CASA DE BADIA ANÁLISE ARQUITETÔNICA HISTÓRICO CONSTRUTIVO 1. APRESENTAÇÃO O presente documento compõe-se de uma pesquisa bibliográfica e iconográfica com o objetivo de elucidar o histórico construtivo da Casa de Badia. Badia, cujo nome verdadeiro era Maria de Lourdes Silva, nasceu em 19151 no bairro de São José e faleceu em 1991. Ainda recém-nascida teria ido morar com as tias Eugênia, Sinhá e Iaiá: as Tias do Terço, famosas na cidade pelas práticas religiosas africanas. Práticas estas que Badia tratou de dar continuidade e pelas quais tornou-se famosa, assim como também pelo seu envolvimento com o carnaval da cidade. Em 1985, a prefeitura do Recife homenageou Badia, ainda em vida, como a “Primeira Dama do Carnaval do Pátio do Terço”, dando ao carnaval deste ano o tema “Carnaval Badia – 1985”. Na fachada de sua casa encontra-se uma placa registrando esta homenagem. Convém esclarecer que foram poucas as informações obtidas nas fontes pesquisadas, o que dificultou a elaboração deste trabalho. No entanto, com estas informações aliadas ao conhecimento específico da arquitetura e do urbanismo no Recife, foi possível compreender o histórico desta construção que abrigou, por muitas décadas, mulheres negras, notáveis na cidade, e sua cultura afrodescendente. O texto a seguir não pretende esgotar o tema, mas, sim, tentar ressaltar as características primitivas da edificação e respaldar o projeto de intervenção para criação do Centro Cultural Badia. 1 Não há registro oficial de seu nascimento. Esta data era declarada pela própria Badia. 1 2. CONTEXTO 2.1. LOCALIZAÇÃO A Casa de Badia compreende, atualmente, dois imóveis interligados pelo quintal: o primeiro na Rua Vidal de Negreiros, nº 143, e o outro na Rua do Forte, nº 46, no bairro de São José, Recife – PE. Como monumentos históricos de destaque em seu entorno imediato estão a Igreja de Nossa Senhora do Terço e o Forte das Cinco Pontas, que abriga o Museu da cidade do Recife. Muitos textos consideram a casa como imóvel integrante do Pátio do Terço, devido ao fato do Pátio se confundir com a Rua Vidal de Negreiros, ou o contrário. D E B N A C F Legenda A. Casa de Badia B. Rua Vidal de Negreiros C. Rua do Forte D. Igreja de Nossa Senhora do Terço E. Pátio do Terço F. Forte das Cinco Pontas Figura 1 - Localização (Fonte: Google Earth. Acesso em 15/03/2010) 2.2. ORIGEM DO SÍTIO Para compreender em que momento a “Casa de Badia” passou a existir, apesar dos documentos que comprovassem sua construção não terem sido encontrados, consideramos pertinente analisar a trajetória da ocupação urbana no bairro de São José através da cartografia antiga e dos mapas do Atlas Histórico Cartográfico do Recife, organizado por José Luiz da Mota Menezes, em que mapas do Recife de diversas épocas são sobrepostos ao mapa da cidade elaborado por Douglas Fox em 1906/1907. Os Bairros de São José e Santo Antônio, juntos, chamavam-se Ilha de Antônio Vaz e atualmente preservam uma das formações urbanas mais antigas da cidade, apesar das intervenções ao longo dos anos, o que é facilmente constatado na cartografia. Até as primeiras décadas do século XVII, a Ilha de Antônio Vaz era muito pouco ocupada e mantinha principalmente atividades rurais. Além do convento Franciscano, havia ali apenas alguns armazéns e residências modestas e esparsas, em geral de pescadores e comerciantes. Durante a invasão holandesa (1630 a 1654), o convento foi ocupado e em sua volta recebeu a construção do Forte Ernesto, centro do poder holandês em Pernambuco. 2 A B C D Legenda A. Atual Bairro de São José B. Forte das Cinco Pontas C. Atual Bairro de Santo Antônio D. Bairro do Recife Figura 2 - Recife, 1631 – “Planta da Ilha de Antônio Vaz, do Recife e do Continente no Porto de Pernambuco, ...” (Fonte: Atlas Histórico Cartográfico do Recife). Nos primeiros anos do domínio holandês, era perigoso viver na ilha devido às constantes emboscadas dos luso-brasileiros. Com a construção e consolidação dos Fortes Ernesto e das Cinco Pontas (ambos em 1630) e de paliçadas e redutos, a população pôde se estabelecer e crescer na ilha. A escolha de Antônio Vaz como sede se deu pela sua posição estratégica de cruzamento de fogo para se defender das emboscadas, pela sua constituição geológica, e também pela existência em grande quantidade de água potável, cuja única fonte conhecida no Recife era as Cacimbas de Ambrósio Machado2. A abundância de água salobra na cidade obrigava a população a quase sempre buscar água potável em Olinda. O forte das cinco Pontas garantia a defesa destas Cacimbas para os holandeses, além de também guarnecer a entrada do porto. Na figura 3, percebe-se que em 1631 o local onde hoje é a Casa de Badia (em vermelho), era um pequeno trecho de terra, possivelmente alagável, não apenas devido ao fosso do forte, mas também às cheias do rio. Neste período, a igreja de Nossa Senhora do Terço ainda não existia. A localização do forte das Cinco Pontas, bem como sua forma e proporção, tal como foi construído pelos holandeses, no mapa de 1631, não coincide com a fortificação atual reconstruída pelos portugueses. Esta disparidade foi ressaltada no Atlas Histórico Cartográfico do Recife3, que considerou a possibilidade de um estudo específico posterior para “comprovação do verdadeiro local”. 2 (ALBUQUERQUE e LUCENA, Arraial Novo do Bom Jesus - Consolidando um processo, iniciando um futuro 1997) Para compreensão da sobreposição dos mapas no Atlas Histórico Cartográfico do Recife: Cinza escuro representa terra firme, e laranja área construída. Em cinza claro, o mapa de Douglas Fox de 1906/1907, com a indicação das ruas, quadras e construções. 