“Tocqueville e as formas de governo” Rafael Salatini1 1. [historicismo] O clássico tema das formas de governo, que nasceu com Herótodo (e sua famosa discussão dos três reis persas) e passou à filosofia política a partir das obras de Platão e Aristóteles, não arrefeceu na filosofia política moderna, estando presente nas obras de Maquiavel, Bodin, Hobbes, Vico, Montesquieu, Hegel e mesmo Marx, como demonstrou brilhantemente N. Bobbio em seu curso (no Brasil publicado como livro) A teoria das formas de governo na história do pensamento político (1976), oferecido originalmente na Universidade de Turim no ano acadêmico de 1975-1976. Entretanto, nesta obra, não se faz nenhuma referência ao pensador francês Alexis de Tocqueville (1805-1859), como de resto pouca atenção tem sido dada a este tema em sua vasta obra. Tocqueville escreveu pelo menos duas obras fundamentais do pensamento político do século XIX: os dois volumes de A democracia na América (1835, 1840) e O Antigo Regime e a Revolução (1856). No primeiro empreende-se um abrangente e originalíssimo estudo sobre a vida social e política da insurgente sociedade norteamericana, escrito a partir de uma viagem exploratória feita pelo autor entre maio de 1831 e fevereiro de 1832 nos EUA, juntamente com seu amigo Gustave de Beuamont (com quem escrevera ainda Do sistema penitenciário nos Estados Unidos e de sua aplicação na França, publicado em 1833), dividido em duas partes: o volume I, de caráter descritivo; o volume II, analítico. A segunda obra trata-se de um estudo também profundo e original sobre as causas que levaram à Revolução Francesa. É curioso que Tocqueville até hoje nunca tenha sido considerado sob a perspectiva da teoria das formas de governo, uma vez que o tema não é ausente nem se trata de uma questão menor em seu pensamento político. A questão das formas de governo parece mesmo um tema dos mais importantes tanto em A democracia... quanto em O Antigo Regime..., fornecendo-lhes inclusive os conceitos principais com que se descrevem tanto a vida política americana do século XIX em um quanto a vida política francesa do século XVIII no outro. Espero neste ensaio poder resgatar essa dimensão 1 Doutorando em Ciência Política na FFLCH-USP. 1 esquecida do pensamento tocqueviliano, ainda que só o possa fazer aqui de forma introdutória e incompleta. Tocqueville, como se sabe, é discípulo de Montesquieu (outra influência sua é Guizot, de quem fora aluno na Sourbonne2). A influência do autor de O espírito das leis (1748) em seu pensamento é tão grande que abrange desde sua concepção filosófica mais geral até especificamente a maior parte das categorias conceituais utilizadas em suas obras, embora esta influência não signifique certamente nem uma mera repetição nem uma falta de identidade intelectual própria. A concepção filosófica adotada por Montesquieu – que Tocqueville seguirá – trata-se do historicismo, perspectiva que remontava a uma velha tradição intelectual que inclui em sua fileira nomes como Aristóteles entre os antigos, Agostinho entre os medievais e Maquiavel entre os modernos, e que permanecera praticamente esquecida entre os séculos XVII e XVIII, em função do predomínio do racionalismo contratualista de autores como Hobbes, Espinosa e Locke (e que chegaria até Rousseau e Kant). Embora alguns autores nesse período tivessem permanecido fiéis à filosofia historicista, e críticos ao racionalismo, como é o caso de Vico (que não obstante seria pouco lido até o século XIX), Montesquieu seria o primeiro autor setecentista verdadeiramente influente a basear suas afirmações em fatos históricos e não nos ditames da reta razão – ainda que alguns desses fatos fossem mais fantasiosos que reais (como de resto também eram o Rômulo citados por Maquiavel, o “verdadeiro Homero” de Vico ou o Teseu citado pelo jovem Hegel). O historicismo de Montesquieu seria tão influente que alcançaria tanto autores contratualistas tardios como Rousseau (o primeiro a falar num contrato histórico) e Kant (que escreveria um artigo intitulado “Idéia de uma história universal do ponto de vista cosmopolita”, em 1784) quanto o maior filósofo historicista moderno, Hegel, que também aproveitaria em sua filosofia do direito as categorias das formas de governo utilizadas pelo pensador francês. Remetendo-se diversas vezes, explicitamente, à influência recebida de Montesquieu – citado em praticamente todas suas obras –, Tocqueville também desenvolve suas idéias políticas à luz de fatos históricos, procurando elementos históricos concretos em que basear seu pensamento político3 em lugar do modelo da geometria que servira a filósofos como Hobbes e Espinosa. Não por outro motivo, para escrever A democracia..., visitou pessoalmente a América, assim como procurou ler arquivos e relatórios históricos sobre seu objeto (citados nas diversas notas de rodapé presentes na obra); já O Antigo Regime.... custou-lhe cinco anos de exaustiva pesquisa histórica e documental em obras históricas e arquivos públicos sobre o século XVIII na França, material que faz questão de mencionar profusamente e cuja importância enaltece desde o prefácio da obra. A respeito do método histórico, comentando um novo livro que pretendia escrever (que viria a ser justamente O Antigo Regime....), escreve o seguinte, numa carta de 26 de dezembro de 1850 ao velho amigo G. Beaumont: “Como se sabe, há muito tempo que estou preocupado com a idéia de empreender um novo livro. (...) Comecei portanto a procurar seu assunto enquanto percorri as montanhas de Sorrente. Tinha de ser contemporâneo e fornecer-me os meios de combinar os fatos com as idéias e a filosofia da história com história em si. Estas são, para mim, as condições do problema. Pensara muitas vezes no Império, neste ato singular do drama ainda sem desenlace que chamam Revolução Francesa. Mas sempre fiquei reprimido pela visão de obstáculos intransponíveis e principalmente pelo 2 Sobre a formação intelectual de Tocqueville, cf. L. Díez del Corral, El pensamiento politico de Tocqueville, Madrid, Alianza, 1989 (402 p.). 3 Sobre o historicismo em Tocqueville, cf., em português, M.G. Jasmin, Alexis de Tocqueville – A historiografia como ciência da política, Rio de Janeiro, Access, 1997 (341 p.). 2 pensamento de que eu daria a impressão de querer fazer livros celebres já feitos. Mas, desta vez, o assunto surgiu aos meus olhos sob uma forma nova que pareceu torná-lo mais abordável. Pensei que não deveria empreender a história do Império e sim tentar mostrar e fazer compreender a causa, o caráter, o alcance dos grandes acontecimentos que formavam os elos principais da corrente desse tempo. Então a narração dos fatos não seria mais a meta do livro. Os fatos só seriam, de certa maneira, a base sólida e contínua sobre a qual apoiar-se-iam todas as idéias que tenho na cabeça, não somente sobre esta época mas também sobre a que a antecedeu e a que a sucedeu, sobre seu caráter, sobre o homem extraordinário que a preencheu, sobre a direção por ela dada ao movimento da Revolução Francesa, à sorte da nação e ao destino de toda a Europa”4. Este trecho é essencial para se entender o historicismo tocquevilliano. Seu núcleo metodológico consiste em “combinar os fatos com as idéias e a filosofia da história com história em si”. Se a filosofia racionalista se baseava somente em idéias e a disciplina histórica somente com fatos, o historicismo pretende oferecer uma ponte para entre ambas. Seu pressuposto básico é que as idéias sem os fatos não passam de fantasia, enquanto os fatos sem as idéias são incompreensíveis. Não se trata portanto, de “empreender a história do Império”, mas “sim tentar mostrar e fazer compreender a causa, o caráter, o alcance dos grandes acontecimentos que formavam os elos principais da corrente desse tempo”. Mas, se o interesse é reunir numa só forma de pensamento idéias e fatos, filosofia e história, tal empreendimento em Tocqueville se faz partindo-se dos fatos para as idéias e não o inverso. São os fatos que dão origem às idéias e não as idéias aos fatos, ou com suas palavras, “os fatos só seriam, de certa maneira, a base sólida e contínua sobre a qual apoiar-se-iam todas as idéias”. Ou seja, trata-se em verdade de um historicismo materialista, e não idealista (para além do seu providencialismo retórico). Com essa convicção, Tocqueville abre o Prefácio que escreve para O Antigo Regime.... com a seguinte frase: “O livro que publico agora não é uma história da Revolução, história que foi feita com demasiado brilho para que eu chegue a sonhar em refazê-la; trata-se de um estudo sobre esta Revolução”5. O modelo desse tipo de abordagem Tocqueville encontrará, como afirma numa carta anterior, de 15 de dezembro de 1850, a L. Kergorlay (tratando ainda do assunto do novo livro), em Montesquieu: “O inimitável modelo deste gênero está no livro de Montesquieu sobre a grandeza e a decadência dos romanos. Nela passamos através da história romana por assim dizer sem pararmos, e contudo percebemos o bastante dessa história como para desejarmos as explicações do autor e compreendê-las”6. 