PROCESSOS COGNITIVOS E ESTRATÉGIAS DE COMUNICAÇÃO
Adriano Duarte Rodrigues
Um dos fenómenos mais enigmáticas da nossa experiência da linguagem tem a
ver com o facto de raramente querermos dizer aquilo que efectivamente dizemos. Em
geral, queremos dizer ora menos, ora mais, ora coisas diferentes daquelas que os
enunciados que produzimos dizem.
Observemos o seguinte diálogo entre o marido e a mulher:
Marido: Estou a pensar ir ao cinema logo à noite.
Mulher: Gostaria muito de ir contigo, mas tenho um trabalho para acabar.
Marido: É pena. Então vou sozinho.
Mulher: Depois contas-me o filme.
O que é que o marido disse? Que estava a pensar ir ao cinema nesse dia à noite.
Mas será isto que ele quis dizer? Se repararmos não foi a isto que a mulher respondeu. A
mulher respondeu a um convite para ela ir com ele ao cinema nessa noite. Será que foi
isso que ele quis dizer? Aparentemente sim, porque se não fosse, a resposta dele não teria
sido “É pena. Então vou sozinho”, mas qualquer coisa como “Eu não te estava a convidar
para ires comigo, mas a informar que estou a pensar ir ao cinema logo à noite”. Por seu
lado, se repararmos bem, a mulher também não disse aquilo que ela queria dizer. O que é
que ela disse? Que gostaria muito de ir com o marido ao cinema, mas que tem um
trabalho para acabar. E o que é que o marido entende? Que não aceita o convite para ir
com ele ao cinema. Será também isto que ela quis dizer? Parece óbvio que sim, porque se
não fosse, a mulher não lhe teria respondido “depois contas-me o filme”, mas qualquer
coisa como “não vais não, porque eu vou contigo”.
Como podemos ver por este exemplo aparentemente trivial, que pode ocorrer
numa conversa entre qualquer casal, aquilo que queremos dizer não corresponde
exactamente àquilo que as nossas palavras significam, mas depende da situação do
discurso, do conjunto de dados que os interlocutores não podem deixar de ter em mente
no momento em que falam. Esta relação entre o sentido do que dizemos e a situação do
discurso é de tal modo óbvia que raramente nos damos conta da discrepância entre a
1
significação daquilo que dizemos e o sentido que efectivamente as nossas palavras têm. É
por isso que a grande maioria dos estudiosos da linguagem chama a atenção para o facto
de não ser suficiente possuir o domínio da língua que falamos para entendermos o que
dizemos. Fazemos intervir igualmente processos cognitivos.
Os processos cognitivos consistem num trabalho mental que todos fazemos
quando falamos ou quando ouvimos alguém falar, trabalho mental de inferência daquilo
que queremos dizer a partir daquilo que dizemos. Existem duas modalidades de
inferência, os processos por implicitação e os processos de inferência por pressuposição.
Os processos de inferência por implicitação são os que fazem com que os falantes
dêem a entender coisas diferentes daquilo que dizem e entendam coisas diferentes
daquilo que ouvem os outros dizer. Os falantes são levados a escolher uma hipótese
interpretativa de entre um conjunto de hipóteses plausíveis. Retomemos o referido
exemplo da conversa entre o marido e a mulher. Quando o marido diz que está a pensar ir
ao cinema logo à noite, pode querer dizer várias coisas, mais ou menos plausíveis, tais
como dar conta de um pensamento que lhe ocorreu ou informar a mulher da ocupação
que pretende dar ao seu serão. Mas, para que lhe daria ele estas informações, que
objectivo poderia ter ao dar-lhe estas informações? A mulher não pode descartar a
hipótese de que o objectivo do enunciado que lhe dirigiu é o de a querer convidar para ir
ao cinema com ele, dando ao enunciado do marido a força inerente àquilo que
designamos por força ilocutória de convite. Daí que é a um convite do marido para ir com
ele ao cinema que a mulher responde e não a uma informação sobre o que o marido está a
pensar fazer ao serão. É evidente que ao escolher esta interpretação corre o risco que se
enganar, mas este é o preço que todos inevitavelmente pagamos pelo facto de o sentido
daquilo que dizemos não depender da significação literal codificada na língua, mas de
processos cognitivos de inferência.
Para melhor nos convencermos da importância e da generalização dos processos
cognitivos de inferência por implicitação que intervêm na elaboração e no entendimento
do sentido daquilo que dizemos ou ouvimos dizer, vejamos um outro exemplo. Se
perguntarmos a alguém onde mora o João e obtivermos a resposta de que o João mora no
Norte, podemos compreender por implicitação que o nosso interlocutor não sabe onde o
João mora, partindo da hipótese de que se ele soubesse nos teria dado a morada exacta
2
dele. Embora o nosso interlocutor não nos tenha dito que não sabe exactamente onde o
João mora, podemos activar a hipótese muito provável de que é isso que a resposta dele
quer dizer, de que ignora a morada do João. Como veremos, mais adiante, uma grande
parte das implicitações decorre da aceitação de um princípio lógico, o de que o discurso é
uma actividade regida por regras de cooperação entre os interlocutores. De facto, se o
nosso interlocutor soubesse onde mora o João e não o dissesse quando lhe perguntamos
onde o João mora, não estaria a ser cooperante connosco e, na medida em que, como
sublinhou Paul Grice, numa célebre conferência proferida em 1966, a linguagem é uma
actividade de cooperação entre seres racionais, não estaria a comportar-se como um ser
racional.
Mas deixemos por agora os processos de inferência por implicitação. Vejamos a
outra modalidade de processos cognitivos que intervêm na elaboração do sentido daquilo
que dizemos ou ouvimos, os processos de inferência por pressuposição.
A pressuposição consiste num conjunto de saberes que temos que aceitar como
indiscutíveis para que aquilo que dizemos ou ouvimos dizer possa ser aceite ou recusado.
