TÍTULO: A CONSTRUÇÃO DO PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO EM UMA ESCOLA DE SURDOS. AUTORAS: Eliane M. F Cunha; Kaliandra K. S. Cavalcante; Eleny Gianini ([email protected]); Ana Dorziat; Niédja M. F. de Lima. INSTITUIÇÃO: UFCG ÀREA TEMÁTICA: Educação O status lingüístico dado à língua de sinais na década de 60 e a determinação da importância da mesma para o desenvolvimento do surdo foram fundamentais para alertar os educadores da área, sobre o porquê do fracasso dos alunos surdos, que passavam anos a fio na escola e não conseguiam aprender a ler e escrever; o porquê de os surdos não conseguirem absorver conceitos abstratos; e, ainda, o porquê os surdos, em sua grande maioria, serem imaturos, inseguros e dependentes. As respostas a estes porquês desmascararam os cem anos de prática da abordagem clínica Oralista, que submetia os surdos a treinos sistemáticos da língua oral, levando a escola a exercer uma função terapêutica ao invés de educativa, uma vez que os assuntos relacionados à educação de surdos eram tratados como de competência da área médica ou afim, tendo os professores apenas o papel de coadjuvantes no processo reabilitacional, e não educacional. Tratar sobre o ensino de surdos significava relacionar formas mais apropriadas de comunicação, visando à adaptação social dessas pessoas. Os cursos de formação de professores de surdos enfocavam métodos específicos de ensino (principalmente o Oralismo, nas suas várias modalidades), remetendo-os, em geral, a estudos sobre a aquisição da linguagem da criança ouvinte. Com o advento da Comunicação Total e, depois, do Bilingüismo, as questões lingüísticas passaram a ser contempladas de forma menos distorcidas. Mesmo assim, parecia haver um desvinculamento com as questões epistemológicas mais amplas sobre desenvolvimento humano e, a partir daí, com as próprias concepções de homem, de educação e de realidade que devem permear as ações dos professores em sala de aula e na organização da escola como um todo. O bilingüismo surge propondo, basicamente, o domínio de duas línguas: a língua de sinais como primeira língua, e a língua oficial, como segunda língua. No entanto, essa definição meramente lingüística é ampliada, como por Skliar (1999) que vê o bilingüismo como uma oposição aos discursos e às práticas clínicas hegemônicas e como um reconhecimento político da surdez como diferença. Se o bilingüismo ficar 1 restrito apenas ao plano lingüístico, corre o risco de transformar a língua de sinais em mais um dispositivo “especial”, ficando a mercê de qualquer tipo de concepção pedagógica, ou seja, “a educação bilíngüe pode-se transformar numa ‘neo-metodologia’ colonialista, positivista, ahistórica e despolitizada” (Skliar, 1997 apud Skliar, 1999, p.7). Para que isso não aconteça, é preciso instituir um espaço específico para os surdos dentro do contexto da educação, de modo a construir um discurso e uma prática educacional que contemple a surdez e a pessoa surda. Isso implica em uma mudança de visão, não mais apoiada na normalização, na adaptação social, mas na busca de transformação social, objetivando reverter uma situação que impõe aos seus cidadãos valores de todas as ordens dominantes, para entender as peculiaridades humanas e suas necessidades mais vitais. Essa mudança demanda tempo e aprofundamento de idéias. A forma normativa está enraizada no pensar e no agir das pessoas. É o senso comum que está ao alcance de todos. Se o Bilingüismo ficar restrito ao uso da língua de sinais como uma técnica ou procedimento de ensino, o que assegurará o respeito aos surdos e às suas formas particulares de elaboração e expressão de mundo? Não basta usar a língua de sinais como instrumento educacional. É necessário torná-la símbolo de uma cultura. Nem pior, nem melhor, apenas diferente. Reconhecer o surdo como diferente significa reconhecer a sua capacidade distinta de construir as questões lingüísticas, que vão além da modalidade de língua adotada no processo educacional (oral-auditiva ou viso-gestual), envolve interação e depende do contexto histórico, sócio-econômico e geográfico em que os interlocutores estão inseridos. Além do mais, é reconhecer que os sujeitos surdos só se constituem como tal por pertencerem a uma comunidade diferente, detentora de uma cultura própria, o que não implica na existência de uma identidade surda única, definida a partir de alguns traços comuns e universais. Se não houver consciência de que essas diferenças existem, de que precisam ser respeitadas e de que a realização das pessoas não é um caminho de mão única, correse o risco de a cultura e a forma de pensar ouvintes serem colocadas como centro do processo educacional e, portanto, a concepção de normalização ser dominante, mesmo que de forma camuflada (Dorziat, 1999). Além da língua de sinais, as escolas de surdos precisam se firmar enquanto detentoras de responsabilidades pedagógicas específicas, que nada mais é do que estabelecer as relações entre por que fazer, para que fazer, para quem fazer e como fazer, uma vez que não existe um fazer pedagógico neutro e que se adapte a qualquer situação escolar. Determinar essas relações é um desafio “(...) que só pode