha em mostrar sua superioridade ao médico. Este dado clínico é
considerado mais poderoso do que os obstáculos já conhecidos: inacessibilidade narcísica,
atitude negativa em direção ao médico e apego ao ganho secundário da doença.
Freud considera que esse obstáculo pode ser chamado de 'fator moral', um sentimento
de culpa que encontra satisfação na doença e por isso recusa a abandonar a punição advinda
do sofrimento. Esse sentimento de culpa permanece silencioso para o paciente e somente se
manifesta como resistência à cura, dificilmente redutível. Esse fator moral corresponde ao
sentimento de culpa inconsciente e à necessidade de punição.
Isto quer dizer que na RTN não há registro consciente de culpabilidade, pois o que
aparece é uma orgulhosa reivindicação do sofrimento, sob a forma de resistência do amor
próprio e que, amiúde, se declara como impossibilidade de aceitar a idéia de ser libertado por
outro que não ele mesmo (LACAN, 1998a, p. 110). O que levará Freud a vincular a RTN à
104
necessidade de punição na série: autopunição, satisfação do castigo através do sintoma e
retenção do sofrimento.
Em ―O problema econômico do masoquismo‖ (FREUD, 1976j), a RTN estará
relacionada ao masoquismo moral entre o sentimento inconsciente de culpa e à necessidade de
punição. Neste artigo Freud busca distinguir os dois afetos, sentimento inconsciente de culpa
e necessidade de punição, a fim de esclarecer a particularidade daquilo que fundamenta a
necessidade de punição apresentada no masoquismo moral, e que se relaciona com a RTN.
Esta é outra manifestação do que na vida não quer curar.
O sintoma, em seu nó real, coloca-se assim no lugar de uma recuperação de gozo, um
mais de gozo, como resposta a um mandato superegóico. É por este viés que o sujeito se nega
a renunciar aos seus sintomas. O supereu é o agente deste imperativo de gozo cuja gulodice,
cuja intensidade, aumenta proporcional à renúncia da satisfação. (COSTA DINIZ, 2006).
Sabemos por Freud, que o supereu é de uma economia tal, que quanto mais sacrifício
se faz, mais exigente ele se torna. O paradoxo ético do supereu consiste em fazer o sujeito
culpável, conduzindo-o ao sacrifício, obrigando-o a renúncias sempre maiores. Segundo Costa
Diniz (2006), a reação terapêutica negativa, esta gula do supereu, está estreitamente articulada
com o gozo do sintoma, e recomenda o retorno ao texto de Freud, "Achados, idéias e
problemas (FREUD, 1975a), que tardiamente vem esclarecer a origem deste gozo. Sem
dúvida, é um grande achado de Freud admitir um gozo sempre insuficiente e falho.
Provavelmente, esta idéia serviu de protótipo para o que Lacan, posteriormente, chamou de
impossibilidade do gozo.
3.3 DISCURSO ANALÍTICO E DISCURSO CAPITALISTA: IMPASSES E
PERSPECTIVAS
Nesta seção, propomo-nos analisar alguns aspectos das mudanças subjetivas relativas
à violência produzidas pelo discurso capitalista, tomando como eixo o discurso psicanalítico.
Novos e velhos sintomas são atribuídos ao capitalismo: a síndrome do pânico, as angústias
105
agudas, todos os tipos de compulsões e impulsões, a anorexia, a bulimia, o consumismo, o
jogo, o alcoolismo e as toxicomanias, com destaque especial para a depressão. A violência, se
não é propriamente um sintoma, constitui, certamente, o elemento significativo que perpassa
todas as manifestações subjetivas contemporâneas no âmbito do público e do privado.
3.3.1 Discursos e produtos: oposição
A violência é, por excelência, a marca do discurso da tecnociência capitalista, o brasão
mais exibido e a notícia mais veiculada pela imprensa falada e escrita. Pode ser precisamente
localizada no culto exacerbado à competição, ao individualismo, ao egoísmo e ao cinismo,
que comparece no discurso corrente. Sua presença globalizada emerge como signo
escancarado dos desfuncionamentos da subjetividade.
Se fosse sustentável afirmar que o capitalismo é a última doença inventada e que se
alastrou pelo planeta, a violência seria, por sua vez, o corolário da devastação na
contemporaneidade. Nosso ponto de partida não é, contudo, enveredar por dados estatísticos
para tentar responder à questão se há mais violência hoje que antes, mas de preferência
identificar tais fenômenos nos planos individuais e coletivos, que estão a exigir novas leituras
e novas soluções. A leitura psicanalítica aí se inclui, por reconhecer a violência como um
elemento inerente às modalidades de satisfação pulsional dos aparelhos de discurso, o que por
si só nos convoca a intervir.
Alguns autores consideram que os laços sociais no capitalismo estão inteiramente
rompidos. Outros, apenas parcialmente. No que tange à violência, esta se apresenta como um
forte exemplo de ruptura e não se trata de identificá-la como uma invenção do discurso
capitalista, mas como um novo índice do precário ordenamento simbólico desse mesmo
discurso.
A escravidão, as servidões e o submetimento ao outro, sem falar nas guerras, existiram
desde sempre e em variadas formas, das mais brutais e explícitas até as mais sutis. Muito
antes de o capitalista inventar o método de enriquecer expropriando a mais-valia do operário,
a história já registrava muitas formas de exploração e escravidão, nas quais alguns homens
submetiam outros a trabalhar em prol do conforto para si e para sua família, sem qualquer
106
remuneração pelo serviço executado. São vidas usadas além do limite da exploração e
descartadas como peças exauridas, tais quais as máquinas que advieram com a revolução
industrial.
Afora aquelas relativas à economia e à desigualdade das classes sociais, há muitas
outras maneiras de exploração e escravidão do outro. Há a escravidão sexual, amorosa,
familiar, fraterna, filial.
As distintas formas de violências e crueldade que configuram a escravidão e as
servidões ao longo da história devem ser circunscritas aos laços sociais dos discursos, desde
que se concorde com o princípio segundo o qual os discursos são anteriores ao sujeito,
comandando e condicionando as subjetividades. Entretanto, é preciso querer saber o que
mudou em relação à crueldade entre os seres falantes no discurso capitalista.
