UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO AMOR E EROTISMO, REALIDADE E FICÇÃO: A DIVERSIDADE EM MEMORIA DE MIS PUTAS TRISTES DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ Graziela de Oliveira Leite Rio de Janeiro 2011 AMOR E EROTISMO, REALIDADE E FICÇÃO: A DIVERSIDADE EM MEMORIA DE MIS PUTAS TRISTES DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ Por Graziela de Oliveira Leite Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários para a obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos - Literaturas Hispânicas) Orientadora: Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman Rio de Janeiro 2011 Leite, Graziela O. Amor e erotismo, realidade e ficção: a diversidade em Memoria de mis putas tristes de Gabriel García Márquez / Graziela de Oliveira Leite. Rio de Janeiro. UFRJ/FL, 2011 94 fls. Orientadora: Mariluci da Cunha Guberman Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, 2011. Referências Bibliográficas: pgs. 88 – 93 1. Relatos Autobiográficos 2. Memória 3. Amor e Erotismo I. Guberman, Mariluci (Orient.) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas III. Amor e erotismo, realidade e ficção: a diversidade em Memoria de mis putas tristes de Gabriel García Márquez Amor e erotismo, realidade e ficção: a diversidade em Memoria de mis putas tristes de Gabriel García Márquez Graziela de Oliveira Leite Orientadora: Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas. Examinada por: _____________________________________________________________ Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman – PPG Letras Neolatinas UFRJ – Presidente _____________________________________________________________ Professora Doutora Martha Alkimin – PPG Ciência da Literatura UFRJ – Examinadora _____________________________________________________________ Professora Doutora Marinês Lima Cardoso – PRODOC/CAPES/ PPG Letras Neolatinas UFRJ – Examinadora _____________________________________________________________ Professora Doutora Ana Cristina dos Santos – PPG Teoria Literária UERJ – Suplente _____________________________________________________________ Professora Doutora Claudia Luna – PPG Letras Neolatinas UFRJ – Suplente Rio de Janeiro/ UFRJ 2011/1 AGRADECIMENTOS Agradeço primeiro a Deus, pois sem a crença nEle, nada disso seria possível; Agradeço a Eni, minha mãe, pois, a pesar de não ter tido a oportunidade de seguir com seus estudos, sempre me incentivou a seguir com os meus; Agradeço a Raphael, meu irmão, por ter sido exemplo de dedicação e esforço; Agradeço a Cid, meu marido, pelo apoio em todos os momentos e pela paciência e compreensão durante todo o tempo que me dediquei a este trabalho; Agradeço a toda minha família e amigos que direta ou indiretamente apoiaram e torceram por mais esta conquista. AGRADECIMENTOS ESPECIAIS Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ pelo suporte e incentivo durante essa jornada acadêmica; Agradeço à Faculdade de Letras, sempre muito bem representada pelo excelente corpo docente e administrativo, pelo acolhimento desde os tempos de Graduação; Agradeço em especial à Profa. Dra. Mariluci da Cunha Guberman, pelos muitos incentivos durante a Graduação e por ter me acolhido como orientanda durante a Pós-Graduação. Agradeço pelo apoio bibliográfico, teórico, pedagógico e, principalmente, pessoal, sempre me fazendo acreditar que seria possível; Agradeço às Profas. Dras. Sonia Reis e Consuelo Alfaro pelo empenho em ajudar, não só a mim, mas a todos os alunos de Seminário Dissertação, a encontrarem um fio condutor de realidade para nossos devaneios fictícios; Agradeço à Profa. Dra. Martha Alkimin pelas aulas ministradas, pelas orientações dadas e pelo incentivo e apoio constantes; Agradeço a todos os outros professores e não professores que, de forma direta ou indireta, também são responsáveis por esta conquista. O conhecimento é o nosso destino. Friedrich Nietzsche LEITE, Graziela de Oliveira. Rio de Janeiro: Amor e erotismo, realidade e ficção: a diversidade em Memoria de mis putas tristes de Gabriel García Márquez. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (Estudos Literários - Literaturas Hispânicas), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011. Dissertação de Mestrado, 94 fls. Resumo Análise crítica da obra Memoria de mis putas tristes (2004) do escritor colombiano Gabriel García Márquez através de estudo comparativo baseado na relação entre ficção e realidade. De forma consciente ou não, o escritor entrelaça sua vida a seu romance com traços, na maioria das vezes, sutis. O estudo do gênero autobiográfico e outras manifestações literárias afins, como memória e romance autobiográfico, e a leitura crítica da autobiografia de García Márquez, Vivir para contarla (2007) são de extrema relevância para a composição desta pesquisa e para o entendimento de como o autor se destaca não apenas como aquele que escreve a história, mas como aquele que nela se insere. LEITE, Graziela de Oliveira. Rio de Janeiro: Amor e erotismo, realidade e ficção: a diversidade em Memoria de mis putas tristes de Gabriel García Márquez. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (Estudos Literários - Literaturas Hispânicas), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011. Dissertação de Mestrado, 94 fls. Resumen Análisis crítico de la obra Memoria de mis putas tristes (2004) del escritor colombiano Gabriel García Márquez a través del estudio comparativo basado en la relación entre la ficción y la realidad. Conscientemente o no, el escritor enlaza su vida en su romance con rasgos, en su mayor parte, sutiles. El estudio del género autobiográfico y otras expresiones literarias como la memoria y la novela autobiográfica, y la lectura crítica de la autobiografía de García Márquez, Vivir para contarla (2007) son muy importantes para la composición de esta investigación y la comprensión de cómo el autor se destaca no sólo como lo que escribe la historia, sino como lo que en ella se inserta. LEITE, Graziela de Oliveira. Rio de Janeiro: Amor e erotismo, realidade e ficção: a diversidade em Memoria de mis putas tristes de Gabriel García Márquez. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (Estudos Literários - Literaturas Hispânicas), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011. Dissertação de Mestrado, 94 fls. Abstract Critical review of the literary Memories of My Melacholy Whores (Memoria de Mis Putas Tristes2004) by the colombian writer Gabriel García Márquez through comparative study based on the relationship between fiction and reality. Consciously or not, the writer weaves his life into his novel with traces, for the most part, subtle. The study of the autobiographical genre and other literary expressions like, such as memory and autobiographical novel, and the critical reading of Garcia Marquez's autobiography, Living to Tell the Tale (Vivir para Contarla-2007), are very important for the composition of this research and the understanding of how the author, that stands out not only as one who writes history, but as one that falls on it. SINOPSE Análise crítica da obra Memoria de mis putas tristes (2004) do escritor colombiano Gabriel García Márquez. Abordagem da temática ficção e realidade e sua relação com os aportes teóricos. 10 SUMÁRIO O AUTOR 12 INTRODUÇÃO 16 1ª PARTE A LITERATURA HISPANO-AMERICANA E GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ I. O CONTEXTO CULTURAL E LITERÁRIO DA AMÉRICA HISPÂNICA 20 II. A IMPORTÂNCIA DE GARCÍA MÁRQUEZ 32 III. A AUTOBIOGRAFIA EM DEBATE 1. O gênero autobiográfico 38 1.1 Philippe Lejeune e o Pacto Autobiográfico 39 1.2 Discussões sobre autoficcção 43 2. A memória como pressuposto da escritura autobiográfica 47 3. A pós-modernidade 50 2ª PARTE A OBRA DE GARCÍA MÁRQUEZ MEMORIA DE MIS PUTAS TRISTES IV. ENTRE O EROTISMO E O AMOR NO ROMANCE DO ESCRITOR COLOMBIANO 1. Entre o amor e o erotismo 55 2. Entre o desejo e o corpo 60 3. Entre a subjetividade e a desterritorialização 11 3.1 Subjetividade e Singularidade 66 3.2 Territorialização e Desterritorialização 70 V. LEITURA CRÍTICA DE MEMORIA DE MIS PUTAS TRISTES 1. Memoria de mis putas tristes: autobiografia ou romance autobiográfico? 74 2. Memoria de mis putas tristes e o pós-modernismo 77 3. García Márquez, um narrador pós-moderno 81 CONCLUSÃO 85 BIBLIOGRAFIA 88 ANEXO: La soledad de América Latina (discurso do prêmio Nobel) 12 O AUTOR Escribo porque necesito que me quieran más. Gabriel García Márquez Gabriel García Márquez, escritor colombiano, um dos principais nomes da literatura hispano-americana, primeiro filho do casal Gabriel Eligio García e Luisa Santiaga Márquez Iguarán dentre sete homens e quatro mulheres, nasceu num domingo chuvoso, dia 6 de março de 1927, às nove horas da manhã, na casa de seus avós maternos no pequeno povoado de Aracataca. A família havia chegado à Aracataca dezessete anos antes do nascimento de García Márquez, quando a United Fruit Company começava a se instalar na região montando ali o monopólio do cultivo e exploração da banana. Gabo, diminutivo carinhoso de Gabriel, como o autor ficou familiarmente conhecido, viveu na casa de seus avós maternos até os oito anos de idade. Seu avô materno, o coronel Nicolás Ricardo Márquez Mejía, se encarregava da formação do caráter de García Márquez, enquanto sua avó, Tranquilina Iguarán, ficava a cargo de seu asseio pessoal. Depois da morte do avô, García Márquez foi viver em Sucre com os pais juntamente com sua avó, que já se encontrava em idade avançada, cega e com pouca razão. Poucos meses depois, foi para Barranquilla, onde iniciou seus estudos em um colégio de jesuítas, no qual, desde cedo, ganhou fama de poeta pela facilidade com que decorava e recitava os clássicos espanhóis e, 13 principalmente, pelas sátiras em versos rimados que dedicava aos colegas na revista do colégio. Em seguida, cursou o bacharelado em Zipaquirá em um liceu para meninos. O liceu era composto por um grupo esplêndido de jovens professores com uma mentalidade moderna que auxiliou muito na formação político-intelectual de García Márquez. Nove meses depois de concluir o bacharelado, García Márquez teve seu primeiro conto publicado, em Bogotá, no Suplemento Literário de El Espectador, o mais interessante e severo da época. Sobre o conto, Eduardo Zalamea Borba publicou uma nota consagratória. Este crítico literário lúcido e alerta à aparição de novos valores na qual dizia: “Con García Márquez nace um nuevo y notable escritor”1. Ainda em Bogotá, ingressou na Universidade Nacional da Colômbia para realizar seus estudos de Direito, curso este que nunca foi concluído. Após vários distúrbios sangrentos que culminaram com o assassinato do líder popular Jorge Gaitán, García Márquez deixou Bogotá e foi viver em Cartagena de Índias, onde começou a trabalhar como repórter em El Universal. Em 1949 voltou a Barranquilla para trabalhar no jornal El Heraldo, participando como repórter e mantendo uma coluna denominada La Jirafa, sob o pseudônimo de Septimus 2. Em 1954 regressou a Bogotá para trabalhar em El Espectador. Depois de denunciar a corrupção do ditador Rojas Pinilla, García Márquez foi aconselhado a deixar a Colômbia. Viajou então a Genebra, como enviado especial para a Conferência dos Quatro Grandes, onde iria 1 García Márquez. Vivir para contarla. 2007, p. 275 Septimus Warren Smith era um personagem alucinado de Virgínia Woolf em A senhora Dalloway. 2 14 ficar apenas o tempo da conferência, porém, por razões óbvias, permaneceu cerca de três anos. García Márquez ficou mundialmente conhecido por sua obra Cem anos de solidão, de 1967 e pela forma que escreve, conhecida como “realismo mágico”, que consiste em tratar acontecimentos da suprarealidade como algo natural. O mundo mágico de Gabo transfigura o real. Em 1999, García Márquez foi diagnosticado com um câncer linfático. Tal fato o incitou a escrever suas memórias publicadas em 2002 sob o título de Vivir para contarla. OBRAS São muitas as obras de Gabriel García Márquez e podem ser divididas, basicamente, em romances, contos e obras periódicas. Os romances, em ordem cronológicas, são: La Hojarasca, 1955; El canibal, 1955; Un día después del sábado, 1955; El coronel no tiene quien le escriba, 1962; Los funerales de la Mamá Grande, 1962; La mala hora, 1966; Cien años de soledad, 1967; Cuando era feliz e indocumentado, 1973; Chile, el golpe y los gringos, 1974; Ojos de perro azul, 1974; El otoño del patriarca, 1975; Crónica de una muerte anunciada, 1981; Viva Sandino, 1982; El olor de la guayaba, 1982; El secuestro, 1982; El asalto: el operativo con el que el FSLN se lanzó al mundo, 1983; El amor en los tiempos del cólera, 1985; El general en su laberinto, 1989; Del amor y otros demonios, 1994; Noticia de un secuestro, 1996; e Memoria de mis putas tristes, 2004. 15 Os contos, também em ordem cronológica, são: Un Señor Muy Viejo Con Unas Alas Enormes, 1966; Monólogo de Isabel viendo llover en Macondo, 1968; La increíble y triste historia de la cándida Eréndira y de su abuela desalmada, 1972; Todos los cuentos (1947-1972), 1976; e Doce cuentos peregrinos, 1992. Por fim, suas obras periódicas: Relato de un náufrago, 1955; Textos costeños, 1981; Las Aventuras de Miguel Littín Clandestino en Chile, 1986; Obra periodística 1: Textos costeños (1948-1952); Obra periodística 2: Entre cachacos (1954-1955); Obra periodística 3: De Europa y América (19551960); Obra periodística 4: Por la libre (1974-1995) e Obra periodística 5: Notas de prensa (1980-1984). Além da produção já citada, podemos destacar sua autobiografia, Vivir para contarla lançada em 2002. PRÊMIOS E CONDECORAÇÕES García Márquez é detentor de inúmeros prêmios e condecorações, dos quais podemos destacar: Prêmio de Novela ESSO por “La mala hora” – 1961; Doutor Honoris Causa da Universidade de Columbia em Nova Iorque – 1971; Medalha da Legião Francesa em Paris – 1981; Condecoração Águila Azteca no México – 1982; Prêmio quarenta anos do Círculo de Jornalistas de Bogotá – 1985; Membro Honorário do Instituto Caro y Cuervo em Bogotá – 1993; Doutor Honoris Causa da Universidade de Cádiz – 1994; e, o mais importante de todos, Prêmio Nobel de Literatura (Estocolmo, 1982). 16 INTRODUÇÃO Esta pesquisa foi motivada pela leitura da obra de Gabriel García Márquez na Graduação, quando realizei uma análise crítica sobre Cien años de soledad (2005) e fui elogiada pela Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman, que ministrava as aulas. Posteriormente, li do mesmo autor Memoria de mis putas tristes (2004) e verifiquei muitas semelhanças entre o que eu já conhecia da vida de García Márquez e a história do narrador da obra, havia ali uma proximidade entre o real e o imaginário muito instigante. As relações entre ficção e realidade estão cada vez mais mescladas a ponto de não se poder afirmar quando se trata de uma ou de outra em muitas obras ditas ficcionais. Existe uma necessidade do olhar para si mesmo, que vem aumentando gradativamente, isto é, falar a si mesmo e reconhecer a si mesmo. O escritor, de forma consciente ou não, entrelaça sua vida à sua história, não de forma categórica, mas com traços algumas vezes sutis outras nem tanto. Muitos são os estudos sobre a obra de Gabriel García Márquez, inclusive sobre essa relação entre sua vida e sua obra. Porém, constatou-se que não existem estudos profundos sobre seu último romance, Memoria de mis putas tristes, fato que nos levou, ainda mais, a discorrer sobre sua obra. Nossa proposta é um olhar crítico que identifique, no romance citado, uma escritura autobiográfica e um entendimento a respeito do personagem que emerge da ficção de García Márquez. 17 Embora encontremos relações entre o vivido e o narrado, não se pode negar à memória o caráter literário, porém, o intrigante é pensar como as recordações se tornam ficção. Quais traços são deixados pelo autor que levam o leitor a ler um texto duvidando da ficcionalidade do mesmo ou de sua realidade? O presente trabalho visa a identificar esses traços que nos levam a querer investigar a vida do personagem de Memoria de mis putas tristes relacionando-a à vida do autor colombiano. Com esse fim, esta pesquisa foi dividida em duas partes: a primeira parte, mais geral, subdivide-se em três capítulos; a segunda, mais específica, em dois. Na primeira parte, no capítulo I, faremos uma síntese do panorama cultural e literário da América Hispânica em que se insere García Márquez. No segundo capítulo, dedicado exclusivamente à importância do autor colombiano, trataremos de suas obras mais importantes e suas influências. No terceiro capítulo, ainda dessa primeira parte, trataremos das questões teóricas a serem abordadas no presente trabalho. Assim sendo, este capítulo dedica-se, principalmente, ao estudo do gênero autobiográfico e suas vertentes e também ao estudo da memória como pressuposto da escritura3 autobiográfica. Na segunda parte desta pesquisa dedicar-nos-emos a uma leitura crítica aprofundada do romance Memoria de mis putas tristes, começando por um estudo entre a relação amor e erotismo, desejo e corpo e como esse 3 Para Roland Barthes, a escritura e a escrita do escritor, é “a ciência dos gozos da linguagem, seu Kamasutra.” (Barthes, s/d: 75) 18 tipo de escritura influencia na leitura da obra. No último capítulo, abordaremos a questão da leitura do romance como um texto não só ficcional, mas também que miscigena o real com o imaginário. Também pensaremos nesse autor que se destaca não apenas como aquele que escreve a história, mas como aquele que nela se insere. Para a concretização desta pesquisa, adotamos como aparato teórico para o estudo do gênero autobiográfico, principalmente, Philippe Lejeune (2008), como auxílio, pesquisamos os gêneros afins como autoficção, romance autobiográfico, tomando alguns teóricos como Michel Foucault (2004), Diana Klinger (2007), pesquisamos também o pósmodernismo, fazendo uso de Zygmunt Bauman (1998), Ihab Hassan (1988), Linda Hutcheon (1991) e Andreas Huyssen (1991). Já para o estudo do discurso amoroso, tomamos como base Roland Barthes (2006) e Octavio Paz (2004), para o estudo do discurso memorialístico Walter Benjamin (1996) e para o estudo sobre desejo Félix Guattari (2007). 