Universidade Técnica de Lisboa Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Mestrado em Ciência Política – 1.º Ano do II Ciclo de Estudos Ano Lectivo de 2009/2010 A Bíblia nas concepções de Dan Brown e José Saramago Agenda do Pensamento Contemporâneo Professor Doutor José Adelino Maltez Samuel de Paiva Pires Estudante n.º 205119 Lisboa, 18 de Janeiro de 2010 Se há autor que em Portugal atingiu um estatuto quase intocável é José Saramago. Laureado com um Prémio Nobel, a sua vasta obra encontra-se traduzida e publicada em diversas línguas e países. O seu mais recente livro, Caim, foi acompanhada por declarações polémicas em relação à Igreja e à Bíblia, algo que sempre foi característico no autor – recorde-se a polémica em torno de O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Desta feita, Saramago veio dizer que “a Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana”1. Dan Brown, por seu lado, alcançou o estrelato da literatura mundial com o controverso Código Da Vinci, fazendo agora chegar às livrarias O Símbolo Perdido. Sempre com o secretismo, a maçonaria e a religião como pano de fundo, torna-se extremamente oportuna a sua última obra quando analisada em conjunto com Caim, com o objectivo de percepcionar divergentes concepções sobre a Bíblia. Na realidade, independentemente daquilo que separe as concepções de cada autor, importa realçar, em consonância com o Professor José Adelino Maltez, que a relação do Homem com Deus é o mais premente assunto na Agenda do Pensamento Contemporâneo. Ademais, arriscamos afirmar que sempre o foi. Não é difícil encontrar na História da Humanidade fundamentos religiosos na base da esmagadora maioria dos movimentos políticos, sociais, culturais, artísticos e literários. Aliás, como veremos, nesta relação, um dos elementos mais importantes é o Apocalipse, o milenarismo e a escatologia, referências de grande parte das tentativas de alteração ou mudança de algo na sociedade, muitas das vezes enformando ideologias comummente designadas por progressistas e, portanto, identificadas com a esquerda – que cai no paradoxo da literatura doutrinária de justificação assente numa oposição a uma religião quando ela própria se baseia em princípios e valores que, mais do que ideológicos, são religiosos. Em O Símbolo Perdido, recorrendo à fórmula a que já habituou milhões de leitores, Dan Brown leva-nos numa aventura em busca do Mistério Maçónico, um grande segredo que, quando revelado, supostamente trará uma nova e grandiosa época 1 Cfr. “"Bíblia é manual de maus costumes", diz o escritor José Saramago”, in Público Online, 18 de Outubro de 2009. Disponível em http://www.publico.clix.pt/Cultura/biblia-e-manual-de-maus-costumesdiz-o-escritor-jose-saramago_1405681. Consultado em 17/01/2010. 2 em que o conhecimento sobre os maiores mistérios da Humanidade estará ao alcance de todos. Através de uma narrativa perpassada por sucessivas descobertas em torno do poderoso simbolismo da cidade de Washington, onde se misturam elementos e símbolos maçónicos, rosacrucianos, alquímicos e católicos com valores filosóficos e princípios científicos, Dan Brown procura integrar de forma holística estas três componentes da vida de qualquer indivíduo, a religião, a filosofia e a ciência, concluindo por uma interpretação simbólica da Bíblia. Esta, não mais é do que uma obra que revela o conhecimento humano em todo o seu esplendor, tendo, alegadamente, para além do significado literal, uma segunda camada de significado que pode ser interpretada apenas por alguns, à semelhança do estilo da escrita maçónica, i.e., com uma interpretação literal ao alcance dos profanos e uma segunda inteligível apenas pelos irmãos maçónicos. Saramago, por seu lado, reinterpreta a narrativa bíblica com Caim como personagem principal, levando-nos desde o Jardim do Éden até à Arca de Noé, passando