O discurso do capitalista, pouco antes da metade do século XX, vem colocando novos
problemas não só para a economia, mas também para os laços sociais e para a subjetividade.
O mundo era então regido pelos semblantes produzidos pelos quatro discursos - o do mestre,
da histérica, da universidade e do psicanalista - no tratamento da falta do Outro S( Α ). O que
era sintoma ordenado pelo recalque no discurso do mestre, tornou-se desregramento
tecnológico gerador de novas formas de sintomas.
Até o início do século XX, o novo modo de produção que a revolução industrial
imprimiu, espalhou-se rapidamente pelos diversos setores da economia. A novidade se
inscreve com o nascimento da tecnologia que apresentou o conhecimento sistematizado, a
partir de experiências e proposições de novas ferramentas aplicadas ao processo de produção,
que tinham como alvo a fabricação mecanizada em grande quantidade, com baixo custo.
Desde então, tudo passou a ser tratado com os novos termos da tecnociência, começando pela
produtividade e pela organização do trabalho.
O saber da ciência moderna garantiu a nova economia e foi por esta elevada ao zênite.
Em sua face de tecnociência, transformou-se em gadgets, cyber-products e smart-products,
incitando ao consumo imperativo. O resultado final foi a ruptura da ciência tradicional com a
ciência moderna, em sua versão high tech, tanto no âmbito da relação do conhecimento com a
verdade quanto na ênfase dada à fabricação de objetos novos e inéditos (GONÇALVES,
2000), o que levou Lacan a recomendar que forma, substância, conteúdo, tenha o nome que
tiver, é desse mito que um pensamento científico deve se desprender. (LACAN, 1982).
Por último, aparece a internet como uma espécie de revolução silenciosa, impondo o
novo produto que é a informação, intimamente associada ao aumento da velocidade da
comunicação; pelos amplos recursos que apresenta e pelo incontrolável ultrapassamento em
107
todas as esferas, dá margem à pergunta: será a internet, no futuro, mais ou menos compatível
com o capitalismo? (GONÇALVES, 2000). Essas observações têm o objetivo de ressaltar que
o advento do capitalismo está condicionado à ciência e à tecnologia e, por ser impossível
dissociá-los, é preciso reconhecer que formam o mesmo discurso na atualidade.
Neste contexto histórico, surge a psicanálise como um novo discurso, ao nomear um
novo saber próprio ao inconsciente e à pulsão. Embora filha legítima do discurso da ciência
numa organização econômica capitalista, a psicanálise não veio ao mundo para assegurar os
resultados almejados pelos empreendimentos capitalistas; tampouco ficou seduzida por suas
quinquilharias. Ao contrário, prescindiu de quaisquer que fossem suas invenções para operar
uma nova prática clínica e num movimento inverso, reafirmou a soberania da economia
psíquica, apostando em um novo laço social, baseado exclusivamente no poder de reinvenção
da vida pela fala.
Nessa posição, o discurso psicanalítico é convocado a analisar um fator relevante para
a criação do laço social capitalista. Trata-se da relação do saber com o gozo, vigente no
coração da ciência. Essa relação pode ser explicitada, por um lado, pelo mais de gozo e por
outro, pelo saber como meio de gozo, correspondendo, respectivamente, à mais-valia e ao
novo mercado.
É histórica a relação da ciência com o saber. Baseado no interesse da ciência pela
produção de saber, Lacan aproximou um certo período da ciência ao discurso da histérica. Em
contrapartida, a tecnociência quebra esta histórica relação, pois não está de maneira alguma
interessada na produção de saber, mas, ao contrário, está bem interessada em saber extrair do
real o máximo possível de produtos que garantam o mercado.
Resulta, portanto, da ciência contemporânea, a transformação radical do saber (S2) meio de gozo - e do objeto a - mais de gozo -, próprio do discurso do mestre, em mercadoria,
no discurso capitalista. A razão da força do discurso capitalista reside na astúcia de
transformar objetos de gozo da economia subjetiva em objetos de consumo, unidos na sua
origem. A unificação da ciência é correlata ao desenvolvimento do capitalismo que implica
não só na criação do mercado, tal como o conhecemos hoje, mas como mercado do saber.
Segundo Rabinovitch (1989), a própria psicanálise é mais um sintoma da modificação
histórica que ocorreu na relação do saber com o gozo, com a ressalva quanto aos seus fins.
Também o objeto a como lugar de captação de mais de gozar, pôde ser inventado por Lacan,
porque se produziu uma modificação na relação histórica entre o saber e o gozo. Lacan soube
aproveitar-se do novo saber apresentado por Marx ao absorver, por exemplo, o conceito de
unidade de valor, para formular a noção de objeto a. Na produção de valor, ressalta-se como
108
característica, o fato de ser heterogêneo em relação ao valor de troca, o que comporta tanto
poder gozar de um bem, como a propriedade, quanto gozar do próprio corpo.
A produção desses objetos (o do saber e sua entrada como mercadoria no
mercado onde o saber começa a ter um valor) é solidária, não da renúncia ao
gozo, já que renúncia ao gozo sempre existiu: na posição do amo hegeliano,
a renuncia ao gozo está na renúncia a seu corpo, a sua vida para manter seu
prestígio. A novidade, então, é que haja um discurso que promova a
produção através da renúncia a gozo. Essa possibilidade que surge do
discurso da ciência sublinha a renúncia ao gozo para marcar sua recuperação
assinalando o objeto a como o lugar privilegiado para essa recuperação.
(RABINOVITCH, 1989, p. 23).
O mercado do saber teve a função particular de criar o novo laço social correlativo da
ciência.
É um mercado anônimo com leis próprias como uma espécie de grande
Outro que regula as trocas, como um Outro a que se prefere pensar como não
barrado e ao qual se supõe um sujeito maquiavélico que, com sua mão
invisível preconizada por Adam Smith, maneja desde não se sabe onde, nem
quando. Este mercado é basicamente um mercado de saber onde o saber pela
instalação da ciência transforma-se em mercadoria. (RABINOVITCH, 1989,
p. 25).
Essas breves considerações sobre as mudanças radicais produzidas pelo capitalismo e
pela tecnociência na economia, na civilização e, portanto, na subjetividade, são essenciais
para situar a clínica psicanalítica na contemporaneidade, bem como situar a participação dos
psicanalistas neste mercado.
