Um caso carioca de gentrificação? Mayra Mosciaro1 Mestranda em Urbanismo no PROURB Colaboradora do projeto de pesquisa Tecnologia, Planejamento e Território (IPPUR) PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES As cidades contemporâneas têm sido palco de uma série de processos sociais, econômicos e políticos, nas mais diversas escalas. Com a globalização, mencionada aqui sem que haja qualquer juízo de valor sobre os seus reflexos, ora vistos como positivos, ora como negativos, tais processos se espalharam por uma diversidade de cidades e por uma pluralidade de contextos urbanos pelo mundo. Mas, como já foi extensamente debatido por diversos estudiosos, a globalização não produz a homogeneização dos espaços e das práticas humanas, uma vez que os modos de vida e tradições locais sempre acabam por influenciá-los e contextualizá-los, re-adaptando-os à realidade local. Pensando dessa maneira, o objetivo deste trabalho é analisar se há elementos que sustentem a suposição de que há a ocorrência de um processo de gentrificação no Centro do Rio do Janeiro, mais especificamente no bairro da Lapa. Partindo da análise desse fenômeno, caracterizado pela revitalização e reatração da classe média para uma determinada área antes ocupada por uma população mais pobre, em diversas outras cidades no mundo, buscarei compreender quais seriam as suas particularidades no caso carioca. PRIMEIROS QUESTIONAMENTOS SOBRE GENTRIFICAÇÃO Nos anos denominados pós-guerra, houve nos Estados Unidos algo que Neil Smith (1991) classificou como “antiurbanismo norte americano”, momento no qual as cidades passam a ser vistas e retratadas como locus da pobreza, 1 [email protected] 1 criminalidade, drogas, corrupção... Nesse contexto de desvalorização do ambiente urbano, se consolida o clássico processo de suburbanização das cidades estadunidenses. As inner-cities ficam reservadas para as camadas menos abastadas da sociedade, aquelas excluídas do “american dream” ou “american way of life”. No final da década de 60 e, de maneira mais intensa, a partir da década de 70, as grandes cidades norte-americanas voltam a se tornar ponto de atração das classes média e alta. Alguns autores, como o já mencionado Neil Smith (HAMNET, 1991), argumentam que esse fenômeno é o reflexo espacial de algo muito mais complexo, como a nova divisão do trabalho e a emergência de cidades globais. Já estudiosos como David Ley (HAMNET, 1991, p. 177) indicam o crescimento e a consolidação de um novo grupo social, os “whilte-collars2”, como forte acelerador dos processos de gentrificação. Na perspectiva de Ley, esses cidadãos teriam força para impor no mercado imobiliário seus interesses, como o de residir nas áreas centrais. As inner-cities se tornam o playground desse novo grupo social, que inicia seu processo de remodelação dessas áreas adequando-as aos seus interesses e desejos. Esse fenômeno se torna muito visível em cidades como Nova York – extensamente analisada pelos trabalhos de SMITH (1991), DEUTSCHE & RYAN (1984) –, Vancouver (LEY, 1986), Baltimore (HARVEY, 2005), dentre muita outras. Com o intuito de dar um nome a esse processo de reformulação de alguns bairros, passa-se a anunciá-lo, nos jornais e no meio acadêmico, como um retorno da gentry3 à cidade, e a partir daí nasce o termo gentrification, posteriormente aportuguesado para gentrificação. Desde o surgimento deste conceito, muitos foram os autores que buscaram compreender sobre o que se tratava o processo de gentrificação e como ele 2 O conceito de white-collars nasce nas últimas décadas do século XX para determinar os funcionários relacionados ao crescente setor de serviços. A consolidação desse grupo se dá em oposição a diminuição dos trabalhadores blue-collars, provenientes do setor manufatureiro. 3 “Pessoas de alta classe social, especialmente no passado”. Dicionário Cambridge International, 1995, p. 589. “Pessoa educada e de boa criação na Inglaterra, aqueles entre os nobres e os pequenos proprietários rurais”. Dicionário Webster Online. 