por Sodoma e Gomorra, pela Torre de Babel, pelas conquistas de Josué, entre outras alegorias que se encontram no livro sagrado do catolicismo. Para o autor, o machismo e a fome são produto da Bíblia2, os desaires na vida, nomeadamente, o não ter trabalho, casa, roupa ou comida, no caso, de Adão e Eva, são culpa de Deus3, e o facto de um irmão matar outro é também culpa de Deus4. Não deixa de ser paradoxal, ou mesmo incongruente, que Saramago coloque o ónus de várias vicissitudes da vida e do mundo sobre uma entidade na qual não acredita. Porém, reconheça-se a consideração de Saramago quanto à maldade de Deus, quando este pede a Abraão para sacrificar o próprio filho 5, quando destrói as cidades de Sodoma e Gomorra6 ou quando mata milhares de pessoas no sopé do Monte Sinai7. O erro de Saramago consiste precisamente na interpretação literal que faz da Bíblia, e na concepção utópica que tem de Deus. Para o autor, Deus sendo perfeito deveria fazer com que o mundo fosse perfeito. Esquecendo-se que Deus fez o Homem à 2 Cfr. José Saramago, Caim, 7.ª Edição, Alfragide, Editorial Caminho, 2009, p. 20. Cfr. Idem, ibidem, p. 25. 4 Cfr. Idem, ibidem, p. 38. 5 Cfr. Idem, ibidem, p. 82. 6 Cfr. Idem, ibidem, p. 101. 7 Cfr. Idem, ibidem, p. 106. 3 3 sua imagem, e que o Homem é por natureza imperfeito, considera que Deus e a Bíblia são as razões pelas quais o mundo não é melhor, retirando qualquer ónus à acção dos homens – que a mais das vezes agem invocando Deus, acreditando numa entidade mística que responde aos anseios do seu eu mais irracional. A este respeito, em nosso ver, correctamente, Saramago assinala o pretensiosismo daqueles que afirmam que os desígnios de Deus são inescrutáveis, como se eles pudessem percepcioná-los e comunicar com directamente com Deus8. Já Fernando Pessoa assinalava que “o erro capital de todas as definições perfeitas é a perfeição. Uma cousa perfeita deixa sempre suspeitas de não existência”9. A perfeição é utópica, e a utopia resulta de uma racionalização que, na História, encontra no Iluminismo o seu expoente máximo, chegando a acreditar-se que só é verdadeiramente livre aquele que se liberta pela razão. Os sistemas racionais, assentando numa alegada cientificidade que deu corpo à Modernidade e rejeitou a Antiguidade e o papel central que a religião detinha na vida individual e em sociedade, começam desde logo com o sucedâneo de Rousseau e do que este idealizou, ou seja, Karl Marx, cujos ensinamentos vão servir de base aos revolucionários bolchevistas de 1917 e à experiência do comunismo, no qual Saramago se filia ideologicamente. A acompanhar o comunismo, refiram-se o fascismo ou o nazismo, sistemas que apregoaram o racionalismo e que nem se aperceberam que eram tão ou mais religiosos que a religião católica ou outras. Isto porque, mais do que baseados na ciência, são baseados numa crença apocalíptica. Deve-se, no entanto, notar que Apocalipse significa revelação, ou seja, não é algo negativo, ao contrário do que o emprego habitual da palavra deixa adivinhar. Significa que, após uma revelação, após uma determinada alteração, como cantam os comunistas, “o sol brilhará para todos nós”. No fundo, estamos aqui a recorrer aos ensinamentos de John Gray10, considerando que estes sistemas racionais são baseados nesta escatologia milenarista, uma crença apocalíptica numa revelação ou alteração que fará com que o mundo seja 8 Cfr. Idem, ibidem, p. 39. Cfr. Fernando Pessoa, Cinco Diálogos sobre a Tirania, in Ultimatum e Páginas de Sociologia Política, introdução e organização de Joel Serrão, Lisboa, Ática, 1980, p. 320 apud José Adelino Maltez, Princípios de Ciência Política – Introdução à Teoria Política, 2.ª Edição, Lisboa, ISCSP, 1996, p.24. 10 Cfr. John Gray, A Morte da Utopia, Lisboa, Guerra e Paz, 2008. 