3.3.2 O discurso psicanalítico, uma forma de resistência?
Embora tributária da tradição científica, aqui reside a responsabilidade ética da
psicanálise que não pode se contentar, nostalgicamente, em lastimar a concorrência que o
discurso da tecnociência capitalista faz aos discursos, em especial ao do mestre. Para
salvaguardar a subjetividade, a psicanálise posiciona-se favorável à circulação dos quatro
discursos. Para tanto, se preocupa com os destinos do discurso do mestre, da histérica e do seu
109
próprio, por serem alvos do bio-poder. Além disso, do lugar de um discurso contemporâneo
ao discurso do capitalismo, como é o seu, deve, com o seu ato, seguir apresentando métodos
para abordar a subjetividade à altura dos bons resultados da sua secular pratica clínica, que até
o momento, teve poder para aí intervir. Deste prisma, somos obrigados a reconhecer que a
psicanálise é uma política.
Pode a psicanálise fazer resistência ao capitalismo? De certo modo. É, aliás, o que
tem acontecido. Juntamente com outras práticas contemporâneas, a exemplo da ecologia, das
artes de um modo geral, e da literatura em particular, efetivamente, tem formado focos de
resistência - uma micropolítica - ao explicitar e de certo modo denunciar a foraclusão que a
ciência faz do sujeito e os desvarios do gozo e do desejo operados pela tecnociência. A
psicanálise, juntamente com outras práticas que poderíamos identificar como antisegregadoras, não se coloca a serviço do capitalismo, mas, ao contrário, por definição, faz-lhe
oposição.
Deve-se ressaltar que a psicanálise vai à caça em busca do resgate do sujeito, do que o
causa e o constitui. Essa parece ter sido a posição de Lacan, ao atribuir ao discurso do
psicanalista uma saída possível para os impasses colocados pelo discurso capitalista.
(LACAN, 1993, p. 34).
O postulado lacaniano que define a realidade humana como realidade de discurso, de
acordo com as modalidades de gozo dos laços sociais e do inconsciente que ex-siste aos
discursos, está à altura de demarcar as mutações significativas operadas pelo discurso do
capitalista no campo do sujeito, do objeto, do saber, e, especialmente, do Outro.
No discurso capitalista, a condição do sujeito é ser regido pelos aparelhos que os
objetos comandam e não pelo aparelho de gozo do inconsciente que os quatro discursos
condicionam. O sujeito perde sua relação com o saber do inconsciente que passa a ter valor de
mercadoria, produzido em larga escala, valendo quanto vende; o objeto causa de desejo é
confundido com objeto de consumo; gadgets é o seu nome. A falta do Outro falta, e o destino
do real não é o recalque, porém a foraclusão da impossibilidade. Há uma promessa no ar de
que tudo é possível, pois tudo se vende e tudo se compra, desde que o sujeito esteja incluído
no sistema, privilégio de alguns.
Na medida em que o sujeito foracluído retorna como dejeto ou como
produção dos gadgets da ciência (eminentemente descartáveis), temos nesse
ponto a produção do que Lacan chama ―o silenciamento do gozo‖
confrontando esse silêncio com o calar-se da pulsão (o silêncio do gozo
implica o calar-se da pulsão). Porém, a economia da pulsão não é uma
110
economia energética e sim, uma economia política do gozo e, como toda
política, se articula com uma política de discursos. (RABINOVITCH, 1989,
p. 14).
Conforme expusemos no capítulo anterior, a inversão das posições do S1 e do S , em
que S1 é retirado do lugar do comando e inserido no lugar da verdade, no discurso do
capitalista, somada à mudança de direção das flechas, formando um circuito fechado em que
cada termo comanda o seguinte, poderia dar a entender que desse novo lugar, o sujeito teria
liberdade para comandar a cadeia significante da linguagem, produzindo os objetos a. Ao
contrário, o que se passa de fato, é que os objetos, ou os produtos assumem o domínio da
cadeia significante e, consequentemente, o do sujeito.
Alguns riscos se evidenciam nessas operações. O primeiro deles é que o circuito
fechado do discurso capitalista possa suprimir a circulação dos demais discursos, conturbando
a subjetividade. O segundo que se pode detectar diz respeito à indução feita ao sujeito permanentemente dividido e em falta - de alienar-se ao objeto generalizado e transformado
em mercadoria, o que termina por deixar cada sujeito isolado com sua insatisfação
transformada em insaciedade, indutor do consumo. O terceiro risco diz respeito ao Outro da
linguagem, pois a função da linguagem, neste discurso, se reduz a um instrumento de
mercado, a um aparelho a ser produzido pelas ciências e pelas técnicas. Um aparelho pautado
na falsa idéia de liberdade do mercado, que tanto produz, quanto faz consumir, contudo,
regido por um Outro tirano, não barrado.
Soler (2005, p.14) utiliza um termo que consideramos muito apropriado para analisar o
discurso do capitalista: precariedade. A autora assinala que este discurso produz precariedade
em todos os níveis: no trabalho, na vida conjugal, na ordem social, cultural, econômica e
familiar. O sujeito parece responder apenas por suas escolhas individuais, o que resulta da
fragilidade dos laços, especialmente dos laços dilacerados das famílias. Como conseqüência,
cada indivíduo está, permanentemente, ameaçado de deixar cair. No fundo, todos estão
111
ameaçados pela possibilidade de se reduzir a um objeto dejeto, um objeto no trabalho, na vida
conjugal, na família, nas amizades, etc.
De acordo com Soler, o discurso do capitalista não estabelece laço social porque reduz
o ser do sujeito ao objeto que deveria causar o desejo. Ademais, o destitui de modo muito
diferente daquele da separação que se opera em uma análise, ―quando não o ejeta dos
circuitos da produção- consumo, aumentando os dejetos sociais.‖ (SOLER, 2005, p. 14).
Se o eixo dos quatro discursos gira em torno da primazia do discurso do mestre, cuja
produção de gozo do sujeito é comandada pela impossibilidade do real da castração e de sua
recuperação dada pelo objeto a, mais de gozar, nas operações de gozo no discurso do
capitalismo, por sua vez, tenta-se anular o campo da impossibilidade, a falta do sujeito e do
Outro, prometendo a obtenção ilimitada de satisfações através da multiplicidade de novos
objetos, equivocando-os com os objetos do desejo.