2 poderia ser percebido nas cidades. Uma das definições mais completas e abrangentes é a de Chris Hamnet, [A gentrificação é um] fenômeno simultaneamente físico, econômico, social e cultural. Gentrificação comumente envolve a invasão da classe média ou grupos de alto poder aquisitivo em áreas previamente ocupadas pelas classes trabalhadoras. [...] Envolve a renovação ou reabilitação física do que era, freqüentemente, uma habitação altamente deteriorada e seu melhoramento para ir de encontro com as requisições dos novos proprietários. (Hamnett apud Hamnett, 1991, p. 175) 4 No contexto internacional, há mais de três décadas têm sido analisados os reflexos e os diferentes processos que resultam na gentrificação de bairros próximos a áreas centrais das grandes cidades. Mas, ao se pensar o Brasil e, especificamente, a cidade do Rio de Janeiro, no último quartel do século XX, nenhum bairro ou porção do Centro refletia a ocorrência de um processo similar ao descrito por Hamnet. Por esse motivo, os questionamentos sobre gentrificação, re-atração para áreas centrais, substituição dos grupos mais pobres pelos mais ricos etc., não foram temas extensamente debatidos. Além do que, a realidade das nossas cidades apresentava, e ainda apresenta, processos de exclusão e segregação muito mais visíveis e alarmantes, e demandava muito da atenção do meio acadêmico, que acabava por negligenciar processos ainda incipientes ou pouco representativos. O BAIRRO DA LAPA 4 Todos os trechos em língua estrangeira foram traduzidos livremente. 3 A área conhecida popularmente como “bairro da Lapa 5” nada mais é do que uma porção do bairro do Centro. Com base na compreensão de Marcelo Lopes de Souza sobre o que seriam os bairros e como eles se constituem no imaginário dos habitantes das cidades, a Lapa poderia ser incluída nessa categoria, visto que: [os bairros são] Pedaços de realidade social que possuem uma identidade mais ou menos inconfundível para todo um coletivo; o bairro possui uma identidade intersubjetivamente aceita pelos seus moradores e pelos moradores dos outros bairros [...] A delimitação destes [bairros] é dificultada pela inexistência de limites claros, inquestionáveis [...] As pessoas demarcam seus bairros, a partir de marcos referenciais [...]. (SOUZA, 1989). Ainda buscando justificar a proposta de delimitação do “bairro da Lapa”, é interessante mencionar a concepção do arquiteto e urbanista Carlos Nelson Ferreira dos Santos (1988), que percebe a delimitação de espaços dentro das cidades através de uma analogia com gradientes e tonalidades. Segundo ele, nos miolos, área em que existe consenso absoluto sobre o pertencimento ao bairro, a cor é mais intensa. Já nas fronteiras, estas cores vão sendo progressivamente enfraquecidas, até que são substituídas por outras. De acordo com as leituras de ambos os autores, tanto sobre o que são os bairros, quanto sobre como se dão as delimitações dentro do tecido urbano, alguns moradores, novos e antigos, e ex-moradores do local foram entrevistados. A partir das suas leituras desse espaço por eles vivido, foi possível construir o recorte a seguir. O trecho assinalado em vermelho é o que estava incluído na maioria dos relatos, o miolo, segundo a leitura de Carlos Nelson. O polígono está delimitado pela Rua dos Arcos (direita) até a Praça da Cruz Vermelha (esquerda), sendo balizada pela Rua Mem de Sá e Avenida Chile. 5 Ao longo de todo o texto a área da Lapa será denominada “bairro da Lapa”, assim como faz grande parte da população carioca, independente da inexistência administrativa desse recorte. 4 Ilustração 1: Delimitação do "bairro da Lapa" (Fonte: MOSCIARO, M. 2009). Este artigo não tem o propósito de realizar uma análise histórica sobre os diferentes processos de valorização e decadência que essa porção do centro da cidade sofreu ao longo dos últimos séculos. Por este motivo, irei apenas focar nas décadas finais do século XX que serviram de base para o processo a ser investigado. A partir da década de 80, a localidade da Lapa volta a se tornar foco de algumas ações governamentais, como as implementadas pelo governo Brizola, ou como a transferência do Circo Voador para a Lapa e a não demolição do prédio da Fundição Progresso, que representaram as bases para o que futuramente seria chamado de processo de revitalização da Lapa. Com o sucesso dessas primeiras 5 iniciativas, os investidores privados também voltaram sua atenção para esta área, e novos bares, casas de show e teatros começaram a surgir. Diante dessa nova