1 Parecer proferido no Pº Div. 72/2009 SJC-CT Sumário: Documento particular autenticado com depósito electrónico. Sua ulterior “modificação” (rectificação, ratificação, alteração, aclaração, etc.). 1. O recurso à modalidade do documento particular autenticado submetido a depósito electrónico como meio de formalização de factos jurídicos respeitantes a imóveis1 – que o DL n.º 116/2008, de 4-7 (arts. 22.º e ss.), ao lado da escritura pública, veio pôr à disposição dos interessados, nos termos que na Portaria n.º 1535/2008, de 30-122, se regularam – tem propiciado a emergência de dúvidas várias acerca dos mais diversos aspectos do seu regime, as quais vêm sendo especialmente sentidas, e oportunamente manifestadas, quer, como é natural, e mais agudamente, pelas próprias entidades incumbidas da autenticação e depósito, quer pelas entidades – aqui com destaque, não menos naturalmente, para os serviços de registo – perante as quais esses títulos diariamente são apresentados e de quem se conta que neles dêem por válida e plenamente produzidos os efeitos jurídicos a que foram destinados. É dar resposta a um punhado de tais questões, concretamente reportadas por um e outro tipo de agentes, que com elas em termos muito práticos se debateram, que, por determinação superior, constitui a nossa presente tarefa,3 sendo que, como logo se verá, sobressai, unindo-as, a característica comum de em todas se pressupor a existência de um qualquer documento particular autenticado, submetido a depósito electrónico, em relação ao qual ulteriormente se vem a revelar necessário, ou pelo menos conveniente, introduzir uma qualquer “modificação” (dando à palavra um sentido muito abrangente, para significar não só a alteração propriamente dita, mas também rectificação, 1 Sempre que, por comodidade, de ora em diante usarmos a expressão “documento particular autenticado”, é unicamente desta específica modalidade a que nos estaremos referindo. 2 Doravante, “Portaria”. 3 Circunscreveremos porém a nossa pronúncia, importa advertir, ao esforço de procurar estabelecer/definir as soluções que, no quadro do direito aplicável, se nos afigurem como as mais adequadas – arredando portanto da abordagem o escopo de tomada de posição sobre o conteúdo da qualificação que haja ou houvesse de recair sobre os individuais e concretos pedidos de registo em função dos quais algumas das questões vieram suscitadas. A explicação é simples: bastará dizer que se não está, aqui, em fase de recurso hierárquico, e que é ao conservador exponente que, em primeira linha, com total independência (e, também, em pleno cumprimento do seu ofício), cabe decidir do pedido de registo. 2 ratificação, aditamento, revogação, etc.). 2. Enunciemos então, em jeito de quesitos, o elenco de questões formuladas: I. Tendo-se mencionado erradamente, no termo de autenticação, a data respectiva (isto é, do termo, em si mesmo), como proceder para rectificar a deficiência?4 II. Pretendendo-se aclarar o conteúdo do negócio jurídico que se tenha titulado por documento particular autenticado através do recurso à elaboração de novo documento particular autenticado, é possível usar, no depósito deste, do código de acesso do primeiro?5 III. Pretendendo-se ratificar o conteúdo do negócio jurídico em que tenha intervindo gestor de negócios ou procurador sem poderes suficientes, é possível usar, no respectivo depósito (do documento particular autenticado de ratificação), do código de acesso do depósito inicial?6 IV. Omitindo-se, no termo de autenticação, a identificação de algum dos outorgantes, que porém, não obstante, apôs a sua assinatura ao acto, como proceder para sanar a deficiência?7 V. Tendo-se indicado erradamente o valor do preço, em compra e venda de imóvel titulada por documento particular, cujo valor correcto não obstante figura nos documentos fiscais instrutórios (DUC’s do IMT e IS), como proceder para sanar a deficiência?8 4 No caso concreto que serve de suporte ao quesito, a data que se referiu no termo de autenticação (02/07/2009) é inexacta e diverge da data – que será a da autenticação e depósito – constante do documento particular (02/10/2009). 