Interessa-nos reconhecer como as modalidades contemporâneas da violência
participam destas mutações. É preciso distinguir a violência que se inscreve na dimensão da
ruptura dos laços sociais daquela que estivemos anteriormente caracterizando como própria
dos laços sociais dos quatro discursos.
Quer situemos o mal-estar da civilização referido por Freud, ou o mal-estar dos
discursos concebido por Lacan, a circulação da violência nos laços sociais independentemente
da época sempre esteve submetida às vozes e aos imperativos de gozo do supereu, no
contraponto ao que lhe faz barreira, que é a báscula do desejo. Um bom exemplo para
demonstrar esta realidade discursiva pode ser encontrado nos pactos de guerra que
antecederam o advento das guerras geradas pela tecnociência, mediatizados por uma ética
onde o homem e a vida eram prioritários. Esses valores têm sido gradativamente ejetados,
quando não chegam à falência total.
De acordo com esta argumentação, um problema relativo ao discurso do capitalista se
evidencia, pois o que nele se apresenta de violência não é mais da ordem do mal-estar da
cultura ou do discurso, porém da ordem do impasse, da devastação, do curto-circuito do
desejo, decorrentes da precariedade dos recursos simbólicos que sustentam tais laços.
Considerando-se que toda realidade é de discurso, pode-se formular o princípio
segundo o qual o ser humano conhece a violência desde sempre, posto que esta é um fato de
linguagem. Entretanto, a violência que advém da ruptura dos laços sociais, caracterizada pelo
real sem lei no comando da barbárie contemporânea, sugere uma mudança significativa. Ela
aponta haver uma espécie de doença dos laços sociais que se espalha a todo instante, por toda
parte, sem que o Estado, a família, a igreja, as instituições educadoras, que de certo modo
112
representam o grande Outro, possam exercer a função simbólica de regulação do real
inassimilável.
3.3.3 Violência: realidade de discurso
As manifestações contemporâneas da violência vêm esclarecer os abalos sofridos pelo
grande Outro, como há tempos aconteceu com o Deus do Antigo Testamento. Elas
evidenciam os limites da influência dos pais, da família, dos códigos morais, sejam do Estado,
da Igreja, ou da Escola na constituição do supereu, dos imperativos de gozo do supereu.
Abalada a função de semblante que esses grandes Outros realizavam, no tratamento do real
que sustentaram os laços sociais dos discursos na construção da civilização até o advento da
ciência, transparece, de forma jamais vista, que a determinação do supereu é proveniente, não
diretamente desses Outros, porém da estrutura discursiva.
Algumas práticas do discurso do capitalista mostram as conseqüências da retirada do
mestre do lugar do comando do Um unificador do ideal, de onde pode representar o sujeito.
Sua posição, tanto quanto a do sujeito, - este privado do saber do inconsciente - por estar
submetido ao que resulta das manobras do mercado sobre o gozo do saber, termina
determinando a turbulência subjetiva contemporânea.
Os acontecimentos atuais evidenciam que os imperativos superegóicos jamais foram,
como se chegou a pensar um dia, provenientes da família, do Estado, da Igreja, da Escola e
da consciência moral, mas dos laços sociais dos discursos, da força das práticas discursivas.
O que se tem como quinto discurso, o do capitalista, são novos imperativos de gozo revelados
pelos novos sintomas e por uma espécie de violência insensata que fragiliza os laços.
O que dizem as novas vozes do supereu? É preciso saber o que mudou do supereu,
escutar seus imperativos, enunciados e mandatos que aparecem na era da tecnociência
neoliberal.
Tomemos alguns episódios recentes relativos à violência praticada por jovens da
classe média alta, que chegaram ao conhecimento da nação. Nesses casos, fica excluída a
possibilidade de atribuir-se a violência, unicamente, a fatores sócio-econômicos que explicam
grande parte desses episódios, mas não totalmente. O que tais fatos revelam? Certamente,
113
mudanças no campo da ética, dos costumes e dos laços sociais, mas, sobretudo, revelam que a
família, a escola, a igreja, todos os antigos representantes do grande Outro, enfim, também
estão regidos pelas mudanças dos discursos.
Há algum tempo, um grupo de jovens de classe média alta ateou fogo no índio pataxó
Galdino, em Brasília. Questionados a respeito de seu ato, disseram pensar tratar-se de um
mendigo. No ano em curso, na madrugada do dia 23 de junho, na Barra da Tijuca, bairro
nobre do Rio de Janeiro, um grupo de jovens de classe média alta espancou a empregada
doméstica Sirlei Dias de Carvalho Pinto que muito cedo, esperava o ônibus para ir a uma
consulta médica. Ao serem indagados das razões que os levaram a cometer tal ato, os jovens
declararam pensar que se tratava de uma prostituta. Em seguida, no dia 13 de julho, uma outra
gangue, envolvida em roubos e assassinatos e formada por cinco jovens universitários, sendo
dois estudantes de direito, todos de classe média alta de Salvador, conforme noticiou o jornal
A Tarde, matou um policial, por este ter reagido à tentativa de roubo do celular da sua
namorada. Interrogados, responderam com frieza e escárnio: “dá adrenalina‖ e ―nada vai
acontecer conosco.‖ (CIRINO, 2007, p.4).
Recortemos esse ato de delinqüência cometido por jovens da Barra da Tijuca a partir
das declarações do pai de um deles: "Prender, botar preso junto com outros bandidos? Essas
pessoas que têm estudo, que têm caráter, junto com uns caras desses?4 Para este homem, o ato
do filho nada representa de grave; apenas ele não queria vê-lo incluído no conjunto dos
bandidos pobres, pretos e habitantes da periferia, como são habitualmente identificados nas
pesquisas sociológicas.
O mundo no qual é possível que rapazes de classe média queimem um índio
pensando que é só um mendigo ou espanquem uma mulher pensando que é
só uma prostituta. Provavelmente, não teria sido muito diferente se eles
tivessem pensado que era só uma empregada doméstica. (CALLIGARIS,
2007).