Imaginemos que o instrutor de um processo criminal se volta para o arguido e lhe
pergunta: «O que é que você fez depois de ter assassinado a sua vizinha?» Embora o
instrutor não diga que o seu interlocutor assassinou a vizinha, a pergunta que formulou só
tem sentido e a resposta do interlocutor só é possível se ambos pressupuserem ou
estiverem de acordo acerca do facto de que o arguido assassinou a vizinha. No caso, quer
o arguido responda que foi beber um café, passear, trabalhar, telefonar a um amigo ou
que não fez nada e se deixou ficar tranquilamente deitado, o simples facto de responder
equivale a uma confissão do crime, pressupõe inevitavelmente que fez aquilo que o
enunciado do instrutor pressupõe como tendo sido feito antes do que quer que seja que o
arguido tenha feito. É provavelmente por essa razão que aos arguidos é facultada a
liberdade de não responder às perguntas que lhe são feitas, sob a observação de que tudo
aquilo que disser poderá ser tido em conta contra ele.
Agora que definimos estes dois processos cognitivos de inferência, vejamos as
várias modalidades que podem apresentar.
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1
As modalidades da implicitação
Aquilo que dizemos pode querer dizer coisas diferentes daquilo que as nossas
palavras significam, quer por razões convencionais, quer por razões conversacionais. O
uso de determinadas palavras pode produzir sentidos implícitos por razões convencionais.
Assim, por exemplo, se eu disser: «O João é português e por isso gosta de bacalhau»,
estou a querer dizer, por implicitação convencional, pelo menos duas coisas, a de que os
portugueses gostam de bacalhau e a de que o facto de o João ser português é a razão pela
qual ele gosta de bacalhau. Trata-se de implicitações convencionais, visto decorrerem da
significação convencional da expressão “e por isso”. Em geral, esta categoria de
expressões linguísticas, a que damos o nome de conectores, produzem sentidos implícitos
convencionais. É o caso nomeadamente das expressões mas, pois, visto que, uma vez que,
e por isso, por conseguinte, no entanto, etc.
Há, no entanto, implicitações que não dependem da significação convencional de
nenhuma expressão em particular, mas de regras a que se supõe que todos os falantes
obedecem quando falam, se quiserem ser considerados como seres racionais. A estas
implicitações deu Paul Grice o nome de conversacionais.
Grice chamou a atenção para o facto de o discurso ser uma actividade humana e,
como tal, aquele que a realiza não pode deixar de ser cooperante se quiser ser
considerado um ser racional. Ser cooperante consiste em fazer com que aquilo que diz
seja um contributo para o objectivo que está em causa no momento em que toma a
palavra. A este princípio deu Grice o nome de princípio de cooperação. Deste princípio
decorre um conjunto de máximas, organizadas em torno das categorias da quantidade, da
qualidade, da relevância e do modo. Assim, os falantes comportam-se de maneira
racional se contribuírem para o objectivo do discurso em que estão envolvidos, se
fornecerem tanta informação quanto a que é requerida e não fornecerem mais do que a
que é requerida, se fornecerem as informações que consideram verdadeiras e tiverem
suficiente evidência para as considerarem como verdadeiras, se aquilo que disserem tiver
a ver com o objectivo da conversa em que estiverem envolvidos ou for relevante para o
seu avanço, se forem claros e ordenados na maneira de falar.
É da suposição de que, quando falamos, estamos a seguir estas máximas que
somos levados a inferir determinados sentidos implícitos a partir daquilo que dizemos.
4
Assim, posso inferir que o meu interlocutor não sabe onde mora o João quando, em
resposta à minha pergunta, me diz que mora algures no Norte, porque não posso deixar
de considerar que, de acordo com a máxima da quantidade, se soubesse, teria respondido
dando a morada exacta do João. Quando alguém me responde que tem dois irmãos posso
inferir que não tem três nem quatro, embora logicamente se alguém tiver dois irmãos
também possa ter mais, porque se tivesse mais tê-lo-ia dito. Quando alguém diz que a
Maria zangou-se com o patrão e foi despedida não posso deixar de entender que foi
depois de se ter zangado com o patrão e eventualmente por isso que foi despedida, porque
parto do princípio de que o meu interlocutor está a seguir a máxima do modo segundo a
qual é suposto exprimir-se de maneira ordenada.
Muitas vezes as implicitações decorrem, não do cumprimento mas da violação ou
da exploração das máximas conversacionais, produzindo aquilo a que damos o nome de
figuras retóricas. Se, numa manhã de chuva, o marido disser para a mulher que está um
lindo dia para fazerem o pic-nic planeado, está manifestamente a violar a máxima da
qualidade, visto dizer uma coisa que é obviamente falsa. A mulher não pode deixar de
inferir que aquilo que ele quer dizer é exactamente o contrário daquilo que as palavras
significam e vai por conseguinte entender que as palavras do marido têm um sentido
irónico.
Como podemos observar, algumas implicitações não dependem da situação em
que o discurso ocorre. É o caso da implicitação que me leva a inferir do enunciado «O
João tem dois filhos» que o João não tem mais do que dois filhos ou do enunciado «A
Maria zangou-se com o patrão e foi despedida» que a Maria foi despedida depois de se
ter zangado com o patrão. Mas o caso do enunciado «Que belo dia para fazermos um picnic» não tem sempre um sentido irónico, depende da situação ou das circunstâncias que
são manifestas no momento em que o locutor o proferiu, em particular da observação do
estado do tempo.
É para dar conta desta distinção que Grice fala de implicitações generalizadas e de
implicitações particularizadas.
5
2
As modalidades da pressuposição
Também existem diversas categorias de pressuposição. Mas, antes vejamos a
diferença entre esta modalidade de inferência e a implicitação de que acabámos de falar.
A implicitação decorre, como vimos, do facto de quando falamos ou ouvimos alguém
falar não podermos deixar de ter em conta todo um conjunto de hipóteses interpretativas
que decorrem, ora da significação convencional de determinadas expressões linguísticas,
ora do facto de não poder deixar de ter em conta que o falante produz uma actividade
racional e para ser considerado como tal as suas palavras devem ser cooperantes. Por seu
lado, a pressuposição é também um processo de inferência, mas não tem a ver com
hipóteses interpretativas que decorram da significação convencional das palavras ou do
princípio de cooperação; decorre antes da necessidade de, tanto o falante, como o que o
ouve não poderem deixar de ter em conta um conjunto de saberes indiscutíveis para que
possam concordar ou discordar acerca daquilo que dizem. A pressuposição é, por isso,
um processo inferencial constitutivo da próprio quadro enunciativo, isto é, produz a
delimitação do mundo acerca do qual os falantes podem falar, quer para concordarem,
quer para discordarem acerca dos juízos que formulam.