5 Os termos em que a situação concreta de base vem reportada não nos permitiram, confessamo-lo, apreender os seus precisos contornos. Quedamo-nos pela parte final da consulta, cujos termos, esses sim, em geral e em abstracto, se alcançam, e que se condensam no quesito. 6 Confessamos que, tal como vem exposta, não alcançamos melhor do que os da anterior os contornos da concreta situação que está na origem da consulta (subscritas, aliás, uma e outra, bem como a que segue, pelo mesmo punho). Cingimo-nos, aqui também, à formulação da sua parte final, expressa no quesito. 7 A questão concreta vem assim posta: “…por lapso da entidade autenticadora (…), no termo de autenticação não foram identificados os segundos outorgantes, não obstante ter sido verificada a identidade dos mesmos. Acresce que o referido termo foi assinado por todos os outorgantes do contrato de divisão de coisa comum. Foi sugerido (…) a feitura de um aditamento ou rectificação do termo de autenticação, no sentido de completar/rectificar aquele termo quanto à identificação do segundos outorgantes (…). A questão que se suscita é se este novo termo de autenticação pode ser depositado na chave inicial (…).” 8 A questão é colocada pela entidade autenticadora/depositante nestes termos: “…posso por simples 3 3. A título de enquadramento e introdução ao tema, permita-se-nos que citemos o que noutra ocasião tivemos ensejo de ponderar, em sustentação da deliberação adoptada no processo RP 233/2009 DSJ-CT (nota 4). Escrevemos na altura: “Nos pareceres emitidos nos processos CP 81/2009 e RP 67/2009 já o Conselho exaurientemente se ocupou da análise do regime do documento particular autenticado que o art. 22.º do DL n.º 116/2008 veio consagrar como forma suficiente de titulação da generalidade dos negócios sobre imóveis para os quais anteriormente a solenidade da escritura pública se não dispensava (e a que passou a ser alternativa), aí ficando cabalmente demonstrado que, por contraposição ao “tradicional” documento particular autenticado, se está em presença de um quid diferente, que constituiria grave equívoco reconduzir, sem mais, à categoria preexistente. Avulta desde logo, vincando o contraste, a muito maior intensidade da intervenção que se põe a cargo da entidade autenticadora, como ressalta da delicada tarefa que sobre si impende de assegurar que o documento particular satisfaça “os requisitos legais a que estão sujeitos os negócios jurídicos sobre imóveis” (art. 24.º/1, do DL n.º 116/2008). Mas onde o especial envolvimento do autenticador notoriamente se manifesta é no requisito de que o documento particular, juntamente com os documentos que o instruam e que devam ficar arquivados por não constarem de arquivo público, se submeta a depósito electrónico, depósito que, crucialmente, a lei erige em condição de validade da autenticação (art. 24.º/2, do DL n.º 116/2008). A confirmação do conteúdo do documento particular perante a entidade competente – confirmação que, vale lembrar, tem que ser simultaneamente feita por todos os declarantes, sempre que a autenticação constitua requisito de validade formal do negócio jurídico – é pois só uma fase intermédia no processo de gestação do título, que como tal só nasce para o mundo jurídico por via e ao cabo da sucessiva e bem sucedida operação de depósito, momento último este, o de depósito, em que os declarantes já não têm participação de nenhuma espécie e que exclusivamente se confia ao cuidado da entidade autenticadora. Ora, uma vez feito o depósito na plataforma electrónica disponibilizada na Internet no sítio com o endereço www.predialonline.mj.pt, a cuja regulamentação provêem os arts. 4.º a 17.º da Portaria n.º 1535/2008, de 30-12, o documento particular averbamento corrigir o valor do negócio? Ou terei que fazer um documento de rectificação de documento com todos os intervenientes?” Compulsado o depósito, verifica-se ter sido declarado, no documento particular, um preço de €42.500,00, constando dos documentos fiscais o preço de €25.000,00. 4 autenticado passa a residir num verdadeiro arquivo público conservado em suporte informático, e é este documento electrónico em sentido estrito (art. 2.º/, al. a, do DL n.