A EXPANSÃO DOS DOMÍNIOS PORTUGUESES NO NORTE
DA ÁFRICA NO REINADO DE D. MANUEL I: O PAPEL DAS
COMENDAS DA ORDEM DE CRISTO.
Thiago Chaves Veronezzi (UEM)
Resumo: Ao ascender ao trono português, D. Manuel I (1469-1521, rei desde 1495), deu
continuidade à política expansionista dos monarcas anteriores para assegurar as
conquistas das praças em Norte da África. Todavia, a manutenção da presença lusitana
nos territórios africanos exigiam haveres demasiados, tanto em homens quanto em
rendimentos. Com o objetivo de atrair pessoas para ocupar as terras conquistadas,
buscando a realização de determinadas ambições, como interesses políticos,
econômicos, religiosos e sociais, o rei passou, a partir de 1503, a conceder comendas da
Ordem de Cristo para os interessados em combater em África. Com essa medida, o rei
esperava atrair parte da nobreza para seu empreendimento, assim como beneficiar-se da
colaboração dos cavaleiros integrantes da milícia de Cristo nos embates bélicos.
Apoiado pelas Cortes portugueses e pela Santa Sé, principalmente, após serem
apresentados em Roma os feitos portugueses em África, o monarca ampliou essas
concessões quando, em 1514, instituiu as comendas-novas da Ordem de Cristo. A partir
dessas medidas, o rei pode contar com um número ainda maior de combatentes no alémmar. Portanto, o presente trabalho analisa qual o papel desempenhado pela instituição
das comendas da Ordem de Cristo na expansão marítima portuguesa durante o reinado
de D. Manuel I.
Palavras-chave: D. Manuel I - Expansão Marítima Portuguesa – Norte da África Ordem de Cristo – Comendas – Baixa Idade Média.
A EXPANSÃO DOS DOMÍNIOS PORTUGUESES NO NORTE
DA ÁFRICA NO REINADO DE D. MANUEL I: O PAPEL DAS
COMENDAS DA ORDEM DE CRISTO
Thiago Chaves Veronezzi (UEM)
Tendo recebido de seu antecessor uma política ultramarina em evidente
expansão e um governo fortemente centralizado, D. Manuel I soube aproveitar aquele
momento excepcional da política lusitana e transformar o seu reinado num momento
ápice das descobertas e das conquistas além-mar do século XVI. (SOUSA, 2002, p. 83).
Dentre as cobiças primordiais do monarca português a conquista e domínio do
Norte da África estavam em primeiro plano, principalmente no início do século XVI,
período que correspondeu a uma fase de rompimento das pazes na Zona do Magrebe
(OLIVAL, 2005, p. 772), o que despertara no Venturoso o desejo de reestabelecer tais
domínios em espaço norte-africano. Neste cenário, jaziam duas particularidades do
ideário governativo de D. Manuel: 1) política expansionista de conquista do Norte da
África e 2) emprego das instituições da Ordem de Cristo em tais empresas.
Segundo Fernanda Olival, propendendo o potencial das Ordens Militares e
buscando o controle de tais instituições, ao assumir o trono, D. Manuel toma uma
providencial disposição, e não cumpriu
a cláusula testamentária de D. João II, que mandava entregar o Mestrado da
Ordem de Cristo a D. Jorge, mestre das Ordens de Avis e Santiago. Pelo
contrário, esforçou-se por capitalizar a força que representavam as Ordens
Militares, em prol das conquistas no Norte da África [...] (2005, p. 771).
Continuando na abordagem da autora: utilizando tais abastanças via-se a
possibilidade de assegurar os territórios conquistados em África com menos dificuldade
e despesa para a Coroa, afinal, as milícias religioso-militares eram providas de
numerosos bens e rendimentos (em especial a Ordem de Cristo, herdeira direta dos bens
templários) em contraposição a situação enfrentada por D. Manuel, com a administração
real marcada por dificuldades financeiras (mesmo com o domínio do comércio nas áreas
do Mediterrâneo e de Gibraltar) e escassez de braços disponíveis e interessados em
combater em África - principalmente devido ao fato de que, concomitantemente aos
esforços manuelinos em firmar-se nas praças africanas, a expansão portuguesa marítima
houvera alcançado o Oriente, e o dispêndio das gentes portuguesas para se alcançar
rendimentos e benesses em tal região era mais banal do que no norte-africano,
circunscrição essa recheada de confrontos bélicos e dificuldades demasiadas. Portanto,
visavam o auxílio das Ordens até mesmo como uma forma de evitar a inoperância dos
intensos haveres das mesmas. (2005, p. 770).