3 3 N A B C Legenda A. Casa de Badia (ainda não construída) B. Igreja de N.S. do Terço (ainda não construída) C. Forte das Cinco Pontas Figura 3 – Sobreposição do mapa de 1631 (A. Drewisch) com o mapa de 1906/1907 (Douglas Fox) - (Fonte: Atlas Histórico Cartográfico do Recife). Com a chegada de Maurício de Nassau, em 1637, o Recife recebeu sua primeira grande obra de urbanização que se concentrou no porto e na Ilha de Antônio Vaz (A cidade Maurícia), através de aterros, drenagens, construção de vias, canais, diques, jardins, palácios (Friburgo e Boa Vista), uma ponte (1642) ligando a ilha ao istmo, hoje chamada de Maurício de Nassau. No ano de 1648, como encontra-se registrado no mapa da figura 4, percebe-se o centro urbano formado, o Palácio de Friburgo, novas ruas traçadas, pequenas baterias espalhadas no rio Capibaribe, canais de drenagem e a existência de um fosso que interligava o Forte das Cinco Pontas ao Forte Ernesto. Nas proximidades do atual Pátio do Terço passavam as trincheiras e paliçadas que guarneciam o grande fosso de interligação entre os fortes. Nesta região também houve drenagem dos trechos alagados. N C B D A F E Legenda A. Forte das Cinco Pontas B. Forte Ernesto C. Palácio de Friburgo D. Fosso E. Canal de drenagem F. Centro urbano Figura 4 - Sobreposição do mapa de 1648 (C.B. Golijath) com o mapa de 1906/1907 (Douglas Fox) - (Fonte: Atlas Histórico Cartográfico do Recife). 4 N A B D C Legenda A. Casa de Badia (ainda não construída) B. Igreja de N.S. do Terço (ainda não construída) C. Forte das Cinco Pontas D. Fosso Figura 5 – Detalhe da figura anterior Diferentemente do que ocorreu com o Bairro do Recife, após a retomada dos portugueses, a Ilha de Antônio Vaz não foi tratada urbanisticamente de forma ordenada e contínua. As próprias guerras de reconquista arrasaram o local, mas nos séculos subseqüentes, a Ilha prosseguiu seu crescimento urbano e passou a se chamar Freguesia do Santíssimo Sacramento de Santo Antônio. A reocupação ocorreu desmontando todo o sistema fortificado holandês, fechando os antigos canais e encobrindo os jardins públicos e palacianos. Quase todas as edificações erguidas no domínio holandês foram demolidas, incluindo os Palácios de Friburgo e da Boa Vista. Um novo sistema defensivo foi projetado e uma grande ocupação urbana já tinha tomado o lugar, seguindo os padrões portugueses, com ruas estreitas e pátios diante das igrejas. As poucas casas que restaram do período holandês haviam sido remodeladas à maneira lusitana e as novas construções obedeciam também a este padrão. Como se pode notar nas pinturas de Frans Post, as casas holandesas, em geral, possuíam telhado em duas águas com a cumeeira perpendicular à fachada frontal e platibanda escalonada. Era comum encontrar na volumetria e nas fachadas a prática da simetria. Tais características são constatadas nas figuras 6 e 7. Figura 6 - Vista da Cidade Maurícia e do Recife em 1657. Frans Post. 5 Figura 7 - Detalhe da figura anterior. Após a expulsão dos holandeses, o atual Pátio do Terço ficou conhecido como "a estrada da cidade, para quem viesse do lado do continente"4. Nas adjacências dessa estrada, até as primeiras décadas do século XVIII, existiu um nicho com a imagem de Nossa Senhora na Rua dos Copiares, atual Cristóvão Colombo, onde os transeuntes e viajantes costumavam se ajoelhar e rezar um terço à Virgem. Este hábito deu importância ao lugar e nele foi construída a Igreja de Nossa Senhora do Terço. A existência desta igreja pode ser notada no mapa de 1739 (Figura 8), porém sabe-se que primitivamente não se apresentava com as feições que conhecemos. Era bem mais modesta, esteve arruinada devido à falta de recursos e à fragilidade de seus materiais construtivos; recebeu reformas, ampliação e remodelação ao longo do tempo.5 A partir desta data, o Forte das Cinco Pontas é representado no local e na proporção atuais. A quadra onde hoje se encontra a Casa de Badia ainda não havia sido edificada, mas a ocupação urbana continuava crescendo. N A B C Legenda A. Casa de Badia (ainda não construída) B. Igreja de N.S. do Terço (ainda não construída) C. Forte das Cinco Pontas Figura 8 – Sobreposição do mapa de 1739 (Velloso) com o mapa de 1906/1907 (Douglas Fox) - (Fonte: Atlas Histórico Cartográfico do Recife). 4 5 (VAINSENCHER, 2003) Idem. 6 Durante as décadas seguintes, ainda no século XVIII, a ocupação urbana na ilha expandiu-se em direção às margens, ampliando o território com obras de aterramento. As diretrizes anteriores de ocupação foram mantidas e a expansão se deu apenas com a criação de novas quadras, definidas pelo prolongamento do arruamento pré-existente, mas também com a criação de novas ruas como a Vidal de Negreiros e a do Forte. No mapa de 1776 (Figura 9), dezenas de edificações encontravam-se construídas nas novas quadras e surge o primeiro registro da existência dos dois imóveis que atualmente compõem a Casa de Badia. É a partir daqui que inicia a história da construção onde Badia morou por muitos anos. N A B D C E Legenda A. Casa de Badia B. Rua Vidal de Negreiros C. Rua do Forte D. Igreja de N.S. do Terço E. Forte das Cinco Pontas Figura 9 – Sobreposição de mapa anônimo de 1776 com o mapa de 1906/1907 (Douglas Fox) - (Fonte: Atlas Histórico Cartográfico do Recife). No século XVIII o bairro tem sua malha urbana adensada, consolidada, mais próxima do que é atualmente, com a ressalva de que suas maiores alterações deste período até os dias de hoje são de cunho arquitetônico. Excetuando a controversa abertura da Avenida Dantas Barreto na década de 1970. Por força da Lei Provincial nº 132, de 2 de maio de 1844, o bairro de São José foi desmembrado da Freguesia do Santíssimo Sacramento de Santo Antônio. Tornou-se um dos bairros mais importantes da cidade, onde se desenvolviam todas as atividades cotidianas. Entre os séculos XVIII e XIX foram erguidos no Bairro de São José edifícios notáveis como o Mercado de São José, a Basílica da Penha, a Igreja de Nossa Senhora do Terço, a Concatedral de São Pedro dos Clérigos, entre outros. A figura seguinte, embora seja do Bairro vizinho, Santo Antônio, ilustra a ambiência urbana no século XIX. 7 Figura 10 - Rua do Crespo, atual 1º de Março, no Bairro de Santo Antônio. 