2. [categorias conceituais] Esclarecido o fundamento filosófico do pensamento tocquevilliano, passo diretamente às suas categorias conceituais. No que ao tema das formas de governo, o quadro conceitual que Tocqueville utiliza é emprestado diretamente de Montesquieu. Tanto em A democracia... quanto em O Antigo Regime...., embora não se empreenda em nenhum momento uma apresentação formal de tal quadro, a classificação das formas de governo empregada é a mesma que havia sido desenvolvida em O espírito... (que seria utilizada ainda por pensadores como Rousseau, Kant e Hegel), a qual incluía três 4 Citado em J.P. Mayer, “Introdução”, in A. Tocqueville, O Antigo Regime e a Revolução, trad. Y. Jean, Brasília, UnB, 1982, p. 27. 5 A. Tocqueville, O Antigo Regime..., op. cit., p. 43. 6 Citado em J.P. Mayer, “Introdução”, in A. Tocqueville, O Antigo Regime..., op. cit., p. 29. 3 espécies: a república, a monarquia e o despotismo. A república, dizia Montesquieu, é aquela forma de governo em que “todo o povo, ou pelo menos uma parte dele, detém o poder supremo”; a monarquia, “aquela em que governa uma pessoa só, de acordo com leis fixas e estabelecidas”; enquanto, no despotismo, “um só arrasta tudo e a todos com sua vontade ou caprichos, sem leis ou freios”. Montesquieu especifica ainda, na seqüência, que “quando, na república, é o povo inteiro que dispõe do poder supremo, tem-se uma democracia; quando o poder supremo se encontra nas mãos de uma parte do povo, uma aristocracia” (O espírito..., livro II, capítulo I). É este o quadro conceitual que será utilizado por Tocqueville tanto em A democracia... quanto em O Antigo Regime... (e mesmo em obras menores), sem qualquer alteração, seja para acrescentar, diminuir ou mesmo renomear alguma forma. Ainda que existam ao longo de seus escritos outros termos clássicos do debate sobre formas de governo (como oligarquia, tirania ou anarquia), o quadro conceitual geral e operacional utilizado por Tocqueville serão as três formas montesquianas, incluindo as duas subespécies de república. Pode-se ver uso dos três termos monarquia, aristocracia e democracia neste pequeno trecho de O Antigo Regime...: “Os primeiros esforços da Revolução tinham destruído esta grande instituição da monarquia: foi restaurada em 1800. Não foram, como disseram tantas vezes, os princípios administrativos da de 1789 que triunfaram nessa época e depois, mas, ao contrário, os princípios do antigo regime que voltaram todos a imperar e lá ficaram. Se me perguntarem como esta porção do antigo regime assim pôde ser transferida inteiriça na nova sociedade e nela se incorporar, responderei que a centralização não pereceu com a Revolução porque era o próprio sinal desta Revolução, e acrescentarei que quando um povo destruiu em seu seio a aristocracia corre em direção à centralização como atrás de si mesmo. Então é mais fácil jogá-lo neste declive que freá-lo. Em seu seio, todos os poderes tendem naturalmente à unidade e é preciso muita arte para separá-los. A revolução democrática que destruiu tantas instituições do antigo regime tinha, portanto, que consolidar esta unidade, e a centralização encontrava tanta naturalidade seu lugar na sociedade formada pela Revolução que é fácil entender por que a consideram obra sua”7 (livro II, capítulo V). Com relação ao despotismo, escreve mais à frente: “Se quiserem ter uma idéia exata das revoluções que o espírito dos homens pode sofrer devido às mudanças de sua condição, é preciso reler os cadernos da ordem do clero em 1789. Neles o clero mostra-se muitas vezes intolerante e às vezes obstinadamente ligado a alguns de seus antigos privilégios, mas pelo resto e tão inimigo do despotismo, tão favorável à liberdade civil e tão apaixonado pela liberdade política que o terceiro estado ou a nobreza, e proclama que a liberdade individual deve ser garantida não por promessas mas por um procedimento análogo ao do habeas corpus”8 (livro II, capítulo XI). Mas disse que influência não significa repetição e isso aplica ao uso que Tocqueville faz das formas de governo montesquianas (e justifica em si um ensaio exclusivo a respeito do assunto). Enquanto o mundo de Montesquieu era a França absolutista, o mundo de Tocqueville trata-se do século que recém assistira a fenômenos políticos tão grandiosos quanto a independência dos EUA e a Revolução Francesa, aspectos históricos que, se chegaram a impressionar mesmo um pensador ultraracionalista como Kant, não deixariam de deixar uma marca profunda em praticamente todos os pensadores historicistas (de Burke a Marx). Assim, o resultado mais evidente dessas mudanças é a importância dada a cada forma. A categoria central para 7 8 A. Tocqueville, O Antigo Regime..., op. cit., p. 94. A. Tocqueville, O Antigo Regime..., op. cit., p. 125. 4 Montesquieu era a monarquia constitucional (cujos exemplos são a França e a Inglaterra de sua época), ao passo que a república (cujos exemplos são as cidades antigas: Atenas, considerada uma república democrática, e Roma, considerada uma república aristocrática) e o despotismo (cujo exemplo modelar é a China) serão consideradas categorias auxiliares. Tocqueville imprimirá outra ordem à disposição da importância das formas de governo, alterando a posição de dois termos: embora o despotismo (cujo exemplo maior continua sendo a China) continue sendo uma categoria auxiliar, diminui a importância da monarquia (cujo exemplo igualmente continua sendo as monarquias absolutas européias) e aumenta a da república (cujos exemplos deixam de ser antigos e passam a ser moderno: a França, como república aristocrática, e os EUA, como república democrática). Assim, se a ordem de importância das formas de governo para Montesquieu seguia o sentido despotismo < república < monarquia, para Tocqueville seguirá o sentido despotismo < monarquia < república, constituindo uma nova ordem. Sobre a perda de importância da monarquia em função do ganho de importância por parte da república, afirma-se o seguinte, no livro I de A democracia...: “Hoje em dia, o princípio republicano reina na América como o princípio monárquico dominava na França sob Luís XIV. Os franceses de então não eram apenas amigos da monarquia, mas, ainda, não imaginavam que se pudesse colocar alguma coisa em seu lugar; admitiam-na, pois, assim como se admitem o curso do sol e as vicissitudes das estações. Entre eles, o poder real não tinha mais defensores que adversários. É assim que a república existe na América, sem combate, sem oposição, sem prova, por um acordo tácito; uma espécie de consensus universalis”9 (segunda parte, capítulo X). A monarquia para Tocqueville tornara-se um fenômeno do passado, enquanto a república tratava-se do fenômeno político mais espetacular do presente, sobretudo na América independente (mas também na Europa pós-Revolução Francesa). Mas, se tanto na América quanto na Europa a república entrava em cena substituindo a monarquia, em ambos os continentes o fenômeno não possuía exatamente as mesmas características. Uma das marcas do pensamento historicista é justamente a relevância destacada para os aspectos particulares. Enquanto o pensamento racionalista, de Platão a Kant, sempre se dedicou à perscrutação do Estado como uma categoria universal, os autores historicistas se dedicarão à argumentação das diferenças marcantes entre os diversos Estados (como Maquiavel argumentará acerca das diferenças entre a Itália e a França, e o jovem Hegel entre a França e a Alemanha). Em A democracia..., Tocqueville não se cansa em nenhum momento de apontar as diferenças entre os Estados Unidos e a França (e por vezes à Inglaterra). Aludirá, assim, entre as inúmeras diferenças, ao fato de que, dado seu forte passado monárquico, mesmo que a França se torne republicana, a república ali terá sempre fortes traços monarquistas – entre os quais a centralização do poder (tema fundamental de O Antigo Regime...); ao passo que os EUA, não possuindo passado monárquico (exceto aquele longínquo que se liga à antiga metrópole), dificilmente se tornariam uma monarquia. Um trecho de A democracia... destaca a distância entre ambas as nações: “Se, hoje em dia, um partido decidisse fundar a monarquia nos Estados, estaria numa posição ainda mais difícil que a daquele que desejasse proclamar desde logo a república na França. A realeza não encontraria a legislação preparada de antemão para ela, e seria então, bem realmente, que se veria uma monarquia rodeada de instituições republicanas. O princípio monárquico penetrará com igual dificuldade nos costumes dos americanos. Nos Estados Unidos, o dogma da soberania do povo não é, de maneira 9 A. Tocqueville, A democracia na América, trad. N.R. Silva, Belo Horizonte, Itatiaia, São Paulo, Edusp, 1987, p. 305. 