19 1ª PARTE A LITERATURA HISPANO-AMERICANA E GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ 20 I. O CONTEXTO LITERÁRIO E CULTURAL DA AMÉRICA HISPÂNICA No começo do século XX, o panorama literário hispano-americano foi dominado por duas grandes correntes que abriram caminho para a narrativa contemporânea: o modernismo e o realismo. O primeiro tem como temática mais frequente a fantasia e o segundo o caráter local. No processo do início do século passado até a narrativa contemporânea, é importante destacar a prosa regionalista, porque, ainda que mantenha a estrutura linear dos romances românticos com início, meio e fim, começa a tratar de temas sociais. Dois acontecimentos político-sociais marcaram o começo desse século. O primeiro, a Revolução Mexicana (1910), um grande movimento popular contra os latifúndios e o imperialismo, tinha como proposta a derrubada do governo, a reforma agrária e a reorganização do ejido (terras comunitárias de origem indígena), o que culminou com uma nova Constituição em 1917, considerada extremamente progressista, na qual garantia os direitos individuais, o direito à propriedade, leis trabalhistas, reconhecia o ejido e regulava a propriedade do Estado sobre as terras, águas e riquezas do subsolo. O segundo acontecimento, a Revolução Russa (1917), foi resultado de uma série de eventos políticos que, após a eliminação da aristocracia russa, resultou no estabelecimento do poder soviético e a criação da União Soviética que perdurou até o ano de 1991, e inspirou outros movimentos de caráter socialista pelo mundo, imprimindo um caráter social na literatura. O tema mais comum dos romances regionalista era a luta entre civilização e barbárie. O escritor 21 quase sempre apoiava aquela. Ele era uma espécie de porta-voz do povo, sua função era a de denunciar a injustiça, defender os explorados e registrar a realidade de seu país. Entre esses autores regionalistas, se destacam Horacio Quiroga, José Eustasio Rivera, Ricardo Güiraldes e Rómulo Gallegos. Para iniciar os autores regionalistas, tratarei de Horacio Quiroga (1878-1937), escritor uruguaio, considerado um dos mais importantes contistas latino-americanos, viveu marcado por tragédias: seu pai morreu em um acidente de caça, seu padrasto e sua primeira mulher se suicidaram, Quiroga matou acidentalmente com um disparo seu amigo Federico Ferrando e, por fim, diante da perspectiva de uma doença incurável, Quiroga se suicidou com cianureto. Sua obra mais famosa é Cuentos de amor, de locura y de muerte (1917), na qual se encontra o famoso conto La gallina degollada. Influenciado por Edgar Allan Poe, Quiroga tinha um estilo próprio que lhe permitiu narrar magistralmente a violência e o horror que se escondem atrás da aparente amenidade da natureza. Seus personagens costumam ser vítimas propícias da hostilidade e desmesura de um mundo bárbaro e irracional. O conto La gallina degollada retrata bem o estilo de Quiroga e narra a história de um casal que tinha quatro filhos, todos com algum tipo de doença mental. Ao chegar o quinto filho, uma menina, os dois temiam que pudesse ser como os outros. Um dia o casal ordenou à empregada que lhes preparasse uma galinha para o almoço e os quatro filhos doentes 22 observaram quando a empregada degolou a galinha; em seguida, os quatro agarraram a irmã e a mataram à semelhança de como a empregada matou uma galinha. José Eustasio Rivera (1888-1928), escritor colombiano, foi professor em 1909 e doutor em direto pela Universidade Nacional de Bogotá em 1917. Trabalhou como advogado, foi deputado e inspetor do governo nas explorações petrolíferas da região do rio Magdalena. Foi também representante de seu país no México (1921), Peru (1924) e Cuba (1928). Participou na marcação dos limites entre Venezuela e Colômbia, o que lhe permitiu conhecer a selva tropical e lhe inspirou sua produção literária. É autor de La Vorágine (1924), considerada uma das obras mais importantes, não só na Colômbia, mas também de toda América Hispânica. É considerada por muitos, o grande romance da selva latino-americana. La Vorágine narra as peripécias de Arturo Cova e sua esposa na selva amazônica, na qual o casal sofre situações que dão passo à ideia central da obra em um redemoinho de acontecimentos. No decorrer da trama, ficamos cientes das duras condições de vida dos peões durante a febre da borracha na Amazônia, quando os indígenas eram escravizados pelos seringueiros. A ideia central do romance de José Eustacio Rivera é a de mostrar com detalhe a exploração e a miséria humana a que são submetidos os trabalhadores na selva colombiana e brasileira, em contraposição à ganância dos proprietários dos meios de produção. Déjame huir, oh selva, de tus enfermizas penumbras formadas con el hálito de los seres que agonizaron en el abandono de tu majestad. ¡Tú misma pareces un cementerio enorme donde te pudres y resucitas! ¡Quiero volver a las regiones 23 donde el secreto no aterra a nadie, donde es imposible la esclavitud, donde la vida no tiene obstáculos y se encumbra el espíritu en la luz libre! ¡Quiero el calor de los arenales, el espejo de las canículas, la vibración de las pampas abiertas! ¡Déjame tornar a la tierra de donde vine, para desandar esa ruta de lágrimas y sangre que recorrí en nefando día, cuando tras la huella de una mujer me arrastré por montes y desiertos, en busca de la Venganza diosa implacable que sólo sonríe sobre las tumbas! 4 La Vorágine não é apenas uma das primeiras obras sobre as selvas da América, mas também o espelho da tragédia colombiana – o despovoamento dos cafezais; a escravidão na selva; a subjugação cruel com que as pessoas são submetidas pela cobiça do líquido branco das seringueiras. A obra é um retrato real e simbólico da América Latina. Ricardo Güiraldes (1886-1927), escritor argentino. Filho de uma família rica, viveu entre viagens a Europa, Buenos Aires e San Antonio de Areco. Em San Antonio, esteve em contato com a vida campesina e a dos gauchos que serviram de inspiração para a criação de Don Segundo Sombra (1926), sua obra mais importante. Foi ali onde conheceu a Segundo Ramírez, personagem no qual se baseia a figura de Don Segundo Sombra. Don Segundo Sombra é um romance rural argentino que evoca o gaucho como personagem lendário. O livro está em primeira pessoa e foi feito a partir de memórias, narradas por Fabio Cáceres, o filho não reconhecido por seu pai e abandonado aos cuidados de “unas tías”. Desde a perspectiva do narrador, o livro se propõe a tratar do desenvolvimento espiritual e físico de um jovem que amadurece seguindo Don Segundo e que vê neste gaucho um padrinho. Don Segundo se transforma perante o leitor em uma visão viva, idealizada e mítica do herói dos pampas argentinos. 4 José Eustasio Rivera. La Vorágine. P.96 24 Há momentos, na obra de Güiraldes, em que Fabio evoca os dias de sua infância e reconhece sua transformação em gaucho. Esta é atribuída a Don Segundo, que ao fim de cinco anos fez de Fabio um homem, “mejor que hombre, gaucho.” (p.193). O romance pode ser sintetizado no seguinte esquema: primeiro, as recordações do órfão de quatorze anos; em seguida, os dias de aprendizagem das tarefas de arreio e de doma, com a ajuda de Don Segundo; e por último, o desenlace da separação definitiva. Don Segundo Sombra é considerada uma das obras mestres da tradição gauchesca e seu centro temático é a amizade de um gaucho maduro e um jovem gaucho aprendiz. Rómulo Gallegos (1884-1969), escritor venezuelano, considerado um dos romancistas mais importantes do século XX, além de escritor, foi político. Começou sua carreira militando em oposição ao ditador Juan Vicente Gómez. Em 1936 foi nomeado Ministro da Educação, em 1937 foi eleito deputado e em 1947, nas primeiras eleições livres da Venezuela, foi eleito Presidente da Nação, mas apenas se manteve na função entre fevereiro e novembro de 1948 quando uma junta militar o destituiu. As obras de Gallegos são realistas e podem ser divididas em três temas fundamentais: crítica de costumes; ambiente crioulo onde expõe a antinomia civilização e barbárie; paixões, desequilíbrios e anormalidades. Todos os seus romances refletem seu interesse pela vida campesina venezuelana. Sua obra mais importante é Doña Bárbara (1929) que se passa na savana de Apure, região de Arauca. Doña Bárbara representa uma Venezuela cruel, insensível pela corrupção, traição, despotismo, falta de 25 liberdade, mas mostra também um povo que ama, sofre e espera para lutar contra a opressão. O romance de Gallegos narra o regresso de Santos Luzardo a uma fazenda nos llanos5 venezuelanos e seu encontro com Doña Bárbara, proprietária da fazenda. É uma análise da sociedade que vive nos llanos, e em geral, do país. Representa o conflito entre civilização e barbárie. Doña Bárbara simboliza a selvageria da região: arbitrária, violenta e astuta. Seu comportamento é uma reação ao trauma que sofreu na infância, vítima de abuso sexual. Santos Luzardo representa a civilização e o progresso, é um homem citadino, advogado e de essência boa. O romance regionalista persegue um fim social. Rómulo Gallegos desejava uma solução para o caudilhismo6. No processo cultural e literário ocorrido no século XX na América Hispânica, destaca-se o boom da literatura hispano-americana, que começa nos anos 40, passa pelos 60, chegando aos 70, considerado por José Donoso7 como o pós-pós-bom. É difícil identificar a data do boom da literatura hispano-americana, entretanto, não se duvida da importância da data de 1940. Ao fim da Guerra Civil espanhola, estoura a Segunda Guerra Mundial. No primeiro conflito, os intelectuais hispano-americanos tomaram partido dos que lutavam pela República Espanhola. Muitos intelectuais espanhóis foram condenados ao 5 Os llanos são planícies extensas da América do Sul, caracterizadas pela vegetação, que se assemelha ao cerrado brasileiro. 6 Poder político caracterizado pelo agrupamento de uma comunidade em torno de um líder autoritário, porém carismático. Em geral, tais líderes eram representantes das elites tradicionais, como fazendeiros e militares. 7 Escritor, professor e jornalista chileno (1924-1996). 26 exílio, e a maioria se instalou na América Hispânica, principalmente na Argentina e no México, o que contribuiu para a revitalização do panorama cultural já que a Guerra Civil espanhola quase pôs fim a produção de revistas e livros. Desta maneira, importantes Casas Editoriais da Espanha se instalaram na América de língua espanhola, facilitando a publicação de livros e revistas neste continente. Outro fator de grande importância para o boom foi o impacto do surrealismo, que suscitou grande interesse para os hispano-americanos. O surrealismo promoveu o interesse pelo mágico e pelo maravilhoso, que estão mais presentes no popular, temáticas que influenciaram as obras de autores como o escritor cubano Alejo Carpentier (1904-1980), que propôs em 1948 uma nova forma de narrar no prólogo de seu romance El reino de este mundo. Ele parte de uma premissa fundamental: para admitir o maravilhoso é necessária a fé; as crenças são as que mudam o mundo. Também afirmou que a narrativa maravilhosa se inicia com a crônica historiográfica desde o Descobrimento da América: os europeus se extasiaram com a fauna, a flora e o ser humano aqui encontrado. Outro romance muito importante nos anos 40 foi El señor presidente (1946) do escritor guatemalteco Miguel Ángel Asturias (1899-1974). Esta obra é uma das primeiras dos chamados romances de ditador. Trata-se de uma obra ambientada em um país anônimo e com um tirano cujo nome não é mencionado. Esse romance se converte em um modelo intencionalmente surrealista, onde a caricatura e o exagero servem para pensar a triste realidade histórica de muitos países latino-americanos. 27 Os anos 60 marcam, sem dúvida, a etapa dourada do romance hispano-americano, devido à quantidade e qualidade das obras e ao extraordinário êxito editorial. Este fenômeno da década de 60 é mais conhecido como o boom do romance latino-americano. O reconhecimento internacional dos autores da época do boom se deve ao fato de que muitos viveram longe de seus países: Julio Cortázar (1914-1984), escritor argentino, abandonou seu país e se refugiou em Paris; Gabriel García Márquez (1927), escritor colombiano, teve que abandonar a Colômbia em 1955 depois de denunciar a corrupção do ditador Rojas Pinilla; Mario Vargas Llosa (1936), escritor peruano, viveu integrado à vida européia por mais de vinte anos; Carlos Fuentes (1928), escritor mexicano, levou uma vida nômade, devido a seus diversos afazeres políticos e intelectuais. Os romances do boom se distinguem por terem uma série de inovações estruturais, desenvolvendo o fantástico e introduzindo técnicas vanguardistas de narração. O realismo mágico pode ser definido como o interesse de mostrar o irreal ou o estranho como algo cotidiano e comum, no qual convive a população. Os principais nomes desta época dourada da literatura latinoamericana são: Jorge Luis Borges (1889-1986), Juan Rulfo (1918-1986), Carlos Fuentes (1928), Julio Cortázar (1914-1984), Mario Vargas Llosa (1936), Augusto Roa Bastos (1917-2005) e Gabriel García Márquez (1927). Jorge Luis Borges, escritor argentino, um dos mais significativos da literatura universal do século XX, possui a particularidade de nunca ter escrito um romance. Em sua juventude viveu na Suíça e na Espanha e 28 regressou a Buenos Aires em 1921, onde iniciou uma fecunda atividade cultural. Os temas e metáforas na obra de Borges são sempre recorrentes, ou seja, aparecem uma e outra vez de forma obsessiva para mostrar as angústias do próprio escritor. Labirintos que simbolizam o universo em sua forma de caos ordenado; bibliotecas que guardam as sabedorias, entre outras. Desta forma Borges pretendia racionalizar os mistérios da existência e o sentido do universo. Juan Rulfo, escritor mexicano, até 1955 não era mais que um simples funcionário. Embora tivesse publicado, em 1953, El llano em llamas, seu livro de contos, foi com a publicação do romance Pedro Páramo que teve o reconhecimento da crítica e do público. Rulfo ainda criança viu sua família aniquilada pela rebelião dos cristeros8. Reproduziu esta experiência própria no fantasmagórico povoado de Comala, habitado por mortos, que aparece em Pedro Páramo. O narrador de boa parte da obra, Juan Preciado, chega a Comala conduzido por Abundio para cumprir uma promessa feita a sua mãe, já morta, de buscar seu pai Pedro Páramo. No transcorrer da obra, Preciado percebe que todas as pessoas com que falou estão mortas, simultaneamente dá-se conta que está morto e, a partir desse momento, desde a tumba, assiste ao desenlace da história na qual Pedro Páramo fora assassinado. Rulfo cria com Pedro Páramo um universo tenso onde a vida e a morte não se diferenciam, onde a realidade e o sobrenatural se entrelaçam. 8 Luta entre a igreja e o estado do México contra as provisões anticlericais da Constituição Mexicana de 1917. 29 Além disso, coloca em evidência a existência de um tempo circular, onde princípio e fim se confundem. Carlos Fuentes, escritor mexicano, filho de diplomata, passou grande parte de sua vida fora do México, o que contribuiu para sua formação culta e cosmopolita; não obstante, sua obra se dedica integramente à análise da realidade histórica de seu país, tanto em seus romances quanto em seus ensaios. Fuentes analisa em sua narrativa a recente história do México a partir de um ponto de vista pessimista que não oculta a frustração ante os antigos princípios revolucionários. Entre suas obras mais importantes, destacam-se: La región más transparente (1959), Zona sagrada (1967), Cambio de piel (1967), Terra nostra (1975), Cristóbal Nonato (1987) y Los años con Laura Díaz (1999). Seu compromisso político e social sempre transparece em suas obras, mas foi na revista Tiempo Mexicano em 1972, que afirmou: Lo que un escritor puede hacer políticamente debe hacerlo también como ciudadano. En un país como el nuestro el escritor, el intelectual, no puede ser ajeno a la lucha por la transformación política que, en última instancia, supone también una transformación cultural.9 Julio Cortázar, escritor argentino, também é um dos grandes nomes da literatura hispano-americana. Em 1951 se autoexiliou em Paris por causa de sua incompatibilidade com o peronismo. Foi um autor comprometido com a realidade política da América Hispânica. Obras como El libro de Manuel (1973) constituem uma dura peça contra a tortura na América Latina. 9 http://www.clubcultura.com/clubliteratura/clubescritores/carlosfuentes/perfil.htm Acesso em 19 de agosto de 2010. 