1858. (Foto: Augusto Stahl. Acervo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro). No século XX, o bairro era habitado por comerciantes, funcionários públicos, portuários e outros representantes da classe média do Recife. Porém, o local adquiriu fortemente a vocação mascate e, com o tempo, o número de residências diminuiu drasticamente. Nesta época, a visão geral do bairro era composta predominantemente por edificações com seus telhados em duas águas, com cumeeira paralela à fachada, e as torres das igrejas pontuando a paisagem. Praticamente não existem mais os quintais e as hortas que outrora fizeram parte da vida doméstica no local. Figura 11 - Vista do Bairro de São José no início do Século XX. (Foto: Manoel Tondella / Acervo FUNDAJ). 8 3. A CASA DE BADIA 3.1. CONTEXTUALIZAÇÃO ESTILÍSTICA Como foi visto no capítulo anterior, os dois imóveis que compõem a Casa de Badia, de nº 143 na Rua Vidal de Negreiros e de nº 46 na Rua do Forte, surgem na cartografia no século XVIII. Sendo assim, podem ter sofrido, no mínimo, duas das três reformulações estilísticas que vigoraram do período em que foram construídos até o início do século XX: a típica fachada do período colonial (século XVIII), o neoclassicismo (século XIX) e o ecletismo (século XX), sua feição atual. No Recife, os sobrados urbanos típicos do período colonial abrigavam funções comerciais no térreo e residenciais nos demais pavimentos. Eram geminados, esguios, com até cinco pavimentos, em lotes compridos, com quintais arborizados. Em alguns casos, em cada pavimento habitava uma família. Em outros, todo o sobrado era apenas residencial, para uma ou mais famílias. As casas térreas afastadas das zonas predominantemente comerciais eram comumente residenciais. Estas edificações possuíam telhado em duas águas, cumeeira paralela à fachada frontal e, sobre esta, o beiral em tríplice telha ou acimalhado. De modo geral, a nobreza das casas estava principalmente no uso de elementos mais duráveis na sua construção. Na fachada, a separação visual entre os imóveis se dava por pilastras e as esquinas eram arrematadas por cunhais, ambos geralmente em cantaria. Os vãos de portas e janelas tinham vergas retas ou em arco abatido emoldurados, também em cantaria, ou, nos casos mais simples, em argamassa. Nos pavimentos intermediários, e raramente nos últimos, era comum a existência de balcões suportados por cachorros de cantaria com guarda-corpo em ferro e mainel em madeira. As cimalhas, quando existiam, tinham suas modenaturas em cantaria ou em tijolos maciços rebocados. As esquadrias, todas em madeira, eram almofadadas ou de “ficha”, com ferragens robustas. Em alguns casos, havia grades de ferro como elemento de proteção. A figura 12 mostra a Rua do Bom Jesus em meados do século XIX, no Bairro do Recife, ainda ostentando as feições do século anterior, ilustrando bem o cenário urbano com os altos sobrados, nos fazendo crer na possibilidade de que os imóveis de Badia pudessem ter originalmente as características arquitetônicas descritas nos dois parágrafos anteriores. Figura 12 – Rua da Cruz, atual Rua do Bom Jesus. Meados do século XIX. Autor desconhecido. (Fonte: http://www.edmarlyra.com/2008/12/recifeantigo-sculo-passado.html) 9 No início do século XIX, o Neoclassicismo, que teve origem no final do século XVIII, ganha força na Europa, retomando os ideais da cultura clássica em reação aos estilos barroco e rococó. Mas em contraposição ao Classicismo renascentista, propunha o uso e a adaptação dos princípios da era clássica à realidade moderna. Paris tornou-se referência cultural no ocidente e exerceu um fascínio sobressalente sobre a sociedade. Suas filosofias e modas estilísticas na arquitetura foram inspiração direta na “classicização” do Brasil, vindas com a Missão Artística Francesa (1816), tendo o arquiteto Grandjean de Montigny como maior expoente, o qual adaptou a estética neoclássica à realidade do clima tropical. Em termos práticos, as características marcantes da arquitetura neoclássica produzida no Recife foram os vãos em arco pleno, cornijas em cada pavimento, platibandas, frontões triangulares e pórticos colunados. Além disso, houve a introdução em larga escala do vidro nas esquadrias, melhorando as condições de iluminação natural. Em paralelo à incorporação do estilo neoclássico no Recife, surgiram as posturas e as leis municipais que buscavam o embelezamento e a salubridade na cidade, impondo normas de conduta e de construção. Em Recife, o Edital de 15 de novembro de 1830, publicado pela Câmara Municipal do Recife, estabeleceu regras para as edificações, definindo seus gabaritos, medidas de portas e janelas, proibindo beirais, obrigando a implantação de cornijas e platibandas com calha. Tais regras somavam-se às diretrizes discorridas nos tratados clássicos de arquitetura, em que as dimensões e proporções dos edifícios, e de suas partes, deveriam ser obtidas através de