5 alguma, uma doutrina isolada que não deve nem aos hábitos, nem ao conjunto das idéias dominantes; pelo contrário, é possível considerá-la como o último elo de uma cadeia de opiniões que envolve o mundo anglo-americano por inteiro”10 (livro I, segunda parte, capítulo X). Assim, mesmo que no futuro das duas nações se encontre a figura da república, esta em ambas não seria exatamente a mesma coisa, mas coisas diferentes. Sobre a república americana, numa seção do capítulo X da segunda parte do livro I de A democracia..., intitulada justamente “Das instituições republicanas nos Estados Unidos”, Tocqueville afirma o seguinte: “O que se entende por república, nos Estados Unidos, é ação lenta e tranqüila da sociedade sobre si mesma. É um estado regular, fundado realmente na vontade esclarecida do povo. É um governo conciliador, cujas resoluções amadureceram longamente, são discutidos com lentidão e executados com maturidade. Os republicanos dos Estados Unidos prezam os costumes, respeitam as crenças, reconhecem os direitos. Professam a opinião de que um povo deve ser moral, religioso e moderado, na proporção em que é livre. O que se chama de república, nos Estados Unidos, é o reino tranqüilo da maioria. A maioria, depois que teve tempo de se reconhecer e de certificarse da própria existência, é a fonte comum dos poderes. Mas a própria maioria não é todo-poderosa. Acima dele, no mundo moral, acham-se a humanidade, a justiça e a razão; no mundo político, os direitos adquiridos. A maioria reconhece essas duas barreiras e, se lhe ocorre atravessá-las, é que tem paixões, como todo homem, e que, tal como eles, pode fazer o mal ao discernir o bem”11. Da república na Europa, por outro lado, escreverá diferentemente, na seqüência: “Na Europa, entretanto, fizemos estranhas descobertas. A república, conforme alguns dentre nós, não é o reino da maioria, como a julgamos até aqui; é o reino daqueles que se inclinam fortemente para a maioria. Não é o povo que dirige nessa espécie de governo, mas aqueles que sabem qual é o maior bem do povo: distinção feliz, que permite agir em nome das nações sem consultá-las e reclamar o seu reconhecimento arrojando-as aos pés. O governo republicano é, ademais, o único ao qual se deve reconhecer o direito de fazer tudo e que poderia desprezar aquilo que até hoje os homens respeitaram, desde as mais altas leis da moral até as regras vulgares do senso comum. Pensava-se, até hoje em dia, que o despotismo era odioso, fossem quais fossem as suas formas. Mas descobriu-se, em nossos dias, que havia no mundo tiranias legítimas e santas injustiças, desde que fossem exercidas em nome do povo”12. Pode-se afirmar que a diferença básica entre ambas as formas repúblicas – “o reino tranqüilo da maioria” nos EUA e “o reino daqueles que se inclinam fortemente para a maioria” na Europa – consiste na classe que participa da direção governativa da nação: enquanto numa (na república democrática) o próprio povo dirige a nação, em outra ele é dirigido pela classe aristocrática. A distinção não é pequena, mas fundamental, pois que a primeira trata-se de uma república entre iguais; a segunda, entre desiguais. A primeira trata-se de uma república revolucionária; a segunda, uma república que trás consigo as marcas do passado (como argumentará extensamente em O Antigo Regime...). A primeira, de uma república pura; a segunda, uma república mista. A primeira trata-se de um fenômeno novo; a segunda, um fenômeno com características velhas; etc. Em suma, a república na Europa tratava-se de uma república aristocrática; a americana, de uma república democrática. 10 A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., p. 304. A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., p. 303. 12 A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., p. 303. 11 6 Feita a distinção primária entre monarquia e república, com o declínio da primeira, a distinção fundamental das formas de governo modernamente passa a ser para Tocqueville a antinomia entre república aristocrática e república democrática, uma sendo apresentada como a grande contraposição histórica da outra. 3. [aristocracia e democracia] Porém, é preciso esclarecer o que Tocqueville entende tanto por democracia quanto por aristocracia, uma vez se tratam de palavras antigas às quais se oferece em grande medida um sentido novo. O primeiro a contrapor estas duas formas de governo foi Aristóteles, no livro VI de seu Política, assim como foi o primeiro a ressaltar suas diferenças sociais, referindo-se à aristocracia como o governo dos ricos (que sempre serão a minoria) e à democracia como o governo dos pobres (que sempre serão a maioria). Não obstante, mesmo em Aristóteles (como, de resto, em Platão, Xenofonte, Maquiavel, Hobbes, Kant, etc.), aristocracia e democracia serão termos utilizados para se referir sobretudo a formas políticas, ou seja, a formas de governo em sentido estrito. Tocqueville, entretanto, ainda que o sentido político ainda apareça por vezes em algumas passagens, utilizará os dois termos preferencialmente em sentido social. Não por outro motivo chegou a ser considerado como um precursor da sociologia francesa. Mas esse sentido não será identicamente o mesmo utilizado por Aristóteles de governo dos ricos e governo dos pobres. Por aristocracia Tocqueville entenderá mais exatamente a desigualdade de condições, enquanto por democracia, a igualdade de condições. Na maior parte das vezes, tanto em A democracia... quanto em outras obras, os termos condições de desigualdade/aristocracia e condições de igualdade/democracia são utilizados como termos permutáveis. A relação entre aristocracia e desigualdade de condições trata-se de um fenômeno típico do antigo regime, onde a distância social entre a nobreza e a burguesia marcada as relações sociais e políticas. Da mesma forma, a relação entre democracia e igualdade de condições trata-se de um fenômeno típico da sociedade mercantil (e depois industrializada), onde a nobreza perde seus privilégios e a burguesia, uma classe universalista, adquire um amplo leque de direitos, que vão dos direitos civis aos políticos, aos quais as vitórias da classe trabalhadora posteriormente somarão os direitos sociais. Sobre a relação entre a aristocracia e a desigualdade, Tocqueville escreve de uma forma surpreendentemente realista (para alguém que escreve sobre sua própria classe), neste trecho: “Desde que existem as sociedades humanas, não creio que se possa citar o exemplo de sequer um povo que, entregue a si mesmo e pelos seus próprios esforços, tenha criado em seu meio uma aristocracia: todas as aristocracias da Idade Média são filhas da conquista. O vencedor era o nobre, o vencido o servo. A força impunha, então, a desigualdade, a qual, depois de entrar para os costumes, mantinha-se sozinha e passava naturalmente a pertencer às leis. Viram-se sociedades que, em conseqüência de acontecimentos anteriores à sua existência, por assim dizer nasceram aristocráticas, e que caminhavam século a século para a democracia. Tal foi a sorte dos romanos e a dos bárbaros que se estabeleceram depois deles. Mas um povo que, partindo da civilização e da democracia, se aproximasse gradualmente da desigualdade das condições e acabasse por estabelecer em seu seio privilégios invioláveis e categorias exclusivas seria efetivamente novo no mundo”13 (A democracia..., livro I, segunda parte, capítulo X). 13 A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., p. 306. 7 Acerca da relação entre a democracia e a igualdade – tema central de A democracia... – os termos se invertem. Entre os diversos trechos que poderiam descrever esta relação, limito-me à citação deste: “Não creio que haja um só território da Europa onde o desenvolvimento da igualdade não tenha sido precedido ou seguido por algumas violentas transformações na situação da propriedade e das pessoas, e quase todas essas transformações foram acompanhadas de muita anarquia e de licença, porque eram feitas pela porção menos educada da nação contra a que o era mais. Daí saíram as duas tendências contrárias a que me referi anteriormente. Enquanto a revolução democrática era acalorada, os homens ocupados em destruir os antigos poderes aristocráticos que a combatiam mostravam-se animados por um grande espírito de independência e, à medida que a vitória da igualdade se tornava mais completa, abandonavam-se pouco a pouco aos instintos naturais que essa mesma igualdade faz nascer, e reforçavam e centralizavam o poder social”14 (A democracia..., livro II, segunda parte, capítulo V). Como disse acima, o exemplo mor da democracia para Tocqueville são os EUA, descrita como a “imagem da própria democracia”15. Da aristocracia o exemplo citado ora trata-se da França (quando quer enfatizar o tema da igualdade versus a desigualdade) ora da Inglaterra (quando quer enfatizar o tema da liberdade versus a opressão). Mencionei acima o tema da república nos EUA. Especificamente sobre o tema da democracia nos EUA, Tocqueville escreve, logo no início da referida Introdução, a seguinte apresentação: “Entre os objetos novos que, durante a minha demora nos Estados Unidos, atraíram a minha atenção, nenhum me impressionou mais vivamente do que a igualdade de condições. Não me custou perceber a influência prodigiosa que essa realidade primária exerce sobre a marcha da sociedade, ela dá à opinião pública uma direção definida, uma tendência certa às leis, máximas novas aos governos e hábitos peculiares aos governados. Logo reconheci que esse mesmo fato estende a sua influência para muito além dos costumes políticos e das leis e que não tem menos domínio sobre a sociedade civil que sobre o governo; cria opiniões, faz nascer sentimentos, sugere práticas e modifica tudo aquilo que ele mesmo não produz. Dessa forma, à medida que estudava a sociedade americana, via cada vez mais, na igualdade de condições, o fato essencial, do qual parecia descender cada fato particular, e o encontrava constantemente diante de mim, como um ponto de convergência para todas as minhas observações”16. O que impressiona Tocqueville na democracia americana é a igualdade de condições. Inexistente à época no continente europeu, ao menos no mesmo nível, tal fenômeno social novo oferecia uma influência desmedida sobre toda a vida americana, tanto no que se refere ao governo (em termos jurídicos e políticos) quanto, mais amplamente, no que se refere à sociedade civil (em termos sociais, econômicos, culturais, etc.) A igualdade de condições é descrita mesmo como o “fato essencial” do qual parte “cada fato particular”. A igualdade de condições americana trata-se de um fenômeno social típico de uma nação que nasceu praticamente ex nihil, ou seja, ao mesmo tempo em que abandonou o passado (aristocrático) europeu não transigiu com a cultura dos povos pré-colombianos encontrados no novo território, fazendo surgir sua sociedade de um ponto em que todos os cidadãos se encontravam nas mesmas condições sociais, não havendo nem quem estivesse acima nem quem estivesse abaixo da escala social. A extensão territorial praticamente infinita, comparativamente com a 14 A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., p. 509. A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., p. 19. 