30 Uma das obras mais importantes de Cortázar é Rayuela (1963), de influência surrealista. O romance é como um quebra-cabeça, com uma história mais ou menos linear, quase anedótica, a qual junto a capítulos que o autor assinala como prescindíveis, existe uma ordem com a possibilidade de se alterar. São múltiplas maneiras de ler esta obra, que subverte o esquema do romance tradicional, mas todas conduzem ao mesmo ponto: ao caos e à intencionada desordem criada por Cortázar para descrever o absurdo da realidade tal como a percebemos. Este romance revolucionário fica convertido em uma sobrecarregada análise da solidão, do frustrado desejo de encontro entre seres humanos. Rayuela marca o início da “obra aberta” na América Latina, pois esse romance experimental assinala a relação autor-leitor, em que o leitor é copartícipe e copadeciente da obra. Mario Vargas Llosa, escritor peruano, conheceu as diversas regiões do Peru, viveu em Madrid, Paris e Barcelona, cidade onde publicou todos os seus romances. Sua narrativa conta com dois filões: sua própria vida e seu país. Não é um autor localista. De seu país obtêm os elementos sociais que emprega para construir suas críticas, válidas contra qualquer sistema denunciável. Com dados autobiográficos, tece os múltiplos argumentos e episódios que aparecem em seus romances, construindo tramas sombrias ou humorísticas, mas sempre envolventes. Vargas Llosa passou dois anos no colégio militar, cenário de seu primeiro romance, La ciudad y los perros (1963), obra que lhe deu fama internacional. Seu segundo romance, La casa verde (1965) está centrado nos ambientes da selva e um modesto prostíbulo provinciano que marcou 31 sua adolescência. Em La tía Julia y el escribidor (1977), Vargas Llosa leva ao extremo a auto-confissão. Nesta obra relata sua própria juventude, incluindo membros de sua família e sua primeira esposa como personagens. Augusto Roa Bastos, escritor paraguaio, participou, voluntariamente, da guerra do Chaco entre Bolívia e Paraguai quando tinha apenas 15 anos. Viveu exilado primeiro na Argentina e depois na França por quase 40 anos, durante o regime do ditador Alfredo Stroessner (1957-1989). Escreveu a obra mais consagrada da literatura paraguaia, Yo el Supremo (1974). A obra de Roa Bastos baseia-se na figura de José Gaspar Rodríguez de Francia, ditador que comandou o Paraguai no século XIX (1814-1840). No entanto, o autor tinha como objetivo alcançar as ditaduras da metade do século XX que ocorriam no continente, principalmente a ditadura do general Alfredo Stroessner. Gabriel García Márquez, o grande escritor colombiano, é um dos autores mais populares da literatura hispano-americana. Será visto no capítulo seguinte. 32 II. A IMPORTÂNCIA DE GARCÍA MÁRQUEZ Una realidad que no es la del papel, sino que vive con nosotros y determina cada instante de nuestras incontables muertes cotidianas, y que sustenta un manantial de creación insaciable, pleno de desdicha y de belleza, del cual éste colombiano 10 errante y nostálgico no es más que una cifra más señalada por la suerte. A partir do fragmento retirado do discurso feito por Gabriel García Márquez em Estocolmo ao receber o prêmio Nobel de Literatura, podemos entender um pouco sua forma de escrever. Em uma entrevista em Lima a Mario Vargas Llosa, o escritor colombiano afirma que todas as suas histórias são baseadas em fatos reais e, por isso, em seu discurso, comenta que a realidade não é a da folha de papel, mas sim a que se vive e que sustenta um insaciável mundo criativo. Ele tenta dessa forma transfigurar a realidade. A partir de histórias ouvidas ou de acontecimentos presenciados, escreve suas obras com uma mescla de realidade e encantamento. García Márquez é considerado um dos principais romancistas do continente e renovador da tradição colombiana do romance. Suas obras, em geral, giram em torno de um mesmo eixo. Um dos assuntos mais abordados pelo escritor é a questão da solidão. Vargas Llosa, na mesma entrevista já citada, chama a atenção para este fato: afirma o curioso de os livros de García Márquez serem tão populosos e tratarem de tal tema. “Embora nem sempre uma (obra) complete os dados da anterior, há uma interrelação entre as ficções, cada uma das quais é etapa inseparável das outras na construção da realidade fictícia” (Jozef, 1974: 128). 10 O discurso feito por García Márquez em Estocolmo como forma de agradecimento ao prêmio Nobel de Literatura encontra-se no Anexo do presente trabalho. O fragmento em destaque encontra-se na folha IV do anexo. 33 São muitas as obras de García Márquez que serviriam de exemplos, porém tornaria esta pesquisa longa e cansativa, por isso nos deteremos em algumas das mais comentadas pelos críticos que formam parte da bibliografia deste trabalho. Serão elas: La hojarasca, La mala hora, El otoño del patriarca e Cien años de soledad. La hojarasca é o primeiro romance de García Márquez publicado em 1955. Nele, aparece pela primeira vez o povoado de Macondo. Desde a publicação do romance, o autor colombiano foi atacado pelos críticos esquerdistas que o acusavam de não enfrentar diretamente os problemas sociais na Colômbia. Também o criticavam pela forte influência faulknerina. A técnica utilizada na obra, corresponde ao “fluxo de consciência" 11, pelo qual se revela a elaboração da intriga. Fábula e trama não se correspondem e, cabe ao leitor, a partir dos dados proporcionados por três personagens – o avô, a mãe e o menino – ordenar os fatos. O que é omitido pelos personagens também constitui parte indispensável para o entendimento da história, pois o que não se diz, não só em La hojarasca, mas em toda obra de García Márquez, é sempre de suma importância. Esse romance é essencial para a obra do escritor colombiano, pois, como afirma Bella Jozef (1974: 129): ...La hojarasca, será uma das constantes da obra de G.M.: episódios superpostos, visão prismática de personagens e acontecimentos, o presente contínuo, o ambiente cheio de mistério, o flash-back decorrente de associações. Além disso, vários acontecimentos históricos voltarão nas demais obras. 11 Jozef, Bella. O espaço reconquistado. 1974, pg. 129 34 Uma particularidade desse romance é o fato de o avô ser o único personagem de García Márquez que, ao enfrentar-se com sua própria existência, não morre ou se retira do mundo. La mala hora (1966) é uma obra que retrata a atmosfera de medo e violência que envolve um povoado colombiano. A história desenrola-se a partir do aparecimento de misteriosos pasquins reveladores de negociatas, infidelidades, filhos bastardos. Ninguém sabe quem é ou quem são os responsáveis por esses pasquins e muito menos quem será a “próxima vítima”. Os personagens são muito bem construídos, e apesar de o prefeito, vítima de seu próprio poder, parecer o personagem principal, não se pode afirmar que realmente o seja, pois não existe um herói individual, o protagonista parece ser a própria “violência que aparece por trás das mentiras em que vive mergulhada a cidade” (Jozef, 1974: 130). Assim como em Cien años de soledad, em La mala hora chove por mais de quatro anos e essa chuva funciona como um elemento de dissolução. O irreal se sobrepõe à objetividade. Além de elementos imaginários, “o autor converte os objetos de aparência objetiva, da vida de todos os dias, em outra ordem (ambiguidade), e o sobrenatural, prodigioso, aparece como tal. Os volantes anônimos vão implacavelmente derrotando a realidade objetiva” (Jozef, 1974: 130). A figura do prefeito de La mala hora prefigura a do ditador de El otoño del patriarca (1975), ditador esse fictício, mas que poderia ser comparado a qualquer ditador real que governou algum país da América Latina de meados a fim do século passado. 35 O romance aborda a história política e a vida de um homem que viveu por mais de cem anos e por quase toda a vida foi o ditador de uma nação. Viveu uma vida solitária e desfrutou de muito poder, tendo pouco ou nenhum limite ao governar. Morreu de morte natural. Filho de pai desconhecido e de uma mulher do povo, chegou ao poder matando a seus rivais e explorando o apoio de ingleses e norte-americanos. Além da realidade do poder investida no personagem, Gabriel García Márquez cria em torno do ditador um mito. En “los tiempos de gloria” que precedieron su otoño curaba a leprosos, paralíticos y ciegos con puñados de sal, procreaba cinco mil hijos, identificaba a un enemigo entre una muchedumbre después de años de búsquedas infructuosas por parte de sus agentes, hacía construir un barrio entero nuevo en torno a la casa de la mujer amada, y así siempre hasta que trasciende el estado mítico y alcanza la divinidad.12 El otoño del patriarca confirma a tese de que existe nas obras de García Márquez um conflito entre, por um lado, um apego a vida, e, por outro, um rechaço à mesma, cuja expressão é a solidão dos personagens. Cien años de soledad é, sem dúvida, a grande obra do realismo mágico e a obra mais importante e reconhecida mundialmente de Gabriel García Márquez. Traduzida em várias línguas, é um dos maiores êxitos editoriais da literatura atual em língua espanhola. Foi publicada em 1967, na época dourada da literatura hispano-americana. A obra fez de García Márquez uma espécie de mito. A história de Cien años de soledad não é somente a história do coronel Aureliano Buendía, mas é também a história de toda sua família, desde a fundação de Macondo até que o último Buendía decifra os pergaminhos e descobre que as estirpes condenadas a cem anos de 12 Shaw, Donald. Nueva narrativa hispanoamericana. 1985, pg. 117 36 solidão, como os Buendía, não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra. O romance está cheio de metáforas. Pode-se comparar a fundação de Macondo com a história bíblica da criação do mundo, na qual ao princípio era necessário apontar as coisas com o dedo porque não tinham nomes. A história de Macondo também tem muito a ver com a história da América Latina sabendo-se que para os espanhóis, muitas coisas que existiam no recente mundo precisavam de nomes. Como Cervantes, García Márquez estabelece as fronteiras da realidade dentro de um livro e as fronteiras de um livro dentro da realidade. Por isso, Cien años de soledad supõe duas leituras porque supõe, também, duas escrituras. A primeira leitura coincide com uma escritura que supomos certa: um escritor que relata linearmente, cronologicamente, a história das genealogias de Macondo. A segunda: a crônica de Macondo já estava escrita nos papéis de um cigano chamado Melquíades, cuja aparição como personagem, cem anos antes, resulta idêntica a sua revelação como narrador cem anos depois. Na verdade, García Márquez conserva a narração linear, mas introduz novos recursos para atualizar o passado e fundir a corrente temporal. O uso dos mesmos nomes: Aureliano filho de José Arcadio filho de Aureliano… e as mesmas personalidades fazem com que o tempo pareça cíclico. A vida dos Buendía é uma constante repetição de tragédias anteriores nas quais as tendências antagônicas se enfrentam. Nas primeiras gerações, os Aurelianos eram retraídos, mas de mentalidade lúcida; os José Arcadio eram 37 impulsivos e empreendedores, a partir da terceira geração as posições se invertem, mas as tendências antagônicas permanecem. Um dos símbolos mais assinalados no romance é, sem dúvida, o dos peixinhos de ouro: fazer para desfazer. Não somente o coronel Aureliano Buendía, com os peixinhos de ouro, fazia para desfazer, mas também Amaranta com a mortalha, José Arcadio com os pergaminhos e Úrsula com as recordações, vivem em um tempo cíclico que parece não ter nem um princípio tão pouco um fim. García Márquez, em Cien años de soledad, funde o passado e o presente em uma linha contínua. Pero, en su obra, García Márquez introduce también constantes referencias a la realidad latinoamericana más lacerante, con lo que, dentro de su presentación mágica, el correlato histórico está presente: la violencia de los hombres dentro de una naturaleza salvaje y hostil, los pronunciamientos militares y las guerras civiles, la explotación norteamericana, representada por la anónima y poderosa Compañía Bananera. Todo ello se conjuga con las creencias, supersticiones, hechos mágicos y milagros que constituyen la esencia cotidiana de Latinoamérica.13 Gabriel García Márquez, utilizando-se do folclore espanhol e ameríndio, dos contos e das lendas populares, de romances e da história, unindo tudo isso à sua grande imaginação, criou uma nova forma de escrever romances tendo como apoio principal a tradição. 13 Sánchez Ferrer, José Luis. El realismo mágico en la novela hispanoamericana. 1990, pg. 72 38 III. A AUTOBIOGRAFIA EM DEBATE 1. O gênero autobiográfico De onde vem esta necessidade de escrever sobre si mesmo? Desde jovens já somos enlaçados por este mundo das escritas de si quando somos apresentados ao diário, no qual deixamos nossas impressões, acontecimentos, alegrias, tristezas, e fazemos isso dia após dia. Muitas pessoas têm os diários como melhores amigos, confidentes, pois para o diário pode-se dizer tudo, ou melhor, escrever tudo. Não há restrições entre o escritor do diário e o objeto de sua escritura. Para muitos, o diário é o primeiro a saber sobre o primeiro amor, o primeiro beijo, a primeira decepção. Fazer do diário, ou qualquer outro tipo de texto no qual escrevemos sobre nós mesmos, um amigo e confidente, é uma forma que encontramos de enganar a solidão. Segundo Leonor Arfuch (2003:54), “el sujeto siempre intenta “engañar” su soledad”, e uma das maneiras que o homem encontrou para enganar a solidão foi escrevendo sobre si mesmo. Esta ideia é compartilhada por outros teóricos, como Michel Foucault (2004:145): “a escrita de si mesmo, [...] atenua os perigos da solidão”. No entanto, existem várias formas de escritas de si: diários, memórias, correspondências, biografias, autobiografias, porém, o que vai interessar a este estudo, serão as autobiografias e as autoficções. 39 1.1 Philippe Lejeune e o Pacto Autobiográfico Para tratar de autobiografia, será utilizado como base o teórico francês Philippe Lejeune. Em O Pacto Autobiográfico (2008), Lejeune afirma que a palavra “autobiografia” foi importada da Inglaterra no início do século XIX e era empregada em dois sentidos. O escolhido por ele foi proposto por Larousse, em 1886: “Vida de um indivíduo escrita por ele próprio”. Lejeune ainda cita Vapereau14, que conceitua (2008:53) “autobiografia” como “obra literária, romance, poema, tratado filosófico etc., cujo autor teve a intenção, secreta ou confessa, de contar sua vida, de expor seus pensamentos ou de expressar seus sentimentos”. Em seguida, Lejeune transcreve um comentário feito pelo próprio Vapereau sobre sua definição no qual afirma (2008:54) que “a autobiografia abre um grande espaço à fantasia e quem a escreve não é absolutamente obrigado a ser exato quanto aos fatos, como nas Memórias, ou dizer toda a verdade, como nas confissões”. Após aprofundado estudo, Lejeune (2008:14) define autobiografia como: “Narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade.” A partir desta definição, Lejeune sugere quatro categorias que devem ser preenchidas por uma obra para que esta seja considerada uma autobiografia. As categorias são: 1. Forma da linguagem: a) narrativa; b) em prosa. 2. Assunto tratado: vida individual, história de uma personalidade. 14 Louis Gustave Vapereau (1819-1906), escritor e lexicógrafo francês famoso, principalmente, por seus dicionários. 40 3. Situação do autor: identidade do autor (cujo nome remete a uma pessoa real) e do narrador. 4. Posição do narrador: a) identidade do narrador e do personagem principal; b) perspectiva retrospectiva da narrativa.15 Obras que preencham apenas parte destas categorias não podem ser consideradas como autobiografias, mas podem ser gêneros vizinhos, como memórias, biografias, diário, etc. No entanto, para uma obra ser considerada uma autobiografia, além de preencher todas as categorias supracitadas, é preciso que haja também uma relação de identidade entre, autor, narrador e personagem. Para Lejeune (2008:24), este é um critério muito simples, autor, narrador e personagem são dotados da mesma identidade, “que define, além da autobiografia, todos os outros gêneros da literatura íntima (diário, auto-retrato, auto-ensaio)”. Se o critério de identidade não for preenchido, por mais que se tenham razões suficientes para não se duvidar que a história seja a história do autor, a obra não pode ser considerada uma autobiografia, de acordo com Lejeune (2008:24), “já que esta pressupõe, em primeiro lugar, uma identidade assumida na enunciação, sendo a semelhança produzida pelo enunciado totalmente secundária”. Obras deste tipo, para Lejeune, seriam enquadradas na categoria de “romance autobiográfico”. A concepção do teórico (2008:25) sobre “romance autobiográfico” pressupõe: “... textos de ficção em que o leitor pode ter razões de suspeitar, a partir das semelhanças que acredita ver, que haja identidade entre autor e personagem, mas que o autor escolheu negar essa identidade ou, pelo menos, não afirmá-la. [...] À diferença da autobiografia, ele comporta graus. A “semelhança” suposta pelo leitor pode variar de um vago “ar de família” entre o personagem e o autor até uma quase transparência que leva a dizer que aquele é o autor “cuspido e escarrado”. [...] Já a autobiografia não comporta graus: é tudo ou nada.” 15 Lejeune, Philippe. O pacto autobiográfico. 2008, pg. 14 41 Lejeune é bem radical ao tratar de seu pacto; o pacto autobiográfico é a afirmação da identidade autor, narrador, personagem. Se não há identidade, não há autobiografia, o que pode haver é uma ficção autobiográfica, esta sim pode ser exata ou inexata. Exata quando o personagem se parece com o autor, inexata quando difere. Lejeune cria algumas combinações entre o nome do personagem e o nome do autor para definir o pacto autobiográfico, porém a combinação que vai interessar a este estudo será nome do personagem = 0, pois, como será visto mais adiante, o nome do personagem principal da obra Memoria de mis putas tristes não é mencionado, ou seja, o personagem não tem sua identidade explicitada. Nome do personagem = 0: é o caso mais complexo, pois indeterminado. Tudo depende então do pacto feito pelo autor. Três casos são possíveis: a) Pacto romanesco (a natureza de “ficção” do livro é indicada na capa ou na página de rosto). b) Pacto = 0: não apenas o personagem não tem nome, mas o autor não firma nenhum pacto, - nem autobiográfico, nem romanesco. A indeterminação é total. c) Pacto autobiográfico: o personagem não tem nome na narrativa, mas o autor declarou-se explicitamente idêntico ao narrador, em um pacto inicial.16 Lejeune deixa claro que a única categoria que se encaixaria perfeitamente como autobiografia seria a “c”; a “a” seria o que chamou de romance autobiográfico; e a “b” será classificada de acordo com o humor do leitor, ou seja, conforme o leitor interpreta tal leitura. A importância de identidade autor, narrador, personagem, vai além do pacto autobiográfico, ele também é um pacto referencial, pois textos deste gênero, na concepção de Lejeune (2008:36), “se propõem a fornecer informações a respeito de uma “realidade” externa ao texto e a se submeter 16 Id. Ibid. pgs. 29-30 42 portanto a uma prova de verificação”. No entanto, textos enquadrados como autobiográficos ou biografias, etc., que podem ser submetidos à verificação, também estão sujeitos ao subjetivismo de quem escreve, pensando nisso, e em afirmações feitas, por exemplo, por André Gide17: “As Memórias só são sinceras pela metade, por maior que seja a preocupação com a verdade: tudo é sempre mais complicado do que dizemos. Talvez se chegue mesmo mais perto da verdade no romance.” 