relações geométricas. Os tratados de arquitetura existiam desde a antiguidade e eram adaptados ou substituídos por novos tratados de acordo com o espírito intelectual e artístico de cada época. Os interiores não foram alvo dessas leis, permanecendo sem iluminação e ventilação diretas, como as alcovas e as caixas de escada, com exceção das salas que sempre se abriam para as fachadas. As construções preexistentes foram naturalmente reformuladas ao gosto parisiense, com seus vãos e volumetrias reproporcionados, incorporando os elementos do vocabulário neoclássico. Mas também tiveram de se adaptar aos ditames das novas leis urbanas, apesar de algumas edificações terem permanecido inalteradas, ao menos em termos estilísticos. A iconografia de períodos diferentes mostra que estas obras de repaginação arquitetônica não aconteceram de maneira simultânea em todos os imóveis, mas sim, gradativamente. Figura 13 - Pátio do Terço em 1954. (Fonte: Histórico do Processo de Tombamento da Casa de Badia). Notar os edifícios em estilo neoclássico. 10 Figura 14 - Configuração padrão dos sobrados. Gilberto Freye, no livro Sobrados e Mucambos, referiu-se às residências urbanas do Recife como construções espontâneas, fruto das mãos de seus proprietários: "as casas levantavam-se ao sabor dos próprios donos, cada qual 'arvorado em engenheiro'; cada proprietário traça o 'risco' de seu prédio". Ainda no mesmo livro, Freyre cita o viajante L. de Freycinet, o qual se referiu às escadas como verdadeiros “quebra-costas” por serem quase sempre mal-construídas. Apesar das obras de remodelação estilística na arquitetura dos sobrados, a paisagem urbana mantinhase homogênea, como ressaltou o engenheiro francês Louis Vauthier, em sua passagem pelo Recife: “Em meio da extrema diversidade dessas habitações humanas, o viajante não descobrirá, entretanto, sinais de uma desigualdade fortemente marcada...” “Assim, quem viu uma casa brasileira, viu quase todas...” “É de uma monotonia desesperadora”. “...o sobrado significa a aristocracia e a casa térrea a plebe..” As grandes transformações urbanas praticadas em Paris na segunda metade do século XIX, encabeçadas por Haussmann6, em que os novos ideais de segurança, salubridade e urbanidade se sobrepuseram ao tecido urbano primitivo daquela cidade, tortuoso e insalubre, exerceram forte influência nos planos de modernização do Recife. 6 Georges-Eugène Haussmann, encarregado, a convite de Napoleão III, o Imperador da França, de modernizar Paris e transformá-la em uma capital mundial burguesa. 11 O novo plano urbanístico para a capital francesa dispunha de grandes artérias viárias (os chamados Boulevards), com vias geometrizadas, utilização de praças como confluência de avenidas, etc. Esse processo de intervenção foi traduzido em higienização ampla. O objetivo simbólico deste plano visava a monumentalidade com a exaltação dos ícones do poder. A perspectiva monumental dos eixos viários intencionava ressaltar os monumentos em detrimento da escala da moradia, da rua, do bairro. Desde o início do século XIX já existiam planos de reforma para o porto, mas só em 1907 um deles foi aprovado: o Plano de Esgotamento Sanitário do Recife, de autoria do engenheiro sanitarista Saturnino de Brito. Este novo projeto englobava não apenas a ampliação e melhoramento dos serviços portuários, mas também a reforma de parte da malha urbana e das edificações do bairro. A grande reforma, a exemplo do que aconteceu em paris, desconsiderou parte significativa do tecido do período colonial do Bairro do Recife, originado da progressiva expansão do arruamento espontâneo. Importantes edificações como a Matriz do Corpo Santo, possivelmente o primeiro templo religioso erguido na cidade, e os arcos que davam acesso ao bairro, remanescentes do século XVII, foram demolidos para dar lugar à nova malha urbana. As obras delineavam uma nova imagem para a cidade, reflexo da nova sociedade urbana e da economia em Pernambuco, diretamente influenciada por Paris, onde o Ecletismo foi o estilo arquitetônico que surgiu como resposta às ideologias urbanas, filosóficas e sociais. Os ideais estéticos do ecletismo pregavam, principalmente, a coexistência de elementos de estilos distintos e o rebuscamento na ornamentação das fachadas, relacionadas com estilos arquitetônicos antecedentes, de diversas épocas e lugares distintos. Extraía-se o que se considerava de melhor nas obras dos grandes mestres do passado, com uma abordagem de cunho mítico, ideológico, interpretativo e com liberdade criativa, em um mesmo edifício. As esquadrias ganharam mais requinte com suas vidraças e aderiram, em massa, à utilização de venezianas. As esquinas das edificações passaram a ser chanfradas, ou curvas, conferindo aos cruzamentos uma melhor comunicação visual entre as construções e favorecendo o fluxo de pessoas no comércio. Os edifícios mais suntuosos dispunham de cúpulas, muitas vezes meramente decorativas, arrematando as esquinas, coroando ambientes nobres ou sinalizando eixos de simetria. Figura 15 - Avenida Marquês de Olinda, Bairro do Recife. Postal datado de 1928. (Acervo FUNDAJ). 