Oswald Ducrot (1991) chamou a atenção para duas categorias de pressupostos que
constituem o quadro enunciativo1: os pressupostos da enunciação e os pressupostos do
enunciado. Por pressupostos da enunciação entende Ducrot aquilo que obriga, torna
possível, interessante, ou confere autoridade para se dizer aquilo que se diz ou para calar
aquilo que se cala. É por isso que se tenderemos a aceitar os conselhos dietéticos do
médico no quadro de uma consulta e acharemos os mesmos conselhos despropositados se
forem formulados pela pessoa que encontramos ocasionalmente no metro. Se quisermos
darmos conta dos pressupostos da enunciação podemos colocar as seguintes perguntas ao
nosso interlocutor: «porque dizes isso?», «quem te autorizou a dizer isso?», «porque me
dizes isso a mim?», «porque me dizes isso aqui?», «porque dizes isso agora?». A
explicitação da resposta a estas perguntas corresponde à identificação dos pressupostos
da enunciação ou, se preferirmos, das diferentes variáveis que definem o quadro
1
Abordei sistematicamente a questão da pressuposição, do ponto de vista pragmático, em
Rodrigues 2005, 155-171.
6
enunciativo. Podemos, no entanto, facilmente observar que a explicitação destas questões
é um acto de violência discursiva que tem como consequência o fim da conversa, porque
corresponde a uma recusa ou pelo menos ao pôr em dúvida o quadro enunciativo no seio
do qual se situa a referida interacção verbal.
Por seu lado, os pressupostos do enunciado têm a ver com a aceitação
indiscutível da existência daquilo de que fala o enunciado discurso. Frege (1952)
sublinhou duas categorias de pressupostos do enunciado: as referenciais, que consistem
na aceitação da existência daquilo a que os enunciados se referem e as cláusulas
temporais (antes de, depois de), que consistem na aceitação da ocorrência de
determinados factos ou acontecimentos em relação aos quais o enunciado situa os factos
referidos.
Os pressupostos do enunciado são desencadeados por marcas linguísticas que
desempenham o papel de dispositivos pressuposicionais. O desenvolvimento dos estudos
da pressuposição dos últimos 50 anos tem levado à descoberta de algumas dezenas de
dispositivos verbais desencadeadores de pressuposições dos enunciados (presuppositions
triggers).
São dispositivos desencadeadores de pressuposições, entre outros, as expressões
definidas (ex.: «a Maria viu um rato na cozinha» pressupõe que existe um rato na
cozinha), os verbos factitivos (ex.: «a Marta lamenta a zanga que teve com o irmão»
pressupõe que a Marta se zangou com o irmão), implicativos (ex.: «o João conseguiu
parar o carro a tempo» pressupõe que o João tentou parar o carro), de mudança de estado
(ex.: «o Ricardo deixou de fumar» pressupõe que o Ricardo dantes fumava), iterativos
(ex.: «o Ricardo está de novo a trabalhar» pressupõe que já trabalhava antes), de
julgamento (ex.: «o Rui acusou o irmão de comer os chocolates dele» pressupõe que o
Rui considera mau o facto de o irmão comer os chocolates dele), as marcas temporais
(ex.: «a Manuela antes de se mudar para o Porto morava em Lisboa» pressupõe que se
mudou para o Porto) , as marcas de realce ou enfáticas (ex: «foi o João que se casou com
a Manuela» pressupõe que alguém casou com a Manuela), as marcas comparativas (ex.:
«O Rui é mais alto do que o irmão» pressupõe que o irmão do Rui é mais baixo do que o
Rui), as condições contrafactuais (ex: «Se eu tivesse estudado mais teria passado de ano»
7
pressupõe que não passei de ano), os pedidos para realizar acções (ex.: «feche a porta»
pressupõe que a porta está aberta).
Algumas
observações
para
sublinhar
as
suas
funções
discursivas
da
pressuposição, quer da enunciação quer do enunciado.
Em primeiro lugar, e ao contrário das implicitações, as pressuposições mantêm-se
inalteradas quer os enunciados produzidos se apresentem na forma positiva, negativa ou
interrogativa. Para que possa afirmar, negar ou perguntar se o João deixou de fumar tenho
que pressupor que antes o João fumava, visto que qualquer das formas positiva, negativa
ou interrogativa acerca do facto de o João ter deixado de fumar pressupõe que dantes ele
fumava.
Em segundo lugar, a recusa dos pressupostos tem sempre como resultado o fim da
conversa que depende do quadro enunciativo que eles formam. Efectivamente se, por
exemplo, eu não aceitar que o João dantes não fumava também não poderei dizer nem
que deixou nem que não deixou de fumar.
Como vemos, as pressuposições formam uma espécie de pano de fundo ou de
cimento que permite encadear entre si os enunciados de um discurso e dar-lhe coerência.
No entanto, como fazem parte do conjunto de saberes indiscutíveis que os interlocutores
têm que aceitar para prosseguirem a sua actividade conversacional, só se dão conta da sua
existência, quando esses saberes são postos em causa por um dos interlocutores, violando
deste modo as fronteiras que delimitam o quadro enunciativo.
8
3
As estratégias da comunicação
Como vemos, o discurso decorre de um processo interactivo, é uma actividade
regulada por princípios e obedece a normas que os falantes possuem interiorizadas e que
constitui a sua competência comunicacional. Como qualquer actividade, também a
interacção discursiva possui estratégias, que podem ser comparadas com as estratégias
dos jogos de competição.
A interacção discursiva é uma actividade que seres humanos realizam na presença
física uns dos outros, dessa presença decorrendo para os que nela tomam parte o estatuto
de participantes. É porque a presença física é o factor primeiro e fundamental da prática
discursiva que todas as outras modalidades de prática discursiva têm na actividade
conversacional o seu modelo e o seu fundamento. Em qualquer das outras modalidades
discursivas, como por exemplo na correspondência epistolar, telefónica ou telemática, na
escrita e na leitura de obras literárias ou de qualquer outra modalidade de discurso
escrito, só podemos entender o sentido daquilo que escrevemos ou lemos porque
pressupomos a presença física de interlocutores. Cada uma dessas outras modalidades de
prática discursiva depende de dispositivos técnicos que não conseguem assegurar a
totalidade das dimensões da presença física envolvidas na actividade conversacional face
a face.