9 4 um lugar melhor. O problema que a tentativa de colocar uma utopia em prática levanta é o de que os fins passam a justificar os meios, e todas as atrocidades cometidas em nome de uma ideologia passam a ser desculpadas pelas boas intenções iniciais. Isto é precisamente o mesmo que aconteceu com todas as guerras combatidas em nome de Deus. No essencial, ideologia e religião confundem-se, quando não são exactamente o mesmo, contrariando o que muitos dos mais radicais ideólogos pensam. Saramago padece do viés da interpretação comunista da História, que é não só uma religião como uma profecia historicista que nada tem de científico. Acontece que as profecias não são susceptíveis de teste, tal como acontece com o marxismo, que, como assinala João Carlos Espada, “profetizou o advento inexorável do socialismo e do comunismo sem lhe atribuir um horizonte temporal definido”11. À luz da metodologia e teoria falibilista do conhecimento de Sir Karl Popper, é impossível refutar uma teoria que “anuncia a sua concretização sempre para o futuro”, pelo que se trata “apenas de uma crença ou de uma superstição”12. Saramago cai no erro e no paradoxo de criticar algo que é precisamente o mesmo que defende, dando especial relevo aos aspectos negativos da Bíblia, de Deus e da religião, esquecendo-se do importante papel que estes elementos desempenham na vida de milhões de indivíduos e das diversas sociedades, e preferindo salientar os ideais utópicos comunistas, esquecendo-se das atrocidades cometidas em nome destes. Se tem noção deste erro, só pode, então, ser considerado como intelectualmente desonesto. Dan Brown, tendo uma interpretação mais simbólica, alude a um sincretismo universalista, reconhecendo os limites da capacidade racional do Homem, dado que a vida é precisamente uma mistura dos três elementos já referidos (religião, filosofia e ciência/razão), onde não há lugar à perfeição utópica, constituindo-se a Bíblia como uma das mais belas obras da Humanidade. A divergência entre as duas concepções advém precisamente da concepção da natureza humana que dá corpo às respectivas obras. Só podemos concluir que se Deus fez o Homem à sua imagem, ele próprio só pode naturalmente ser imperfeito, pelo que a 11 Cfr. João Carlos Espada, “Karl R. Popper: A Sociedade Aberta e os seus Inimigos” in João Carlos Espada e João Cardoso Rosas, orgs., Pensamento Político Contemporâneo – Uma Introdução, Lisboa, Bertrand, 2004, p.24. 12 Cfr. Idem, ibidem, p. 25. 5 Bíblia reflecte precisamente essa natureza imperfeita, com os seus aspectos positivos e negativos. Resta-nos concluir como principiámos, afirmando que a relação do Homem com Deus continua a ser uma das problemáticas mais prementes no pensamento contemporâneo - e provavelmente continuará. Em especial, aquilo que preocupa ambos os autores aqui tratados, a existência, ou não, de Deus, continuará a ser um mistério. Entre o jacobinismo anti-clerical e o fanatismo religioso, assinale-se o paradoxal provérbio popular que nos diz que Deus existe, apesar de nós próprios podermos não acreditar nele. Simplesmente, porque milhões de indivíduos acreditam em Deus. É, tão só, um facto sociológico, com o qual temos que lidar. Referências Bibliográficas Livros Brown, Dan, O Símbolo Perdido, Lisboa, Bertrand, 2009. Espada, João Carlos e Rosas, João Cardoso, orgs., Pensamento Político Contemporâneo – Uma Introdução, Lisboa, Bertrand, 2004. Gray, John, A Morte da Utopia, Lisboa, Guerra e Paz, 2008. Maltez, José Adelino, Princípios de Ciência Política – Introdução à Teoria Política, 2.ª Edição, Lisboa, ISCSP, 1996. Saramago, José, Caim, 7.ª Edição, Alfragide, Editorial Caminho, 2009. Webgrafia “"Bíblia é manual de maus costumes", diz o escritor José Saramago”, in Público Online, 18 de Outubro de 2009. Disponível em http://www.publico.clix.pt/Cultura/biblia-emanual-de-maus-costumes-diz-o-escritor-jose-saramago_1405681. Consultado em 17/01/2010. 6