º 290-D/99, de 2-8; sobre o tema dos documentos electrónicos, cfr. o parecer emitido no processo RP 159/2007, bem como a doutrina nele citada), obtido por digitalização do original em suporte de papel (que à entidade autenticadora igualmente cumpre arquivar – cfr. art. 8.º da citada Portaria), que a bem dizer consubstancia o título para registo.” 4. A que forma e a que procedimento deve então obedecer a elaboração dos actos posteriores, destinados a “modificar” alguma coisa do conteúdo apreensível do documento particular autenticado depositado? 4.1. No que se refere ao negócio jurídico propriamente dito, que no títulodocumento se contém no documento particular autonomamente elaborado pelas partes, estamos em crer que qualquer intervenção de que careça demandará que se outorgue novo documento particular com o conteúdo ajustado ao fim pretendido, tendo neste segundo momento que se repetir o faseado percurso feito aquando da titulação originária, ora objecto de intervenção: autenticação, a seguir à outorga do documento particular, e, por fim, depósito electrónico, como condição de validade do acto “modificativo”. Entendemos, na verdade, que a via de titulação de actos respeitantes a imóveis que o art. 22.º do DL n.º 116/2008 consagrou corresponde a uma formalização especial, para a qual regerá idêntico princípio ao que no art. 80.º/2/b do CN se formula para os actos submetidos a escritura pública, nos termos do qual deverão revestir esta mesma solenidade “Os actos que importem revogação, rectificação ou alteração de negócios que, por força da lei ou por vontade das partes, tenham sido celebrados por escritura pública, sem prejuízo do disposto nos artigos 221.º e 22.º do Código Civil”. Cabe às partes escolher, para a celebração dos actos elencados no referido art. 22.º, uma de duas formas legais possíveis: e, eleita uma, eleito ficará igualmente o formalismo duma qualquer futura “modificação” – a alternativa, nesta perspectiva, oferece-se no momento fundador ou genético duma dada relação negocial, e a preferência que por uma das vias se faça preclude o posterior recurso à outra. 4.2. Existe porém outro tipo de actos subsequentes que, interferindo com a regulação negocial constante do documento primitivo, contudo não o modificam (seja em sentido próprio, no que deverá incluir-se a hipótese de aditamento, seja a título rectificativo), nem o revogam, mas antes, e em diferentes dimensões, o completam. Pensamos, em particular, nos actos de aceitação (maxime, como não é raro, no contrato 5 de doação) e de ratificação da intervenção do gestor de negócios ou do “falsus procurator” (cfr. CCivil, arts. 268.º e 471.º). 4.2.1. No que toca ao acto pelo qual se formaliza a aceitação, consubstanciando ela a declaração de vontade da contraparte, sem a qual não chega a nascer o negócio jurídico a cuja formação a proposta formalizada no primitivo documento particular autenticado depositado deu o primeiro impulso, parece-nos não poder ele revestir forma diferente, e designadamente a de escritura pública. O negócio, mau grado a bipartição da emissão das manifestações de vontade em momentos sucessivos de proposta e aceitação, é unitário, e a esta unidade substantiva, segundo cremos, deverá corresponder uma forma também una. Continuará portanto a valer o princípio que enunciámos no ponto anterior: a válida titulação da aceitação depende da integral reedição do processo que abre com a elaboração do documento particular e encerra com o depósito electrónico, com a autenticação de permeio. 4.2.2. Em matéria de ratificação do acto formalizado em documento particular autenticado em que tenha intervindo procurador sem poderes (por não os ter de todo, ou por não tê-los em medida bastante) ou gestor de negócios representativo, porém, já não vemos razão para deixar de aplicar o normal regime que resulta da conjugação do disposto nos arts. 268.º/2 e 262.º/2, do CCivil, e 116.