12 No Recife, algumas cobertas permaneceram da forma como haviam sido construídas nos séculos passados, outras foram adaptadas ou substituídas. As novas cobertas tiveram suas cumeeiras postas perpendicularmente à fachada frontal, em duas águas, ou tantas águas fossem necessárias, em conformidade com a lâmina da construção, a funcionalidade e a volumetria desejadas. A cumeeira ora tocava a platibanda, ora terminava em espigões, formando uma água com descida em direção à fachada (tacaniça). O mesmo aconteceu às construções térreas. Figura 16 - Edifício eclético na Rua do Imperador, Recife. (Foto: Pedro Valadares – 2007). A liberdade na ornamentação coexistia com a liberdade na composição volumétrica, no ritmo das aberturas, nas platibandas recortadas, etc. Assim como nos estilos arquitetônicos que vigoraram nos séculos passados, o rebuscamento e a utilização de técnicas mais elaboradas nas casas ostentavam o nível social, a nobreza de seus moradores. As casas de pessoas mais simples, que aderiram ao ecletismo, gozavam de maior liberdade na aplicação deste estilo por terem sido erguidas, ou também planejadas, por seus proprietários, muitas vezes à revelia da tratadística. Figura 17 - Residência em estilo eclético na Rua da Santa Cruz, Bairro da Boa Vista, Recife. (Foto: Pedro Valadares - 2008). 13 As normas de salubridade do início do século XX não interferiram apenas no meio urbano, mas também no interior dos imóveis com a inserção de banheiros, com ventilação e iluminação naturais, visando salubridade também no convívio da sociedade em sua intimidade. A malha urbana do Bairro de São José permaneceu praticamente imutável em meio ao fervor de crescimento e remodelação no Bairro do Recife no início do século XX, no que concerne à demolição e reformulação do traçado urbano, permanecendo assim até a década de 1970, quando sofreu a intervenção que arrasou parte de seu tecido do período colonial e demoliu a Igreja dos Martírios para dar lugar à Avenida Dantas Barreto. Sua ambiência urbana não dispôs da monumentalidade, nobreza e modernidade que fizeram do Bairro do Recife o símbolo da sociedade pernambucana em ascensão no início do século XX. O ecletismo fez-se presente no Bairro de São José, porém, de maneira simplificada, talvez devido à menor escala de suas edificações e ao menor poder aquisitivo de seus proprietários. 3.2. A CASA Discorrido o contexto, podemos compreender, ainda que teoricamente, como os dois imóveis que compõem a Casa de Badia chegaram aos nossos dias, tendo possivelmente sofrido as reestilizações de cada século. Os documentos mais antigos que descrevem as duas edificações, ainda que minimamente, são suas respectivas escrituras que comprovam a aquisição dos imóveis por parte de “Tia Sinhá” (Vivina Rodrigues Braga – 1867-1966) e “Tia Iaiá” (Emília Rodrigues Castro – 1870-1968), tias de Badia. Os trechos pertinentes são: • Rua Vidal de negreiros, nº 143: (11 de outubro de 1922) “Em tempo declarou o procurador do vendedor que a casa acima descripta tem uma porta e uma janella de frente, duas salas, tres quartos, cosinha e quintal murado.” “Rua Vidal de Negreiros nº 41 antigo e 143 moderno.” “Características do imóvel: Casa terrea edificada em solo próprio com a frente para o poente e fundo para o nascente.” • Escritura da casa da rua do forte: (9 de dezembro de 1926) “Edificada em solo próprio, com uma porta e uma janella de frente, dividida em quartos e salas, quintal murado, ...” “Rua do Forte nº 46, antigo 14, freguesia de São José, desta cidade.” “Características: Casa de pedra e cal edificada em solo próprio, com uma porta e uma janella de frente, dividida em salas e quartos e quintal murado.” (não menciona a quantidade dos cômodos). Não foram encontrados documentos que comprovassem os materiais construtivos destes imóveis, nem quanto às suas exatas feições anteriores. Entretanto, as plantas do início do século XX, período das primeiras obras de saneamento no Recife, mostram que o imóvel 143 da Rua Vidal de Negreiros possuía acesso também para a rua do forte, por meio de um estreito corredor, certamente descoberto. A planta do corpo principal deste mesmo imóvel permanece com a mesma compartimentação até os dias de hoje, exceto a 14 construção anexa que sofreu reformas para melhorias e instalação do banheiro, durante as obras de saneamento já citadas. A ocupação do lote representada nestas plantas confere com o mapa de 1906/1907 de autoria de Douglas Fox, com a ressalva de que o mapa não possui a mesma precisão (Figura 18). Legenda A. Rua Vidal de Negreiros B. Rua do Forte C. Imóvel nº 143 D. Imóvel nº 46 B A C D Figura 18 - Trecho do mapa de 1906/1907 de autoria de Douglas Fox. (Acervo do Arquivo Público). A Legenda A. Rua Vidal de Negreiros B. Rua do Forte C. Quintal D. Imóvel nº 46 D C B Figura 19 - Planta Baixa. 1923. (Acervo DPPC - Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural – Prefeitura do Recife). Devemos salientar que a comparação do Levantamento Arquitetônico recente, de autoria da Lopes & Valadares Arquitetos Associados Ltda. (Figura 20), com a planta primitiva do imóvel nº 143, demonstra disparidade na esconsidade dos ambientes. Porém, é possível compreender a probabilidade de que o corredor de acesso à Rua do Forte pode ter sido integrado ao imóvel vizinho. Este raciocínio ganha força com o que diz a escritura do imóvel 46: “com uma porta e uma janella de frente”, certamente os dois vãos existentes. B A C D Legenda A. Rua Vidal de Negreiros B. Rua do Forte C. Quintal D. Imóvel nº 46 Provável limite do lote primitivo Figura 20 – Planta Baixa do Levantamento Arquitetônico realizado em agosto de 2009 pela Lopes & Valadares Arquitetos Associados Ltda. 15 Segundo relato de Lúcia, filha adotiva de Badia, as duas fotos a seguir mostram festividades no quintal da casa 143, cuja porta ao fundo abriria para o corredor de acesso à Rua do Forte. Figura 21 - Uma das festas na casa de Badia. Sem data. Provavelmente nos anos 1970. (Autoria desconhecida. Acervo pessoal de Lúcia, filha de Badia). Figura 22 - Uma das festas na casa de Badia. Sem data. Provavelmente nos anos 1970. (Autoria desconhecida. Acervo pessoal de Lúcia, filha de Badia). As paredes das fachadas frontal e posterior (para o quintal) são mais espessas por terem função estrutural. Sobre elas, repousavam os frechais e suas calhas, ou beirais. As paredes laterais, dividindo os lotes, recebiam a carga das terças e da cumeeira. As paredes internas, por terem a função única de compartimentar, eram (e ainda são) mais esguias. O desenho primitivo do corte longitudinal da casa 143 ilustra, ainda que muito esquematicamente, a coberta do corpo principal da casa em duas águas, com a cumeeira paralela à fachada. Neste caso, a estrutura da coberta desenvolvia-se em terças, cumeeira e frechais, todas paralelas à fachada, características típicas das casas e sobrados dos períodos colonial e imperial. 