A presença física produz nos participantes um grau variável de energia emocional
e desempenha, por isso, o papel fundamental de constituição da sociabilidade. A energia
emocional provocada pela presença física manifesta-se nas marcas, tanto verbais, como
paraverbais e extraverbais, das intervenções dos participantes.
Os seres humanos são dotados de um sistema nervoso que os predispõe a uma
reacção emocional específica provocada pela presença física de outros seres humanos. A
gestão dessa predisposição explica o facto de tenderem a adoptar processos de
interssincronização ao longo do desenrolar da conversa. O funcionamento destes
processos depende da reacção emocional desencadeada pela presença física dos
participantes, do grau de investimento emocional nessa presença.
Quanto maior é o grau de energia emocional investida pelos participantes, mais
animada e gratificante é a conversa e mais perfeitos são os processos de
interssincronização das intervenções dos participantes. Por seu lado, quanto menor for o
9
grau de energia emocional investida, mais aborrecida e monótona é a conversa e mais
deficientes ou negativos são os processos de interssincronização das intervenções dos
participantes2. Sem se darem conta, os participantes tendem a ajustar às expressões dos
outros participantes, tanto positivamente como negativamente, não só as expressões
verbais das suas intervenções, mas também os elementos prosódicos, tais como ritmo, a
entoação e o débito das suas intervenções, assim como os processos quinésicos e as
expressões mímico posturais. Podemos, por isso, a propósito falar de uma espécie de
contágio entre as marcas da energia emocional investida pelos diferentes participantes.
No caso de conversas com um elevado grau de energia emocional investida, os processos
de interssincronização são perfeitamente ajustados e regulados. A actividade
conversacional em que estão envolvidos é animada e gratificante, apresentando os
comportamentos a aparência de uma coreografia perfeitamente regulada. Por seu lado,
quando a energia emocional investida é diminuta, os processos de interssincronização são
desajustados e desconexos, a actividade conversacional é decepcionante, com a
consequente sensação de enfado e de aborrecimento.
O factor principal do investimento emocional dos participantes na interacção
conversacional é o reconhecimento mútuo e recíproco dos mesmos focos de atenção,
convertidos em objectos simbolicamente marcados. É a falta deste reconhecimento, a
ausência de focos de atenção mutuamente reconhecidos como simbolicamente marcantes,
que explica as conversas desinteressantes, quando os participantes não conseguem
sincronizar as suas intervenções, com a consequente sensação de perca de tempo e de
aborrecimento.
Um dos efeitos mais notáveis do processo de interssincronização das intervenções
é, por um lado, o de pertença dos participantes a um mesmo mundo interssubjectivo, o
reconhecimento da sua qualidade de membro ou de pertença a esse mundo comum e, por
outro lado, o de exclusão dos outros, dos que, não reconhecendo os mesmos objectos
simbolicamente marcados pelos mesmos focos de atenção ou de interesse, não se
identificam com o mesmo mundo interssubjectivo e não se consideram por isso como
2
O estudo sistemático dos processos de interssincronização serão estudados mais à frente.
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seus membros. É esta ambivalência que define a natureza simbólica das marcas em que
os participantes investem a sua energia emocional.
Os processos de interssincronização que permeiam a actividade conversacional
representam, por isso, formas rituais destinadas a produzir, a manter, a reforçar e a
restabelecer laços sociais e de solidariedade. A actividade conversacional bem sucedida,
em que os processos de interssincronização entre os participantes funcionam de maneira
bem regulada, desempenha, por conseguinte, esta função ritual de constituição de uma
comunidade, em torno do reconhecimento do mesmo mundo vivido e da identidade de
membro de uma mesma comunidade de vida.
De entre as diferentes marcas simbólicas dos processos de interssincronização
merecem particular relevo as formas de tratamento. Ninguém fica indiferente quando
ouve alguém chamar pelo seu nome próprio e o emprego de formas de tratamento ao
longo da conversa assume uma função ritual particular. A permanência do mesmo nome
com que os outros nos interpelam é uma forma de reconhecimento da nossa identidade,
apesar das mudanças produzidas pela historicidade da existência humana:
«Os rituais de endereço pelo nome pessoal são uma versão dos símbolos que são
utilizados para prolongar a categoria de membro de uma situação para a outra.
Ilustram também o ponto de que o maior grau de memória simbólica e de
prolongamento da qualidade de membro é conectado com um maior grau de
identificação pessoal com estes símbolos. Para uma pessoa moderna ocidental,
não há em geral nada mais intensamente pessoal do que o seu próprio nome.
Mas como mostram as comparações interssociais, não há nada de inerente nem
de natural na identificação de nós próprios e dos outros como indivíduos únicos;
é antes o fluxo progressivo dos rituais quotidianos de chamar pelo nome que
mantém estas identidades ao mesmo tempo como as nossas e como as dos
outros.» (Collins 2004, 84)
Os processos de nominalização das datas, tais como “o 25 de Abril”, “o 5 de
Outubro”, “o 11 de Setembro”, são outras formas rituais de produção de fortes marcas
simbólicas que dão conta do reconhecimento e da identidade dos membros de um mesmo
mundo interssubjectivo, dos que, reconhecendo a natureza simbólica dessas datas,
atribuem uma espessura emocional forte aos acontecimentos que elas representam.
A referência a pessoas e a situações conhecidas pelos participantes é uma terceira
categoria de formas rituais de produção simbólica. Não admira que ocorra sobretudo no
11
início e no fim da conversa, nas sequências que, como veremos mais adiante, são as mais
ritualizadas. Perguntar pela saúde de familiares ou amigos, mostrar interesse pelo
desenrolar de um acontecimento particularmente marcante para a vida pessoal, familiar
ou profissional dos participantes são exemplos notáveis deste processo.