16 A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., p. 19. 15 8 população de colonos existentes à época, também serviu base para a constituição de uma sociedade em que diferenças materiais não apresentavam praticamente variabilidade nenhuma entre os cidadãos. Um terceiro aspecto relevante, bastante enfatizado por Tocqueville, trata-se do aspecto cultural: composto na maior parte por fiéis puritanos, a sociedade americana nascia baseada num dos mais radicais espíritos igualitários forjados durante as guerras religiosas européias. Assim, praticamente todas as características encontradas naquela nação apontavam para a constituição da nação mais igualitária do globo. Na seqüência, entretanto, Tocqueville entrevê o mesmo processo se estendendo sobre a Europa, como se pode ler abaixo: “Voltei então o pensamento para o nosso hemisfério e pareceu-me distinguir nele algo de semelhante ao espetáculo que me oferecia o Novo Mundo. Via a igualdade de condições que, sem nele ter chegado, como nos Estados Unidos, aos seus limites extremos, se aproximava cada dia mais desses limites; e aquela mesma democracia que reinava sobre a sociedade americana parecia-me encaminhar-se rapidamente para o poder, na Europa”17. 4. [democracia] Falei acima que, diferentemente de Montesquieu, Tocqueville dará mais importância à república que à monarquia. Porém, é preciso dizer igualmente que, entre as duas subespécies de república, a república democrática será apresentada com maior ênfase que a república aristocrática. Se todas as formas de governo classificadas por Montesquieu podem ser encontradas nas obras de Tocqueville – ainda que o uso que se faça delas seja ao seu modo original –, a forma de governo fundamental da discussão tocqueviliana, em praticamente todos os seus escritos, pela qual inclusive o autor é lido e relido até hoje, será a república democrática18. Como disse acima, em Tocqueville o termo democracia não se trata nem da forma de governo instituída por Sólon no século V a.C. (sentido com que o termo ainda aparece em Hobbes, Rousseau e mesmo Kant) nem da forma de governo moderna baseada na representação política e na extensão do sufrágio (sentido com que o termo já aparece em Bentham, Stuart Mill e Marx). Não que Tocqueville não conheça esses sentidos, seja o antigo seja o moderno. Apenas não servem para representar o fenômeno essencial que intentava descrever com relação à América, qual seja, a igualdade de condições sociais e seus efeitos. Sobre a democracia antiga, por exemplo, escreve o seguinte: “Fala-se de pequenas democracias da Antiguidade, cujos cidadãos iam à praça pública com coroas de rosas e passavam quase todo o tempo em danças e espetáculos. Não acredito mais em semelhantes repúblicas do que na de Platão: ou, se as coisas se passassem assim como nos são contadas, não receio afirmar que tais pretensas democracias eram formadas de elementos bem diferentes dos nossos e nada tinham de com essas exceto o nome”19 (A democracia..., livro II, terceira parte, capítulo XV). Descartado que o fenômeno novo seja um renascimento do antigo, entende-se a necessidade de uma classificação nova. Todavia, como é comum na história das idéias políticas, ainda que um quadro geral seja desenhado, mesmo que de forma dispersa como aqui, apenas uma forma importa centralmente (a forma que se quer entender 17 A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., p. 19. Cf. a respeito deste tema também o interessante texto de C. Lefort, “Tocqueville: democracia e arte da escrita”, in Desafios da escrita política, trad. E.M. Souza, São Paulo, Discurso, 1999, pp. 55-91. 19 A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., p. 466. 18 9 verdadeiramente). Assim como para Maquiavel importava primordialmente o principado novo no livro de 1513 e o governo misto nos primeiros capítulos do livro I dos Discursos..., e para Hobbes importava a monarquia, para Tocqueville importará centralmente a democracia, entendida como a igualdade de condições. Não por outro motivo, em A democracia..., ao invés de apresentar-se em separado cada forma de governo, oferece-se em verdade, ao longo de toda a obra, um quadro comparativo de cada forma em relação à democracia, comparando a esta ora com monarquia, como quando afirma que “causam-nos admiração todos os propósitos imprudentes a que às vezes se permite um homem público nos Estados livres e sobretudo nos Estados democráticos, sem ficar comprometido; ao passo que, nas monarquias absolutas, algumas palavras que escapam por acaso bastam para revelar para sempre e perder sem recurso”20; ora com despotismo, como se vê neste trecho: “Sob o despotismo, os povos vez por outra se entregam aos esplendores de uma louca alegria; mas, em geral, são melancólicos e concentrados, porque têm medo. Nas monarquias absolutas, suavizadas pelos costumes e pelos usos, muitas vezes revelam um humor igual e contido, porque, tendo alguma liberdade e uma segurança bastante grande, são afastados dos cuidados mais importantes da vida; mas todos os povos livres são graves, porque o seu espírito é habitualmente absorvido na visão de algum projeto perigoso ou difícil. Ocorre isso sobretudo entre os povos livres que são constituídos em democracia” 21 (livro II, terceira parte, capítulo XV). Duas citações dentre inúmeras possíveis que se poderiam citar. Pode-se perceber que, em comparação com a monarquia (onde reina a aristocracia), ilumina-se a oposição entre igualdade e desigualdade; ao passo que, em comparação com o despotismo, ilumina-se a oposição entre liberdade e opressão. Num caso, a república democrática aparece como o governo dos iguais em oposição ao governo dos desiguais; no outro, como o governo dos livres em comparação com o governo dos opressores sobre os oprimidos. No primeiro caso, tem-se o destaque do componente propriamente democrático; no segundo, do componente propriamente republicano. No conjunto, tem-se a concepção completa da república democrática: o governo dos livres e iguais; e os dois conceitos básicos da obra: a liberdade e a igualdade. Para Tocqueville, o primeiro conceito define a república; o segundo, a democracia. A república é o governo dos livres; a democracia, o governo dos iguais; e a república democrática, o governo dos livres e iguais (assim como a república aristocrática, o governo dos livres e desiguais). O fato de a república democrática se definir por dois princípios irredutíveis explica ademais porque trata-se de uma forma de governo composta por dois termos. O grande temor tocqueviliano é justamente que o segundo elemento, a igualdade, venha a pôr em risco o primeiro, a liberdade22. Quando isto acontece tem-se em curso o que chama de “tirania da maioria” (famoso tema de uma seção do capítulo VII da segunda parte do livro I de A democracia...). Porém, se são comparadas mais de uma vez – e em ambas as grandes obras – tanto a monarquia quanto o despotismo com a democracia, não se pode deixar de notar que a forma mais freqüente com que esta é comparada é, entretanto, a república aristocrática, que representa para o autor o próprio espelho invertido da democracia, como na seguinte passagem de A democracia...: “Nas aristocracias, cada um tem apenas uma só finalidade, que persegue sem cessar; mas, entre os povos democráticos, a existência do homem é mais complicada; raro é que o mesmo espírito não chegue a abranger vários objetos a um tempo, e muitas vezes objetos muito estranhos uns aos 20 A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., p. 467. A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., p. 466. 22 Sobre a relação entre liberdade e igualdade em Tocqueville, cf., em português, C.N.G. Quirino, Dos infortúnios da igualdade ao gozo da liberdade – Uma análise do pensamento político de Alexis de Tocqueville, São Paulo, Discurso, 2001 (270 p.). 