16 Figura 23 – Corte Longitudinal. 1923. (Acervo DPPC - Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural – Prefeitura do Recife). Atualmente, a sala encontra-se sem reboco nas paredes laterais, deixando expostos os tijolos maciços e a marcação da inclinação da coberta primitiva (Figura 24). Assim sendo, a localização da possível calha primitiva nos afirma que a porta e as janelas foram redimensionadas ou relocadas verticalmente para cima. Isto nos leva a crer também que o nível da rua e, por conseqüência, o gabarito das construções tenham sido elevados devido às obras de calçamento, possivelmente realizadas durante as obras de saneamento no início do século XX (Figura 25). Registro da coberta primitiva. Figura 24 - Parede da sala em seu estado atual. (Foto: Pedro Valadares – 2009). Registro da coberta primitiva. Registro da calha primitiva. Figura 25 - Situação atual da sala. (Foto: Pedro Valadares – 2009). 17 Constatando que o imóvel 143 foi adquirido pelas tias de Badia em 1922, e que a planta mais antiga encontrada desta casa data de 1923, com características do século XVIII/XIX, concluímos que as obras de reestilização que conferiram estilo eclético ao imóvel ocorreram sob a propriedade destas senhoras. Segundo a escritura do imóvel 143, no momento de sua aquisição pelas tias de Badia, a fachada dispunha de apenas uma porta e uma janela. Certamente, a casa passou a contar com mais uma janela durante as obras de ecletização da fachada. Complementando estas informações, uma planta e um corte longitudinal datados de 1924 (Figura 26), embora incompletos, apontam a execução de um banheiro e a reconfiguração da coberta, também em duas águas, mas com cumeeira perpendicular à fachada, apoiada sobre tesouras. Percebe-se, no corte longitudinal, a existência, ou intenção de execução, de forros acimalhados, certamente em estuque ou madeira. Além das reformas citadas, pode-se perceber que houve relocação, entaipamento e abertura de portas nos ambientes internos. O cômodo do meio, no corpo principal da casa, recebeu o nome de “area", o que, segundo relato de Lúcia, filha adotiva de Badia, teria sido um local à céu aberto, como um jardim de inverno, destinado aos rituais da cultura afro. Segundo ortofotocarta dos anos 1970, de autoria da FIDEM, é possível constatar que as paredes deste ambiente projetavam-se acima da coberta, formando três pequenas platibandas. Infelizmente, estes elementos não são visíveis na ortofotocarta em meio digital, única versão disponibilizada por aquele órgão. Ainda na planta de 1924, percebe-se uma nova parede na sala (A), criando um corredor um pouco mais largo que o primitivo. A Figura 26 - Planta baixa e Corte longitudinal. 1924. (Acervo DPPC - Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural – Prefeitura do Recife). Desconsiderando a parede que criou um novo corredor (que não mais existe) e a total descaracterização da coberta atual, no que se refere ao madeiramento e suas bitolas, e ao telhamento, a compartimentação dos ambientes e seus vãos de porta permanecem os mesmos desde 1924. Quanto aos elementos e detalhes construtivos do interior, os únicos registros encontrados são fotos sem data mas possivelmente dos anos 1970 e 1980, que retratam reuniões e festas protagonizadas por Badia, onde é possível ver as esquadrias internas que ainda hoje existem, apesar de descaracterizadas. 18 Figura 27 - Uma das festas na casa de Badia. Sem data. Provavelmente nos anos 1970. (Autoria desconhecida. Acervo pessoal de Lúcia, filha de Badia). O piso da sala e da circulação é revestido com ladrilho hidráulico, embora de pouca qualidade artística, é também um elemento de importância histórica na residência, provavelmente assentado durante as obras de reforma protagonizadas pelas tias de Badia na década de 1920. Figura 28 - Ladrilho hidráulico na sala e na circulação. (Foto: Pedro Valadares – 2009). 19 No que concerne à fachada, o registro iconográfico mais antigo encontrado trata-se de uma fotografia, sem data, mas possivelmente dos anos 1970, considerando a qualidade da imagem, em que seus elementos decorativos estão aparentemente íntegros. A comparação desta foto com a situação atual constata que, embora a fachada de hoje esteja praticamente imutável, apesar de pequenas perdas em alguns elementos da composição, suas esquadrias foram substituídas por outras de modelo ligeiramente diferente, mas mantendo as grades de ferro nas bandeiras. Figura 30 – Fotografia sem data. Possivelmente dos anos 1970. (Autoria desconhecida. Acervo DPPC - Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural – Prefeitura do Recife). Figura 32 - Detalhe da Figura 29. Figura 29 - Fachada atual. (Foto: Pedro Valadares – 2009). Figura 31 - Detalhe da Figura 30. Notar as esquadrias e a descaracterização das cercaduras, com a retirada de seus frisos. 