realidade, a Lapa se torna um local freqüentado por moradores dos mais diversos bairros da cidade e até mesmo por turistas nacionais e internacionais. Inicia-se um processo de re-atração para essa área do Centro, que passa a oferecer opções de negócios, empregos qualificados, lazer e entretenimento. Mas, até esse momento, anos 80/90, a população apenas freqüentava o local para divertimento ou trabalho, retornando depois aos seus bairros de origem. Há, portanto, a hipótese de que, primeiro, houve uma gentrificação dos serviços. Mas, por duas razões, não entrarei a fundo nessa questão. Em primeiro lugar, não abordarei especificamente a análise da gentrificação dos comércios e serviços, já que meu foco principal é a gentrificação habitacional. E, em segundo lugar, é questionável a utilização do termo gentrificação nesse caso, já que grande parte dos imóveis da área se encontravam fechados ou subutilizados, ou seja, não houve um processo de substituição de serviços, mas sim a chegada de novos empreendimentos que se aproveitaram dos “espaços vazios”. Com finalidade ilustrativa, alguns empreendimentos recém construídos podem ser apontados como símbolo desse processo de revitalização e, posterior, gentrificação da Lapa. Na categoria de prédios de negócios ou instituições públicas, o mais expressivo, atualmente, são as torres do “Ventura Corporate Towers”, construídas na Avenida Chile, para abrigar o BNDES e a Petrobras. Já dentre os novos lançamentos residenciais, o grande chamariz é o condomínio “Cores da Lapa”, seguido pelo edifício “Viva Lapa”. Também não se pode esquecer dos retrofits6, que apesar de não representarem novas edificações, são uma reformulação dos antigos casarios feita para atender às novas demandas, tanto comerciais quanto habitacionais. 6 O termo retrofit nasce para definir aquelas obras que preservam as fachadas dos prédios e casas, mas alteram todo o seu interior. 6 Ilustração 2: Empreendimentos símbolo da "nova Lapa", Ventura Towers, Viva a Lapa e Cores da Lapa AS BASES PARA A COMPREENSÃO DA GENTRIFICAÇÃO NA LAPA Um elemento de fundamental importância quando se pretende identificar um caso de gentrificação é que haja a presença dos elementos denominados como gentrifiers, os agentes desse processo. Esse grupo pode ser composto tanto pelos recém atraídos moradores, como pelos investidores que fornecem as bases para a reprodução desse grupo. Até este momento, foi possível iniciar uma compreensão sobre quem são os novos moradores dessa área e alguns dos elementos que os atraíram para o “bairro”. Mas em relação aos produtores imobiliários e investidores, ainda não foi possível traçar um perfil dos seus interesses e motivações no caso da cidade do Rio. Metodologicamente, optou-se por dividir os moradores da Lapa segundo duas categorias: os moradores tradicionais, que habitavam a Lapa muito antes de todo esse processo de revitalização; e os gentrifiers, aqui identificados como todos os moradores que chegaram ao “bairro” após a implementação das iniciativas de re-atração para o local, fossem eles residentes ou não nos novos empreendimentos. 7 Na grupo de moradoras entrevistadas do “bairro””, quatro nasceram no bairro da Lapa, nas décadas de 70 e 80. Duas delas ainda residem na Lapa e as outras duas se mudaram para outros bairros da cidade. Através do discurso delas foi possível compreender que a opção pelo local era produto de raízes sócio-afetivas com aquele espaço, uma vez que suas famílias já residiam no local há muitas gerações. A existência desses moradores, provenientes da classe média, é comumente esquecida quando se pensa nos habitantes da Lapa, freqüentemente associados à malandragem, a boemia e a grupos socialmente marginalizados. O trabalho de Rosalinda Costa demonstra a dualidade da Lapa, que abrigava essas duas imagens em constante conflito, a boemia e a família, [...] Em torno de 1910 - 1940, duas identidades foram espacialmente construídas. Uma, de bairro da boemia. Outra, de bairro residencial familiar. A primeira dominou o imaginário coletivo da cidade do Rio de Janeiro. A segunda, como imagem de uma identidade espacial, ficou sufocada pela primeira. Tanto que a Lapa familiar da qual sempre ouvíamos falar em criança, não correspondia, inteiramente, à Lapa sobre a qual