21 10 outros”23 (livro II, terceira parte, capítulo XV); ou nesta: “Nos países aristocráticos, os grandes possuem imensos privilégios sobre os quais repousa o seu orgulho, sem procurar nutrir-se das miúdas vantagens que se relacionam com ele. (...) Nas democracias, sendo bastante móveis as condições, os homens quase sempre adquiriram recentemente as vantagens que possuem, o que faz com que sintam um prazer infinito em expô-las aos olhares, para mostrar aos outros e testemunhar a si mesmos que gozam delas”24 (livro II, terceira parte, capítulo XVI); ou ainda nesta outra: “Entre os povos aristocráticos, cada homem é mais ou menos fixo na sua esfera, mas os homens são prodigiosamente dessemelhantes, têm paixões, idéias, hábitos e gostos essencialmente diversos. Nada se agita, mas tudo é diferente. Nas democracias, pelo contrário, todos os homens são semelhantes e fazem coisas mais ou menos semelhantes. São sujeitos, é verdade, a grandes e contínuas vicissitudes; mas, como os mesmos sucessos e os mesmos reveses retornam continuadamente, o nome dos atores apenas é diferente, a peça é a mesma”25 (livro II, terceira parte, capítulo XVII). Outras citações que poderiam se repetir praticamente ad infinitum. Em relação à aristocracia, o que se ressalta é novamente a igualdade de condições presente na democracia. Se o despotismo representa para Tocqueville o inverso da democracia entendida como governo dos livres, a aristocracia, ainda mais que a monarquia (uma forma que já pertencia ao passado), é o corpo social que representa em si o inverso da democracia como governo dos iguais, ou seja, representa o inverso da igualdade de condições, ou, para não deixar de dizer, a desigualdade de condições. As passagens em que Tocqueville compara a democracia com a aristocracia, tanto no livro I quanto no II, são incontáveis e dominam todo o texto. Não há praticamente nenhuma característica que o autor impute a uma forma que não compare em relação à outra, encontrando em geral contrastes opositivos. 5. [critério axiológico] Estas são as formas de governo presentes na obra de Tocqueville. Mas, levando-se em conta os três critérios de avaliação das formas de governo que Bobbio utiliza em seu livro – os critérios sistemático, axiológico e teleológico –, pode-se dizer que até aqui detive-me apenas no primeiro critério, aquele que serve para expor o quadro conceitual e suas formas. Restam ainda os dois critérios alternativos. Com relação ao critério axiológico (ou valorativo, normativo, prescritivo, deontológico, etc.), secularmente utilizado para responder à questão sobre qual a melhor forma de governo (e, por contraste, também qual a pior), é possível dizer que, diferentemente dos autores antigos, Tocqueville (assim como Montesquieu, mas também Maquiavel, Bodin, Hobbes, Kant e Hegel) não dará crédito à tese de que cada forma de governo possua uma imagem similar mas degenerada: para a monarquia a tirania, para a aristocracia a oligarquia, etc.. Ainda que na classificação geral utilizada haja duas formas que são consideradas boas, a monarquia e a república (seja aristocrática seja democrática), e uma secularmente considerada ruim, o despotismo, não se afirma que esta última forma seja essencialmente (ao menos necessariamente) a degeneração de qualquer das duas primeiras. Contam-se assim pelo menos duas diferenças básicas com relação ao modelo aristotélico (que se tornou o modelo clássico a ser repetido pelos manuais), com seis formas de governo, segundo o critério quantitativo, sendo três boas e três correspondentemente más, segundo o critério qualitativo. Primeiro, o novo esquema 23 A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., p. 467. A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., pp. 468-469. 25 A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., p. 469. 24 11 reduz-se de seis a unicamente três formas (descontando as subespécies de república), sendo duas boas e apenas uma má. Maquiavel já havia reduzido as seis formas aristotélicas a duas (o principado e a república) e Vico a três (a república aristocrática, a república popular e a monarquia), mas ambos haviam deixado de considerar as formas más de governo. No esquema montesquiano-tocqueviliano, reduz-se igualmente as formas de governo de seis a três, mas continua havendo formas boas e formas más, embora desapareçe a correspondência exata: o número de formas boas continua sendo um número plural (embora passe de três a dois), mas a forma corrompida passa a ser apenas uma. Em segundo lugar, não se diz que o despotismo seja essencialmente a forma degenerada seja da monarquia seja da república, mas que ambas podem degenerar-se em despotismo. Mais que isso: não sendo uma degeneração particular de nenhuma forma específica, o despotismo passa a desfrutar de uma existência independente das demais formas, reconhecendo-se que existem governos (como os asiáticos) que sempre foram e sempre serão despóticos por princípio. Tem-se assim uma classificação das formas de governo tripartite cuja grande novidade em relação aos autores antigos, para além da não correspondência exata entre formas boas e más, reside em considerar o despotismo – cuja característica essencial é a falta de moderação para Montesquieu ou a falta de liberdade Tocqueville – como uma forma de governo independente das outras. Mas a questão axiológica em Tocqueville não é tão simples: acerca da velha questão sobre qual a melhor forma de governo, que nenhum pensador político antigo deixou de se fazer, e que ainda povoará a cabeça dos pensadores medievais (como Tomás de Aquino) e mesmo modernos (como Kant ou Stuart Mill), Tocqueville tende a responder que as formas de governo não podem ser consideradas nem essencialmente boas nem essencialmente más – mesmo no que se refere ao despotismo (que se define antes pela falta de liberdade que por ser uma forma de governo corrompida) –, mas apresentam todas simultaneamente aspectos positivos e negativos. Ou seja, ainda que algumas formas sejam boas, não deixam de possuir defeitos; e mesmo que uma forma seja má, é impossível não encontrar-lhe nenhuma qualidade positiva. Desta forma, não defenderá que a democracia, por exemplo, seja uma forma essencialmente má (como Aristóteles) ou essencialmente boa (como Rousseau argumentara acerca da vontade geral), mas afirma que “nem mesmo pretendi julgar se a revolução social cuja marcha me parece irresistível é vantajosa ou funesta à humanidade; admiti essa revolução como um fato consumado ou quase a consumar-se”26 (A democracia..., livro I, Introdução). A democracia, para Tocqueville, embora classificada inicialmente como uma forma boa, é antes um fato consumado, ou seja, não é boa nem má em si mesma, mas possui simultaneamente características boas e más. Assim, ainda que não esconda, na já referida Introdução, o “temor religioso, produzido na alma do autor pela visão daquela revolução irresistível”27, descreve a democracia nos seguintes termos: “Compreendo que, num Estado democrático, constituído dessa maneira, a sociedade não será absolutamente imóvel; nele, porém, os movimentos do corpo social poderão ser regulados e progressivos; embora encontremos nesse Estado menos esplendor que no seio de uma aristocracia, também encontramos menos misérias; os prazeres, dentro dele, serão menos extremos, e mais geral o bem-estar; as ciências, menos perfeitas, mas a ignorância, mais rara; os sentimentos, menos enérgicos, porém mais suaves os hábitos; encontrar-se-ão dentro dele mais vícios e menos crimes. Na ausência do entusiasmo e do ardor dos credos, é possível que os conhecimentos e a experiência obtenham às vezes dos cidadãos grandes sacrifícios; por serem todos os 26 27 A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., p. 19. A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., pp. 13-14. 12 homens igualmente falíveis, sentirão todos igual necessidade de seus semelhantes; e sabendo que não poderão ganhar o seu apoio senão à condição de lhes emprestar seu concurso, não lhes será difícil descobrir que o seu interesse pessoal se confunde com o interesse geral. Tomada em conjunto, a nação há de ser menos brilhante, menos gloriosa, talvez até menos forte; dentro dela, porém, a maioria dos cidadãos gozará de uma sorte mais próspera, o povo mostrar-se-á pacífico, não por desesperança de vir a melhorar, mas por saber que já se acha bem. Embora nem tudo fosse bom numa ordem de coisas semelhante, pelo menos a sociedade se aproveitaria de tudo o que ela pode oferecer de útil e de bom, e os homens, abandonando para sempre as vantagens sociais que a aristocracia é capaz de dar, teriam tomado à democracia todos os bens que esta lhes pode oferecer”28 (A democracia..., livro I, Introdução). Não conheço outra descrição ao mesmo tempo mais realista e mais ponderada sobre uma forma de governo: não se-lhe elogia ou injuria, apenas se descreve realistamente seus aspectos gerais positivos e negativos; não se conclui que a democracia seja uma forma boa ou que seja má, mas apenas que tenha certas características próprias e mesmo inescapáveis que a descrevem para além da avaliação axiológica. O aspecto normativo que sempre teve papel destacado na avaliação das formas de governo perde consideravelmente parte de sua importância para Tocqueville (como de resto ocorria para Montesqueieu). Não se pode dizer que a forma de governo com que sempre e mais profundamente se preocupou – a república democrática – seja para o autor de A democracia... a melhor forma de governo. Tampouco se oferece tal epíteto à monarquia ou à república aristocrática. O ideal platônico de uma organização política perfeita (que ainda subsistirá em autores como Bacon, Campanella, Morus ou Morelly) não terá qualquer utilidade para Tocqueville. No esteio oposto, como exemplo de que o despotismo também pode possuir uma qualidade (ainda que diminuta), leia-se um pequeno trecho de O Antigo Regime...: “Tampouco creio que o verdadeiro amor da liberdade jamais tenha sido gerado pela única visão dos bens materiais que oferece, pois esta visão muitas vezes fica turvada. É verdade que com o tempo a liberdade sempre traz, a quem sabe retê-la, uma vida remediada, o bem-estar muitas vezes, a riqueza. Existem porém tempos onde ela perturba momentaneamente o uso de tais bens e outros onde só o despotismo permite seu gozo transitório. Os homens que nela só apreciam estes bens nunca o conservaram por muito tempo”29 (livro III, capítulo III). Mas, neste caso especial, nem mesmo uma pequena qualidade serve para salvar o despotismo de ser considerado uma forma execrável de governo. 