18 E por François Mauriac19: Mas isso significaria procurar desculpas muito nobres por ter-me limitado a um só capítulo de minhas memórias. A verdadeira razão de minha preguiça não seria porque os romances expressam o essencial de nós mesmos? Só a ficção não mente; ela entreabre na vida de um homem uma porta secreta, por onde se insinua, fora de qualquer controle, sua alma desconhecida.20 Lejeune (2008:43) afirma que o problema não é saber qual, a autobiografia ou o romance, é mais verdadeiro, pois à autobiografia falta a complexidade, a ambiguidade, e ao romance, a exatidão, mas o que tem de “revelador é o espaço no qual se inscrevem as duas categorias de textos”, e a este espaço Lejeune chamou de “espaço autobiográfico”. O leitor passa então a ler toda produção narrativa como um registro autobiográfico, buscando ali não a exatidão, mas dados que estejam relacionados com o real. O pacto autobiográfico, que até então era limitado, começa a perder tal limitação, pois abre margem à ambiguidade. O próprio Lejeune afirma que o que ele chama de autobiografia pode pertencer a dois sistemas 17 André Gide (1869-1951), escritor francês, recebeu o Nobel de Literatura de 1947. Philippe Lejeune. Ibid. pg. 42 19 François Mauriac (1885-1970), escritor francês, recebeu o Nobel de Literatura de 1952. 20 Philippe Lejeune. Ibid. pg. 42 18 43 diferentes: um referencial e outro literário. No primeiro, o compromisso autobiográfico é um ato, já no segundo, não existe pretensão à transparência. É muito complexo falar em pacto, em contrato de leitura a partir de instâncias (autor, obra e leitor) que não participam ao mesmo tempo de uma mesma experiência. Existem leituras diferentes de um mesmo texto. O autor que escreve tem sua interpretação da obra, porém o público que lerá tal obra terá interpretações diversas, pois esse público não é homogêneo. A verdade é que o pacto autobiográfico, que supõe reciprocidade, só envolve uma parte, a do autor, pois o leitor é livre para ler, ou não e ainda ler como quiser. O fato de o pacto autobiográfico deixar margens à ambiguidades e controvérsias que há algum tempo outras expressões mais abrangentes e flexíveis vem surgindo. No fim dos anos 1970 iniciou-se o uso da expressão “relatos de vida” e no início dos anos 1980, “escritas do eu” ou “escritas de si”. Tais expressões têm como função ampliar o campo, de acordo com Lejeune (2008:82) “incluindo a “verdadeira” literatura, isto é, a ficção, fazendo do pacto de verdade uma especificação secundária”. Sobre esse tema será a próxima parte deste trabalho: entender um pouco sobre o que são essas “escritas de si” e o que vem a ser autoficção. 1.2 Discussões sobre autoficção O termo “autoficção” surge com o crítico e romancista francês Sergue Doubrovsky, que escreve em 1977 o romance Fils, no qual o narrador tem o 44 mesmo nome do autor, porém suas peripécias são fictícias. A este modelo de romance Doubrovsky chamou autoficção. Para ele (In: Klinger, 2007:47), “autoficção não é “nem autobiografia, nem romance, e sim, no sentido estrito do termo, funciona entre os dois, em um re-envio incessante, em um lugar impossível e inacessível fora da operação do texto”. Para Klinger (2007:26), é válido pensar o conceito de “autoficção” juntamente com o de “perfomance”, pois “a escrita de si não é apenas um registro do eu, mas constitui o próprio sujeito, performa a noção de indivíduo”. Conforme Klinger (2007:53-54). ... o texto autoficcional implica uma dramatização de si que supõe, da mesma maneira que ocorre no palco teatral, um sujeito duplo, ao mesmo tempo real e fictício, pessoa (ator) e personagem. Então não se trata de pensar, como o faz Philippe Lejeune, em termos de uma “coincidência” entre “pessoa real” e personagem textual, mas a dramatização supõe a construção simultânea de ambos, autor e narrador. Quer dizer, trata-se de considerar a autoficção como uma forma de perfomance. A autoficção é, então, esta tensão entre o que existe de real e o que é imaginário no ato da escritura. O autor, que se diz também personagem de seu romance, pode ser ele e muitos outros ao mesmo tempo, pode depositar no ato da escritura acontecimentos reais, mas ao mesmo tempo pode transformar o real de forma que ainda possa causar dúvidas ao leitor se aquilo é ou não real, ou transformar de tal forma que ao leitor não reste dúvida de que aquilo é imaginário, fictício. A autoficção, assim como a arte da performance, se apresenta ao leitor como um texto inacabado, em processo de construção, como se o leitor pudesse acompanhar o processo da escritura, pois o texto autoficcional quebra com a limitação do pacto autobiográfico proposto por Lejeune. Uma obra de caráter autoficcional pode criar o real como quiser e também ela 45 pode criá-lo quantas vezes for necessário para o escritor. Assim como um ator, que interpreta um personagem teatral recria tal personagem cada vez que o encena, o autor autoficcional cria e recria o seu real enquanto escreve sua obra. A autoficção, além de ser comparada à perfomance, dá conta também do que se chama de o “retorno do autor”, pois de acordo com Klinger (2007:38) “problematiza a relação entre as noções de real (ou referencial) e de ficcional, assim como a tensão entre a presença e a falta – retorno e recalque –, ainda que não necessariamente em relação com o discurso do trauma”. Este retorno do “eu”, ainda conforme Klinger (2007:44), “surge em sintonia com o narcisismo da sociedade midiática contemporânea mas, ao mesmo tempo, produz um reflexão crítica sobre ele mesmo”. Através da escrita de si, o autor deixa de ser apenas o nome que está na capa da obra, mas passa a ser também o herói que está dentro da obra. Ao se pensar nessa assertiva, na sociedade midiática, a escrita de si busca um efeito de real. Esse efeito produzido pela escrita de si se revela como um desejo de algo que falta, e este algo é o próprio real. Dentro da autoficção o autor está livre para criar o real tal como lhe for interessante. Philippe Gasparini, citado por Klinger, classifica três tipos de enunciação autobiográfica ficcional: autobiografia fictícia; romance autobiográfico e autoficção. O que interessa nesta pesquisa é a diferença feita por Gasparini entre romance autobiográfico (termo usado também por Lejeune) e autoficção. Ambas estratégias se distinguem pelo grau de ficcionalidade: a diferença entre ambas reside nos elementos que permitem ao leitor fazer uma validação da identificação, quer dizer, no nível de verossimilhança. O romance autobiográfico se 46 inscreve na categoria do possível, do verossimilmente natural, ele suscita dúvidas sobre sua verificabilidade mas não sobre sua verossimilhança; enquanto que a autoficção mistura verossimilhança com inverossimilhança e assim suscita dúvida 21 tanto a respeito da sua verificabilidade quanto da sua verossimilhança. Segundo Klinger (2007:47), “a categoria de autoficção implica não necessariamente uma corrosão da verossimilhança interna do romance, e sim um questionamento das noções de verdade e de sujeito”, pois: O sujeito que “retorna” nessa nova prática de escritura em primeira pessoa, não é mais aquele que sustenta a autobiografia: a linearidade da trajetória da vida estoura em benefício de uma rede de possíveis ficcionais. Não se trata de afirmar que o sujeito é uma ficção ou um efeito de linguagem, como sugere Barthes, mas que a ficção abre um espaço de exploração que excede o sujeito biográfico. Na autoficção, pouco interessa a relação do relato com uma “verdade” prévia a ele, que o texto viria saciar, pois como aponta Cristopher Lasch, “o autor hoje fala com sua própria voz mas avisa ao leitor que não deve confiar em sua versão da verdade”.22 O que está em jogo aqui não é mais a relação entre o texto e a vida do autor como na (auto) biografia, mas sim da criação de um mito, o mito do escritor. A autoficção é uma máquina capaz de produzir mitos sobre o escritor, pois proporcionam um espaço narrativo capaz de englobar tanto vivências do narrador quanto momentos em que o autor introduz uma referência à própria escritura. Importante aqui é compreender que o mito não é uma mentira e sim um valor que não tem a verdade como sanção e o escritor como figura que está entre a “mentira” e a “confissão” em um processo de criação da subjetividade e, também, do real. 21 Klinger, Diana. Escritas de si, escritas do outro. O retorno do autor e a virada etnográfica. 2007, pg. 46 22 Id. Ibid. pgs. 49-50 47 2. A memória como pressuposto da escritura autobiográfica Toda escritura autobiográfica pressupõe uma memória, não é possível escrever sobre si mesmo se não existirem recordações e lembranças. A memória é o primeiro e principal instrumento para aquele que quer deixar registrada a sua vida. Em uma narrativa autobiográfica, a memória é o tempo todo requisitada, de diferentes maneiras e em diversos níveis. Ela passa por um processo de contínua atualização enquanto o narrador escreve sua autobiografia. Esse busca em sua memória fatos que merecem destaque em sua narrativa, momentos que deseja que fiquem registrados para a posteridade, acontecimentos que poderão torná-lo imortal na lembrança de seus leitores. Até meados do século XIX, a memória era concebida apenas como uma capacidade mental e individual. Seu funcionamento era pensado pelo campo da neurologia, que considerava o cérebro como um armazém de informações, e o processo que fazia com que essas informações viessem à tona, era visto como estritamente mecânico. No entanto, uma série de estudiosos (entre eles destacam-se: Halbwachs, Bartlett, Luria e Vygotsky) começou a questionar esta visão mecanicista sobre a memória e a pensá-la como formada a partir da história social da humanidade e como um fenômeno muito mais complexo, processual e dinâmico do que vinha sendo pensado até então. 48 Pela memória, o ser humano se configura como um ser passível de constituir o mundo, porque é pela memória que se estabelece a possibilidade da constituição da unidade, porém é necessário ter cuidado com a mesma, pois, a partir do momento que entendemos que a memória não é apenas individual, mas sim coletiva, já que o que chamamos de memória individual é formada pelo imaginário coletivo e o contexto em que se vive, podemos ter em nossa memória informações das quais não podemos atestar a veracidade. Um exemplo é o próprio García Márquez, que, em Vivir para contarla, enquanto narra sua chegada e a da mãe em Aracataca, avista pela janela do trem as paisagens e sua mãe lhe mostra o lugar onde, em 1928, o exército teria matado um número absurdo de homens que trabalhavam nas plantações de banana; García Márquez (2007:21) então, esclarece a seus leitores: “Yo conocía el episodio como si lo hubiera vivido, después de haberlo oído contado y mil veces repetido por mi abuelo desde que tuve memoria”. Assim como García Márquez, todos nós estamos sujeitos a termos em nossas lembranças, recordações que não são efetivamente nossas, mas que estão tão vivas em nossa memória, que é como se fossem. A partir desta discussão, é preciso entender e explicar a relação da memória com a verdade. É praticamente unânime que quando uma pessoa afirma que se lembra de algo, este algo seja visto como verídico, porém, como observamos no caso relatado por García Márquez, o escritor não pode atestar a veracidade do fato por não tê-lo presenciado. Mas, o que é verdade? Aquilo que pode ser verificado... Na aurora do pensamento 49 ocidental, a verdade era entendida como a “privação do esquecimento”. Ter algo na memória nada mais era do que o seu não esquecimento. Assim sendo, podemos afirmar que tudo o que se tem na memória é verdade, mesmo quando não há veracidade. Uma história autobiográfica é então, partindo do pressuposto que o instrumento principal para tal é a memória, sempre verdadeira, mesmo que não se possa verificar sua autenticidade. A figura do narrador aparece como algo importantíssimo desde tempos remotos. Antes da invenção da imprensa, tal figura era extremamente valorizada, pois o narrador era aquele que detinha um dos bens mais preciosos: a memória. Era através da memória que o narrador poderia perpetuar as histórias de um povo e não deixar que tradições se perdessem. A partir da imprensa, a memória parece não ser tão valorizada como antes, pois todo e qualquer acontecimento pode ser rapidamente registrado, para que não precisemos nos preocupar em guardar exclusivamente na memória. Escrever uma autobiografia é um exercício para a memória, pois faz com que o narrador busque informações que, para a maioria das pessoas, já caíram no esquecimento. Narrar sua própria vida não só denota o desejo de perpetuação de sua história, mas também reforça o mito da história que nunca acaba, porque mesmo que não haja mais narradores para contar as histórias, existe o registro que não as deixam cair no esquecimento. 50 3. A pós-modernidade Se a modernidade se esforçou para desconstruir a morte, em nossa época pós-moderna é a vez de a imortalidade ser desconstruída. Zygmunt Bauman Para Zygmunt Bauman (1998), o que a modernidade tinha como marca registrada era o “excesso de ordem”, a essa marca havia uma companheira inseparável – “a escassez de liberdade”. A pós-modernidade, de certa forma, inverteu essa situação, fazendo com que a liberdade reinasse soberana. A liberdade individual, que outrora era vista como um problema para os edificadores da ordem, tornou-se uma qualidade e um recurso para a autocriação do universo. No entanto, quando se ganha algo em uma troca, automaticamente perde-se outra e como afirma Bauman (1998: 10): ...os ganhos e as perdas mudaram de lugar: os homens e mulheres pós-modernos trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por um quinhão de felicidade. Os mal-estares da modernidade provinham de uma espécie de segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança individual pequena demais. O modernismo foi um movimento quase de protesto contra promessas não cumpridas, esperanças frustradas e um testemunho da seriedade com as promessas e esperanças tratadas. Para os modernistas o tempo anda em uma única direção: o que vem depois é sempre melhor, sua batalha era em prol da aceleração. Assim como a modernidade trouxe avanços técnicos e científicos e inovações nas artes, a pós-modernidade trouxe, inicialmente um novo 51 cotidiano em que as máquinas eram substituídas pela informação, as fábricas pelos Shopping(s) Center(s), o contato entre pessoas pelo contato através de vídeo. O termo “pós-modernidade” começa a ser usado enfaticamente na década de 60 por alguns críticos literários, mas só na década de 70 o mesmo ganha “força” sendo aplicado à arquitetura, à dança, ao teatro, à pintura, ao cinema e à música. Para Andreas Huyssen (1991:34), o pós-modernismo nunca foi uma rejeição ao modernismo, mas sim à versão do modernismo dos anos 50 ...incorporada pelo consenso liberal-conservador da época e transformada em arma de propaganda no arsenal cultural e político da guerra fria anticomunista. [...] Em outras palavras, a revolta surgiu precisamente a partir do sucesso do modernismo, do fato de nos Estados Unidos, como na Alemanha Ocidental e na França, o modernismo ter sido pervertido, convertendo-se em uma forma de cultura afirmativa. Ele continua dizendo que o mais importante no pós-modernismo contemporâneo é o fato de que dicotomias como: tradição e inovação, conservação e renovação, cultura de massas e grande arte, tenham caído por terra. Existe sim um campo de tensão entre tais dicotomias, porém não existe mais o privilégio de um ou outro. O pós-modernismo se caracteriza também por repensar sobre o valor da multiplicidade e do provisório. Existe também uma “promessa de um mundo “pós-branco”, “pós-masculino”, “póshumanista”, “pós-puritano”.” (Huyssen, 1991: 40). Linda Hutcheon (1991:39) tem uma ideia semelhante: O que o pós-modernismo faz, conforme seu próprio nome sugere, é confrontar e contestar qualquer rejeição ou recuperação modernista do passado em nome do futuro. Ele não sugere nenhuma busca para encontrar um sentido atemporal transcedente, mas sim uma reavaliação e um diálogo em relação ao passado à luz do presente. 