ser 2 enfrentado no dia-a-dia institucional, se houver clareza sobre quem é o surdo a quem ensinamos, sobre o que almejamos para ele, e, acima de tudo, sobre o que ele almeja para si próprio. A partir daí, é possível escolher que tendência educacional se coaduna mais com a visão bilíngüe de surdo como diferente, não como deficiente ou normal”. (Dorziat, op.cit., p.28). Essa é uma tarefa ampla e complexa, que requer dos sistemas de ensino um novo direcionamento e uma nova organização. Esse novo direcionamento, um novo projeto político-pedagógico (PPP), precisa ser construído pelos atores da educação: os professores, os alunos, as famílias, a equipe técnico-administrativa e representantes da comunidade, e deve ser, segundo Veiga (1998), fruto de um trabalho coletivo de reflexão e de investigação, pois exige a explicitação sobre as finalidades da escola, de seu papel social e das formas operacionais e ações a serem empreendidas por todos os envolvidos com o processo educativo. Sendo o PPP um documento que deve refletir: a realidade da escola situada em um contexto mais amplo; os pressupostos teóricos e metodológicos postulados pelos atores desse processo; as aspirações maiores das famílias; o papel da escola na educação da população e formação do cidadão, se faz necessário propiciar situações que permitam aos membros dos diversos setores aprender a pensar e a realizar a prática pedagógica de forma coerente. Exige, também, reflexões sobre a educação e sua relação com a sociedade, sobre o homem a ser formado, a cidadania e a consciência crítica. Acreditamos que é preciso dar início a uma ação articuladora que vise construir as bases de um pensar pedagógico no ensino de surdos. É necessário que sejam criadas vias alternativas de discurso contra-hegemônico, não sustentadas em modelos de mercado de produção capitalista, de imposição da cultura dominante sobre as demais e de inclusão dos surdos na escola regular, mas que coloquem, em primeiro lugar, as pessoas e não a produção, como maior preocupação dos esforços educacionais. Nesse sentido, não pode mais coexistir na educação de surdos o discurso que os coloca como indivíduos potencialmente capazes, possuidores de uma língua etc, com uma prática pedagógica que continua reproduzindo formas alienantes de ensino, que não valoriza a sua cultura e nem vislumbra um espaço social para essas pessoas. Segundo Dorziat, “A organização institucional para surdos em torno de idéias pedagógicas consistentes não se caracteriza como uma opção de trabalho. Ela deve ser um compromisso dos que atuam nessa área”.(op. cit.,p.39). 3 Podemos dizer que essa é a nossa meta, enquanto professoras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), que desenvolvem atividade de extensão junto a uma escola pública para surdos – Escola Estadual de Audiocomunicação de Campina Grande (EDAC). Ao longo de 19 anos de trabalho extensionista nessa Escola, experimentamos várias gerações pedagógicas relacionadas ao ensino de surdos (oralismo, comunicação total e bilingüísmo). Nos últimos anos, colocamos como objetivo de nosso trabalho assessorar a Escola na construção e consolidação de uma proposta pedagógica bilíngüe para surdos, concebendo o surdo como uma pessoa diferente lingüística e culturalmente, com direito a uma educação tão plena como qualquer cidadão. Sabemos que não basta imprimir uma visão educacional que gire em torno apenas dos aspectos lingüísticos e metodológicos. É preciso assumir, como um dos paradigmas fundamentais da educação de surdos, a surdez enquanto diferença e não diversidade, o que implica em que procuremos ver, cada vez mais claro, quem é o aluno surdo. É preciso procurar abrir espaço para uma epistemologia da surdez que trate ensino, desenvolvimento humano, sociedade, língua, surdo, como o embricamento de várias áreas do conhecimento, embora preservando suas especificidades que fazem desse um conhecimento único e intransferível (Dorziat, op.cit). Consideramos esses critérios indispensáveis para a construção de um verdadeiro PPP para as escolas de surdos. Foi a partir deles que organizamos nosso percurso em busca da construção de um PPP para a EDAC. Como a prática da escola em foco é um processo que vem sendo construído ao longo dos seus 19 anos de funcionamento, consideramos importante resgatar, em um primeiro momento, o processo histórico e as condições sócio-econômico-culturais, a partir das quais a prática aconteceu. Esse resgate foi realizado através de palestras, proferidas por professores convidados, com os professores, familiares e alunos, cada um a seu tempo. Além disso, foi organizada uma comissão mista de trabalho, coordenada por uma das professoras da Universidade, responsável por esse projeto. Dessa comissão constaram pessoas representativas da comunidade escolar (surdos, pais, professores). Constituiu a instância deliberativa dos trabalhos, como também participou, em um segundo momento de nosso trabalho, na realização de entrevistas com os demais segmentos da comunidade escolar. Desses, os surdos e professores participaram de forma mais efetiva. Quanto aos familiares, receberam ajuda da aluna extensionista do Curso de Pedagogia da Universidade. 