6. [despotismo] O critério axiológico é utilizado por Tocqueville em geral menos em sua função positiva que em sua função negativa, menos para elogiar as formas de governo boas, que para se posicionar contra o despotismo, uma forma má, menos para eleger a melhor forma que para apontar a pior. Mas a forma despótica merece algumas palavras particulares. A sorte da teoria do despotismo na história do pensamento político ocidental é tão extensa quanto invariável: presente desde Aristóteles até Stuart Mill, esta forma foi utilizada em geral sempre que se queria classificar sumariamente uma realidade política que se interessava menos compreender que rechaçar. Em geral são chamados de despóticos os Estados orientais. Aristóteles havia afirmado que “os povos da Ásia são dotados de inteligência e espírito técnico, mas sem nenhum brio, sendo essa 28 29 A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., p. 16. A. Tocqueville, O Antigo Regime..., op. cit., p. 43. 13 a razão pela qual vivem num estado de sujeição e servidão”30 (Política, VII, 1327b). Pode-se dizer que de lá para cá a avaliação acerca dos Estados orientais pouco mudou, sendo a mesma em Maquiavel, Hobbes, Locke, Vico, Rousseau, Kant, Hegel, Marx, etc.. Sobre um Estado asiático particular Tocqueville escreve, no capítulo IV da quarta parte do livro II de A democracia...: “O paxá que reina hoje no Egito encontrou a população desse país composta de homens muito ignorantes e muito iguais, e adotou, para governá-los, a ciência e a inteligência da Europa. As luzes particulares do governo chegam, dessa maneira, a se combinar com a ignorância e a fragilidade democrática dos súditos, de sorte que o último termo da centralização foi atingido sem dificuldade, e o príncipe pôde fazer do país a sua fábrica e dos habitantes os seus operários”31. Para este tipo de Estado (asiático, oriental, etc.) é reservado o termo despotismo, tanto em Montesquieu quanto em Tocqueville. Limito-me à citação de mais um trecho, que relaciona as duas coisas: “Estaríamos enganados se nos convencêssemos de que certos povos fizeram esforços sobre-humanos para defender uma pátria na qual viviam por assim dizer como estrangeiros. Basta prestar-lhes bastante atenção para verificar que a religião era quase sempre, então, o seu móvel principal. A permanência, a glória ou a prosperidade da nação se tinham tornado para eles dogmas sagrados e, ao defender a sua pátria, defendiam também aquela cidade santa na qual todos eram cidadãos. As populações turcas jamais tomaram qualquer parte na direção dos negócios da sociedade: no entanto, realizaram feitos imensos, tanto que viram o triunfo da religião de Maomé nas conquistas dos sultões. Hoje, a religião está desaparecendo; só lhes resta o despotismo: por isso, caem”32 (A democracia..., livro I, primeira parte, capítulo V). Com esse sentido, servindo de contraponto tanto à república democrática quanto à aristocrática, o tema do despotismo está presente ao longo de toda a obra de A democracia... assim como em O Antigo Regime.... 7. [critério teleológico] Depois de mencionar a questão das formas de governo boas e más em Tocqueville (o critério axiológico), resta falar do tema da mudança de uma forma para outra. Com isso, chega-se ao último critério bobbiano, o critério teleológico (ou histórico, diacrônico, cronológico, etc.). Se o critério axiológico no esquema tocquevilliano não representa um aspecto essencial do quadro (exceto no que se refere ao despotismo), o critério histórico ganha destaque. Um trecho de A democracia..., em que se discute o tema das funções públicas, entretanto, parece semear a confusão: “Quando se vê uma república democrática tornar gratuitas as funções remuneradas, creio que se pode concluir daí que marcha para a monarquia. E, quando uma monarquia começa a remunerar as funções gratuitas, é sinal seguro de que se marcha para um estado despótico ou para um estado republicano. Por isso, a substituição das funções gratuitas pelas funções assalariadas parece-me constituir, sozinha, uma verdadeira revolução”33 (livro I, primeira parte, capítulo V). Aqui importa menos o tema das funções públicas que a questão das possibilidades de mudança de regime: afirma-se que tanto a república pode passar para a forma de monarquia quanto esta para a forma de república ou de despotismo. Ou seja, 30 Aristóteles, Política, trad. A.C. Amaral/C.C. Gomes, Lisboa, Vega, 1998, p. 505. A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., p. 519. 32 A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., pp. 78-79. 33 A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., p. 512. 31 14 tanto uma forma de governo pode passar para outra sem necessariamente se corromper – ou trata-se de corrupção passar de uma monarquia para uma república ou vice-versa (ambas formas boas)? – quanto pode se corromper, tornando-se despótica. Enquanto de Aristóteles até Maquiavel (se pensarmos no capítulo II do livro I dos Discursos...) se afirmou que as formas de governo mudavam ou no sentido da corrupção de uma forma boa para uma má ou da regeneração de uma forma má para uma boa, Tocqueville afirma (de resto seguindo Montesquieu) que as formas podem cambiar aleatoriamente, sem uma linha pré-estabelecida; qualquer forma, ao menos a princípio, pode vir a se transformar em qualquer outra. Seria, por isso, a tipologia tocquevilleana das formas de governo um esquema a-teleológico (sem sentido ou direção)? Penso que não. Pois que as diversas rotas de mudança apresentadas representam mais possibilidades lógicas que teleológicas. Do ponto de vista lógico, uma forma de governo pode se transformar em qualquer outras: a monarquia pode se transformar numa república ou num despotismo; a república, numa monarquia ou num despotismo; e o despotismo, numa monarquia ou numa república. Mas a variedade lógica não se reproduz historicamente, pois que a história é justamente uma seleção de fatos dentre as possibilidades lógicas de organização social e política. Em sua época – e se Tocqueville se não foi o primeiro autor a afirmá-lo com todas as letras foi certamente quem afirmou de forma mais incisiva –, todas as formas de governo rumavam para um mesmo fim, um mesmo telos: a república democrática. O tema central de A democracia... trata-se justamente do fato de que no século XIX o maior espetáculo que se apresentava aos olhos do analista político, caso este olhasse para o movimento histórico, era o crescimento aparentemente incontrolável da igualdade de condições, que na Europa remontava a um movimento secular, enquanto nos EUA nascia com a própria nação. Leia-se, a respeito, este trecho da Introdução ao livro I: “Uma grande revolução democrática acha-se em curso entre nós; todos a vêem; nem todos, no entanto, a julgam da mesma maneira. Consideram-na uns como coisa nova e, tomando-a por um acidente, esperam poder ainda detê-la, ao passo que outros a julgam irresistível, porque se lhes afigura o fato mais contínuo, mais antigo e mais permanente já conhecido na História”34. Assim, se existe uma teleologia, ao menos em seu aspecto histórico mais concreto, é a que leva de todas as formas de governo (seja da monarquia seja do despotismo seja da aristocracia) para a democracia, ou como o autor afirma alguns parágrafos mais à frente (numa passagem repetida ipsis literis no prefácio da 12ª edição, de 1848): “Por isso mesmo, o gradual desenvolvimento da igualdade é uma realidade provindencial. Dessa realidade, tem ele as principais características: é universal, é durável, foge dia a dia à interferência humana; todos os acontecimentos assim como todos os homens servem ao seu desenvolvimento. Seria prudente imaginar que um movimento social de tão remotas origens pudesse ser detido por uma geração? Pode-se conceber que, após ter destruído o sistema feudal e vencido os reis, irá a democracia recuar ante a burguesia e a classe rica? Agora que se tornou tão forte, e tão frágeis os seus adversários, deter-se-á ainda?”35. Providencialidade, universalidade, durabilidade e irresistibilidade, estas são as características do movimento democrático. Não importa qual seja a forma de governo anterior; por motivos estritamente históricos, a democracia a sucederia. Digo para enfatizar: à monarquia sucederia a democracia; à aristocracia sucederia a democracia; 34 35 A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., p. 11. A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., p. 13. 15 ao despotismo sucederia a democracia. Em praticamente todos os seus textos políticos tocquevilleanos essa idéia dominante se repetia sem qualquer alteração. O passar do tempo aliás apenas aumentaria o ardor da crença, a cada dia trazendo mais provas, pequenas (como o surgimento de novos líderes políticos europeus saídos antes da burguesia que da aristocracia, por exemplo) ou grandes (como, por exemplo, o fim da escravidão no comércio britânico e depois no francês), dessa “realidade”. 