52 Para Rouanet (1987:269), o homem, através de uma pós- modernidade fictícia, ...está querendo despedir-se de uma modernidade doente, marcada pelas esperanças traídas, pelas utopias que se realizaram sob a forma de pesadelos, pelos neofundamentalismos mais obscenos, pela razão transformada em poder, pela domesticação das consciências no mundo industrializado e pela tirania política e pela pobreza absoluta nos 3/4 restantes do gênero humano. Essa é a verdade do pós-moderno. Sua ilusão é a tentativa de reagir às patologias da modernidade através de uma fuga para frente. O pós-moderno, na verdade, não é uma ruptura com o moderno, mas sim uma continuação, pois não nega suas referências, se vale delas e é nas artes onde isso se torna mais perceptível. Ele questiona o sistema, mas não o destrói, reconhece a necessidade das pessoas de estabelecerem uma ordem, mas percebe que essa ordem não passa de elaborações humanas, nada é pré-determinado ou preexistente. A arte dos nossos dias não está inclinada a nada que se refira a uma realidade social, mas se eleva dessa em uma realidade auto-suficiente. As artes em geral, compartilham da cultura da pós-modernidade na qual a liberdade predomina sobre a ordem. “A Arte, agora, é uma entre as muitas realidades alternativas” (Bauman, 1998: 129) e um importante legado do mundo ocidental que faz com que isso se torne cada vez mais concreto, foi a invenção do romance como obra ficcional. Cada vez mais, as pessoas lêem romances e isso se dá, segundo Umberto Eco (in:Bauman, 1998: 151), ...porque eles nos oferecem a agradável impressão de habitar mundos em que a noção de verdade é inabalável. Por comparação, o mundo real parece ser uma terra extraordinariamente incerta e traiçoeira... [...] É na ficção, afirma Eco, que procuramos a espécie de certeza e segurança intelectual que o mundo real não pode oferecer... Lemos romances a fim de localizar uma forma na informe quantidade de experiências terrenas. 53 As razões que nos fazem crer em uma ficção são muito menos complexas do que as que nos fazem crer em um livro de História, por exemplo. As verdades nascidas na ficção são capazes de preencher uma deficiência deixada pela realidade. 54 2ª PARTE A OBRA DE GARCÍA MÁRQUEZ MEMORIA DE MIS PUTAS TRISTES 55 IV. ENTRE O EROTISMO E O AMOR NO ROMANCE DO ESCRITOR COLOMBIANO 1. Entre o amor e o erotismo Quando lemos a palavra “amor” logo nos vem à mente um sentimento puro, acalentador, tranquilo; ao contrário, quando lemos a palavra “erotismo” ou “erótico”, pensamos em um desejo carnal, avassalador, que não tem a ver com o sublime. No entanto, com relação ao amor, podemos diferenciá-lo em vários tipos: o amor paterno ou materno; amor fraterno; amor de amigo e o amor entre homem e mulher. Ao pensar neste último, o amor que existe entre um homem e uma mulher, que a princípio pareciam contrários, podemos facilmente associar amor e erotismo como complementares, pois aquele que ama, também ama o corpo, sente desejos, atrações e instintos. A relação entre amor e erotismo exige cautela, pois quando o erotismo se sobrepõe ao amor, ao invés de se completarem, podem se destruir. Para esta pesquisa, o que vai interessar é o amor entre homem e mulher, como já foi dito, ou seja, o amor do enamoramento. Para que um homem se apaixone por uma mulher e vice-versa, é preciso que um se fixe no outro, que de alguma forma um chame a atenção do outro, que deixe de estar na mesma esfera de todos para estar em uma mais elevada. Quando isso acontece, ainda não temos o amor, mas uma situação que podemos chamar de preliminar e, a partir desta preliminar, abre-se espaço para o fenômeno amoroso, a possibilidade do enamoramento. 56 Em O Banquete de Platão (1991), na festa de aniversário de Afrodite, a deusa da beleza, o Amor foi gerado, por Pobreza, que se aproveitou da embriaguez de Recurso. O Amor então nasce com a carência essencial da mãe, o ilimitado poder aquisitivo do pai e a beleza da deusa festejada. A partir desses atributos, ...a ação do Amor se define como ação de fixação, de continuidade. Todos os estranhos atos que ele inspira orientam-se para um único fim, a reprodução de outro ser que continue o anterior. É nisso que a geração de um ser se revela como algo divino, nesse perpetuar um ser mortal, que na vida da espécie tem o seu modo de ser sempre paralelo ao dos deuses23 O Amor, sendo esse ser intermediário entre os deuses e os homens, inspira o desejo de ter sempre o bem. Sua ação garante aos homens a imortalidade já que o seu fim é a reprodução de um ser que continue o anterior. O amor (agora em letra minúscula, pois não se refere mais ao de Platão, mas sim ao sentimento) não é a busca pela imortalidade, mas sim um fazer-se imortal através da reprodução. Para Octavio Paz (2004:221): El amor no es la eternidad; tampoco es el tiempo de los calendarios y los relojes, el tiempo sucesivo. El tiempo del amor no es grande ni chico: es la percepción instantánea de todos los tiempos en uno solo, de todas las vidas en un instante. No nos libra de la muerte pero nos hace verla a la cara. […] No es el regreso a las aguas de origen sino la conquista de un estado que nos reconcilia con el exilio del paraíso. Amor e erotismo são, na concepção de Paz (2004:9), “la llama doble de la vida” na qual: “la llama es “la parte más sutil del fuego, que se eleva y levanta a lo alto en figura piramidal”. El fuego original y primordial, la sexualidad, levanta la llama roja del erotismo y ésta, a su vez, sostiene y alza otra llama, azul y trémula: la del amor”. Ou seja, sexo, erotismo e amor, 23 Platão. O Banquete. 1991, pg. 59. 57 apesar de distintos, estão interligados. De acordo com Lucia Castello Branco (2004), o erotismo surge a partir de impulsos sexuais, mas é capaz de ultrapassá-lo. O erotismo estaria ligado ao amor, no sentido de união dos seres. Por isso, é preciso que haja certo cuidado com a relação entre o amor e o erotismo, pois se um dos envolvidos deixar de entender esta relação sublime e tentar ser superior ao outro, o que antes era nobre e grandioso, passa a ser grosseiro, o que era erótico, passa a ser vulgar. O sexo é um dos principais fatores para a determinação de poder em uma relação. Segundo Foucault (1988:90), “o poder vem de baixo; isto é, não há no princípio das relações de poder [...] uma opção binária e global entre os dominadores e dominados”. No começo de uma relação, não existe diferença de poder, não existe um mandante e um mandado, isso se dá com o tempo. Em uma relação homem / mulher, o sexo é um dos principais motivos para que a relação que até certo momento era igualitária, passe a ser binária. Quando o sexo é atrelado ao poder, ainda segundo Foucault (1988:81), se dá uma relação negativa. Com respeito ao sexo, o poder jamais estabelece relação que não seja de modo negativo: rejeição, exclusão, recusa, barragem ou, ainda, ocultação e mascaramento. O poder não “pode” nada contra o sexo e os prazeres, salvo dizerlhes não; se produz alguma coisa, são ausências e falhas; elide elementos, introduz descontinuidades, separa o que está junto, marca fronteiras. Seus efeitos tomam a forma geral do limite e da lacuna. Em Memoria de mis putas tristes, García Márquez transita com grande destreza por esses caminhos do amor, do erotismo e do sexo. Ele monta em sua obra o caminho, que segundo Paz (2004) é primordial, pois afirma que o sexo, primeira etapa percorrida por García Márquez, é o mais 58 antigo dos três, e a fonte essencial, já o erotismo e o amor, segunda e terceira etapas, são formas derivadas do instinto sexual. O narrador de Memoria de mis putas tristes começa sua narrativa dizendo que em seu nonagésimo aniversário quer se dar de presente uma noite de amor louco com uma jovem virgem e para isso entra em contato com uma antiga amiga, Rosa Cabarcas, dona de uma casa de prostituição que costumava frequentar. Neste momento, García Márquez passeia pelos caminhos do sexo e do poder que este pode ter. Em dado momento, seu personagem confessa que nunca se deitou com uma mulher que não tenha pagado, e as poucas que não o faziam por dinheiro, ele as convencia de recebê-lo. A noite chega, e o narrador se prepara para sua “festinha de aniversário”, no entanto, quando chega à casa de Rosa Cabarcas e esta o leva ao quarto onde a jovem virgem o espera, encontra a menina: nua e dormindo. Sem despertá-la, tira sua própria roupa, deita ao seu lado na cama e começa a observá-la. A seguir, divide mais algumas de suas memórias com seus leitores: ...siempre había escogido al azar las novias de una noche más por el precio que por los encantos, y hacíamos amores sin amor, medio vestidos las más de las veces y siempre en la oscuridad para imaginarmos mejores. Aquella noche descubrí el placer inverosímil de contemplar el cuerpo de una mujer dormida sin los apremios 24 del deseo o los estorbos del pudor. É difícil distinguir as linhas que separam os caminhos do sexo, do erotismo e do amor, porém, podemos dizer que, a partir desta confissão do narrador de García Márquez, ele começa a deixar o caminho do sexo puro e 24 García Márquez. Memoria de mis putas tristes. 2004, pg. 32. 59 passa a caminhar pelas vias do erotismo. À medida que a história é contada, percebemos um encantamento cada vez mais intenso por parte do narrador que encontra sua jovem virgem sempre adormecida e ele, consecutivamente, se põe a contemplá-la. Como o encantamento é intenso, ele passa a levar presentes para deixar no quarto onde ocorrem os encontros para torná-lo mais acolhedor: “...llevé un ventilador portátil y un cuadro de Orlando Rivera, el querido Figurita, […] cepillos de dientes, pasta dentífrica, jabón de olor, Agua de Florida, tabletas de regaliz.” 25. Neste momento o narrador já sabe que o que sente não é apenas um desejo carnal, nem mesmo um fetiche, mas sim o que ele próprio interpreta como um milagre: o primeiro amor de sua vida. Depois de o narrador percorrer os caminhos do sexo puro e sem compromisso, do erotismo e do amor verdadeiro, ele termina sua narrativa como se quisesse confirmar as afirmações de Octavio Paz (2004), citadas anteriormente. Para o autor mexicano, o amor não é eterno e nem nos livra da morte: “Salí a la calle radiante y por primera vez me reconocí a mí mismo en el horizonte de mi primer siglo. […] Era por fin la vida real, con mi corazón a salvo, y condenado a morir de buen amor en la agonía feliz de cualquier día después de mis cien años” (García Márquez, 2004:109). 25 Id. Ibid. pg. 63 60 2. Entre o desejo e o corpo O que vem a ser desejo? Por que a relação desejo e corpo é sempre algo vergonhoso? Tais questões estão presentes em nosso dia-a-dia e foram abordadas por Félix Guattari. Sobre o que vem a ser o desejo, Guattari (2007:260) afirma: O desejo aparece como algo flou, meio nebuloso, meio desorganizado, espécie de força bruta que precisaria estar passando pelas malhas do simbólico e da castração segundo a psicanálise, ou pelas malhas de algum tipo de organização de centralismo democrático segundo outras perspectivas – fala-se, por exemplo, em “canalizar” as energias dos diferentes movimentos sociais. Poder-se-ia enumerar uma infinidade de tipos de modelização que se propõem, cada um em seu campo, a disciplinar o desejo. Neste breve trecho, Guattari define bem como o desejo é visto em nossa sociedade, algo sem muita forma, que deve ser disciplinado. Como disciplinar algo que nem sabemos explicar exatamente o que é? Não existiria outra maneira de entender o desejo? Segundo Guattari (2007:261): A questão consiste em saber se não há uma outra maneira de ver e praticar as coisas, se não há meios de fabricar outras realidades, outros referenciais, que não tenham essa posição castradora em relação ao desejo, a qual lhe atribui toda uma aura de vergonha, toda essa espécie de clima de culpabilização que faz com que o desejo só possa se insinuar, se infiltrar secretamente, sempre vivido na clandestinidade, na impotência e na repressão. Assim, o filósofo francês propõe “denominar desejo a todas as formas de vontade de viver, de vontade de criar, de vontade de amar, de vontade de inventar uma outra sociedade, outra percepção do mundo, outros sistemas de valores.” (2007:261). Desejo seria então, não apenas a atração pelo corpo de outra pessoa, não apenas a vontade carnal, mas, sobretudo, toda e qualquer vontade de alcançar um objetivo. Na obra de García Márquez pode-se perceber facilmente essa dualidade sobre o que vem a ser desejo, tanto o desejo carnal quanto o 61 desejo mais “sublime” que Guattari afirma estar ali presente. A primeira frase da obra de García Márquez já nos remete ao desejo carnal: “El año de mis noventa años quise regalarme una noche de amor loco con una adolescente virgen.” (2004: 9) e um pouco mais adiante continua: “(Rosa Cabarcas) me ofreció una media docena de opciones deleitables, pero eso sí, todas usadas.” (2004: 9). Ao se iniciar a leitura crítica dessa obra, levando em consideração tais frases, imagina-se que esta será uma obra muito ligada ao erótico, ao desejo carnal. Quando Rosa Cabarcas avisa ao seu velho amigo que conseguiu uma jovem virgem para sua noite de amor, ele se arruma e vai ao seu encontro como que seguindo um ritual (García Márquez, 2004: 22-23): Me vestí de acuerdo con la ventura de la noche: el traje de lino blanco, la camisa a rayas azules de cuello acartonado con engrudo, la corbata de seda china, los botines remozados con blanco zinc, y el reloj de oro coronario con leontina abrochada en el ojal de la solapa. Fica claro que ele vai conseguir o que propôs na primeira linha da obra, porém, com o decorrer da leitura, percebe-se que o primeiro encontro não acontece como foi planejado: ao chegar ao local onde está a jovem virgem, o personagem principal a encontra dormindo e, para espanto do leitor que espera que ele a acorde, ele não o faz: “Entré en el cuarto con el corazón desquiciado, y vi a la niña dormida, desnuda y desamparada [...]. Me senté a contemplarla” (2004: 28-29). A partir deste momento, aquela impressão de um livro erótico começa a se desfazer e a ideia de desejo como algo carnal, sexual, também começa a mudar; um pouco mais adiante, o personagem comenta (2004:32): “Aquella noche descubrí el placer inverosímil de contemplar el cuerpo de uma mujer dormida sin los apremios 62 del deseo o los estorbos del pudor.” Neste momento, apesar de ainda se falar em corpo, é perfeitamente perceptível que a relação de desejo e corpo é totalmente diferente do que se viu no começo da obra, é um contemplar e não um possuir. A partir dessas pequenas citações da obra de García Márquez é possível entender o que Guattari propõem como desejo, citado acima, algo não só relacionado ao carnal, sexual, mas também algo que pode estar associado ao simples fato de contemplar, de admirar. O desejo e o prazer podem ser encontrados muito além de uma relação sexual segundo García Márquez (2004:58) pela voz de seu personagem: “... empecé a secarla con la toalla mientras le cantaba en susurros la canción de Delgadina [...]. Fue un placer sin límites...”. Porém, como concebe Guattari (2007:339): Há um certo tratamento serial e universalizante do desejo que consiste precisamente em reduzir o sentimento amoroso a essa espécie de apropriação do outro, apropriação da imagem do outro, apropriação do corpo do outro, do devir do outro, do sentir do outro. Talvez por darmos este “tratamento serial e universalizante” ao desejo que, ao pensarmos nele, logo o associamos a algo carnal, de conotação erótico-sexual. Na obra Memoria de mis putas tristes, o personagem principal não mantém relações com a jovem e, por isso, pode-se dizer que ele não se apropria dela. Entretanto, há trechos, na obra do escritor colombiano, que ilustram este tipo de apropriação do outro, como por exemplo, quando fala de sua empregada Damiana (2004:17): [...] la vi por casualidad inclinada en el lavadero con una pollera tan corta que dejaba al descubierto sus corvas suculentas. Presa de una fiebre irresistible se la levanté por detrás, le bajé las mutandas hasta las rodillas y la embestí en reversa. Neste episódio fica claro esta apropriação do corpo do outro, um ato quase animal. Esta apropriação não acontece em relação à jovem: o 63 personagem a deseja, mas o fato de chegar ao quarto do prostíbulo e encontrá-la dormindo mexe com algo em seu interior e a cada encontro ele se encanta mais por ela. Neste momento, o desejo carnal dá espaço a um sentimento mais nobre e sublime, o amor. Após falar do que vem a ser o desejo, e como este nem sempre está relacionado ao corpo com uma conotação sexual, cabe aqui analisar o que vem a ser esse corpo que remete sempre a algo vergonhoso, o qual deve ser tratado com pudor. Guattari (2007:336) tem uma ideia muito significativa sobre o corpo: “Penso que nos atribuem um corpo, que produzem um corpo para nós, um corpo capaz de se desenvolver num espaço social, num espaço produtivo, pelo qual somos responsáveis.”. Um pouco mais adiante, continua: [...] em nossas sociedades, as grandes fases de iniciação da infância aos fluxos capitalísticos consistem, exatamente, em interiorizar a seguinte noção de corpo: “você tem um corpo nu, um corpo vergonhoso, você tem um corpo que tem de se inscrever num certo tipo de funcionamento de economia doméstica, de economia social". O corpo, o rosto, a maneira de se comportar em cada detalhe dos movimentos de inserção social é sempre algo que tem a ver com o modo de inserção na subjetividade dominante. O que Guattari quer dizer é que a sociedade capitalista, na qual estamos inseridos, nos atribui um corpo e que somos obrigados a nos inserir em tal padrão se quisermos ser aceitos por tal sociedade. É necessário seguir o modelo. Esta ideia de que existe um corpo pré-estipulado é facilmente perceptível na obra de García Márquez, logo no início, quando o narrador descreve a si mesmo (2004:10): “... soy feo, tímido y anacrónico. Pero a fuerza de no querer serlo he venido a simular todo lo contrario.” A seguir, a joven (2004:27): “… era bella, limpia y bien criada”. A partir destes dois fragmentos podem-se constatar as concepções filosóficas de Guattari, 64 que nos atribuem um corpo, porque só se podem fazer comparações se temos um modelo padrão, ou seja, García Márquez só pôde dizer que seu personagem era feio e que a menina era bela porque tinha um modelo em mente, modelo este criado pela sociedade da qual fazemos parte. O corpo nu também aparece na obra de García Márquez (2004:30), porém este corpo só se mostra na casa de Rosa Cabarcas, lugar apropriado para os delírios e fantasias carnais: “Tratando de no despertarla me senté desnudo en la cama con la vista ya acostumbrada a los engaños de la luz roja, y la revisé palmo a plamo.” Mais adiante (2004:89): Había crecido, pero no se le notaba en la estatura sino en una madurez intensa que la hacía parecer con dos o tres años más, y más desnuda que nunca. […] sus senos habían crecido hasta el punto de que no me cabían en la mano, sus caderas habían acabado de formarse y sus huesos se habían vuelto más firmes y armónicos. Este corpo que García Márquez descreve é justamente o corpo condenado pela sociedade capitalista, o corpo do qual devemos nos envergonhar, pois não seguem os padrões impostos. Até aqui se falou em desejo e corpo, mas em momento algum em sexo, García Márquez (2004:69-70), em sua obra, afirma: “El sexo es el consuelo que uno tiene cuando no le alcanza el amor.”, ou seja, quando alguém não encontra um amor verdadeiro se satisfaz com o sexo. Já Guattari (2007:338) diferencia sexo e desejo: Se Gilles Deleuze e eu tomamos o partido de praticamente não falar em sexualidade, e sim em desejo, é que consideramos que os problemas da vida, da criação, nunca são redutíveis a funções fisiológicas, a funções de reprodução, a alguma dimensão particular do corpo. Eles sempre envolvem tanto elementos que estão além do indivíduo no campo social, no campo político, quanto elementos que estão aquém do indivíduo. Esses elementos não são tão captáveis quanto pensaram os psicanalistas com sua noção de complexos estereotipados, estruturas gerais, universais: nessa vertente, aquém do indivíduo e do corpo, existem singularidades complexas que não podem ser rotuladas. 