º/1, do CN. Aqui, com efeito, já não se trata de modificar o que quer que seja do conteúdo do negócio, e muito menos de fazê-lo nascer. Através da ratificação, uma das partes, que no negócio já celebrado foi “representada” por outrem, assume-o finalmente para si. O que, sendo um momento decisivo na economia da negociação, não postulará, do ponto de vista que consideramos, a necessidade de introduzir verdadeiro desvio às regras comuns. Não será portanto a circunstância de para a titulação do acto se haver optado pelo documento particular autenticado electronicamente depositado que impedirá que a ratificação se faça – e coetaneamente plenamente opere – por instrumento público, por documento escrito e assinado pelo representado com reconhecimento presencial da letra e assinatura ou por documento autenticado “tradicional”. 4.3. Tratámos, até aqui, da intervenção sobre a parte do título-documento respeitante ao negócio jurídico. Quid iuris, porém, quando a parte do título-documento carecida de intervenção não reside no documento particular propriamente dito mas sim na parte dele constituída pelo acto notarial ou para-notarial de autenticação? 4.3.1. Claro que poderá recorrer-se, para sanar o elemento deficiente,9 à 9 No que toca ao acto de autenticação, isoladamente, temos muita dificuldade em imaginar, para ele, 6 elaboração de novo termo de autenticação10, com tudo o que nisso se implica, e designadamente quanto à necessidade de comparência simultânea perante o autenticador de todos os outorgantes do documento particular e subsequente repetição do depósito electrónico. 4.3.2. Não cremos, no entanto, que seja necessário, para obter a rectificação/sanação do acto de autenticação (e dele apenas), o recurso à reiteração dos segundo e terceiro momentos do procedimento legal de titulação em apreço. Como se sabe, no que toca aos actos lavrados em livros de notas, admite o art. 132.º do CN a sanação de omissões e inexactidões por meio de averbamento, contanto que o erro se comprove documentalmente e da rectificação não resulte dúvida sobre o objecto a que o acto se reporta ou sobre a identidade dos intervenientes. O ponto está justamente em saber se deste regime simplificado, restritivamente pensado e disposto para os actos lavrados em livros de notas (escrituras públicas e testamentos), poderá aproveitar a rectificação do acto de autenticação. Que pode, já na deliberação aprovada no P. RP 259/2009 SJC-CT (conclusão 4.ª) o afirmámos. A favor da sua aplicabilidade muito vigorosamente joga a ideia de unidade e coerência do sistema jurídico: faria muito pouco sentido, estamos em crer, que a uma modalidade de titulação que se instituiu para ser prática e acessível alternativa à solenidade da escritura pública se recusasse uma via expedita de sanação de que a tradicional forma desde há muito dispõe; ir por aí claramente significaria criar um muito objectivo desincentivo ao recurso à nova modalidade de titular, do qual os operadores – comuns cidadãos e profissionais do direito – não tardariam a tomar consciência. No mesmo sentido depõe ainda a circunstância de, semelhantemente à escritura pública, também o documento particular autenticado, pelo depósito, e inerente formação do documento electrónico, passar a fazer parte de arquivo público com carácter de permanência – um arquivo que não é fisicamente feito de livros, nem das prateleiras em que se arrumam, como sucede nos actos em livros de notas, mas que nem por isso deixa de ser arquivo verdadeiro, com garantias de segurança e de preservação reforçadas. Seguro, porém, é que não será com base na literal interpretação do art. 132.º que se fará lícita a transposição, para o domínio da titulação por documento particular actos de verdadeira alteração (ou de aditamento, ou de revogação). Os problemas que neste contexto a seu propósito se levantam invariavelmente relevam, segundo nos parece, de alguma deficiência ou inexactidão em que na sua feitura a entidade autenticadora haja incorrido. 10 De cujo conteúdo inequivocamente deverá resultar o propósito sanador ou regularizador do primeiro termo, como é evidente. 