Seria, no entanto, redutor restringir estes processos rituais à produção de marcas
simbólicas positivas. A referência a pessoas ausentes para sublinhar a sua má conduta ou
para as criticar, no caso das conversas maledicentes, é um processo ritual que visa
idêntico resultado, o de produzir marcas simbólicas da pertença dos participantes a um
mesmo mundo interssubjectivo, através da sua demarcação em relação a essas pessoas
que os participantes se empenham em excluir do seu mundo. Trata-se de um processo
ritual particularmente eficiente, uma vez que estreita a cumplicidade dos participantes em
torno de marcas tanto mais fortes quanto mais acentuam a sua qualidade de membros de
uma comunidade da qual as pessoas criticadas são excluídas. Daí a tendência para a
produção de um crescendo,
ao longo da conversa, das marcas maledicentes das
intervenções, a que se poderia aplicar o ditado popular: “um diz mata, o outro esfola”.
Esta função simbólica identitária da conversa maledicente torna-se evidente se tivermos
em conta o facto de a não aceitação das críticas formuladas por parte de algum dos
participantes provocar inevitavelmente a ruptura dos processos de interssincronização,
com a consequente exclusão desses participantes. Os participante que se demarcam das
intervenções maledicentes dos outros, exclui-se e é excluído da interacção
conversacional, é posto literalmente à margem da conversa. Ele próprio se automarginaliza, pelo facto de não reconhecer as marcas do mundo interssubjectivo comum e
de se recusar a investir nelas a sua energia emocional. De maneira geral, o não
reconhecimento e a recusa da mesmas marcas simbólicas é objecto de sanções
simbólicas, tais como a irritação de que é alvo por parte dos outros participantes e o fim
da sua qualidade de participante, de membro do mundo comum.
Idêntico processo de exclusão se verifica nos casos em que um dos participantes
recusa investir a sua energia emocional e sincronizar as suas intervenções com as
intervenções festivas e jocosas dos outros participantes ou quando produz intervenções
racionalizantes que explicitam os próprios processos de interssincronização utilizados
pelos outros participantes, processos que é suposto serem mantidos implícitos para
12
poderem produzir o seu efeito específico de constituição dos laços sociais de
solidariedade.
A exclusão provocada pelo não reconhecimento das mesmas marcas simbólicas e
a não identificação com os mesmos objectos de investimento tem a ver com facto de ser
um processo de dessacralização. É por isso objecto de sanções simbólicas destinadas,
quer a assegurar a exclusão dos que os manifestam, quer a restabelecer a ordem simbólica
violada pelas intervenções dessacralizantes.
A energia emocional é dotada de uma racionalidade específica e situa-se a
montante e a jusante dos outros domínios da experiência do mundo. É ela que dá sentido
ao investimento nos outros domínios, nos domínios profissionais, políticos, intelectuais
ou culturais. Dela retiram os participantes na actividade conversacional a força suficiente,
não só para prosseguirem o seu investimento nas outras actividades, mas também para se
dedicarem a outras actividades. Assim, um elevado grau de energia emocional investido
nas interacções que estabelece com os outros fomenta o reconhecimento que gera a auto
estima indispensável para o envolvimento nas outras actividades, ao passo que um
diminuto grau ou a ausência de energia emocional estão associados à falta de
reconhecimento e à falta de consideração que desencorajam o envolvimento nas outras
actividades. Por seu lado, do envolvimento nos diferentes domínios da experiência retira
o ser humano a energia emocional que investe nas interacções que estabelece com os
outros.
É esta relação da actividade conversacional com os diferentes domínios da
experiência que confere racionalidade à energia emocional investida nas suas marcas
simbólicas. Podemos assim considerar a actividade de interacção conversacional como
um mercado em que cada um dos participantes negocia o capital simbólico de que é
detentor, formado pelo conjunto das suas marcas dotadas de um determinado grau de
energia emocional3. O capital simbólico é assim identificado, trocado, partilhado e, nesse
processo cada um dos participantes, tanto podem vê-lo aumentado ou acrescido pelo seu
reconhecimento por parte dos outros participantes, como podem vê-lo diminuído e
perdido em virtude do seu não reconhecimento. De acordo com esta metáfora económica,
3
Retomo esta noção de capital simbólico da obra de Pierre Bourdieu.
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a actividade é uma espécie de mercado de valores que ora valoriza ora desvaloriza a
cotação das marcas simbólicas de que cada um dos participantes é detentor. A este
processo correspondem, respectivamente, o sentimento de satisfação ou de gratificação e
o sentimento de frustração provocados pela interacção conversacional.
Podemos procurar estabelecer uma relação entre o mercado do capital económico
e o mercado do capital simbólico. Nas nossas sociedades, a riqueza económica pode
contribuir para o aumento do capital simbólico. No entanto, habitualmente é a satisfação
proporcionada pelos processos de interacção em que nos envolvemos que confere a
energia indispensável para suportarmos o esforço exigido pela procura da riqueza, assim
como é a satisfação proporcionada pela energia emocional que visamos com o aumento
dos bens económicos. A falta de reconhecimento por parte daqueles com quem nos
relacionamos acaba por retirar às actividades que realizamos nos outros domínios da
nossa experiência a tonicidade emocional suficiente para as podermos desempenhar de
maneira gratificante e eficaz.
Além da ser de natureza gradativa, o capital simbólico é desigualmente repartido.
Esta característica faz com que os participantes nem sempre invistam o mesmo grau de
energia emocional na conversa em que estão envolvidos.
A qualidade ou a posição4 de participante numa conversa é indissociável de uma
característica a que Goffman deu o nome de footing, designação que compreende duas
noções fundamentais da interacção conversacional, as noções de face e de território.
Trata-se de metáforas sugestivas que entraram na terminologia técnica da análise
conversacional, devido à sua capacidade heurística, a de dar conta e a de explicar uma
grande parte das decisões são que os participantes são levados a tomar ao longo da
conversa.
Goffman definia deste modo a noção de face:
«o valor social positivo que uma pessoa reivindica efectivamente a través da linha
de acção que os outros supõem que ela adoptou no decurso de um contacto
4
Foi esta noção de posição que Goffman utilizou para dar conta da multiplicidade de lugares
ocupados pelos participantes num artigo publicado primeiro no n.º 25 da revista Semiotica e retomado em
Goffman 1987, 133-166.