65 Este trecho reforça o que já foi dito anteriormente, desejo não só é algo carnal, mas também é muito mais que isso, qualquer tentativa de se alcançar um objetivo requer um desejo. Sobre sexualidade Guattari (2007:338) afirma: “A sexualidade, antes, era reservada ao domínio privado, às iniciativas individuais, aos clãs e às famílias. Agora, a máquina de desejar é uma máquina de trabalhar.”. Apesar de a profissão de prostituta ser uma das mais antigas de qualquer sociedade, o sexo era algo reservado como comenta Guattari, porém isso vem mudando gradativamente, a apelação sexual nunca foi tão utilizada como vem sendo agora, não só em relação às prostitutas nas ruas, mas principalmente em programas televisivos, filmes, entre outros, o sexo foi transformado em produto altamente lucrativo. As várias facetas do comércio do sexo também podem ser observadas em Memoria de mis putas tristes sem, contudo, excluir os valores literários da obra, a começar pelo próprio nome que se refere diretamente às muitas prostitutas que provavelmente passaram pela vida do narrador, personagem principal, e muitos trechos da obra (2004:16): “Nunca me he acostado con ninguna mujer sin pagarle, y a las pocas que no eran del oficio las convencí por la razón o por la fuerza de que recibieran la plata aunque fuera para botarla en la basura.” A seguir, comenta que, a princípio, dormia com essas mulheres por gosto apenas, mas que acabou ajudando o seu ofício (2004:19): Dormía en el Barrio Chino dos o tres veces por semana, y con tan variadas compañías, que dos veces fui coronado como el cliente del año. […] Lo hacía por el gusto, pero terminó por ser parte de mi oficio gracias a la ligereza de lengua de los grandes cacaos de la política, que les daban cuenta de sus secretos de Estado a 66 sus amantes de una noche, sin pensar que eran oídos por la opinión pública a través de los tabiques de cartón. Neste último trecho percebe-se que o comércio do sexo era útil também ao personagem principal não apenas por satisfação própria, mas como fonte de informação para seu trabalho já que era colunista em um jornal. 3. Entre a subjetividade e a desterritorialização 3.1 Subjetividade e Singularidade Como foi visto há pouco, a sociedade capitalista nos impõe conceitos e regras a serem seguidos, modelos padronizados. O desejo é algo que, segundo tais modelos, deve ser disciplinado, canalizado; o corpo é mais vergonhoso ainda, devemos modelá-lo de modo que possamos nos inserir no funcionamento da economia doméstica e social. Isso não é diferente quando se pensa em estilo de vida, a forma como vemos e pensamos o mundo. Existe em nossa sociedade o que Guattari chama de “produção de subjetividade capitalística”. Mas o que vem a ser tal produção? Como ela se dá? Segundo Guattari (2007:22): A cultura de massa produz, exatamente, indivíduos: indivíduos normalizados, articulados uns aos outros segundo sistemas hierárquicos, sistemas de valores, sistemas de submissão – não sistemas de submissão visíveis e explícitos, [...] mas sistemas de submissão muito mais dissimulados. [...] o que há é simplesmente uma produção de subjetividade. Não somente uma produção da subjetividade individuada – subjetividade dos indivíduos – mas uma produção de subjetividade social que se pode encontrar em todos os níveis da produção e do consumo. E mais ainda: uma produção da subjetividade inconsciente. 67 O que se pode apreender desta acepção de Guattari é que os modelos padrões já fazem parte do cotidiano social e por isso a massa os segue sem se dar conta do que está fazendo, aceita qualquer situação sem se questionar. De um modo geral, as pessoas fazem coisas não porque querem, gostam, ou acham aquilo certo, mas, simplesmente, porque todas as outras pessoas também o fazem. Seria possível fazer algo diferente, fugir desses padrões que nos são impostos? Todas as pessoas vivenciam da mesma forma essa produção de subjetividade? Para Guattari (2007:22-23), existem duas maneiras de vivenciar essa subjetividade: de certo modo, há uma relação passiva de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe; de outro modo uma relação de criação, na qual o indivíduo se reapropria da subjetividade e produz um processo que o filósofo denomina de “singularização”. Tal processo seria oposto à produção de subjetividade: Eu oporia a essa máquina de produção de subjetividade a idéia de que é possível desenvolver modos de subjetivação singulares, aquilo que poderíamos chamar de “processos de singularização”: uma maneira de recusar todos esses modos de encodificação preestabelecidos [...]. Uma singularização existencial que coincida com um desejo, com um gosto de viver, com uma vontade de construir o mundo no qual nos encontramos, com a instauração de dispositivos para mudar os tipos de sociedade, os tipos de valores que não são os nossos. Com a singularização proposta, uma nova indagação pode surgir: quem são os responsáveis por essa produção de subjetividade? Certamente existe o envolvimento de muitas pessoas, ao invés de uma só que impõe uma forma de pensar e agir; no entanto, pessoas que estão diretamente ligadas à formação de opinião do indivíduo atuam de forma mais incisiva nessa produção de subjetividade. No entender de Guattari (2007:37): ...aqueles que se convencionou chamar de “trabalhadores sociais” – jornalistas, psicólogos de todo tipo, assistentes sociais, educadores, animadores, gente que 68 desenvolve qualquer tipo de trabalho pedagógico ou cultural em comunidades de periferia, em conjuntos habitacionais, etc. – atua de alguma maneira na produção de subjetividade. [...] Eles se encontram numa encruzilhada política e micropolítica fundamental. Ou vão fazer o jogo dessa reprodução de modelos que não nos permitem criar saídas para os processos de singularização ou, ao contrário, vão estar trabalhando para o funcionamento desses processos na medida de suas possibilidades e dos agenciamentos que consigam pôr para funcionar. Ao pensar nessas pessoas que podem atuar na produção de subjetividade, vale à pena destacar aqui um trecho da obra Memoria de mis putas tristes que fala sobre o ofício do personagem principal: “Durante cuarenta años fui el inflador de cables de El Diario de La Paz [...]. Nunca hice nada distinto de escribir.” (2004:12). O personagem é um típico produtor de subjetividade, trabalha em um jornal, um dos principais veículos utilizados na formação de opinião. Quantos milhões de leitores leram suas colunas e as consumiram como verdade indiscutível? Porém, a partir do momento em que começa a escrever suas memórias e as torna pública, ele mostra o quanto sua subjetividade é singular e faz com que seus leitores comecem a pensar e repensar suas opiniões, pois o padrão é um homem amadurecer, casar, ter seus filhos, criá-los, envelhecer e morrer, mas não o personagem de García Márquez (2004:16 e 42) que “hasta los cincuenta años eran quinientas catorce mujeres con las cuales había estado por lo menos una vez.” e que “las putas no le dejaron tiempo para ser casado.”. O personagem nos faz pensar constantemente nesses modelos que nos são impostos, como podemos não aceitá-los e como podemos desenvolver nossos próprios processos de singularização. De acordo com Guattari (2007:55), ...o que vai caracterizar um processo de singularização é que ele seja automodelador. Isto é, que ele capte os elementos da situação, que construa seus próprios tipos de referências práticas e teóricas, sem ficar nessa posição constante 69 de dependência em relação ao poder global, em nível econômico, em nível do saber, em nível técnico, em nível das segregações, dos tipos de prestígio que são difundidos. A partir do momento em que os grupos adquirem essa liberdade de viver seus processos, eles passam a ter uma capacidade de ler sua própria situação e aquilo que se passa em torno deles. Essa capacidade é que vai lhes dar um mínimo de possibilidade de criação e permitir preservar exatamente esse caráter de autonomia tão importante. No entanto é importante não confundir subjetividade singular ou singularidade com identidade. Singularidade é um conceito existencial, já a identidade é um conceito de referenciação. Processos de singularização, no entender de Guattari (2007:80-81), ...não tem nada a ver com identidade. Tem a ver, sim, com a maneira como em princípio todos os elementos que constituem o ego funcionam e se articulam; ou seja, com a maneira como a gente sente, como a gente respira, como a gente tem ou não vontade de falar, de estar aqui ou ir embora. García Márquez é um estrategista em relação a frases de impacto. Em Memoria de mis putas tristes, ele (2004:61) ilustra a diferença entre identidade e singularidade pela voz do personagem principal da obra: “La edad no es la que uno tiene sino la que uno siente.” A identidade do personagem é a de um senhor de noventa anos, mas a singularidade está em todos os seus atos que fogem o padrão e, principalmente, por ser ele um senhor de noventa anos que descobre, nesta idade, o primeiro amor de sua vida por uma jovem de quatorze anos. Muito mais importante que nossa identidade é nossa singularidade. A identidade é facilmente percebida pelos outros, mas nossa singularidade é o que nos torna diferentes, únicos. 70 3.2 Territorialização e Desterritorialização Em prosseguimento ao trabalho e aos conceitos tratados por Guattari, discutiremos agora sobre “territorialização” e “desterritorialização”. Estar territorializado para Guattari é o mesmo que “estar à vontade” em algum lugar, estar em um ambiente que lhe cause conforto. Um fazendeiro, por exemplo, em sua fazenda se sente completamente territorializado, no entanto, se este mesmo fazendeiro é obrigado a ir a uma cidade grande, provavelmente, ele se sentirá desterritorializado por não ser aquele um lugar que o deixe confortável. Nada impede também que alguém que esteja desterritorializado venha a se territorializar, é uma questão de adaptação na maioria dos casos. Para este trabalho utilizar-se-ão os conceitos de “territorialização” e “desterritorialização” segundo Guattari nos apresenta, ou seja, conceitos ligados ao espaço físico e humano, para falar sobre o prostíbulo de Rosa Cabarcas e também far-se-á uso dos mesmos com uma pequena adaptação, ao invés de falar em espaço, falar-se-á em tempo. A questão temporal a ser levantada é a seguinte: o personagem principal de Memoria de mis putas tristes de Gabriel García Márquez se desterritorializa por ser um senhor que aos 90 anos descobre o primeiro amor de sua vida por uma jovem de 14 anos? Vale à pena destacar aqui um pequeno trecho da obra Micropolítica: cartografias do desejo (2007:342-343) que trata dos conceitos de territorialização, desterritorialização e desejo: 71 O amor anda impossível? Que a família implodiu, já sabemos. Isso não é de hoje. Dela restou uma determinada figura de homem, uma determinada figura de mulher. Figura de uma célula conjugal. Mas esta vem se “desterritorializando” a passos de gigante. O capital inflacionou nosso jeito de amar: estamos inteiramente desfocados. Muitos são os caminhos que se esboçam a partir daí: do apego obsessivo às formas que o capital esvaziou (territórios artificialmente restaurados) à criação de outros territórios de desejo, topamos com inúmeros perigos, por vezes fatais. Em um dos extremos, é ao medo da desterritorialização que sucumbimos: nos enclausuramos na simbiose, nos intoxicamos de familialismo, nos anestesiamos a toda sensação do mundo, endurecemos. No outro extremo – quando já conseguimos não resistir à desterritorialização e, mergulhados em seu movimento, tornamo-nos pura intensidade, pura emoção de mundo –, um outro perigo nos espreita. Fatal agora pode ser o fascínio que a desterritorialização exerce sobre nós: ao invés de vivê-la como uma dimensão imprescindível da criação de territórios, nós a tomamos como uma finalidade em si mesma. E, inteiramente desprovidos de territórios, nos fragilizamos até desmanchar irremediavelmente. Entre esses dois extremos, ou essas diferentes maneiras de morrer, ensaiam-se desajeitadamente outros jeitos de viver. E todos esses vetores da experimentação coexistem, muitas vezes na vida de uma mesma pessoa. A partir deste fragmento será possível compreender como um prostíbulo pode, ao mesmo tempo, ser um lugar de desterritorializados e territorializados. Desde tempos remotos homens vão a prostíbulos para satisfazerem seus desejos carnais, desejos estes que não podiam satisfazer em casa já que a relação conjugal estava ligada à procriação. Hoje a situação é bem diferente, a relação conjugal já não se resume a ter filhos, no entanto, a procura por prostíbulos continua grande, os motivos são os mais variados. Um motivo aparente é a vulnerabilidade conjugal, as pessoas estão cada vez mais independentes e por isso os relacionamentos estão cada vez menos sólidos, como alerta o trecho acima: “o capital inflacionou nosso jeito de amar: estamos inteiramente desfocados”(Guattari, 2007: 342). O prostíbulo de Rosa Cabarcas, assim como qualquer outro prostíbulo, aparece como o lugar da desterritorialização, ou seja, é um lugar condenado pela sociedade, posto à margem, entretanto, as pessoas que frequentam essas casas vão ali porque se sentem confortáveis por algum motivo e esse 72 conforto faz com que elas se sintam territorializadas. A questão dos prostíbulos é um jogo paradoxal porque a sociedade, ao mesmo tempo em que cria uma situação de desterritorialização por condenar aquele ambiente, também cria um ambiente em que as pessoas descriminadas possam se sentir territorializadas. Para o personagem principal de Memorias de mis putas tristes, a casa de Rosa Cabarcas e outros prostíbulos que frequentou eram ambientes em que ele se sentia totalmente territorializado, e isso é facilmente perceptível em várias passagens da obra como, por exemplo, já citada anteriormente, (2004:19): “Dormía en el Barrio Chino dos o tres veces por semana, y con tan variadas compañías, que dos veces fui coronado como el cliente del año.”