4 No segundo momento acima referido, delineamos, através de questionários e entrevistas, o perfil sócio-econômico, educacional e cultural dos alunos, de suas famílias, dos professores e dos funcionários da escola. Com esses dados procuramos delimitar as determinações fundamentais que tratam do contexto sócio-histórico dos diferentes grupos que compõem a escola, ou seja, nos deu respostas sobre quem faz e para quem se faz a escola. Além disso, acreditamos que essa contextualização permitirá uma análise mais apropriada das concepções dos entrevistados sobre os vários temas que deverão ser abordados na construção do PPP, porque poderemos considerar as determinações macro e micro que fazem o dizer e o fazer institucional. Em um terceiro momento, partimos para a elaboração conjunta do PPP da Escola, a partir de reflexões sobre o perfil traçado anteriormente, a experiência de cada um na instituição e as questões teórico-metodológicas. Para isso, procedemos debates, com cada um dos setores escolares, sobre um temas que julgamos básico para o delineamento de um PPP: a concepção de escola. Os debates foram motivados a partir da apresentação de alguns depoimentos de professores, pais, funcionários e alunos, coletados em pesquisa anterior realizada na Escola1, sendo registrados em áudio e vídeo e, posteriormente, transcritos. Realizamos uma síntese, produto do trabalho coletivo, contendo o resultado das discussões realizadas e suas implicações na ação concreta. A análise preliminar destas discussões mostra questões relevantes, mas nem todas consensuais entre os setores, como apontadas a seguir: 9 Todos os segmentos vêem a escola como espaço de saber e ascensão social. 9 Na fala dos pais e funcionários, a Escola apresenta-se como extensão da família e consideram a LIBRAS como fundamental no processo ensinoaprendizagem e na mediação das questões de comunicação. 9 Os alunos evidenciaram a necessidade da consolidação de um currículo bilíngüe, que supere as questões lingüísticas e avance na construção de um currículo voltado para emancipação e promoção acadêmica de alunos surdos. 9 Defesa de uma escola exclusiva pautada, principalmente, no processo de socialização das crianças surdas, através da aquisição da LIBRAS nas interações 1 Depoimentos coletados pela professora Ana Dorziat, em sua pesquisa para elaboração de tese de doutorado, a partir de entrevistas semi-estruturadas aplicadas com professores, alunos, funcionários e pais 5 com seus pares - outros surdos, propiciando a construção de identidades não mais apoiadas na deficiência, mas nas suas potencialidades e possibilidades psicoculturais diferentes das dos ouvintes, constituindo-se, assim, como um espaço de saber da comunidade e da cultura surda, com vista à integração dessas pessoas na macro-sociedade. As questões acima mencionadas foram retornadas aos vários segmentos, para maior compreensão e aprofundamento, através de uma nova rodada de debates, centrados nas seguintes questões: escola e ascensão social, escola e cidadania, escola e família, escola e língua de sinais e escola e inclusão. Estamos, no momento, sistematizando a primeira parte do projeto políticopedagógico, contendo histórico da EDAC, perfil sócio-econômico, educacional e cultural de seus segmentos escolares e concepção de escola. Partiremos para uma nova etapa, na qual procuraremos definir as concepções de aprendizagem e de surdez, e, em uma fase posterior, partir para a discussão de outros elementos que compõem o PPP, tais como: currículo, avaliação escolar, ensino de Língua Portuguesa etc. Paralelamente a esses debates, participamos de encontros pedagógicos, realizados quinzenalmente na Escola, e acompanhamos algumas experiências pedagógicas em sala de aula. É no dia-a-dia escolar que as concepções afloram, tornando-o uma rica fonte de informações e de confronto entre o dito e o feito. Ao seguir este caminho, visamos imprimir um maior enfoque às questões pedagógicas no ensino de surdos, definidas da forma mais participativa possível. É preciso quebrar a tradição de que só a equipe técnico-pedagógica de uma escola tem competência para ditar o fazer pedagógico. Mais ainda, é preciso dar voz aos surdos, atores principais do processo educacional, vozes historicamente silenciadas. da Escola, nas quais foram perguntadas as concepções de escola, ensino e surdez. A referência bibliográfica completa deste trabalho encontra-se no final do texto. 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DORZIAT, A. Bilingüismo e surdez: para além de uma visão lingüística e metodológica. . In SKLIAR, C. (org.). Atualidade da educação bilíngüe para surdos. Porto Alegre: Mediação, 1999. _____________ Concepções de surdez e de escola: ponto de partida para um pensar pedagógico em uma escola pública para surdos. Tese de doutorado (mimeo) UFSCar: São Carlos/SP, 1999. SKLIAR, C. A localização política da educação bilíngüe para surdos. In SKLIAR, C. (org). Atualidade da educação bilíngüe para surdos.Porto Alegre: Mediação, 1999. VEIGA, I.P.A. Perspectivas para reflexão em torno do projeto político-pedagógico. In: VEIGA, I. P. A . (org.). Escola: espaço do projeto político-pedagógico. Campinas, SP: Papirus, 1998. 7