todas as gentes falavam. Pois a Lapa desse período ficara, na história da cidade, conhecida e reconhecida como o bairro da boemia. (COSTA, 1993, p.4) Esse relato de Rosalinda Costa aliado ao depoimento das pessoas entrevistadas serve para corroborar com a idéia de que no “bairro da Lapa”, independente de qualquer imaginário de malandragem, vícios e prostituição se sobrepõem ao caráter residencial do local. A partir daí, já se torna possível realizar uma comparação entre áreas gentrificáveis nos EUA, caracterizadas por Robert Beauregard, como: As vizinhanças para serem gentrificadas são locais deteriorados e ocupados por classe baixa ou média-baixa, geralmente, composta por pessoas idosas. Essas áreas residenciais estão localizadas próximas ao CBD – Central Buisness District – e, costumam possuir amenidades particulares como a vista da cidade, acesso a 8 parques ou locais de significância histórica. 1986, p. 37). (BEAUREGARD, E o caso canadense, especificamente na cidade de Vancouver, citada por David Ley, Uma característica distintiva [do centro] das cidades canadenses é a ausência de grandes externalidades negativas, a contínua presença de uma substancial classe média, recorrentes investimentos do setor privado no ambiente construído (Goldberg and Mercer apud David Ley, 1986, pp.522). O caso da Lapa apresenta uma terceira possibilidade de interpretação, já que existe uma contínua presença de membros da classe média, mas que se torna invisível frente aos esteriótipos associados à Lapa. No entanto, por muitas décadas, tanto o setor público quanto o privado negligenciou essa porção do Centro, permitindo um significativo processo de degradação e abandono. Mas, mais do que determinar quem são os antigos moradores do “bairro”, é de fundamental importância que se conheçam quem são, e o que pretendem, os novos moradores da Lapa. Neste estágio da pesquisa, ainda não foi possível entrevistar um grande número desses gentrificadores, mas mesmo com poucos questionários já foi possível identificar algumas similaridades entre eles e suas motivações, assim como singularidades em comparação com casos estrangeiros. Os moradores entrevistados foram solicitados para eleger de 0 a 5 os motivos que mais o atraíram para a Lapa, sendo 5 a razão mais importante. 9 Gráfico 1: Fatores que atraíram os gentrificadores à Lapa. (Fonte: MOSCIARO, M. 2009) 5 4 3 2 1 0 A.S. K.M. T.G. T.R. D.M. Facilidade de acesso Proximidade do trabalho Proximidade com opçoes de lazer Valor do imóvel compatível com as necessidades Imóveis mais adequados às necessidades Possibilidade de unir alto padrão de imóveis com a proximidade do centro Dois fatores não estão presentes no gráfico porque não foram escolhidos por nenhum dos entrevistados: “possibilidade de adquirir o primeiro imóvel” e “boa localização para quem está no Rio de Janeiro apenas a negócios”. A partir dessas informações já se torna possível traçar um breve perfil sobre esses gentrifiers da Lapa e colocá-os em contraposição com o esteriótipo criado por Smith & Willams (1986). Através do texto dos estudiosos norte-americanos, é possível identificar razões como: incapacidade de adquirir imóveis nos subúrbios, devido aos seus elevados preços, fazendo-os buscar por opções alternativas; proximidade com o trabalho, não gastando longos períodos de tempo no trajeto casa-trabalho; e a consolidação de um novo grupo social, composto por jovens, casados ou não, mas, geralmente, sem filhos. Por meio da conversa com os gentrificadores cariocas foi possível perceber que a questão da idade é um ponto em comum com os norte-americanos; assim como a necessidade de estar perto do trabalho e de opções de lazer se encontra presente nas respostas de todos os entrevistados, como pode ser observado no gráfico. 