7 autenticado, das soluções que consagra. A redacção da norma, para além de dizer o que diz, diz exactamente o que quis dizer, quando delimita a sua genérica fattispecie aos actos em livros de notas. Ela faz parte do sub-sistema do direito notarial, e é nesse limitado contexto que devidamente se compreende – o seu horizonte de referência nunca foi outro. Mas também não cremos, por outro lado, que a aplicação daquela norma fora do campo estritamente notarial apenas possa ter lugar no quadro da integração da lei, em preenchimento duma “lacuna teleológica” que se descobrisse “em face do escopo visado pelo legislador ou seja, em face da ratio legis de uma norma ou da teleologia imanente a um complexo normativo”,11 caminho esse, de resto, que sempre nos obrigaria a enfrentar, e superar, o bem delicado problema de saber do carácter excepcional do referido procedimento rectificativo (cfr. CCivil, arts. 10.º e 11.º). A nosso ver, a chave que nos habilitará a trazer aquela modalidade de rectificação simplificada para o espaço dos documentos previstos no art. 22.º do DL n.º 116/2008 énos dada pelo n.º 1 do art. 24.º do mesmo diploma – por via duma sua interpretação que teleologicamente permita obter um sentido normativo mais amplo do que aquele, rente à semântica, que imediatamente resulta duma sua leitura puramente literal. Manda com efeito esta norma que ao documento particular autenticado se aplique subsidiariamente o Código do Notariado no que se refere aos requisitos legais a que se encontram sujeitos os negócios jurídicos sobre imóveis. A ampliação teleológica, sustentada na valoração justificativa de aplicabilidade que começámos por expor, consistirá em impregnar a remissão para o CN duma dimensão não só prescritiva como também permissiva, dando assim à relação de subsidiariedade expressamente estabelecida o alcance global de autorizar a aplicação, a tais documentos, e com as adaptações necessárias, das soluções que no CN em particular se pensaram para os instrumentos lavrados nas notas. Defendemos por isso, e em conformidade, a possibilidade de por averbamento, nos termos e nas condições previstas no art. 132.º do CN, se proceder à rectificação do documento particular autenticado, na parte respeitante ao acto de autenticação. 5. Ocupámo-nos da questão de saber em que termos será possível intervir sobre o conteúdo ou sobre os efeitos de um documento particular autenticado depositado, tanto no que se refere à regulação negocial constante do documento particular como no que respeita ao acto de autenticação a se. O tema, porém, suscita duas sub-questões: uma primeira, que é a de apurar da 11 Cfr. J. BAPTISTA MACHADO, in “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, 1994, p. 196. 8 competência para autenticar e depositar os actos ulteriores, e que basicamente se reconduz a perguntar se deve ou não essa competência restringir-se à entidade que tenha procedido à autenticação e depósito iniciais; e uma segunda, que é a de saber em que termos se assegura a indispensável relacionação entre o primeiro documento particular autenticado depositado e o documento posterior que o afecta. 5.1. Acerca da competência, também aqui será decisivo saber com que componente do documento particular autenticado primitivo se contende. 5.1.1. Com efeito, se é do negócio jurídico e do documento particular propriamente dito que curamos, a competência será a mais extensa possível: para o acto de autenticação e depósito do acto “modificativo” (que altere, que adite, que rectifique, que revogue), ela deverá reconhecer-se, julgamos nós, a qualquer uma das entidades a quem a lei, no n.º 1 do art. 38.º do DL n.º 76-A/2006, de 29-3, em abstracto a atribui. A inicial intervenção de uma determinada entidade não lhe reserva uma competência exclusiva para o futuro: autenticadora/depositante que as partes lhes são aprouver, livres quando de escolher sentirem a entidade necessidade de reconfigurar num certo sentido a regulação negocial que entre si estabeleceram. 5.1.2. Porém, se é sobre o acto de autenticação inicial, a se, que se quer intervir, por enfermar de uma qualquer omissão ou inexactidão (cuja gravidade todavia não seja de molde a tornar o título inválido, mas apenas irregular), uma tal competência sanadora já nos parece que deve ser reservada, se não necessariamente à inicial entidade autenticadora (concretamente responsável pela deficiência), pelo menos à entidade que no momento da realização da sanação tenha a seu cargo o arquivo do documento original (cfr. art. 8.º/1 e 2, da Portaria). No caso da sanação que possa fazer-se ao abrigo e nos termos do art. 132.