20 Figura 33 - Uma das festas na casa de Badia. Sem data. Provavelmente anos 1970. (Autoria desconhecida. Acervo de Lúcia, filha de Badia). Como era bastante comum em muitas residências, a casa de Badia recebeu na parte mais baixa de sua platibanda o escrito “VILA EUGÊNEA”, uma referência à Eugênia Duarte Rodrigues, mãe de Sinhá e Iaiá. Figura 34 - "VILA EUGÊNEA" escrito na platibanda da casa 143. (Foto: Renata Lopes – 2009). Boa parte das edificações da Rua Vidal de Negreiros se manteve com características neoclássicas. Algumas conjugam elementos de estilos distintos e outras se tornaram protomodernas ou art déco. Conforme imagens a seguir, a casa de Badia é um raro exemplar de arquitetura residencial eclética nesta rua e que sobreviveu às descaracterizações tão comuns na grande maioria dos imóveis desta localidade. 21 Figura 36 - Situação atual da Rua Vidal de Negreiros. (Foto: Pedro Valadares – 2006). Figura 35 - Situação atual da Rua Vidal de Negreiros. (Foto: Pedro Valadares – 2006). Figura 37 - A casa de Badia entre edificações de estilos distintos descaracterizadas. (Foto: Pedro Valadares – 2009). Figura 38 – Vista atual da Rua Vidal de Negreiros, Igreja de Nossa Senhora do Terço e Casa de Badia. (Foto: Maria Reynaldo – 2008). 22 3.2.1. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA COMPOSIÇÃO ESTILÍSTICA É oportuno citar que a produção arquitetônica realizada a partir do Renascimento, do século XV até início do século XX, utilizava os conceitos da antiguidade greco-romana, principalmente sob a inspiração do tratado de Vitruvius7, aplicados à realidade em que estava inserida a sociedade em cada época. Tinha-se o ideal de que a beleza reconhecida na arquitetura da antiguidade repousava nas qualidades formais, as quais se verificavam em categorias como ordem, proporção, equilíbrio, simetria, espírito matemático e harmonia, através da concordância e uniformidade entre as partes do edifício, ou o próprio edifício como um todo. Os conhecimentos numéricos e geométricos, aliados a ideais filosóficos, compunham instrumentos imprescindíveis para manipulação dos componentes da expressão formal, na determinação das dimensões da composição do projeto de arquitetura. Para determinar a proporção e ordenamento plástico dos elementos arquitetônicos, utilizavam-se esquemas geométricos conhecidos como Traçados Reguladores, que definiam qual esquema de proporcionalidade deveria ser utilizado na elaboração do projeto da edificação, sob o uso de inúmeras relações matemáticas e geométricas, tomando partido de elementos como a proporção áurea8, retângulo áureo, quadrado, círculo, pentágono, pentagrama, entre outros, cujas relações métricas entre si estão também presentes nas dimensões do corpo humano, como afirmou Vitruvius. Protágoras, filósofo grego do século V a.C. cunhou a famosa frase “O homem é a medida padrão de todas as coisas”, perpetuada nos tratados arquitetônicos e na solidez da arquitetura clássica, ou de influência clássica. As relações geométricas podem ser observadas principalmente na arquitetura religiosa e pública, visto que tal nível de conhecimento científico na época era próprio das classes dominantes. Leonardo da Vinci, como muitos outros mestres da Renascença, tornou-se um grande estudioso das proporções harmônicas, ilustrou a versão da idéia de Vitruvius com seu famoso desenho do “Homem de Vitruvius”, mostrando como as partes do corpo têm em comum com as proporções da seção áurea. Figura 39 - O “Homem Vitruviano”, ou “Homem de Vitruvius”, por Leonardo da Vinci. 7 Marcus Vitruvius Pollio foi um arquiteto e engenheiro romano que viveu no século I a.C. e deixou como legado a sua obra em 10 volumes, aos quais deu o nome de De Architectura (aprox. 40 a.C.) que constitui o único tratado europeu do período grego-romano que chegou aos nossos dias e serviu de fonte de inspiração a diversos textos sobre construções arquitetônicas desde a época do Renascimento. 8 A proporção áurea é uma constante real algébrica irracional denotada pela letra grega φ (phi) e com o valor arredondado a três casas decimais de 1,618. Também é chamada de: seção áurea, razão áurea, razão de ouro, divina proporção, proporção em extrema razão, proporção dourada, divisão de extrema razão, número de ouro, número áureo. 23 Figura 40 – O retângulo áureo, ou seção áurea. Nos séculos subseqüentes ao século XVI, os estilos arquitetônicos surgiam e se transformavam conforme as mudanças no pensamento da sociedade e seus ideais, mas a maneira de projetar as edificações mantinha a tradição de obedecer ao rigor matemático. A arquitetura produzida no Brasil desde sua descoberta até o início do século XX, embora simplificada, foi significativamente influenciada pelas fórmulas prescritas nos tratados Renascentistas, principalmente dos tratadistas Alberti (1404-1472), Palladio (1508-1580) e Vignola (1507-1573). Com a chegada do ecletismo no início do século XX, os arquitetos, em geral, possuíam um bom domínio das regras compositivas dos tratados clássicos e gozavam de certa liberdade criativa, por ideologia deste estilo, e muitas vezes de autodidatismo, que foi naturalmente absorvida pela produção arquitetônica no Brasil. Figura 41 – Relações geométricas da Igreja de Nossa Senhora da Candelária, Rio de Janeiro. (ALVIM 1996). Embora não se saiba a procedência do projeto arquitetônico da casa de Badia e, conseqüentemente, quais fatores culminaram nas suas feições atuais, foi possível encontrar relações geométricas condizentes com os tratados