8. [novo despotismo] Porém, se a democracia tenderia a suceder todas as formas de governo anteriores, não tratar-se-ia por isso da última etapa do processo teleológico. Relativamente à forma do despotismo Tocqueville ainda guarda uma última novidade, pois o autor considera que há dois tipos de despotismos: um velho e outro novo. O despotismo dos Estados asiáticos (e mesmo aquele em que recaem as monarquias européias absolutas) trata-se de uma forma que pertence em grande parte ao passado. No capítulo VI da quarta parte do livro II de A democracia..., depois de descrever todas as características da centralização do poder nos Estados democráticos, Tocqueville fala de uma nova forma de despotismo, típica das democracias. Primeiramente se descreve o despotismo do passado – curiosa mas sintomaticamente tomando-se agora o império romano por modelo –, sobre o qual escreve: “Sabemos que, na época do maior poder dos Césares, os diferentes povos que viviam no mundo romano tinham ainda conservado costumes e hábitos diversos: embora sujeitas ao mesmo monarca, a maior parte das províncias era administrada separadamente; eram cheias de municipalidades poderosas e ativas e, embora todo o governo do império estivesse concentrado apenas nas mãos do imperador, e ele continuasse sempre, quando necessário, árbitro de todas as coisas, os detalhes da vida social e da existência individual fugiam ordinariamente ao seu controle. É verdade que os imperadores possuíam um poder imenso e sem contrapartida, que os permitia entregar-se livremente aos caprichos dos seus pendores e a empregar para satisfazê-los toda a força do Estado; muitas vezes ocorreu-lhes abusar desse poder para arbitrariamente tirar de um cidadão os bens ou a vida; a sua tirania pesava prodigiosamente sobre alguns, mas não se estendia sobre um grande número; prendia-se a alguns objetivos principais maiores e esquecia o resto; era violenta e contida”36. Em seguida, passa-se a descrever como seria o despotismo nas democracias. Nesta inestimável passagem (que não resisto a citar em longo trecho, pela sua força expressiva), descreve-se o “fenômeno novo”: “Parece que, se o despotismo viesse a se estabelecer nas nações democráticas de hoje, teria outras características: Seria mais amplo e mais brando, e degradaria os homens sem atormentá-los. Não duvido que, nos séculos de luzes e de igualdade, como os nossos, os soberanos mais facilmente consigam concentrar todos os poderes públicos nas suas mãos apenas, e penetrar mais habitual e mais profundamente no círculo dos interesses privados, como jamais o pôde fazer qualquer daqueles da Antigüidade. Mas essa mesma igualdade, que facilita o despotismo, torna-o mais suave; já vimos como, à medida que os homens se tornam mais semelhantes e mais iguais, os costumes públicos passam a ser mais humanos e mais suaves; quando nenhum cidadão tem um grande poder ou grandes riquezas, a tirania, de certa forma, fica sem ocasião ou teatro de ação. Como todas as fortunas são medíocres, as paixões são naturalmente contidas, a imaginação limitada, os prazeres simples. Essa moderação universal se faz sentir no próprio soberano e detém dentro de certos limites o impulso desordenado dos seus 36 A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., p. 530. 16 desejos. (...) Os governos democráticos poderão tornar-se violentos e cruéis em certos momentos de grande efervescência e de grandes perigos; mas essas crises serão raras e passageiras. Quando penso nas pequenas paixões dos homens de hoje em dia, na brandura dos seus costumes, na extensão das suas luzes, na sua pureza da sua religião, na brandura da sua moral, nos seus hábitos laboriosos e ordenosos, na austeridade em que se mantêm quase todos, no vício como na virtude, não temo que encontrem em seus chefes tiranos, mas antes tutores. Não creio, pois que a espécie de opressão de que povos democráticos se achem ameaçados se assemelhe a algo do que a precedeu no mundo; nossos contemporâneos não poderiam encontrar na lembrança a sua imagem. Em vão procuro uma expressão que reproduza exatamente a idéia que tenho e que a encerre; as antigas palavras, despotismo e tirania, não convêm de maneira alguma. O fenômeno é novo; é preciso, pois, defini-lo, já que não posso dar-lhe um nome. Procuro descobrir sob que traços novos o despotismo poderia ser produzido no mundo: vejo uma multidão inumerável de homens semelhantes e iguais, que sem descanso se voltam sobre si mesmos, à procura de pequenos e vulgares prazeres, com os quais enchem a alma. Cada um deles, afastado dos demais, é como que estranho ao destino de todos os outros: seus filhos e seus amigos particulares para ele constituem toda a espécie humana; quanto ao restante dos seus concidadãos, está ao lado deles, mas não os vê; toca-os e não os sente; existe apenas em si e para si mesmo, e, se ainda lhe resta uma família, pode-se ao menos dizer que não mais têm pátria. Acima destes, eleva-se um poder imenso e tutelar, que se encarrega sozinho de garantir o seu prazer e velar sobre a sua morte. É absoluto, minucioso, regular, previdente e brando. Lembraria mesmo o pátrio poder, se, como este, tivesse por objeto preparar os homens para a idade viril; mas, ao contrário, só procura fixá-los irrevogavelmente na infância; agrada-lhe que os cidadãos se rejubilem, desde que não pensem senão em rejubilar-se. Trabalha de bom grado para a sua felicidade, mas deseja ser o seu único agente e árbitro exclusivo; provê à sua segurança, prevê e assegura as suas necessidades, facilita os seus prazeres, conduz os seus primeiros negócios, dirige a sua indústria, regula as suas sucessões, divide as suas heranças; que lhe falta tirar inteiramente, senão o incômodo de pensar e a angústia de viver? (...) Depois de ter tomado cada um por sua vez, dessa maneira, e depois de o ter petrificado sem disfarce, o soberano estende o braço sobre a sociedade inteira; cobre a superfície com uma rede de pequenas regras complicadas, minuciosas e uniformes, através das quais os espíritos mais originais e as almas mais vigorosas não seriam capazes de vir à luz para ultrapassar a multidão; não esmaga as vontades, mas as enfraquece, curva-as e as dirige; raramente força a agir, mas, constantemente opõe resistência à ação; nunca destrói, mas impede de nascer; nunca tiraniza mas comprime, enfraquece, prejudica, extingue e desumaniza, e afinal reduz cada nação a não ser mais que rebanho de animais tímidos e diligentes, dos quais o governo é o pastor”37. Esta passagem pertence a um dos principais capítulos de toda a obra. Depois de centenas de páginas descrevendo em profundidade os aspectos primeiro formais (livro I) depois substantivos (livro II) da democracia americana, ligados à igualdade de condições, Tocqueville passa a descrever o grande pesadelo de todos os pensadores liberais: o de que a democracia leve à opressão; ou, dito de outra forma, que a igualdade termine por subsumir a liberdade; ou, ainda, que a república democrática se torne um despotismo. No trecho citado, a tirania dos imperadores romanos, que para Tocqueville exemplifica como nenhuma outra o despotismo do passado, é descrita com três características básicas: do ponto de vista quantitativo, “pesava prodigiosamente sobre alguns, mas não se estendia sobre um grande número”; do ponto de vista qualitativo, 37 A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., pp. 530-532. 17 “era violenta e contida”; e, do ponto de vista dos objetivos, “prendia-se a alguns objetivos principais maiores e esquecia o resto”. O despotismo moderno terá “outras características” – outres temps, outres moeurs – e será de certa forma o oposto do modelo antigo: do ponto de vista quantitativo, “o soberano estende o braço sobre a sociedade inteira”; do ponto de vista qualitativo, será “mais amplo e mais brando”, ou, como diz mais à frente, “absoluto, minucioso, regular, previdente e brando”. Enquanto, do ponto de vista dos objetivos, “trabalha de bom grado para a sua felicidade, mas deseja ser o seu único agente e árbitro exclusivo; provê à sua segurança, prevê e assegura as suas necessidades, facilita os seus prazeres, conduz os seus primeiros negócios, dirige a sua indústria, regula as suas sucessões, divide as suas heranças; que lhe falta tirar inteiramente, senão o incômodo de pensar e a angústia de viver?”