º do CN, essa limitação é antes de tudo facticamente imposta: só a entidade a cuja guarda se encontre o original em papel (que as mais das vezes, pelo menos por certo período, será a mesma que “imperfeitamente” autenticou) é que estará em condições empíricas de nele poder exarar o averbamento, como é óbvio. Mas mesmo na hipótese de à sanação da irregularidade12 se querer obviar mediante recurso a nova autenticação, sendo o objectivo único desta o de providenciar pelo aperfeiçoamento da primitiva, cremos que por isso plenamente se justificará que se entenda que também tenha que ser a entidade detentora (em arquivo) do documento particular autenticado original a única a poder efectuá-la, mais não seja porque o original 12 Repisamos que a nossa hipótese não é a de a deficiência constituir causa de invalidade do título. 9 da segunda autenticação deve ele próprio ficar arquivado contiguamente ao do da primeira. 5.2. No que toca à relacionação entre o documento particular autenticado depositado inicial e o ulterior acto que o afecte, ela far-se-á nos termos do disposto no n.º 2 do art. 11.º da Portaria. Aí se dispõe, com efeito, que “Nas situações de aceitação, ratificação, rectificação, alteração ou revogação de acto titulado em documento previamente depositado, a plataforma electrónica assegura aos utilizadores a possibilidade de associar, durante o processo de carregamento, os documentos a submeter aos já depositados através da utilização do respectivo código de identificação do documento.” Importa interpretar adequadamente esta disposição, particularmente o trecho em que se diz que “a plataforma electrónica assegura aos utilizadores a possibilidade de associar” os novos documentos aos que já se encontrem depositados. Se bem interpretamos a norma, na verdade, o vocábulo “possibilidade” refere-se tão somente à virtualidade técnica de associação entre o novo e o primitivo depósito, que a plataforma deve garantir aos interessados; não quer significar – não pode querer significar – que os autenticadores/depositantes tenham a possibilidade, que utilizarão conforme lhes aprouver, de fazer a dita associação. A plataforma assegura a possibilidade técnica de associação, e as entidades que tenham autenticado os documentos de aceitação, rectificação, alteração ou revogação, ou que tenham intervindo na ratificação nos termos do art. 116.º/1 do CN, estão obrigados a fazê-la. 5.2.1. Relativamente aos documentos particulares autenticados previstos no art. 22.º do DL n.º 116/2008, pode dizer-se que o procedimento previsto no art. 11.º/2 da Portaria desempenha o papel que no art. 131.º do CN se adscreve à figura do averbamento (maxime do que se destine a fazer reflectir num determinado instrumento a ulterior prática dos actos previstos na al. g) do seu n.º 1). E daí que, analogamente ao que se passa no plano dos tradicionais instrumentos notariais, em que, sempre que o averbamento se deva fazer oficiosamente em cartório diferente daquele onde foi lavrado o acto a averbar, deve o notário que o tenha lavrado comunicar ao cartório competente os elementos necessários à feitura do averbamento (cfr. CN, art. 134.º), também a entidade que procedeu ao ulterior depósito associativo, não sendo a mesma a cuja guarda se encontre o arquivo do documento particular autenticado original, a esta deverá comunicar a realização do acto posterior. E nem nos parece excessivo defender, ou pelo menos recomendar, que a entidade receptora duma tal comunicação averbe no próprio papel do primitivo documento particular autenticado o acto efectuado (depois de se 10 assegurar que efectivamente o foi, mediante consulta electrónica na plataforma electrónica), segundo as regras indicadas no art. 133.º do CN. 5.2.2. Pode suceder que na realização do depósito “modificativo” por qualquer razão se omita a invocação do código de identificação do depósito anterior, levando a que os documentos respectivos fiquem alojados na plataforma electrónica sob código privativo, incomunicável com o primeiro depósito, e no “lugar” deste por conseguinte não acessíveis (não “consultáveis”). 