10 Um outro elemento fundamental para a ocorrência de um processo de gentrificação é uma significativa elevação no valor do solo no bairro afetado. A progressiva atração de membros das camadas mais abastadas da sociedade e dos serviços relacionados às demandas desse grupo produzem um encarecimento dos imóveis para venda e locação, fator impulsionador da remoção dos grupos mais pobres. O caderno Morar Bem, publicado aos domingos no jornal O Globo, fornece uma tabela com os valores médios das unidades, por bairro e por número de cômodos. A partir desses dados, foi possível realizar uma comparação entre o Centro e outros bairros tipicamente residenciais da cidade. Com base nessas informações, não foi possível analisar especificamente a Lapa, mas, como a localidade tem apresentado uma crescente atividade no setor imobiliário habitacional, acredita-se ela seja a maior responsável pelos valores observados. O segundo gráfico pretende demonstrar o valor dos imóveis disponíveis da subseção Lapa, do mesmo caderno do jornal O Globo. Um dado relevante e que não está evidenciado no gráfico é o aumento da oferta de unidades ao longo do período estudado. Em ambos os gráficos a seguir, os dados foram coletados no período entre fevereiro de 2008 e setembro de 2009, fornecendo um recorte temporal de mais de um ano, facilitando a observação de possíveis variações e tendências. Além disso, as primeiras observações foram feitas antes da “entrega das chaves” do condomínio “Cores da Lapa” e do prédio ”Viva a Lapa”, que afetaram significativamente a oferta e os valores oferecidos no “bairro”. 11 Valor dos imóveis em diversos bairros do Rio de Janeiro R$ 1.100.000,00 R$ 1.000.000,00 R$ 900.000,00 Laranjeiras Ipanem a R$ 700.000,00 Tijuca R$ 600.000,00 Méier R$ 500.000,00 Barra da Tijuca Copacabana R$ 400.000,00 Centro R$ 300.000,00 R$ 200.000,00 R$ 100.000,00 1 2 3 Número de quartos Gráfico 2: Valor dos imóveis em alguns bairros do Rio (fev. 2008 set. 2009). (Fonte: MOSCIARO, M. 2009) Variação do valor dos imóveis na área da Lapa, Rio de Janeiro R$ 250.000,00 R$ 200.000,00 fev/08 Valores Valor R$ 800.000,00 R$ 150.000,00 dez/08 fev/09 jul/09 R$ 100.000,00 set/09 R$ 50.000,00 R$ 0,00 1 2 3 Número de quartos Gráfico 3: Progressão no valor dos imóveis no bairro da Lapa. (Fonte: MOSCIARO, M. 2009) 12 A partir de estudo bibliográfico sobre casos de gentrificação em outras realidades urbanas, estes três elementos – elevação do valor do solo, atração de um novo grupo social e chegada de novos empreendimentos – são constantemente utilizados para determinar a ocorrência de casos de gentrificação. A possibilidade de observá-los no caso da Lapa permite que se questione sobre a real ocorrência de um processo deste tipo. Mas muitas outras pesquisas e levantamentos precisam se desenvolver para que se possa categoricamente afirmar que, de fato, existe um processo de gentrificação em curso na Lapa. FOCOS DE TENSÃO Um último aspecto, ainda não plenamente identificado na Lapa, mas que é evidente em muitos casos de gentrificação, é o choque entre os grupos sociais, os removidos e os gentrificadores. Em casos como o processo de gentrificação do Lower East Side ou do Harlem, em Nova York (Smith, 1991), há resistência severa da população local à chegada desses novos grupos sociais. Muitas vezes os representantes das camadas menos abastadas acabam sendo incapazes de lutar contra todo o poder financeiro e lobby dos gentrirficadores, e passam a ser vistos como um mal a ser removido das cidades. No contexto estadunidense, os grupos apologéticos da gentrificação tendem a associar esse fenômeno com o processo de conquista do oeste americano, a inner-city é vista como uma nova fronteira a ser desbravada, conquistada. Assim como [Frederick Jackson] Turner reconheceu a existência dos nativos americanos, mas os incluiu como parte da selvageria, o imaginário contemporâneo da fronteira urbana trata a população presente na inner-city como um elemento natural do ambiente circundante. O termo “pioneiro urbano” é, portanto, arrogante assim como a noção original de pioneiros que sugere que a cidade ainda não era socialmente habitada; como os nativos, a classe 13 urbana trabalhadora é vista como menos que social, parte do ambiente físico (SMITH, 1991, p. xiv). Um discurso como esse ainda não foi identificado no caso do Rio de Janeiro, mas por enquanto poucos foram os discursos que abordaram essa temática. O meio acadêmico, em função do seu posicionamento na maioria das vezes crítico, tende a repudiar comparações e análises desse tipo. Já os grupos intimamente envolvidos no processo buscam consolidar no imaginário da população, que vive fora desses bairros, a idéia de que a remoção dessas pessoas e sua substituição pela classe média só tende a