renascentistas, ainda que de forma bastante simplificada. A assimetria, muito comum no ecletismo, é uma das primeiras características visíveis na fachada, que se estende para a disposição dos cômodos, em planta. A porção esquerda da fachada, onde está localizada a porta, possui tratamento compositivo secundário: a platibanda é mais baixa e conta com a escrição “VILA EUGENIA”, de forma sutil. A porção direita, onde estão as janelas, é composta por simetria, com maior rebuscamento, assegurada pela platibanda mais alta, 24 escalonada, com um ornato orgânico em seu centro e duas volutas no topo. Este módulo na fachada corresponde, em planta, à parte da sala e ao conjunto de alcovas. Figura 42 - Fachada do imóvel 143. Notar a assimetria na composição. Figura 43 - Eixos. Ao sobrepor o “Homem vitruviano” ao desenho da fachada da casa, surge o primeiro vestígio de que suas proporções foram concebidas através de ideais clássicos. Figura 44 – Já na primeira tentativa de sobreposição, podemos encontrar relação quanto à altura da porta e das janelas, e o friso abaixo da cornija. 25 Figura 45 – Na segunda tentativa, desta vez encaixando o círculo do Homem Vitruviano à largura da casa, e sobre ele um pentágono e um pentagrama circunscritos, as vergas da porta e das janelas novamente coincidem com o diagrama de Vitrúvio. Figura 46 - Ao coincidir um retângulo áureo na vertical (verde), tangenciando o quadrante esquerdo do círculo cujo diâmetro é referência para o maior lado este retângulo, obtemos a largura do módulo simétrico das janelas. O quadrado, em laranja, cujo lado corresponde ao diâmetro do círculo, surge como elemento fundamental para o traçado de diagonais e interseções para locar e proporcionar os demais elementos da fachada. 26 Figura 47 – Um retângulo áureo horizontal (vermelho), cuja base mede a menor dimensão do retângulo áureo vertical abaixo (verde), define a altura menor da platibanda. Um terço da proporção deste retângulo vermelho define o topo da cornija (retângulos azuis). O espaço “residual” à direita do retângulo vermelho, não por acaso, é um quadrado (verde), e um quarto deste quadrado corresponde à base da platibanda, definida também pela metade da proporção do retângulo vermelho. Figura 48 – Após a combinação dos elementos geométricos, o traçado de suas diagonais e interseções define a locação e dimensões dos elementos da fachada. 27 Há de se compreender que mesmo as construções mais nobres, erguidas pelos artífices mais habilidosos, dificilmente dispunham de suas medidas reais centimetricamente de acordo com o projeto. Com a casa de Badia não poderia ser diferente, se consideradas as circunstâncias em que ela foi construída e as condições humildes de suas proprietárias. Caso contrário, seria difícil imaginar que todas essas coincidências geométricas tenham sido mero acaso. Certamente, um estudo mais aprofundado sobre os traçados reguladores, numa ocasião mais oportuna, poderia revelar muitas outras “coincidências” na configuração de sua composição estética. Quanto ao imóvel no46 da Rua do Forte, não foi possível encontrar suas plantas originais, nem iconografia, que comprovasse sua configuração primitiva, ou uma de suas prováveis remodelações. No entanto, apesar da total reorganização do seu espaço interno, e da profunda descaracterização de sua fachada e notando que seu gabarito encontra-se abaixo dos demais imóveis da rua, é possível levantar duas possibilidades: 1 – seu gabarito manteve-se o mesmo de antes das obras de calçamento; 2 – ou parte do que poderia ter sido a platibanda fora demolida. Sua fachada, completamente desfigurada, não possui quaisquer elementos que possam elucidar seus traços originais ou de possíveis remodelações. Possui duas portas em madeira do tipo ficha, industrializadas, cada uma com uma grade de ferro, também industrializada. Notar a porta azul, à esquerda, possível acesso ao quintal do imóvel no143 da Rua Vidal de Negreiros. Figura 49 – Estado atual da fachada do imóvel 46 da Rua do Forte. (Foto: Renata Lopes – 2009). 28 4. CONCLUSÃO Consideramos que este trabalho não esgota o tema, com a consciência de que nem tudo é possível de ser esclarecido, transmitido, descoberto, revelado. A escassez de informações concretas e objetivas e as tantas perdas materiais das edificações objetos deste estudo, que suprimiram registros da trajetória da casa no tempo, impôs severos limites a esta pesquisa. Contudo, a cartografia e o contexto histórico puderam fundamentar e esclarecer parte da história da construção da Casa de Badia, bem como compreender seu partido arquitetônico atual. Olinda, 03 de Maio de 2010 Pedro Valadares Arquiteto. CREA PE 38.471-D Pesquisa e Texto Renata Lopes Arquiteta. CREA PE 34.048-D Revisão [email protected] | www.lopesvaladares.com.br 29 Referências Bibliográficas 1. ALBUQUERQUE, Marcos, e Veleda LUCENA. Arraial Novo do Bom Jesus - Consolidando um processo, iniciando um futuro. 1ª Edição. Recife: Graftorre Ltda., 1997. 2. ALBUQUERQUE, Marcos, Veleda LUCENA, e Doris WALMSLEY. Fortes de Pernambuco: imagens do passado e do presente. Recife: Graftorre Ltda., 1999. 3. ALVIM, Sandra. Arquitetura Religiosa Colonial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPHAN, 1996. 4. BURKE, Peter. “Gilberto Freyre e a nova história.” Tempo Social, Revista Sociológica da USP, 1997. 5. FABRIS, Annateresa. Ecletismo na Arquitetura Brasileira. São Paulo: Nobel/Edusp, 1987. 6. FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. Edição Comemorativa 70 Anos. Global Editora, 2006. 7. GASPAR, Lúcia. 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