. Em outras palavras, o despotismo moderna se torna mais extenso quantitativamente, mas mais suave qualitativamente. E, sob o aspecto dos objetivos, aumenta-os vertiginosamente. O déspota antigo era um tirano; o moderno será um imenso tutor. O que separa as duas formas de despotismo, portanto, não são somente os aspectos diacrônico (uma é antiga; a outra, moderna) e sincrônico (uma é oriental, lembrado que o exemplo despótico que se repete mais vezes na obra tocquevilliana é a China; a outra, ocidental), mas também um aspecto substantivo, ou seja, o princípio que opera em cada uma: enquanto o despotismo antigo e oriental nasce da falta de liberdade, o despotismo democrático nascerá da apatia da população, submergida em seu igualitarismo excessivo. Da primeira nasce um poder opressor; da segunda, um poder tutelar. Ou, nas próprias palavras do autor, no que se refere aos povos modernos (os povos igualitários, democráticos, etc.), em oposição aos povos do passado (desigualitários, despóticos, etc.), “não temo que encontrem em seus chefes tiranos, mas antes tutores”. Não se pode deixar de dizer que as palavras com que o autor descreve o novo despotismo são mais ideológicas que descritivas, ressaltando-se o fato de que Tocqueville era um autor liberal e não democrata, pelo que considerava que a democracia, embora não fosse em si uma forma de governo ruim, possuía a indesejável característica de desvelar-se facilmente para a pior forma de governo possível. Enquanto os pensadores aristocráticos antigos como Platão, Aristóteles e Xenofonte diziam que a democracia acabaria por desvelar-se inevitavelmente na anarquia (argumento que seria repetido até Vico), Tocqueville temia sobretudo que a democracia acabasse por permitir uma intervenção excessiva do poder público na vida privada dos cidadãos, argumento que seria repetido invariavelmente por todos os pensadores liberais (de Kant a Constant), ou, em suas palavras, que “os soberanos mais facilmente consigam concentrar todos os poderes públicos nas suas mãos apenas, e penetrar mais habitual e mais profundamente no círculo dos interesses privados”. De resto, muitos comentadores já observaram que o despotismo novo a que se refere Tocqueville tratava-se – ou ao menos acabou coincidindo historicamente com ela – da sociedade de massas insurgente no século XIX, que viria a se tornar dominante no século XX, e não somente nos países não democráticos, mas praticamente em todo o mundo. Não por outro motivo, um grande pensador político do século seguinte, Weber, em sua sociologia política, não se interessará por formular uma teoria das formas de governo (embora formule uma teoria dos tipos de dominação), mas falará simplesmente na democracia de massas, dominada pelos políticos profissionais (os demagogos), cuja característica básica é a apatia política dos eleitores. Acerca dos perigos da apatia Tocqueville escreve diversas vezes em A democracia..., como nesta pequena (mas importante) nota final: 18 “Não se pode dizer de uma maneira absoluta e geral que o maior perigo de nossos dias é a licença ou a tirania, a anarquia ou o despotismo. Uma coisa e outra são igualmente temíveis, e pode sair facilmente de uma só e mesma causa, que é a apatia geral, fruto do individualismo; é essa apatia que faz com que, no dia em que o poder executivo reúne algumas forças, fica em condições de oprimir, e que, um dia depois, quando um partido pode levar trinta homens ao combate, este está igualmente em condições de oprimir. Nem um nem outro podendo fundar nada de durável, o que os faz lograr êxito facilmente impede-os de lográ-lo por muito tempo. Caem porque nada os sustenta. O que é importante combater é, pois, muito menos a anarquia ou o despotismo que a apatia, que podia criar quase indiferentemente uma ou outra” 38 (livro II, quarta parte, capítulo VI, nota BB). Vê-se neste trecho revelador, que o temor tocquevilliano não se assenta em verdade no mundo moderno ser assomado por esta ou aquela forma má de governo, seja a tirania, a anarquia ou o despotismo, mas sim no princípio originário de todas elas, pois que “podia criar quase indiferentemente uma ou outro” e que portanto trata-se do que “é importante combater”: a apatia geral. Por conta da apatia, que é “fruto do individualismo”, os indivíduos em geral tenderiam em geral a se dedicar exclusivamente à sua vida privada, interessando-se pouco ou nada pela vida pública, pelo que se punham em risco de um partido – e a história provou depois de Tocqueville que isso poderia ser feito em qualquer lugar do mundo mesmo por um partido minúsculo – assumir o poder e dedicar a tutelá-los e no limite a oprimi-los sem que houvesse mecanismos sociais para limitar o seu poder, como fora o caso da aristocracia, que limitava o poder dos reis. Ligada à apatia, e igualmente ao despotismo, para Tocqueville, está portanto a servidão. O despotismo antigo-asiático define-se pela existência de um governante opressor (mesmo que o povo não seja servil); enquanto o despotismo novo-americano, pela existência de um povo servil (mesmo que o governante não seja opressor). O primeiro conceito se define ex parte principe; o segundo, ex parte populo. O primeiro é déspota ao seu bel-prazer; o segundo, por subserviência do povo. O déspota-opressor se aproxima do tirano aristotélico; o povo-servo é a própria concretização da servidão voluntária de que falava La Boètie. Acerca da preocupação tocquevilliana para com o caminho para a servidão (como diria certo economista austríaco), leia-se um trecho: “Estou convencido, porém, que a anarquia não é o principal mal que os séculos democráticos devem temer, mas o menor. A igualdade produz, com efeito, duas tendências: uma conduz os homens diretamente à independência e os pode impelir de repente para a anarquia; a outra os conduz por um caminho mais longo, mais secreto, mais seguro, para a servidão. Os povos vêem facilmente a primeira e resistem a ela; deixam-se arrastar pela outra, sem vê-la; por isso é particularmente importante apontála”39 (A democracia..., livro II, quarta parte, capítulo I). Com o tema do novo despotismo completa-se o quadro teleológico tocquevilliano, formando uma seqüência similar a esta: despotismo → monarquia → república aristocrática → república democrática → novo despotismo. Este não é o caminho que deve necessariamente seguir as formas de governo, mas é o caminho que se pronuncia historicamente. Sem se levar em conta o historicismo tocquevilleano pouco se entende acerca da teleologia das formas de governo que apresenta, uma vez que, entre as diversas possibilidades lógicas de seqüência que se pode desenhar, o critério definidor da seqüência em que o autor aposta é aquele fornecido pela histórica. Tanto os fatos históricos observados por Tocqueville em sua época quanto aqueles que 38 39 A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., p. 566. A. Tocqueville, A democracia..., op. cit., p. 512. 19 estudou nos livros e arquivos históricos levaram-no a concluir uma teleologia das formas de governo ao mesmo tempo linear e cíclica: cíclica porque a seqüência oferece como ponto de chegada o mesmo ponto de saída (o despotismo), e portanto no fim volta ao início; linear porque nenhuma forma de governo se repete (o primeiro despotismo não igual ao segundo). Saindo de uma forma ruim e passando por várias formas boas, retorna-se ao fim a uma forma ruim, mas nova. Iniciando-se com o despotismo antigo, típico do mundo oriental, termina com uma nova forma de despotismo, agora ocidental, sob se colocava em risco de cair a democracia. O receio de que a democracia se resvale em despotismo nunca abandonará Tocqueville. Neste interessante trecho do Prefácio a O Antigo Regime... o autor relembra a velha tese exposta quase duas décadas em A democracia..., oferecendo um importante elo de ligação direta entre as duas grandes obras (e com os quais termino este texto, por ser a passagem eloqüente em si mesma): “No meio das trevas do futuro já podemos descobrir três verdades muito claras. A primeira é que em nossos dias todos os homens estão sendo levados por uma força desconhecida que temos a esperança de poder regular e abrandar, mas não de vencer, e que os impele branda ou violentamente a destruir a aristocracia. A segunda é que, em todas as sociedades do mundo, aquelas que sempre encontrarão as maiores dificuldades em escapar por muito tempo ao governo absoluto serão precisamente estas sociedades onde não há mais e não pode mais haver uma aristocracia. A terceira é que em nenhum lugar o despotismo poderá produzir efeitos mais nocivos que neste tipo de sociedade, porque mais que qualquer outra espécie de governo favorece o desenvolvimento de todos os vícios aos quais estas sociedades são especialmente sujeitas e assim as empurra em uma direção à qual uma inclinação natural já as fazia pender. Não havendo mais entre os homens nenhum laço de castas, classes, corporações, família, ficam por demais propensos a só se preocuparem com seus interesses particulares, a só pensar neles próprios e a refugiar-se num estreito individualismo que abafa qualquer virtude cívica. Longe de lutar contra esta tendência, o despotismo acaba tornando-a irresistível, pois retira dos cidadãos qualquer paixão comum, qualquer oportunidade de ações em conjunto, enclausurando-os, por assim dizer, na vida privada. Já tinham a tendência de separar-se: ele os isola; já havia frieza entre eles, ele os gela”40. Traduções utilizadas: A democracia na América. Trad. N.R. Silva. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1987. (597 p.) O Antigo Regime e a Revolução. Trad. Y. Jean. Brasília: UnB, 1982. (212 p.) 40 A. Tocqueville, O Antigo Regime..., op. cit., p. 46. Mais à frente repete a idéia, mais drasticamente: “As sociedades democráticas que não são livres podem ser ricas, refinadas, adornadas e até magníficas e poderosas graças ao peso de sua massa homogênea; nelas podemos encontrar qualidades privadas, bons pais de família, comerciantes honestos e proprietários dignos de estima; nelas veremos até mesmo bons cidadãos, pois a pátria daqueles não é deste mundo e a glória de sua religião é produzi-los no meio da maior corrupção dos costumes e debaixo dos piores governos: o império romano em sua extrema decadência estava repleto deles. Mas o que nunca se verá em sociedades semelhantes, ouso dizê-lo, são grandes cidadãos e principalmente um grande povo, e não tenho medo de afirmar que o nível comum dos corações e dos espíritos não cessará nunca de baixar enquanto houver união da igualdade e do despotismo” (O Antigo Regime..., op. cit., p. 47). 20