14
particular. A face é uma imagem do eu delineada segundo determinados
atributos sociais aprovados e no entanto partilháveis, dado que, por exemplo,
pode-se dar uma boa imagem da profissão que se exerce ou da confissão
religiosa a que se pertence ao dar uma boa imagem de si próprio». (Goffman
1974, 9)
Goffman insiste na natureza sagrada da face, o que acarreta o imperativo do
respeito que cada um dos participantes deve, tanto à sua própria face, como à face dos
outros participantes e, no caso, de ter sido violado esse valor, o imperativo da expiação e
da reparação do desrespeito de que a face terá sido alvo.
A conversa é evidentemente, deste ponto de vista, um acontecimento arriscado,
uma vez que cada um dos participantes vai tentar, ao longo da conversa, por um lado,
preservar ou aumentar este valor social, “fazendo boa figura”, como diz de maneira
sugestiva a expressão popular, e, por outro lado, evitar que este valor social não diminua
ou corra o risco de diminuir, “fazendo má (ou triste) figura”. Expressões como “perder a
face” ou “atirar à cara” mostram que todos os falantes dominam todo um conjunto de
estratégias para exorcizarem os riscos para a sua face e para a face dos outros
participantes que decorrem da interacção conversacional.
Enquanto valor que se joga ao longo das intervenções dos participantes na
conversa, a face representa, por conseguinte, uma espécie de capital investido que, tanto
pode ser ganho e aumentado, como perdido e recuperado. Cada um dos participantes joga
no sentido de o ver maximizado, ao longo das intervenções que é levado a realizar,
intervenções que desempenham, deste ponto de visa, a função de lances que se jogam
com vista a aumentar o valor da própria face e a face dos outros participantes.
Numa conversa, existem tantas faces quantos os participantes e, por conseguinte,
a estratégia que visa a maximização do seu valor, por parte de cada um dos participantes,
tem que ter em conta que existe a mesma estratégia por parte dos outros. Neste sentido,
cada participante procura constantemente jogar com a procura de um equilíbrio, sempre
problemático, entre o objectivo de salvaguardar e aumentar o valor da sua própria face
com a salvaguarda e o respeito pela face dos outros participantes. Porque se trata de um
compromisso arriscado, os participantes por ocasião das suas intervenções tendem a
vigiar as consequências, para o valor tanto da face própria como da face dos outros
participantes, das suas tomadas de palavra, corrigindo-as sempre que o equilíbrio possa
15
ser posto em causa, através de intervenções de natureza metadiscursiva ou parafrásica:
«não era isso que eu queria dizer», «não leves a mal se te disser», «não disse isso por
mal», «disse isso por dizer», «estava a brincar», «o que queres dizer com isso?», «não
digas isso», «Não devias dizer isso», etc.
Como vemos, a preservação ou a manutenção da face, o respeito da face própria e
da face dos outros participantes na conversa, a recuperação da face perdida são várias
modalidades do processo ou do trabalho de elaboração da face que os participantes
prosseguem ao longo de toda a interacção conversacional. É por isso que Goffman fala de
“work face», de trabalho da face, expressão que traduziremos aqui por figuração, à
semelhança do que fez o tradutor francês da obra do autor:
«Por figuração (work face) entendo designar tudo o que uma pessoa empreende
para que as suas acções não façam perder a face a ninguém (inclusivamente a ela
própria).» (Goffman 1974, 15)
Goffman distinguia dois tipo de figuração. O primeiro consiste em evitar, tanto
aquilo que possa atentar contra a face própria, pondo em risco a auto estima ou a
consideração que os outros participantes têm de si o respeito que têm por si, fazendo
como se diz “boa figura”, caso contrário dizemos que “faz má figura”, que “faz triste
figura” ou que “perde a face”, como aquilo que possa atentar contra a face dos outros
participantes, pondo em risco a sua auto estima ou a sua reputação.
O segundo tipo de figuração consiste em reparar tudo aquilo que, no decorrer da
conversa, possa, directa ou indirectamente, atentar contra a face própria ou contra a face
dos outros participantes. Goffman distinguia quatro etapas do processo de reparação: a
intimação ou a chamada de atenção para o acontecimento eventualmente atentatório da
face, a oferta de explicações ou de desculpas reparadoras, a aceitação dessa oferta por
parte do(s) suposto(s) ofendido(s) e o agradecimento dessa aceitação por parte do
responsável pela ofensa. É claro que estas quatro etapas podem não ser todas
concretamente marcadas nas intervenções reparadoras. Assim, por exemplo, intimação
pode não ser explicitamente marcada, sobretudo quando os participantes eventualmente
ofendidos consideram que o autor da intervenção ofensiva não precisa que lhe chamem a
16
atenção e entendem assim deixar que ele próprio tome a iniciativa de proceder à
apresentação de explicações ou de desculpas. (Goffman 1974, 17-24)
Destes dois tipos de figuração depende a continuação da interacção
conversacional, uma vez que só se toma a iniciativa de conversar e só se aceita continuar
a conversar, se os interlocutores se considerarem dignos ou se pressupuserem o valor das
suas faces respectivas. A razão de ser deste exigência tem a ver com o facto de a conversa
ser partilha mútua de uma dádiva, do dom da palavra.
Os dois tipos de figuração são processos regulados por regras logicamente
simétricas, na medida em que a um acto do locutor destinado a valorizar a face própria
corresponde um acto do alocutário destinado também a valorizar a sua face própria. No
entanto, esta simetria não é linear, mas cruzada, uma vez que, por um lado, o acto de
valorização da face própria por parte do locutor representa inevitavelmente o risco de
corresponder à desvalorização da face do alocutário e de ser, por conseguinte, entendido
como um acto arrogante e, por outro lado, o acto do locutor de valorização da face do
alocutário representa o risco de desvalorização da sua face própria, sendo entendido
como um acto insincero. Ambos os riscos, o da arrogância e o da insinceridade tendem a
ser considerados negativamente, na medida em que têm como efeito a ruptura da lógica
da sociabilidade que exige o equilíbrio entre as faces dos participantes, fundamento à
própria interacção conversacional. É considerado indigno para a própria face, tanto
conversar com alguém que não tem suficiente auto estima, como conversar com alguém
que tem de si próprio uma auto estima demasiado elevada. O mesmo se passa em relação
aos valores que o locutor atribui à sua própria face, quer quando a desvaloriza, quer
quando a sobre estima. Nestes casos, a interacção conversacional corre riscos, pelo facto
de os participantes, como se diz, “perderem a face” e, por conseguinte, de não poderem
contar com o respeito mútuo necessário para o prosseguirem da conversa.