.
Tais manifestações atestam, evidentemente, uma mudança radical, em que criminosos
zombam abertamente da lei, ao acenar com as garantias da impunidade vigente. Tudo leva a
crer que os seres desta nova ordem discursiva substituíram a angústia, a culpa, a autopunição
superegóica por atos violentos sem a intermediação simbólica da demanda ao Outro. Reina,
soberana, uma espécie de imperativo de gozo cruel sem Outro, uma operação de redução do
Outro a objeto cujo destino é ser cruelmente destruído.
4
Extraído da reportagem televisiva do Jornal Nacional da Rede Globo em 14/06/2007.
114
Calligaris (2007) verifica que este é um mundo em que a permissividade é o melhor
remédio contra a inevitável insegurança social. Nesse mundo, os pais fazem qualquer coisa
para que seus rebentos acreditem gozar de um privilégio absoluto; esse é o jeito que os
adultos encontram para acalmar sua própria insegurança, para se convencer de que eles
mesmos gozam de privilégios garantidos e incontestáveis, concordando com o que afirma
Maria Rita Kehl, de que nesse mundo, aos inseguros, não basta ser cliente, é preciso que eles
sejam clientes especiais, e ao espancarem domésticas, estão apenas sendo obedientes às leis
ditadas por uma sociedade que endeusa a falta de limites.
Há aqueles que não admitem que a escola reprove o jovem que tirou notas
baixas, os que ameaçam o síndico do condomínio que mandou baixar o som
depois das 22h etc. Olham o mundo pela ótica dos direitos do consumidor:
se eu pago, eu compro. Entendem seus direitos (mas nunca seus deveres)
pela lógica da vida privada. [...] Quem disse que os jovens não lhes
obedecem? Obedecem direitinho. Param em fila dupla, jogam lixo nas ruas,
humilham os empregados - igualzinho a seus pais. O que nos coloca a
pergunta: que valores, que representações, no imaginário social, sustentam o
exercício necessário da autoridade paterna? Em nome de que um pai ou uma
mãe, hoje, se sentem autorizados a coibir, mesmo o consumo (onde todos
são chamados, mas poucos os escolhidos) é: você pode. Você merece. Não
há limites pra você, cliente especial. (KEHL, 2007).
Trata-se de uma obediência às leis ditadas por uma sociedade na qual as projeções do
mercado e as regulações econômicas comandam a homogeneização dos modos de vida e as
rotinas instrumentalizadas, guiadas pelos objetos a serem consumidos. (SOLER, 2000, p. 80).
O que fazem e o que dizem pais e filhos, apenas denota os valores com os quais
concebem o outro, a si próprio, o público e o privado e, em última instância, a vida. Os pais
cuidam menos dos filhos? Perderam a moral e a ética? Os filhos não respeitam mais os pais?
Não, apenas estão todos navegando no mesmo cyber-espaço, absolutamente comandados
pelos imperativos de gozo do discurso globalizado, na luta para garantir o pensamento único,
estratégia até aqui eficiente no controle da produção do mercado e da economia.
No que tange à economia psíquica, o que acontece é que o sujeito se modaliza ao
discurso. Sempre dividido, o sujeito facilmente se identifica e se aliena aos significantes e aos
objetos libidinais que vêm do campo do Outro. Entretanto, em sua gulodice de gozo, o sujeito
até deixa uma brecha para ser manipulado mas, em última instância, jamais se deixa capturar
completamente, escapando pela via da fantasia e do sintoma. Esta é a chance da psicanálise. É
preciso ainda dizer que nenhum fundamento teórico para explicar a alienação produzida pelos
115
discursos implicados nos fatos atuais, exime pais e filhos da responsabilidade relativa ao
desejo e ao gozo que os causam.
Recorremos ao fragmento de caso apresentado por Carneiro Ribeiro nomeado de
―Pitboy‖ por ser exemplar na elucidação da violência do capitalismo que envolve, igualmente,
a todos, e que comparece na clínica psicanalítica. A autora declara ter sido procurada por um
casal que caracteriza como bonito, rico, bem vestido.
Demandam da analista uma ação preventiva. O homem demanda: não quero
ver meu nome nos jornais. O filho, causa da demanda, tem 18 anos, faz lutas
marciais e costuma se deslocar, nos finais de semana da zona Oeste para a
zona Sul do Rio de Janeiro e se envolver em cenas de pancadaria. Quando
perguntado o que faz o jovem além das lutas marciais, o casal fica perplexo
[..]: ―Ele faz algum tipo de curso. Eu sei porque eu pago‖.
Interrogado sobre a causa da procura dos pais por uma analista, explica:
―Eles não entendem. A zona Sul é muito violenta. Você já tem que chegar
batendo, senão eles batem em você. É autodefesa, entende?‖. Após um
interlúdio em que a analista se dispõe a ocupar o lugar daquela que entende,
o rapaz desabafa: ―Tem esse negócio do corpo, entende? Não sei direito, é
esquisito! Tudo é meio esquisito. As coisas não fazem muito sentido. Só me
sinto inteiro e vivo quando estou batendo. Aí sou todo adrenalina.
Principalmente quando me vejo nos espelhos das boates. Entende‖?
Não havia enigma, ele já tinha a resposta. Batendo, integrava o corpo
despedaçado no espelho. Ao pai, que não queria dar ao filho pitboy seu nome
nos jornais, foi feito um encaminhamento, não obedecido, para análise.
(CARNEIRO RIBEIRO, 2006, p. 61).
A análise deste caso levou a autora a apresentar a inquietante questão: qual é a
participação do psicanalista nessa montagem violenta do capitalista? A resposta a esta
indagação pode ser vista no trecho que se segue.
Bugigangas do discurso capitalista, entre as quais, pasmem, está o próprio
analista. Se não fôssemos mais uma bugiganga deste discurso, por que um
casal tão bem posto, tão up-to-date, nos procuraria para sanar
preventivamente as conseqüências possíveis das ações beligerantes de seu
rebento pitboy? (CARNEIRO RIBEIRO, 2006, p. 64).
Mas a autora não se contenta com esta conclusão e faz uma convocação aos analistas
para que se posicionem frente ao excesso de pulsão de morte reinante no discurso da pósmodernidade tecnocrata.