beneficiar, não apenas o local, como toda a cidade. Ainda neste inicio das reflexões sobre o que pode estar ocorrendo na Lapa, poucos são os movimentos que tem se mostrado contrários ao processo. Existem duas possibilidades para esse fato. Em primeiro lugar, os grupos contrários a essa atração de novas classes sociais para a Lapa não estão tendo voz para expor sua insatisfação. É muito plausível que esteja ocorrendo algum tipo de movimentação popular, só que ela ainda não atingiu o status de “questão urbana” para ser largamente debatida e apresentada aos moradores dos outros bairros da cidade. A diversidades de problemas sociais, econômicos e políticos que assolam a nossa cidade é muito extensa, e isso dificulta que pequenas iniciativas, de magnitude reduzida, possam ser ouvidas. Outra possibilidade é um real interesse de uma parcela dos moradores da Lapa de que esse processo se consolide. Afinal, a partir do que se ouviu de quem já morava na Lapa antes do processo de revitalização, muitos desses moradores se assemelham e se relacionam mais com o perfil socioeconômico dos gentrifiers do que com os trabalhadores pobres e residentes nas casas de cômodo da Lapa. Esse grupo percebe a gentrificação como uma forma de elevar o status social do seu bairro, assim como de valorizar os seus imóveis, alheios aos impactos sociais do processo. 14 NA BUSCA POR ESCLARECIMENTOS Esse artigo teve como finalidade demonstrar alguns elementos que sugerem a ocorrência de um processo de gentrificação na Lapa. A proposta dele não foi a de trazer soluções, afirmar ou negar a ocorrência desse processo, pelo contrário, a intenção é abrir os debates sobre o assunto para que outros pontos de vista possam se desenvolver e enriquecer o debate. Os casos internacionais são de fundamental importância para a consolidação do conceito e a identificação de algumas linhas de pesquisa já bem sucedidas. No entanto, o mais importante para o estudo do “bairro da Lapa” é identificar suas singularidades, os elementos que o fazem único dentre as diversas áreas gentrificadas no mundo. As bases para essa compreensão já foram lançadas, mas muito ainda se precisa questionar e muitos são os atores envolvidos a serem identificados e estudados. Não se trata de um único trabalho, mas de uma pluralidade deles, provenientes dos mais diversos campos do conhecimento, que permitirão um entendimento mais completo do que pode estar ocorrendo na Lapa. BIBLIOGRAFIA BEAUREGARD, Robert A. Chaos and complexity of gentrification, cap. 3 In: SMITH, N. e WILLIAMS, P. Gentrification of the city. Boston: Allen & Unwin, 1986 COSTA, Rosalinda M. Em busca do espaço perdido - A reconstrução das identidades espaciais do bairro da Lapa na cidade do Rio de Janeiro, 1993. Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Pós Graduação em Geografia da UFRJ. 15 DEUTSCHE, Rosalyn. e RYAN, Cara G. (1984) The fine art of gentrification. http://www.jstor.org/stable/778358, acessado em 23 de junho de 2010. DICIONÁRIO CAMBRIDGE INTERNATIONAL of ENGLISH (1995). London: Cambridge Univerity Press DICIONÁRIO WEBSTER ONLINE, http://www.websters-online-dictionary.org/, acessado em 7 de julho de 2010 HAMNET, Chris (1991). The blinf men and the elephant: the explanation of gentrification. Transactions of the Institute of British Geographers, New Series, Vol. 16, No. 2 , pp. 173-189 . http://www.jstor.org/stable/622612, acessado em 15 de julho de 2010. LEY, David. Alternative Explanations for Inner-City Gentrification: A Canadian Assessment In Annals of the Association of American Geographers, Vol. 76, No. 4 (Dec., 1986), pp.521-535. http://www.jstor.org/stable/2562708, acessado em 17 de julho de 2010. Jornal O GLOBO, caderno Morar Bem, 2008 e 2009. Rio de Janeiro. MOSCIARO, Mayra. (2009) A “revitalização” da Lapa: Uma análise através dos novos empreendimentos. Monografia apresentada para a graduação de Bacharel em Geografia, UFRJ. SANTOS, Carlos N.F. dos (1988) A Cidade como Jogo de Cartas. Niterói e São Paulo: EDUFF e Projeto Editores. SMITH, Neil (1996). The new urban frontier: gentrification and the revanchist city. New York: Routledge SOUZA, Marcelo L. de. O bairro contemporâneo: Ensaio de abordagem política. In: Revista Brasileira de Geografia, 1989. Vol. 51, nº 2. Rio de Janeiro: IBGE. 16