A figuração é, deste ponto de vista, um processo ou um trabalho constante dos
participantes tendo em vista a manutenção de um equilíbrio permanente, apesar de
instável, do valor das suas faces respectivas, ao longo de toda a interacção
conversacional.
Além da noção de face, o footing comporta também uma outra noção
fundamental, a noção de território ou de espaço de sociabilidade. Território é aqui
17
entendido no sentido da etologia e da ecologia. Podemos facilmente observar que, ao
aproximar-nos, por exemplo, de um jardim com um cão de guarda, há um limiar a partir
do qual o animal levanta as orelhas, um outro a partir do qual se ergue sobre as quatro
patas e um outro a partir do qual ataca violentamente. Estes limiares têm a ver com a
experiência biológica de território ou de espaço vital, delimitado por uma fronteira
imaginária, considerada pelo animal como limite inviolável, aquém da qual a entrada de
qualquer ser desconhecido é considerada uma intrusão intolerável. Os seres humanos são
dotados de idêntico mecanismo de defesa do território, como bem notaram os etologistas
(Eibl-Eibesfeld 1977, 87 e ss.) e como tem igualmente mostrado a análise conversacional.
Numa conversa, cada um dos participantes possui um território próprio, a partir do
qual fala e que entende igualmente ver respeitado, mantendo-o ao abrigo da intrusão dos
outros participantes na interacção conversacional. Tomar a iniciativa de começo de uma
interacção conversacional é sempre correr o risco de ser um acto interpretado pelos
outros participantes como uma intrusão no seu espaço vital ou no seu território próprio. É
por isso que, como veremos, a sequência de abertura comporta processos rituais
destinados a salvaguardar o território dos participantes, a esconjurar eventuais riscos de
violação do seu espaço vital, prevenindo deste modo que aquele que toma a iniciativa,
não seja considerado um intruso ou um violador do território dos outros participantes:
«não te incomodo?», «tens um momento para mim?», «estás disponível para
conversarmos?», «posso incomodar-te?»
Não existem evidentemente fronteiras rígidas e fixas do território próprio de cada
um dos participantes, uma vez que o seu limiar varia de acordo com a percepção que cada
um tem das fronteiras do território dos outros, em função do maior ou menor grau de
familiaridade ou de formalidade da relação que estabelecem entre si. A constituição da
fronteira do território é inversamente proporcional à formalidade da relação entre os
participantes e obedece, por conseguinte, à seguinte regra:
Quanto mais formal é a relação entre os participantes na interacção
conversacional, maior é o território próprio, e quanto mais informal e familiar é a
relação entre os participantes na interacção conversacional menor é o território
próprio.
18
Por outras palavras, os participantes estão abertos a admitir num território tanto
mais restrito quanto maior for a percepção de informalidade e de familiaridade da relação
que estabelecem entre si.
É evidente que o território dos participantes numa interacção conversacional pode
ser simétrica ou assimétrica, dependendo da natureza mais ou menos simétrica da relação,
de acordo com as seguintes regras:
Entre participantes numa interacção conversacional que se consideram
hierarquicamente iguais, os seus territórios são simétricos, admitindo cada um a
intromissão dentro de territórios de dimensão análoga.
Entre participantes numa interacção conversacional que se consideram
hierarquicamente desiguais, os seus territórios são assimétricos, admitindo o(s)
participante(s) que é considerado como superior a intromissão por parte do(s)
outro(s) participante(s) num território menor do que o(s) participante(s) que se
considera(m) hierarquicamente inferior(es).
Assim, por exemplo, é perfeitamente admissível o patrão perguntar pelos estudos
do filho ao empregado da sua empresa ou falar sobre outros assuntos da sua vida privada,
mas é pouco provável o empregado fazer idênticas perguntas ou falar de idênticos
assuntos com o patrão. Por seu lado, dois colegas de trabalho de mesmo nível hierárquico
tendem a admitir como perfeitamente normal conversar sobre os seus filhos e sobre a sua
vida privada.
As fronteiras dos territórios dos participantes tendem a variar ao longo da sua
história conversacional. A variação das formas de tratamento é um bom indicador ou uma
das marcas mais evidentes do seu retraimento, de acordo com a seguinte regra5:
À medida que progridem numa história conversacional comum, os
participantes tendem a aumentar as marcas de familiaridade e a retrair, na mesma
proporção, os limites dos territórios próprios.
As faces e os territórios dos participantes numa interacção conversacional são
valores que possuem uma dimensão sagrada e vital, na medida em que cada um dos
participantes lhes dedica um verdadeiro culto, considera os actos que atentam contra elas
5
Sobre as formas de tratamento e a cortesia verbal ver o excelente trabalho de Rodrigues 2002.
19
como uma profanação e adopta procedimentos rituais com vista a mantê-las ao abrigo de
todo acto susceptível de os profanar.
No termo desta abordagem da figuração, do processo a que Goffman dava o nome
de work face, literalmente trabalho da face, a conversa apresenta-se como uma actividade
regulada por regras contraditórias, entre, por lado, a regra fundamental da sociabilidade,
segundo a qual somos supostos conversar com as pessoas presentes, dirigindo-lhes a
palavra e respondendo à palavra que nos dirigem e, por outro lado, as regra da figuração,
segundo a qual dirigir a palavra aos outros é correr o risco de importuná-los, de intrusão
no seu território próprio, atentando contra o valor da sua face ou violando o seu território
próprio.
É para resolver praticamente esta contradição entre as exigências da lógica
sociabilidade e as exigências da figuração que os participantes na interacção
conversacional têm ao seu dispor um sistema formado por um conjunto de regras
sistémicas e por um conjunto de regras rituais. Goffman designava por regras sistémicas
as convenções que regulam as etapas e o bom funcionamento do processo de interacção
conversacional, ao passo que definia as regras rituais como as normas que visam instituir,
preservar, manter e recuperar as faces e o território dos participantes.