5.2.2.1. Quando o novo depósito se reporte a novo documento particular autenticado (com os documentos que o instruam), ou a documento de ratificação, entendemos que não será a circunstância de haver falhado originariamente a associação que deve prejudicar de forma irremediável a operatividade do acto. Sendo no entanto crucial e indispensável assegurar – dentro da própria lógica interna do sistema de depósito electrónico instituído – que a ligação entre os dois actos (o modificado e o modificativo) na plataforma electrónica se estabeleça, o remédio que figuramos consistirá em a entidade que no primeiro momento tenha omitido a união dos dois depósitos sob o mesmo código proceder à elaboração de documento avulso explicativo do sucedido, onde mencione o código de acesso do segundo depósito, que depois depositará no “lugar” do primeiro, através do respectivo código de acesso. 5.2.2.2. No caso de o documento sucessivamente depositado “fora” do código de identificação correspondente ao depósito primitivo ser o mesmo documento particular original, com o averbamento que nele – rectius, na parte atinente ao acto notarial ou para-notarial de autenticação – se tenha aposto nos termos do art. 132.º do CN, parecenos que a melhor solução será a de repetir o depósito, desta vez com invocação do código preexistente. 6. Aqui chegados, julgamos estar em condições de responder directamente, e de forma breve, às questões postas. Assim: I. O erro quanto à data do termo, nas concretas circunstâncias equacionadas, poderá sanar-se por averbamento ao acto de autenticação (art. 132.º/7, do CN), a que se deverá seguir o procedimento previsto no art. 11.º/2 da Portaria. II. O depósito do documento particular autenticado de aclaração do conteúdo do negócio jurídico titulado por documento particular autenticado faz-se nos termos do art. 11.º/2 da Portaria. III. O documento de ratificação da intervenção do procurador sem poderes ou 11 do gestor de negócios deve revestir uma das formas previstas no art. 116.º/1 do CN, a que se deverá seguir o procedimento previsto no art. 11.º/2 da Portaria. IV. A omissão da identificação, no termo, da identificação de algum dos outorgantes, nas concretas circunstâncias equacionadas, poderá sanar-se por averbamento ao acto de autenticação (art. 132.º/1 e 2/e, do CN), a que se deverá seguir o procedimento previsto no art. 11.º/2 da Portaria. V. A rectificação do valor do preço demandará a elaboração de documento particular autenticado rectificativo, a cujo depósito electrónico se deverá proceder nos termos do art. 11.º/2 da Portaria. ****** Esforçámo-nos por esclarecer, de forma bastante, as dúvidas que motivaram a presente consulta. Nem da nossa parte, no entanto, deverá querer ver-se no que aqui defendemos a palavra final e definitiva sobre a matéria, mas tão só o estado de certeza que, por ora, e sobre os concretos problemas suscitados, fomos capazes de formar. Parecer aprovado em sessão do Conselho Técnico de 23 de Setembro de 2010. António Manuel Fernandes Lopes, relator, João Guimarães Gomes de Bastos, Maria Eugénia Cruz Pires dos Reis Moreira, Luís Manuel Nunes Martins, Maria Madalena Rodrigues Teixeira, Isabel Ferreira Quelhas Geraldes, José Ascenso Nunes da Maia. Este parecer foi homologado pelo Exmo. Senhor Presidente em 15.06.2011. 12 Processo Div. 72/2010 SJC-CT Súmula das questões tratadas • Documento particular autenticado previsto no art. 22.º do DL n.º 116/2008, de 47: o Intervenção de que ulteriormente careça, seja ao nível do conteúdo do negócio jurídico, seja ao nível do acto de autenticação “Modificação” da parte atinente às declarações de vontade unicamente por via de novo documento particular autenticado electronicamente depositado. • “Modificação” da parte atinente ao acto de autenticação. • Alusão particular ás hipóteses de aceitação e de ratificação. Susceptibilidade de aplicação do art. 132.º do CN. Entidades competentes para os actos “modificativos”. • Distinção consoante esteja em causa a “modificação” das declarações negociais ou a “modificação” da autenticação. Relacionação entre o documento particular autenticado primitivamente depositado e os ulteriores actos “modificativos”: o procedimento do art. 11.º/2 da Portaria n.º 1535/2008, de 30-12.