A II Guerra Mundial destruiu de vez todos os tabus que fundam a civilização
com os campos de extermínio. Nossa civilização, conduzida
progressivamente à barbárie, numa sucessão de guerras, em que o gozo da
destruição nem sequer se disfarça em mentiras aceitáveis, pede ao
116
psicanalista que se posicione frente a este excesso de pulsão de morte.
(CARNEIRO RIBEIRO, 2006, p. 65).
Associamo-nos às inquietações e reflexões trazidas pelos analistas anteriormente
citados que abordam as condições atuais dos discursos e a participação destes na produção
cada vez maior de sujeitos causados por traumas irrepresentáveis.
Perguntar o que pode o discurso do psicanalista na abordagem do mal-estar próprio à
violência da nossa época, nos levou a elucidar uma vasta gama de possibilidades com as quais
a psicanálise pode contribuir, através da sua prática clínica, deixando aberta a possibilidade
para considerar o que a violência desvela de mudanças nos laços sociais.
A análise psicanalítica dos discursos revela que as relações sociais marcadas pela
violência têm sido largamente regidas pelas formações imaginárias produtoras de certa cultura
do narcisismo e do individualismo e pelo império do real desgarrado do vigor das leis
simbólicas. Não podemos desconhecer a violência que prolifera em escala epidêmica e que se
tornou assunto de saúde pública, ao menos no Brasil. Ela não é apenas um sintoma (mal-estar)
presente nas modalidades dos laços sociais, mas uma das muitas modalidades de devastação
desses mesmos laços, um ponto de ruptura dos discursos onde prevalece o gozo mortífero.
É preciso, quando possível, reinscrevê-la pelo gesto interpretativo do analista, nas vias
do campo da fala e do simbólico, recuperando o direito de cada um à sua singular
subjetividade. Neste contexto, cabe aos analistas tentarem assegurar as condições para que um
ser falante possa responder pelo seu desejo e seu gozo, apesar dos imperativos superegóicos
neoliberais.
3.3.4 A participação do psicanalista na construção da atualidade
Primeira digressão, em confidência. Se digo, num repente, na direção de
vocês, mas sem destinatário identificável: ―Sim, eu sofro, cruelmente‖, ou
ainda ―fazem você sofrer ou deixam você sofrer cruelmente‖, ou mesmo
―Você a faz ou você o deixa sofrer cruelmente‖, e mesmo ―Eu me faço ou eu
me deixo sofrer cruelmente‖, bem, essas variações gramaticais ou
semânticas, essas diferenças entre fazer sofrer, deixar sofrer, deixar...fazer
etc., essas mudanças de pessoa – e bem poderia aí haver outras, no singular
ou no plural, no masculino ou no feminino, ―nós‖, ―vós‖, ―ele(s)‖, ―ela(s)‖, ―
a gente‖ – essas passagens para formas mais reflexivas (―Eu me faço ou me
117
deixo cruelmente sofrer‖, ―tu te fazes ou tu te deixas cruelmente sofrer‖
etc.), todas essas modificações possíveis deixam intacto um advérbio, uma
invariável que parece de uma vez por todas qualificar um sofrimento, a
saber, a crueldade: ―cruelmente.‖ (DERRIDA, 2001, p. 5).
As variações gramaticais ou semânticas da crueldade declinadas por Derrida foram
pronunciadas para provocar a psicanálise a adotar uma política e uma ética mais ativa frente
às formas contemporâneas da soberania e da crueldade. Recorremos às suas palavras para
lembrar que a psicanálise está bastante advertida quanto às diversas formas de implicação do
sujeito, no gozo da crueldade e da violência. Está também advertida quanto às suas
responsabilidades como discurso, junto aos demais, na intervenção dos futuros destinos dos
laços sociais. Essa também é sua política.
É impossível pensar que a psicanálise assistiu, testemunhou em vão à barbárie
crescente que se instalou no mundo contemporâneo, com os campos de extermínio nazistas da
Segunda Guerra Mundial. O Holocausto datou o começo do pleno uso da tecnologia no
desencadeamento do gozo narcísico e obscuro que devasta os laços sociais do mundo neoliberal.
Há dez anos, o poeta e dramaturgo alemão Heiner Müller deixou claro, numa
entrevista, que não via Auschwitz como um desvio ou exceção, mas sim
como altar do capitalismo, último estágio das luzes e modelo de base da
sociedade tecnológica. Auschwitz seria o altar do capitalismo porque ali o
homem é sacrificado em nome do progresso tecnológico, porque o critério
da máxima racionalidade reduz o homem ao seu valor de matéria- prima, de
material; seria o último estágio das Luzes ao realizar plenamente o cálculo,
por elas inaugurado; e, finalmente seria o modelo de base da sociedade
tecnológica porque o extermínio em escala industrial consagra até mesmo na
morte a busca da funcionalidade e eficácia, princípios fundamentais do
sistema técnico moderno. A eles se agregam, contudo, novos temores como
aqueles a propósito da degradação do meio ambiente e das mudanças
climáticas, dos vazamentos de radiações e do lixo tóxico, do terrorismo high
tech, da violência social [...] (SANTOS, 2000).
Na lúcida análise de Betty Fuks, em consonância com o autor acima citado, não se
pode avaliar o Holocausto como acidente histórico pretensamente ultrapassado. Convém
seguir as indicações de Lacan, que sinaliza para muito menos tomá-lo como uma operação de
guerra, ―pois a invenção de máquinas fabricantes de cadáveres que os faziam entrar no ciclo
da produção/consumo, acabou sendo o saldo da aliança feita entre o poder das invenções
tecnológicas e as organizações nazistas em sua determinação de eliminar qualquer resquício
de alteridade.‖ (FUKS, 2003, p. 56).
118
Trata-se, não de acidente histórico ultrapassado, mas resultado da ativa participação da
tecnociência nas práticas mórbidas dos genocídios, numa nova era de segregações e dos
conseqüentes remanejamentos de grupos sociais. Ou até mesmo, de um continente inteiro,
como é o caso de grande parte da África, segregada do mercado internacional, exposta a toda
sorte de atrocidades. O controle da tecnociência passou a dar a medida do controle do poder.