. Contudo, o personagem passa por outro tipo de desterritorialização. Tudo começa com um delírio, um desejo de passar seu aniversário de noventa anos com uma jovem virgem, porém os encantos desta jovem o fascinam e isso lhe causa temor, por isso fala da jovem a Rosa Cabarcas com desdém: “su estado es tan deplorable que no se puede contar con ella ni dormida ni despierta: es carne de hospital.” (2004:47). Aos poucos o personagem principal deixa transparecer, cada vez mais, seu sentimento pela jovem: começa a fantasiá-la em sua casa, apesar de encontrá-la sempre dormindo no prostíbulo; leva enfeites para deixar o quarto mais agradável, até que ele começa, efetivamente, a declarar ao leitor seus sentimentos como nestas duas passagens: “Hoy sé que no fue una alucinación, sino un milagro más del primer amor de mi vida a los noventa años.” (2004: 62) 73 “Era tal mi desvarío, que en una manifestación estudantil con piedras y botellas, tuve que sacar fuerzas de flaqueza para no ponerme al frente un letrero que consagrara mi verdad: Estoy loco de amor.” (2004: 66-67) O personagem já não esconde mais seus sentimentos e isso faz com que ele se reterritorialize, já não se importa em ocultar o que sente. Quando Rosa Cabarcas se vê obrigada a fechar a casa por algum tempo, por causa de um escândalo, e o personagem fica sem ver sua jovem amada, adoece de amor, não tem vontade de sair de casa, de se arrumar, se pentear ou qualquer outra coisa: Pasé hasta una semana sin quitarme el mameluco del mecánico ni de día ni de noche, sin bañarme, sin afeitarme, sin cepillarme los dientes, porque el amor me enseñó demasiado tarde que uno se arregla para alguien, se viste y se perfuma para alguien, y yo nunca había tenido para quién. (2004: 81) La secretaria que me había besado la tarde del cumpleaños me preguntó se estaba enfermo. […] Enfermo de amor. (2004: 84-85) O auge da reterritorialização do personagem principal se dá quando sua velha amiga, Rosa Cabarcas, comenta com ele: “Esa pobre criatura está lela de amor por ti.” (2004:109). Assim termina a obra: “Salí a la calle radiante y por primera vez me reconocí a mí mismo en el horizonte remoto de mi primer siglo. […] Era por fin la vida real, con mi corazón a salvo, y condenado a morir de buen amor en la agonía feliz de cualquier día después de mis cien años.” 74 V. LEITURA CRÍTICA DE MEMORIA DE MIS PUTAS TRISTES 1. Memoria de mis putas tristes: autobiografia ou romance autobiográfico? Memoria de mis putas tristes, começa com a confissão de um desejo: o narrador expressa que, em seu nonagésimo aniversário, gostaria de se auto-presentear com uma noite de amor louco na companhia de uma jovem virgem. O título e o início da obra fazem com que o leitor comece a lê-la imaginando-a como uma história real, afinal o título nos indica que a obra é escrita a partir de memórias e a pessoa que a narra, o faz em primeira pessoa, o que sugere alguém narrando sua própria história. Seria possível então classificá-la como uma obra autobiográfica? Como já foi visto anteriormente, não é tão simples assim. Segundo Lejeune, para uma obra ser considerada autobiográfica, ela deve preencher certos parâmetros essenciais. Primeiro a obra deve ser uma narrativa em prosa, segundo, o assunto deve ser a vida, a história de alguém contada numa retrospectiva, terceiro, e talvez o mais importante, deve haver identidade entre autor, narrador e personagem. O primeiro parâmetro é preenchido sem problema algum por Memoria de mis putas tristes, já que esta é uma narrativa em prosa. O segundo também, pois, apesar de a obra não ser totalmente linear, ela tem como assunto a história de alguém e é contada de forma retrospectiva. Com relação ao terceiro parâmetro, nos deparamos com um problema, o nome registrado na capa do livro, Gabriel García Márquez, 75 renomado escritor colombiano. Em momento algum seu nome aparece no interior do livro, na verdade, nem o seu, nem qualquer outro que possa identificar o personagem principal. Ele simplesmente narra a história, porém não se apresenta de fato ao leitor. As memórias terminam e não se sabe o nome de quem as narra, quem realmente é esta pessoa. O principal parâmetro não é preenchido, não se pode afirmar que exista identidade entre autor, narrador e personagem. Narrador e personagem sim, nós sabemos que é a mesma pessoa, já que a história é narrada em primeira pessoa, existe um “eu” explícito, porém não podemos afirmar que o autor também o seja, pois não há como verificar. Apesar de não se poder verificar a identidade entre autor, narrador e personagem, pode-se constatar muitas semelhanças entre a vida “fictícia” do narrador-personagem e a vida real do autor, isso é possível, principalmente, tomando como base a obra autobiográfica de García Márquez, Vivir para contarla (2007). A primeira semelhança entre autor e narrador é o fato de os dois serem colombianos. Outras são a de os dois serem escritores e de terem começado a carreira jornalística de forma semelhante, escrevendo contos a um jornal. García Márquez informa em Vivir para contarla (2007:268) que seu primeiro conto foi publicado no Suplemento Literário de El Espectador de Bogotá, que era o jornal mais importante e severo da época, o que lhe causou grande surpresa. Já os primeiros contos de o narrador de Memoria de mis putas tristes precisaram de uma “forcinha” de sua mãe que pagou pelas publicações, mas que ele próprio só descobriu anos depois, quando sua coluna semanal já voava com asas próprias e não 76 tinha mais como se envergonhar (2004:18). Além de semelhanças, também existem as divergências entre Gabriel García Márquez e o narrador da obra: a primeira delas é a idade, García Márquez nasceu em 6 de março de 1927, então, em 2004, ano em que escreveu a obra, ele contava com 77 anos e seu personagem, como aparece na primeira linha da obra, completava 90. Outra diferença é com relação ao matrimônio, García Márquez se casa com Mercedes Barcha e tem dois filhos, Rodrigo e Gonzalo, e seu personagem, apesar de sua mãe ter-lhe suplicado em seu leito de morte para que se casasse (2004:37) isso não ocorreu com a desculpa de que a vida libertina não havia lhe deixado tempo para tal (2004:42). A partir dessas semelhanças e divergências, pode-se descartar a ideia de classificar a obra como autobiográfica, no entanto, obras do tipo de Memoria de mis putas tristes, que não se pode verificar a identidade entre autor, narrador e personagem, mas que existe certa semelhança entre a história narrada e a vida do autor, são enquadradas, segundo Lejeune, como “romances autobiográficos”. O “romance autobiográfico”, como já vimos anteriormente, se insere na categoria do possível, na qual pode haver dúvidas sobre sua verificabilidade26, mas não sobre sua verossimilhança27, diferente da autoficção, por exemplo, que mescla verossimilhança com inverossimilhança28, ou seja, além de suscitar dúvidas sobre sua verificabilidade, também as suscita sobre sua verossimilhança. 26 Aquilo que pode ser empiricamente verificável. Qualidade do que é verossímil, que parece verdadeiro, plausível. 28 Caráter de inverossimilhante, condição do que não parece verdadeiro ou provável. 27 77 No caso de Memoria de mis putas tristes, a história narrada não repugna a verdade provável, ou seja, ela pode ser perfeitamente admitida como verdadeira, o que descartaria a possibilidade de classificá-la como autoficção, pois, apesar de incitar dúvidas sobre sua verificabilidade, não necessariamente incita dúvidas sobre sua verossimilhança. Outro fator que deixa lacunas para classificar Memoria de mis putas tristes como “romance autobiográfico” são os pactos que, segundo Lejeune, devem ser cumpridos. Esta obra, segundo as categorizações de Lejeune, se enquadra em uma rede complexa, pois há total indeterminação. Além de o nome do personagem principal não ser explicitado, o pacto também o é. Não existe qualquer indicação sobre a natureza ficcional no livro e também não há uma afirmação autobiográfica. Sendo assim, segundo afirma Lejeune, cada leitor pode “classificá-la” de acordo com seu humor. Desta forma, é totalmente possível e coerente pensar em Memoria de mis putas tristes, de Gabriel García Márquez, como um “romance autobiográfico”. 2. Memoria de mis putas tristes e o pós-modernismo Quando se pensa em romances pós-modernos, os livros de Ítalo Calvino e García Márquez são geralmente citados como exemplos. Porém, para esta pesquisa, o que interessa é pensar a pós-modernidade na obra Memoria de mis putas tristes, de García Márquez, e se o narrador desta obra se comporta como um pós-moderno. 78 Para pensar a obra como sendo ou não pós-moderna, farei uso aqui de alguns traços que Ihab Hassan29 menciona como aplicáveis às artes pósmodernas, porém afirma que, apesar de ajudarem a aferir o clima do discurso, não definem o pós-modernismo. O primeiro traço que aqui será apresentado é o da descanonização, uma deslegitimação dos grandes códigos, uma subversão e desmistificação à ordem. Há várias passagens de Memoria de mis putas tristes que serviriam de exemplo a esta descanonização, afinal, a obra conta a história de um homem que aos 90 anos nunca se casou, não teve filhos e nunca dormiu com uma mulher que não tivesse pagado. No entanto, a título de exemplo, destaco aqui o trecho no qual ele afirma que dormia em prostíbulos, antes por prazer, depois como parte de seu ofício. Dormía en el Barrio Chino dos o tres veces por semana, y con tan variadas compañías, que dos veces fui coronado como el cliente del año. […] Lo hacía por el gusto, pero terminó por ser parte de mi oficio gracias a la ligereza de lengua de los grandes cacaos de la política, que les daban cuenta de sus secretos de Estado a sus amantes de una noche, sin pensar que eran oídos por la opinión pública a través de los tabiques de cartón.30 Outro traço importante a ser destacado é o apagamento do eu. “O pós-modernismo esvazia o eu tradicional” (Hassan; 1988: 57), rejeita o herói romântico e os símbolos. Porém permite os jogos autorreflexivos, por isso o exercício das escritas de si é considerado um exercício pós-moderno. Para exemplificar esta rejeição ao herói no estilo romântico de ser, pode-se 29 Os traços que me refiro encontram-se no texto Fazer sentido: as atribulações do discurso pós-moderno. 1988, p. 57-59 30 Gabriel García Márquez. Memoria de mis putas tristes. 2004, p.19 79 destacar o trecho no qual o narrador descreve a si mesmo: “No tengo que decirlo, porque se me distingue a leguas: soy feo, tímido y anacrónico” 31. O próximo traço a ser apresentado foi denominado por Ihab Hassan de o inapresentável. Há uma rejeição a mimese e uma contestação aos modos de sua própria representação. Interessa-lhe o silêncio, o sublime, o objeto, o inefável, o indisível. Para este traço, também existem muitos exemplos ao longo da obra, porém o trecho que aqui será destacado é quando o narrador encontra pela primeira vez com a jovem. Ela adormecida e ele põe-se a contemplá-la. Entré en el cuarto con el corazón desquiciado, y vi a la niña dormida, desnuda y desamparada. […] Me senté a contemplarla […]. Era morena y tibia. La habían sometido a un régimen de higiene y embellecimiento que no descuidó ni el vello incipiente del pubis. La habían rizado el cabello y tenía en las uñas de las manos y los pies un esmalte natural, pero la piel del color de la melaza se veía áspera y maltratada. […] Pero ni los trapos ni los afeites alcanzaban a disimular su carácter: la nariz altiva, las cejas encontradas, los labios intensos.32 Passaremos agora para o traço denominado performance. “A indeterminação supõe participação; os espaços têm que ser preenchidos.” (Hassan; 1988: 58). Este, talvez, seja o traço mais pertinente para esta pesquisa, pois, durante todo o texto, o narrador faz uma performance. Para começar, o narrador, protagonista da história não tem seu nome revelado em momento algum da obra, ele passa a vida toda tentando ser alguém diferente daquele que a sociedade espera que seja, ou que se convencionou ser. Não casa, não tem filhos e resolve comemorar seu nonagésimo aniversário em uma noite libertina. Se por um lado, a jovem virgem, a quem chama Delgadina, não tenha seu verdadeiro nome revelado; por outro lado, 31 32 Id. Ibid, p. 10 Id. Ibid, p. 28-29 80 o protagonista criou uma “Delgadina” em suas fantasias e, talvez, tenha medo de saber seu nome real. O trecho de Memoria de mis putas tristes que servirá de exemplo aqui, será justamente o trecho em que o protagonista esclarece que não quer saber a verdadeira identidade de sua jovem amante: “Se sorprendió (Rosa Cabarcas) cuando mencioné el nombre de Delgadina. No se llama así, dijo, se llama. No me lo digas, la interrumpí, para mí es Delgadina” 33. Por fim, o último traço que aqui será estudado é o construcionismo. Constitui-se em construir a realidade através de ficções. Este talvez seja um complemento do traço visto anteriormente. O narrador imagina acontecimentos que são tão reais que ele mesmo desconfia se o que imaginou não aconteceu realmente. Cuando pasó el aguacero seguía con la sensación de que no estaba solo en la casa. Mi única explicación es que así como los hechos reales se olvidan, también algunos que nunca fueron pueden estar en los recuerdos como si hubieran sido. Pues si evocaba la emergencia del aguacero no me veía a mí mismo solo en la casa sino siempre acompañado por Delgadina. La había sentido tan cerca en la noche que percibía el rumor de su aliento en el dormitorio, y los latidos de su mejilla en mi almohada. […] Recordaba cómo preparó al día siguiente un desayuno que nunca fue, y puso la mesa mientras yo secaba los pisos y ponía orden en el naufragio de la casa. Nunca olvidé su mirada sombría mientras desayunábamos: ¿Por qué me conociste tan viejo? Le contesté la verdad: La edad no es la que uno tiene sino la que uno siente.34 Depois desta análise crítica de Memoria de mis putas tristes, vale ressaltar que não foram apresentados aqui todos os traços descritos por Hassan, apenas os mais pertinentes para a discussão. 33 34 Id. Ibid, p. 69 Id. Ibid, p. 61 81 3. García Márquez, um narrador pós-moderno Para tentar entender o que é um narrador pós-moderno e se o narrador de Memoria de mis putas tristes pode ser considerado como tal, faremos uso aqui do texto O narrador pós-moderno (1986), de Silviano Santiago, como aporte principal para esta parte da pesquisa. O texto começa com o seguinte questionamento: quem é este narrador pós-moderno? É aquele que narra a sua própria experiência ou aquele que narra o que vê? No primeiro caso o narrador transmite sua própria vivência, no segundo, transmite a vivência de outra pessoa. No primeiro caso a narrativa expressa uma ação, que por ser a própria experiência de quem a narra, é considerada como autêntica, já o outro caso, por ser a narrativa de uma experiência alheia a quem narra, sua autenticidade se torna discutível. A partir dessas primeiras considerações, Silviano Santiago (1986: 4) extrai uma primeira hipótese de trabalho: “o narrador pós-moderno é aquele que quer extrair a si da ação narrada, em atitude semelhante à de um repórter ou de um espectador”. Se pensarmos no narrador de Memoria de mis putas tristes, a partir desta primeira hipótese acerca do narrador pós-moderno, nos depararíamos com um problema: o narrador desta obra narra suas próprias experiências: de como se tornou jornalista, de suas muitas noites em prostíbulos e como resolveu comemorar seu aniversário de 90 anos. 82 No entanto, Silviano Santiago apresenta uma segunda hipótese de trabalho: ...o narrador pós-moderno é o que transmite uma “sabedoria” que é decorrência da observação de uma vivência alheia a ele, visto que a ação que narra não foi tecida na substância viva da sua existência. Nesse sentido, ele é o puro ficcionista, pois tem de dar “autenticidade” a uma ação que, por não ter o respaldo da vivência, estaria desprovida de autenticidade. Esta advém da verossimilhança que é produto da lógica interna do relato. O narrador pós-moderno sabe que o “real” e o “autêntico” são construções de linguagem. A partir desta segunda hipótese, ainda nos depararíamos com o problema de o narrador da obra contar sua própria história, porém, como vimos anteriormente, quando falamos dos traços que Ihab Hassan diz serem aplicáveis às artes pós-modernas, mais precisamente sobre construcionismo, podemos perceber que o narrador de Memoria de mis putas tristes é um ficcionista e tem uma capacidade de dar autenticidade a algo que sabemos ser ilusório, mas ele nos enlaça em seus delírios. Mesmo sabendo que são delírios, confiamos piamente no que ele expõe, principalmente quando afirma: “Hoy sé que no fue una alucinación, sino un milagro más del primer amor de mi vida a los noventa años.” (2004: 62). Para Silviano Santiago (1986: 4), “o narrador se subtrai da ação narrada e, ao fazê-lo, cria um espaço para a ficção dramatizar a experiência de alguém que é observado e muitas vezes desprovido de palavra.” A ficção existe para falar da incomunicabilidade de experiências: a experiência do narrador e a do personagem. A incomunicabilidade, no entanto, se recobre pelo tecido de uma relação, relação esta que se define pelo olhar. Uma ponte, feita de palavras, envolve a experiência muda do olhar e torna possível a narrativa.35 Ao pensar desta forma, Silviano Santiago faz uma constatação: sendo a ação pós-moderna jovem e inexperiente, ela é privada da palavra, por isso 35 Silviano Santiago. O narrador pós-moderno. 1986, p. 8. 83 não pode ser dada pelo narrador, pois se subentende que o narrador seja alguém experiente, por isso, detentor da palavra. Se o narrador tenta ser um conselheiro, surge uma incomunicabilidade entre o mais e o menos experiente. A palavra passa a não ter sentido, o que lhe traz sentido é o olhar do mais experiente sobre aquele com menos experiência. O narrador de Memorias de mis putas tristes apenas observa a jovem adormecida, sem nunca despertá-la e com isso inicia um diálogo. Ele tem consciência de que não é possível um diálogo entre os dois, por isso se subtrai, para manter aceso o amor que sente pela jovem, amor que surgiu a partir do olhar. O narrador pós-moderno não quer narrar o seu ontem, e sim enxergar o seu ontem em um jovem hoje e é justamente isso que o narrador da obra aqui estudada faz, apesar de contar suas peripécias, ele enxerga em sua jovem amante a possibilidade de ele se sentir jovem novamente, e são vários os exemplos que podem ser dados, de como o narrador começa a passar por situações e se vê em meio a sentimentos e confusões pelos quais os jovens passam quando se deparam com o primeiro amor: Era tal mí desvarío, que en una manifestación estudiantil con piedras y botellas, tuve que sacar fuerzas de flaqueza para no ponerme al frente con un letrero que consagrara mi verdad: Estoy loco de amor. (p. 66-67) La falta de sosiego acabó con el rigor de mis días. […] ¿Pensaba en mí? […] Pasé hasta una semana sin quitarme el mameluca de mecánico ni de día ni de noche, sin bañarme, sin afeitarme, sin cepillarme los dientes, porque el amor me enseñó demasiado tarde que uno se arregla para alguien, se viste y se perfuma para alguien, y yo nunca había tenido para quién. (p. 81) No me reconocía a mí mismo en mi dolor de adolescente. No volví a salir de la casa para no descuidar el teléfono. (p. 82) 84 De acordo com Silviano Santiago (1986: 12), “Num conto pósmoderno, morte e amor se encontram no meio da ponte da vida. [...] pelo desejo se reinventa a vida na morte”. Pela voz do ensaísta brasileiro, podemos resumir o que ocorre com o narrador de Memoria de mis putas tristes, quando encontra sua jovem virgem e descobre nela o primeiro amor de sua vida. 85 CONCLUSÃO Após a análise crítica de Memoria de mis putas tristes, pudemos verificar que as histórias vividas e escutadas por Gabriel García Márquez têm uma influência significativa na realização de suas obras, o que fica claro após uma leitura de sua autobiografia Vivir para contarla (2007), que foi de suma importância para esta conclusão. Inicialmente, foi apresentado um breve panorama do contexto cultural e literário da América Hispânica desde princípios do século XX até a narrativa contemporânea, destacando-se a prosa regionalista e o chamado boom da literatura hispano-americana, no qual se insere García Márquez, como forma de situar o autor colombiano num espaço e tempo bem definidos. O segundo capítulo foi dedicado exclusivamente ao romancista, destacando sua importância e influência, tratando brevemente de suas obras mais significativas, enfatizando, sem dúvida, Cien años de soledad, seu romance ícone que o levou a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura em 1982. No capítulo seguinte, destacamos os pontos teóricos imprimindo maior relevo às “escritas de si”, principalmente para a autobiografia e a autoficção. Para a autobiografia empregamos, sobretudo, o Pacto Autobiográfico (2008) de Philippe Lejeune e para a autoficção, Escritas de si, escritas do outro. O retorno do autor e a virada etnográfica (2007) de Diana Klinger. Estas leituras foram de grande importância para entender a estratégia da escritura de García Márquez. 