As regras sistémicas visam contrariar os riscos para a interacção conversacional
decorrentes da ocorrência dos seguintes factores:
a) perda do contacto entre um ou mais participantes, por desatenção ou por
ruídos provenientes do meio ambiente;
b) incompreensão daquilo que o locutor diz, por deficiente audição ou por
utilização de expressões incompreensíveis;
c) silêncios ou hiatos prolongados;
d) sobreposição da tomada de palavra por parte de dois ou mais participantes.
A ocorrência dos factores de risco a) e b) é prevenida pelas regras sistémicas
seguintes:
Sempre que o locutor apreende, acertada ou erradamente, a ocorrência do
factor a) ou do factor b) de risco para a interacção conversacional em que está
envolvido, isto é, os riscos decorrentes da perda de contacto, de desatenção ou de
ruídos, utiliza marcas fáticas interactivas.
20
Sempre que o(s) alocutário(s) apreende, acertada ou erradamente, a emissão
por parte do locutor de marcas fáticas interactivas, utiliza(m) marcas reguladoras
interactivas.
Marcas fáticas interactivas são manifestações verbais (eih!, está(s)?, sabe(s), é,
não é?!, estás a ouvir?!, presta atenção!), para verbais (subida ou de descida repentina de
tom, aceleração do débito) e extra verbais (orientação e inclinação do corpo e do olhar na
direcção do alocutário), que visam manter e restabelecer a interacção conversacional,
averiguar se não foi quebrada e, no caso de se ter quebrado, restabelecê-la.
Marcas reguladoras interactivas são manifestações verbais (uhm!, estou!, ok,
também acho!, sim, sim), para verbais e extra verbais pelas quais o alocutário assinala
que, ou está a seguir a conversa, está empenhado na sua evolução, está a compreender o
que o locutor está a dizer, ou não está a seguir, não está empenhado na conversa, não está
a compreender.
Mas o que faz com que as regras sistémicas contribuam para a solução dos
problemas da interacção conversacional é o sua reciprocidade, razão pela qual as marcas
fáticas e as marcas reguladoras são simétricas entre si, razão pela qual falamos de
sincronização interaccional ou de interssincronização.
A ocorrência dos dois últimos factores, o do silêncio ou do hiato e o da
sobreposição da tomada de palavra, é contrariada pelas regras que regulam a gestão da
tomada de palavra por parte dos participantes, questões que abordarei mais à frente, no
capítulo dedicado à organização e à estrutura da conversação.
O outro conjunto de regras que visam resolver as contradições entre a lógica da
sociabilidade e os imperativos da figuração são as regras rituais, tomando este termo no
sentido etológico, de comportamento estereotipado que desempenha funções de natureza
predominante ou exclusivamente interactiva6. Observemos os seguintes diálogos:
6
A noção de ritual é aqui utilizada num sentido diferente do que é habitual. Não é tanto o aspecto
cerimonial que nos interessa, mas o de um comportamento convencional que comporta a ocorrência, ao
mesmo tempo, de elementos regulares e de elementos novos. Ritual é por isso todo o comportamento que é
simultaneamente sempre o mesmo e sempre diferente. Mesmo os rituais profanos possuem uma dimensão
sagrada, em dois sentidos distintos. Por um lado, porque consiste no retorno de componentes arcaicas de
que se ignora a origem, por ter sido objecto de um trabalho de amnésia. Por outro lado, porque marca e
21
L: Diga-me as horas.
A: É uma hora.
L: Podia dizer-me as horas por favor?
A: Com certeza. É uma hora.
L: Muito obrigado
A: Não tem de quê.
Qual é a diferença entre o primeiro e o segundo diálogo? Não se distinguem do
ponto de vista do objectivo da interacção, uma vez que ambos os diálogos cumprem
perfeitamente o objectivo que leva L a tomar a palavra, o de obter da parte de A a
informação horária solicitada. A diferença reside no facto de, no segundo diálogo, os
interlocutores utilizarem um conjunto de actos de linguagem que asseguram funções de
natureza exclusivamente ritual, actos de linguagem a que Goffman dá o nome
respectivamente de reparação, satisfação, apreciação e minimização. (Goffman 1987, 22
e ss) Deste modo, ao submeterem-se a todo um conjunto de comportamentos verbais
ritualizados, o locutor entende respeitar a face do alocutário, através de um acto de
linguagem reparador da intrusão que o pedido realiza potencialmente, prevenindo assim o
risco de ver o alocutário recusar o seu pedido (“Podia dizer-me as horas?). O alocutário
procura respeitar a face do locutor, através de um acto de satisfação do acto reparador
realizado pelo locutor(“Com certeza”). O locutor, por sua vez, procura respeitar a face do
alocutário através de um acto de apreciação ou de agradecimento pelo seu acto de
satisfação (“Muito obrigado”).
Por último, o alocutário tenta preservar a face do locutor, através de um acto de
minimização (“Não tem de quê”).
É a ausência deste trabalho ou deste processo de produção de todo um conjunto de
actos de linguagem de natureza ritual que faz com que, apesar de formalmente correcto, o
primeiro diálogo tenda a ser considerado, em muitos quadros enunciativos, como pouco
exorciza os riscos inerentes aos momentos de transição. Um aperto de mão, uma saudação são exemplos
evidentes de comportamentos rituais que intervêm na interacção conversacional, sobretudo nas sequências
de abertura e de fecho, sequências em que está justamente em jogo o trabalho de negociação entre os
participantes tendo em vista a gestão dos riscos inerentes ao estabelecimento e à ruptura da interacção
conversacional.
22
delicado, dando a entender que o locutor está mal disposto, não tem maneiras ou está
zangado com o alocutário, a não ser que seja produzido numa situação de emergência
entre interlocutores que têm da sua relação uma percepção dotada de familiaridade e
informalidade.
Podemos formular a hipótese segundo a qual as regras sistémicas são dotadas de
universalidade e se observam por isso em todas as culturas, ao passo que as regras rituais
são culturalmente determinadas e variam, por isso, de cultura para cultura.
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