A história da humanidade deve ser contada de outro modo a partir desses fatos. A
história da psicanálise, também. Foi o que fez Freud, seguido por Lacan, na tentativa de não
eximir, politicamente, a psicanálise. Em relação à interminável história humana de servidão e
exploração, berço das violências, a dialética hegeliana já havia anunciado a verdade da
alienação subjacente à relação do senhor e do escravo, considerada por Lacan como um
problema crucial dos discursos, hipertrofiada no discurso do capitalista.
O discurso psicanalítico pôde interrogar o que do ser de gozo do sujeito está em jogo,
para que ele se coloque em uma ou outra posição, de escravo ou senhor, e o que aí realiza.
Igualmente, acena com outras possíveis modalidades de gozo.
Sem pretensões revolucionárias ou subversivas e sem estar atrelada a ideologias,
partidos ou tendências morais, a psicanálise imprime sua política no exercício da sua prática
clínica, ao convocar cada sujeito a dizer a sua verdade. Podemos também considerar que é da
ordem da política da psicanálise conceber a subjetividade – entre inconsciente e pulsão como linguagem e como discurso, modalidades de gozo no laço social.
Neste campo conceitual, o discurso analítico se define como organizador de um campo
de gozo dividido entre o saber e a verdade. Um animal falante, por habitar o significante,
resulta ser sujeito. A partir daí, tudo se joga para ele no nível de uma fantasia que suporta sua
realidade, de maneira a sustentar que ele sabe muito mais do que crê saber quando age e
quando goza com o sintoma.
O que se pode esperar do discurso do psicanalista com respeito à violência que
substituiu o mal-estar na civilização contemporânea? De acordo com o postulado, que toda
realidade humana é realidade de discurso e que o real ex-siste ao discurso, é preciso
compreender a violência como ruptura real com a neurose, estruturada como discurso, que faz
laço social. As possibilidades de intervenção sobre a violência, bem como sobre o discurso
que produz a violência, requerem do psicanalista um manejo novo da interpretação.
Do sucesso dessa nova ferramenta depende a potência da psicanálise frente aos
sintomas atuais. É preciso revisitar a clínica fundada sobre a fala interpretativa, fundamento
da psicanálise, interrogando sua potência diante da violência, onde prevalece o ato,
especialmente
nas
manifestações
clínicas
chamadas
sintomas
contemporâneos
e
119
inclassificáveis. A fala seria ainda capaz de promover um novo regime de relação com o
corpo, e uma nova relação com o gozo da vida?
Apostamos que as palavras numa análise não perderam seu vigor, pois a palavra do
psicanalista situa-se no nível do que não é nem falso, nem verdadeiro, mas enunciação, que se
subtrai do modo comum de dizer. O gesto do analista que convida o analisante a dizer tudo,
abre para ele a experiência de uma palavra cujo dizer vai além do dito. O resíduo dessa
experiência, a conseqüência de uma análise é o poder de reencantamento do mundo pela
palavra. A palavra em análise dissocia-se da exigência de utilidade direta. Não porque ela não
seja útil, mas porque não serve para adaptar o sujeito à moralidade vigente, nem aos ideais de
consumo do capitalismo, nem aos valores que aí estão. Ela é útil para recriar no ser falante o
gozo de viver que não aspira ao progresso, porém ao avanço que se faz sob a determinação da
repetição para Freud e do real para Lacan e que admite o retorno do Um, do dito primeiro que
funda a série. Dizer que a estrutura da experiência psicanalítica não é sem, é valorizar a
repetição como dimensão real do sintoma. Essa dimensão se opõe em princípio ao avanço do
significante separado do gozo do falante, como está posto, pelo avanço do significante puro
da ciência no capitalismo.
Numa cultura capitalista individualizante, onde os laços sociais estão empobrecidos e
esvaziados, encontra-se em contrapartida, a proposta psicanalítica que continua apostando na
recuperação do laço do ser falante com a palavra em sua dimensão discursiva. Nesta clínica o
lugar do dizer reabilita o real como impossível, ex-sistente. Reabilita a ex-sistência do dizer
em relação ao dito, que tem relação com a estrutura de linguagem que nos determina.
Confronta o discurso do capitalista ao resgatar o direito à insatisfação, como não se reduzindo
a insaciedade. É o analista que pode dizer ao mercado que não há o objeto da satisfação. Que
não se trata de que temos muito ou pouco, pois não há, nem haverá no mercado, jamais, o
objeto que poderia nos satisfazer. Queremos analisar a violência à luz deste esforço de resgate
da dignidade da insatisfação. Nós não exigimos que o mercado produza mais para nos
satisfazer, mas sustentamos que ele não pode dar aquilo que demandamos. Há uma política a
deduzir do ato analítico, que é a noção política do gozo que requer que o ato mesmo de tomar
a palavra se faça ação, porque falar é gozar. Trata-se de tomar a palavra para reinventar o
mundo, mais além de exercer as liberdades democráticas, que nada mais fazem que
120
homogeneizar e homeostasiar, porque é da responsabilidade da psicanálise nos confrontar ao
horror do vazio da causa. (COELHO DOS SANTOS; TEIXEIRA, 2006)5
Sem confundir sua participação política com a de outros campos, a psicanálise
circunscreve a sua, à política do particular, em que o sintoma do sujeito dá a medida das
mudanças naquilo em que o sintoma se opõe, vigorosamente, a adaptar-se à realidade, ou seja,
à demanda dos discursos, revelando que o gozo insiste, independentemente do que lhe é
imposto ou concedido pelos pactos sociais.
5
O texto que aparece nas páginas 118- 120 foi extraído do artigo de autoria de Coelho dos
Santos T. e Teixeira M. A., intitulado Violência: laço social ou ruptura? Integrante da
Psicologia em Revista. PUCMINAS, v. 12, n. 20. 2006
121
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
De todos faz covarde a consciência.
Shakespeare – Hamlet, ato III, cena I.
A crescente e indiscriminada exacerbação da violência moveu-nos a pesquisar suas
causas subjetivas à luz da psicanálise. A magnitude do problema leva, à primeira vista, a
pensar que qualquer iniciativa desta natureza resulta ser ingênua. Declinamos desta posição.