86 Os dois capítulos subsequentes já formam a segunda parte do presente trabalho e destacam-se pela análise crítica de Memoria de mis putas tristes (2004). No quarto capítulo, tivemos como base teórica a obra de Félix Guattari e Suely Rolnik, Micropolítica: cartografias do desejo (2007). Pudemos concluir que a relação entre desejo e corpo ainda é vista como algo que deve ser condenado, ou melhor, como Guattari afirma, disciplinado, as pessoas ainda veem tal relação com olhos de pudor. A obra de García Márquez vem nos ajudar a ver tal relação com outros olhos: desejo pode ser muito mais que uma atração sexual, como se pôde perceber no personagem principal, que nutre um desejo sentimental pela jovem virgem. O corpo não é algo que devemos nos envergonhar e sim contemplar como obra da natureza, assim como o corpo da menina é contemplado e admirado pelo personagem, como ele mesmo diz: sem os estorvos do pudor. A obra também nos ajuda a pensar em nosso modo de vida, em como devemos tentar ser diferentes, criar nossa singularidade e não, simplesmente aceitar esta subjetividade capitalística que criam para nós. Devemos ser seres pensantes, que saibam questionar, indagar e também responder. É importante criarmos uma subjetividade própria que nos faça seres únicos, que não sejamos mais um na massa e sim que sejamos o que move a massa. Para finalizar esse capítulo, nos demos conta de que não devemos temer a desterritorialização. Estar desterritorializado é quase um estado de 87 espírito, devemos sim é ser fortes o suficiente para, no temor da desterritorialização, sabermos nos reterritorializar. No quinto e último capítulo, com o auxílio do apoio teórico, concluímos que Memoria de mis putas tristes pode ser entendida, de acordo com os gêneros aqui estudados (autobiografia, romance autobiográfico e autoficção), como um “romance autobiográfico”; no entanto, o que importa aqui não é sua classificação, e sim as mil formas pelas quais ela pode ser lida. Cada leitor tem total liberdade de leitura e interpretação. Ainda no mesmo capítulo, passamos ao foco do narrador, tomando como teórico principal Silviano Santiago, e realizando a análise da obra de García Márquez contraposta ao texto O narrador pós-moderno (1986). Embora Silviano Santiago frise que o narrador pós-moderno é aquele que não fala de suas próprias experiências, mas sim daquelas que observa. Pudemos concluir que o narrador da obra aqui estudada, mesmo ao narrar suas experiências, deve ser considerado como um narrador pós-moderno, pois seu foco principal são os amores, conflitos e distúrbios que a jovem por quem se apaixona lhe causa. O narrador vê nesta jovem a possibilidade de se sentir jovem novamente. 88 BIBLIOGRAFIA Do autor: - GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Cien años de soledad. Madrid: Cátedra, 2005. - _____________________. Entrevistas: Revista Nacional de Cultura, Julio-Agosto-Septiembre, año XXIX, n°185. Caracas, Instituto Nacional de Cultura y Bellas Artes, 1968. - _____________________. Memoria de mis putas tristes. 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ANEXO I La soledad de América Latina [Discurso de aceptación del Premio Nobel 1982 -Texto completo] Gabriel García Márquez Antonio Pigafetta, un navegante florentino que acompañó a Magallanes en el primer viaje alrededor del mundo, escribió a su paso por nuestra América meridional una crónica rigurosa que sin embargo parece una aventura de la imaginación. Contó que había visto cerdos con el ombligo en el lomo, y unos pájaros sin patas cuyas hembras empollaban en las espaldas del macho, y otros como alcatraces sin lengua cuyos picos parecían una cuchara. Contó que había visto un engendro animal con cabeza y orejas de mula, cuerpo de camello, patas de ciervo y relincho de caballo. Contó que al primer nativo que encontraron en la Patagonia le pusieron enfrente un espejo, y que aquel gigante enardecido perdió el uso de la razón por el pavor de su propia imagen. Este libro breve y fascinante, en el cual ya se vislumbran los gérmenes de nuestras novelas de hoy, no es ni mucho menos el testimonio más asombroso de nuestra realidad de aquellos tiempos. Los Cronistas de Indias nos legaron otros incontables. Eldorado, nuestro país ilusorio tan codiciado, figuró en mapas numerosos durante largos años, cambiando de lugar y de forma según la fantasía de los cartógrafos. En busca de la fuente de la Eterna Juventud, el mítico Alvar Núñez Cabeza de Vaca exploró durante ocho años el norte de México, en una expedición venática cuyos miembros se comieron unos a otros y sólo llegaron cinco de los 600 que la emprendieron. Uno de los tantos misterios que nunca fueron descifrados, es II el de las once mil mulas cargadas con cien libras de oro cada una, que un día salieron del Cuzco para pagar el rescate de Atahualpa y nunca llegaron a su destino. Más tarde, durante la colonia, se vendían en Cartagena de Indias unas gallinas criadas en tierras de aluvión, en cuyas mollejas se encontraban piedrecitas de oro. Este delirio áureo de nuestros fundadores nos persiguió hasta hace poco tiempo. Apenas en el siglo pasado la misión alemana de estudiar la construcción de un ferrocarril interoceánico en el istmo de Panamá, concluyó que el proyecto era viable con la condición de que los rieles no se hicieran de hierro, que era un metal escaso en la región, sino que se hicieran de oro. La independencia del dominio español no nos puso a salvo de la demencia. El general Antonio López de Santana, que fue tres veces dictador de México, hizo enterrar con funerales magníficos la pierna derecha que había perdido en la llamada Guerra de los Pasteles. El general García Moreno gobernó al Ecuador durante 16 años como un monarca absoluto, y su cadáver fue velado con su uniforme de gala y su coraza de condecoraciones sentado en la silla presidencial. El general Maximiliano Hernández Martínez, el déspota teósofo de El Salvador que hizo exterminar en una matanza bárbara a 30 mil campesinos, había inventado un péndulo para averiguar si los alimentos estaban envenenados, e hizo cubrir con papel rojo el alumbrado público para combatir una epidemia de escarlatina. El monumento al general Francisco Morazán, erigido en la plaza mayor de Tegucigalpa, es en realidad una estatua del mariscal Ney comprada en París en un depósito de esculturas usadas. III Hace once años, uno de los poetas insignes de nuestro tiempo, el chileno Pablo Neruda, iluminó este ámbito con su palabra. En las buenas conciencias de Europa, y a veces también en las malas, han irrumpido desde entonces con más ímpetus que nunca las noticias fantasmales de la América Latina, esa patria inmensa de hombres alucinados y mujeres históricas, cuya terquedad sin fin se confunde con la leyenda. No hemos tenido un instante de sosiego. Un presidente prometeico atrincherado en su palacio en llamas murió peleando solo contra todo un ejército, y dos desastres aéreos sospechosos y nunca esclarecidos segaron la vida de otro de corazón generoso, y la de un militar demócrata que había restaurado la dignidad de su pueblo. En este lapso ha habido 5 guerras y 17 golpes de estado, y surgió un dictador luciferino que en el nombre de Dios lleva a cabo el primer etnocidio de América Latina en nuestro tiempo. Mientras tanto 20 millones de niños latinoamericanos morían antes de cumplir dos años, que son más de cuantos han nacido en Europa occidental desde 1970. Los desaparecidos por motivos de la represión son casi los 120 mil, que es como si hoy no se supiera dónde están todos los habitantes de la ciudad de Upsala. Numerosas mujeres arrestadas encintas dieron a luz en cárceles argentinas, pero aún se ignora el paradero y la identidad de sus hijos, que fueron dados en adopción clandestina o internados en orfanatos por las autoridades militares. Por no querer que las cosas siguieran así han muerto cerca de 200 mil mujeres y hombres en todo el continente, y más de 100 mil perecieron en tres pequeños y voluntariosos países de la América Central, Nicaragua, El Salvador y Guatemala. Si esto fuera en los Estados Unidos, la IV cifra proporcional sería de un millón 600 mil muertes violentas en cuatro años. De Chile, país de tradiciones hospitalarias, ha huido un millón de personas: el 10 por ciento de su población. El Uruguay, una nación minúscula de dos y medio millones de habitantes que se consideraba como el país más civilizado del continente, ha perdido en el destierro a uno de cada cinco ciudadanos. La guerra civil en El Salvador ha causado desde 1979 casi un refugiado cada 20 minutos. El país que se pudiera hacer con todos los exiliados y emigrados forzosos de América latina, tendría una población más numerosa que Noruega. Me atrevo a pensar que es esta realidad descomunal, y no sólo su expresión literaria, la que este año ha merecido la atención de la Academia Sueca de la Letras. Una realidad que no es la del papel, sino que vive con nosotros y determina cada instante de nuestras incontables muertes cotidianas, y que sustenta un manantial de creación insaciable, pleno de desdicha y de belleza, del cual éste colombiano errante y nostálgico no es más que una cifra más señalada por la suerte. Poetas y mendigos, músicos y profetas, guerreros y malandrines, todas las criaturas de aquella realidad desaforada hemos tenido que pedirle muy poco a la imaginación, porque el desafío mayor para nosotros ha sido la insuficiencia de los recursos convencionales para hacer creíble nuestra vida. Este es, amigos, el nudo de nuestra soledad. Pues si estas dificultades nos entorpecen a nosotros, que somos de su esencia, no es difícil entender que los talentos racionales de este lado del V mundo, extasiados en la contemplación de sus propias culturas, se hayan quedado sin un método válido para interpretarnos. Es comprensible que insistan en medirnos con la misma vara con que se miden a sí mismos, sin recordar que los estragos de la vida no son iguales para todos, y que la búsqueda de la identidad propia es tan ardua y sangrienta para nosotros como lo fue para ellos. La interpretación de nuestra realidad con esquemas ajenos sólo contribuye a hacernos cada vez más desconocidos, cada vez menos libres, cada vez más solitarios. Tal vez la Europa venerable sería más comprensiva si tratara de vernos en su propio pasado. Si recordara que Londres necesitó 300 años para construir su primera muralla y otros 300 para tener un obispo, que Roma se debatió en las tinieblas de incertidumbre durante 20 siglos antes de que un rey etrusco la implantara en la historia, y que aún en el siglo XVI los pacíficos suizos de hoy, que nos deleitan con sus quesos mansos y sus relojes impávidos, ensangrentaron a Europa con soldados de fortuna. Aún en el apogeo del Renacimiento, 12 mil lansquenetes a sueldo de los ejércitos imperiales saquearon y devastaron a Roma, y pasaron a cuchillo a ocho mil de sus habitantes. No pretendo encarnar las ilusiones de Tonio Kröger, cuyos sueños de unión entre un norte casto y un sur apasionado exaltaba Thomas Mann hace 53 años en este lugar. Pero creo que los europeos de espíritu clarificador, los que luchan también aquí por una patria grande más humana y más justa, podrían ayudarnos mejor si revisaran a fondo su manera de vernos. La solidaridad con nuestros sueños no nos haría sentir menos solos, mientras VI no se concrete con actos de respaldo legítimo a los pueblos que asuman la ilusión de tener una vida propia en el reparto del mundo. América Latina no quiere ni tiene por qué ser un alfil sin albedrío, ni tiene nada de quimérico que sus designios de independencia y originalidad se conviertan en una aspiración occidental. No obstante, los progresos de la navegación que han reducido tantas distancias entre nuestras Américas y Europa, parecen haber aumentado en cambio nuestra distancia cultural. ¿Por qué la originalidad que se nos admite sin reservas en la literatura se nos niega con toda clase de suspicacias en nuestras tentativas tan difíciles de cambio social? ¿Por qué pensar que la justicia social que los europeos de avanzada tratan de imponer en sus países no puede ser también un objetivo latinoamericano con métodos distintos en condiciones diferentes? No: la violencia y el dolor desmesurados de nuestra historia son el resultado de injusticias seculares y amarguras sin cuento, y no una confabulación urdida a 3 mil leguas de nuestra casa. Pero muchos dirigentes y pensadores europeos lo han creído, con el infantilismo de los abuelos que olvidaron las locuras fructíferas de su juventud, como si no fuera posible otro destino que vivir a merced de los dos grandes dueños del mundo. Este es, amigos, el tamaño de nuestra soledad. Sin embargo, frente a la opresión, el saqueo y el abandono, nuestra respuesta es la vida. Ni los diluvios ni las pestes, ni las hambrunas ni los cataclismos, ni siquiera las guerras eternas a través de los siglos y los siglos han conseguido reducir la ventaja tenaz de la vida sobre la muerte. Una ventaja que aumenta y se acelera: cada año hay 74 millones más de VII nacimientos que de defunciones, una cantidad de vivos nuevos como para aumentar siete veces cada año la población de Nueva York. La mayoría de ellos nacen en los países con menos recursos, y entre éstos, por supuesto, los de América Latina. En cambio, los países más prósperos han logrado acumular suficiente poder de destrucción como para aniquilar cien veces no sólo a todos los seres humanos que han existido hasta hoy, sino la totalidad de los seres vivos que han pasado por este planeta de infortunios. Un día como el de hoy, mi maestro William Faullkner dijo en este lugar: "Me niego a admitir el fin del hombre". No me sentiría digno de ocupar este sitio que fue suyo si no tuviera la conciencia plena de que por primera vez desde los orígenes de la humanidad, el desastre colosal que él se negaba a admitir hace 32 años es ahora nada más que una simple posibilidad científica. Ante esta realidad sobrecogedora que a través de todo el tiempo humano debió de parecer una utopía, los inventores de fábulas que todo lo creemos, nos sentimos con el derecho de creer que todavía no es demasiado tarde para emprender la creación de la utopía contraria. Una nueva y arrasadora utopía de la vida, donde nadie pueda decidir por otros hasta la forma de morir, donde de veras sea cierto el amor y sea posible la felicidad, y donde las estirpes condenadas a cien años de soledad tengan por fin y para siempre una segunda oportunidad sobre la tierra. Agradezco a la Academia de Letras de Suecia el que me haya distinguido con un premio que me coloca junto a muchos de quienes orientaron y enriquecieron mis años de lector y de cotidiano celebrante de ese delirio sin apelación que es el oficio de escribir. Sus nombres y sus VIII obras se me presentan hoy como sombras tutelares, pero también como el compromiso, a menudo agobiante, que se adquiere con este honor. Un duro honor que en ellos me pareció de simple justicia, pero que en mí entiendo como una más de esas lecciones con las que suele sorprendernos el destino, y que hacen más evidente nuestra condición de juguetes de un azar indescifrable, cuya única y desoladora recompensa, suelen ser, la mayoría de las veces, la incomprensión y el olvido. Es por ello apenas natural que me interrogara, allá en ese trasfondo secreto en donde solemos trasegar con las verdades más esenciales que conforman nuestra identidad, cuál ha sido el sustento constante de mi obra, qué pudo haber llamado la atención de una manera tan comprometedora a este tribunal de árbitros tan severos. Confieso sin falsas modestias que no me ha sido fácil encontrar la razón, pero quiero creer que ha sido la misma que yo hubiera deseado. Quiero creer, amigos, que este es, una vez más, un homenaje que se rinde a la poesía. A la poesía por cuya virtud el inventario abrumador de las naves que numeró en su Iliada el viejo Homero está visitado por un viento que las empuja a navegar con su presteza intemporal y alucinada. La poesía que sostiene, en el delgado andamiaje de los tercetos del Dante, toda la fábrica densa y colosal de la Edad Media. La poesía que con tan milagrosa totalidad rescata a nuestra América en las Alturas de Machu Pichu de Pablo Neruda el grande, el más grande, y donde destilan su tristeza milenaria nuestros mejores sueños sin salida. La poesía, en fin, esa energía secreta de la vida cotidiana, que cuece los garbanzos en la cocina, y contagia el amor y repite las imágenes en los espejos. IX En cada línea que escribo trato siempre, con mayor o menor fortuna, de invocar los espíritus esquivos de la poesía, y trato de dejar en cada palabra el testimonio de mi devoción por sus virtudes de adivinación, y por su permanente victoria contra los sordos poderes de la muerte. El premio que acabo de recibir lo entiendo, con toda humildad, como la consoladora revelación de que mi intento no ha sido en vano. Es por eso que invito a todos ustedes a brindar por lo que un gran poeta de nuestras Américas, Luis Cardoza y Aragón, ha definido como la única prueba concreta de la existencia del hombre: la poesía. Muchas gracias.