Neste início de século há uma infinidade de textos de diversas áreas que abordam a
questão da violência. O tema gera debates, vira notícia, cria polêmicas e incita a criação de
movimentos estruturados e de organizações supra-estatais para combatê-la, além das medidas
formais do Estado.
Dentre as análises reducionistas, apaixonadas ou simplesmente sensacionalistas,
encontram-se aquelas que verdadeiramente se ocupam das causas e efeitos da violência,
buscando definir as razões que as sustentam e suas implicações éticas.
São muitas as teorias e explicações para resolver um problema que parece preocupar
tantas pessoas no mundo, pergunta-se porque as ações governamentais e dos cidadãos têm
sido tão ineficazes para modificar o quadro do seu crescimento incalculável. Tudo leva a crer
que não basta explicar e compreender os mecanismos em questão, nem fazer apelos éticos.
Esperam-se novas ações e debates e a psicanálise tem a algo a contribuir, pois ensina
que, para além da compreensão das razões e da contabilidade dos prejuízos verificados, falta
querer saber porque fazemos exatamente o que dizemos que não queremos fazer.
Responsabilizar ou culpabilizar o capitalismo, a globalização ou a tecnociência não
resolve o problema, pois ainda restaria explicar como se constituiu esta realidade
explicitamente devastadora da ordem dos discursos, como dela participamos e o que nela
realizamos do desejo e do gozo.
Os atos de violência ganharam grandes proporções no final do século XX e início do
XXI, e banalizaram-se. Nossa intenção é não ficar petrificada, identificada com o gozo do
espectador, nem adotar uma atitude passiva e vitimizada. Recusamos-nos contemplar com
122
fascínio compulsivo ou evitação fóbica o estado atual da violência. Freud já advertira quanto a
tendência da maioria a reagir com extrema moralidade e hipocrisia às situações de violência.
Partimos do princípio de que tudo relativo ao laço social diz respeito à psicanálise. A
violência que se configura na contemporaneidade se apresenta como um problema crucial da
complexa relação do sujeito com a polis. Abordar psicanaliticamente o estranho e familiar
universo da violência revela nossa discordância quanto a posição daqueles que atribuem a
violência ao outro, a cujo campo não pertencem.
Problemas cruciais relativos à violência, evidenciados pela clínica psicanalítica, em
toda a sua extensão, demonstram a insuficiência de explicações causalistas, obrigando-nos a
reconhecer a insuficiência dos saberes, inclusive o da psicanálise. A teoria dos discursos veio,
oportunamente, auxiliar este debate.
Do mestre antigo ao mestre moderno, o que está em jogo é a mais-valia produzida pelo
capitalismo neoliberal, razão da exacerbação de todos os métodos de exploração cruel do
homem pelo homem, sem qualquer sentimento de solidariedade, somando-se a este, a furiosa
devastação da natureza e consequentemente da vida.
As guerras e determinados fenômenos subjetivos, como o suicídio, confirmam a
versão puramente destrutiva da pulsão de morte, vicissitude do supereu na teoria freudiana e o
real sem lei, desarticulado do simbólico e do imaginário, estranho gozo mortífero do falasser,
na teoria lacaniana. Verdade válida para todas as épocas. Entretanto, a violência na atualidade,
nos obriga a reconhecer que algo desta báscula, entre o erótico e a destrutividade, mudou
radicalmente e que o termo mal-estar, relativo à pulsão de morte, utilizado por Freud, se
tornou insuficiente para nomear os fenômenos que estão acontecendo na contemporaneidade.
Diferentemente do que dissera o mestre, tudo leva a crer que a pulsão de morte ou
destrutiva não mais opera, apenas, silenciosamente. A tecnociência tem favorecido a
explicitação dos seus funcionamentos de muitas maneiras. Uma delas pode ser identificada
nas novas formas virtuais globalizadas de veiculação de notícias e das informações, que
trazem a um só tempo, ao conhecimento de um número considerável de pessoas, os horrores
dos conflitos individuais e sociais gerados pela barbárie neoliberal capitalista.
É preciso também dizer, que o discurso da tecnociência capitalista está sujeito a
irônicas contradições, pois, sem dúvida, o progresso engendrado pela tecnologia tem seus
encantos.
123
Adotamos a teoria que define a realidade, como realidade de discurso, ordenada pelas
modalidades de gozo nos laços sociais. Desta perspectiva, a linguagem, o inconsciente, as
pulsões e os laços sociais, só podem ser entendidos como constitutivos da subjetividade.
Resultam desta anterioridade conceitual, quatro discursos regidos pela castração, pelo
recalque e pelo supereu: do mestre, da universidade, da histérica e do psicanalista. O quinto
discurso, que é o do capitalista, não mais obedece a essas leis.
Paradoxalmente, o crescimento da violência no capitalismo termina expondo de forma
maximizada este elemento, ou seja, este significante, constitutivo e constituinte da estrutura
de linguagem. Esta compreensão da estrutura de discurso nos leva a concordar com aqueles
que defendem que a barbárie contemporânea, as guerras, as crueldades, as crescentes
segregações, não dependem das paixões gananciosas do ser humano, mas da razão. A análise
desenvolvida pela filosofia política, de que a razão é o instrumento que permite inferir a
guerra, por que o lugar onde esta se dá, é o das relações humanas, pode ajudar a refletir acerca
da concepção dos discursos, como fundamento da subjetividade.
O estudo clínico da violência obriga-nos a declarar sua outra face, a menos visível,
porém não menos importante, relativa a todas as vicissitudes do masoquismo, do gozo
mortífero que reage negativamente a vida e a cura.
No âmbito constitutivo da subjetividade, a violência primeira é do significante, da
arbitrariedade do S1, tal como se apresenta no discurso do mestre, exibida nas vicissitudes
tirânicas do supereu, ao imprimir a ferro e fogo as primeiras marcas da relação do homem
com o significante.
A psicanálise, enquanto um discurso entre outros, pode e deve se somar às outras áreas
do conhecimento e aos múltiplos movimentos que fazem resistência às múltiplas formas de
segregação e violência advindas do capitalismo. Munidos do discurso do psicanalista,
acreditamos que resta-nos favorecer a circulação da suposição de saber ao Outro.
124
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Maria Angélia Teixeira