Tomando como base a argumentação de Jeronymo Osorio, cronista do século
XVI, em sua obra sobre a vida e feitos de D. Manuel, reimpressa pelos lusitanos no
século XIX, podemos demonstrar como se encontrava a situação administrativa e
financeira do Reino de Portugal no momento em que se inicia o reinado manuelino.
[...] passou depois ao apuramento e maneio dos tributos; porque percebeo,
que por negligencia dos Almoxarifes se esvahia a substancia do Reino; que
ou pela avareza dos Thesoureiros desfalcada, ou em gastos supérfluos
consumidos, embaraçava o estado do reino em tomar assento. Que nem se
póde empreender guerra, nem bem fundar a paz, e administrar fôlgadamente
a justiça, onde o patrimônio real, que há de ser o instrumento da pública
bonança, particulares o trasvião, ou ElRei o estraga sem proveito. (OSORIO,
1804, p. 19)
Os dispêndios com os quais D. Manuel se deparava eram abissais: os gastos
eram demasiados, principalmente os rendimentos gastos com a massa dependente dos
haveres da Coroa, sobretudo uma "nobreza de título", ou seja, que pouco poder
econômico provinha e, em contrapartida, absorvia numerários consideráveis com gastos
supérfluos. Segundo Mocelim, tal subordinação e dependência da nobreza em relação
ao monarca ocorriam devido ao fortalecimento do poder régio português que, a partir da
segunda metade do século XIII, o rei tornou-se cada vez mais árbitro das questões entre
as forças sócio-políticas do reino, em particular da nobreza, e tal classe, para a
manutenção dos direitos senhoriais, haveria de enfrentar tal subordinação; ademais,
outro fator que subordina a nobreza em relação ao rei fora a desvalorização crescente
das rendas senhoriais, em contraposição da valorização da economia monetária e a
inflação que atingira os reinos europeus a partir do início do século XIV. (2004, p.31).
Neste contexto, segundo Fátima Regina Fernandes, "cada vez mais a monarquia rivaliza
e disputa o poder dos nobres a nível local, ao mesmo tempo em que é o seu grande
sustentáculo e mesmo a sua principal fonte concessora de poder." (2003b, p. 03) Além
disso, as conquistas em África eram custosas, os portugueses conviviam em quase que
permanentes combates nas posses no norte-africano e, como a disponibilidade de
recursos necessários não era primorosa, a manutenção das posses ficava prejudicado.
Portanto, a situação na qual o governo manuelino, de caráter expansionista, se
efetivava pode ser caracterizada por três aspectos: 1) demasiados gastos internos; 2)
falta de haveres para combater no Norte da África, e 3) falta de homens para combater
na zona do Magrebe. Neste cenário, D. Manuel buscou solucionar esses problemas com
o emprego das ordens religioso-militares, principalmente a Ordem de Cristo, pois
dispunha de condições necessárias para que fossem aproveitadas em favor dos
empreendimentos portugueses.
Todavia, a situação inicial não foi tão prática quanto imaginava D. Manuel I.
Apesar dos mestrados das ordens portuguesas em suas mãos, muitos freires cavaleiros
ainda não se encontravam com interesses em pelejar em norte africano. Segundo
Vasconcelos (2008), a subida ao trono e o controle dos mestrados das ordens não irá
provocar, num primeiro momento, alterações significativas no que se refere à
participação dos setores sociais lusitanos, principalmente a nobreza, no Norte de África.
Diante de tais circunstâncias, "fazendo eco de opiniões do interior do reino e
procurando atrair as ordens para a defesa do Norte da África" (OLIVAL; OLIVEIRA,
2010, p. 565), D. Manuel I em 1503, começa a tomar medidas para resolver tal
imbróglio. Tais ações manuelinas basearam-se na concessão de comendas para os
freires cavaleiros da Ordem de Cristo. Para Isabel L. Morgado Sousa e Silva,
[...] a Ordem de Cristo contempla a existência das comendas desde a sua
fundação que, como sabemos, remonta ao primeiro quartel do século XIV,
numa realidade que não se afasta muito da do século anterior, quando a
Ordem do Templo se encontrava instalada no território português e estava
organizada em comendas. (SILVA, 2002, p. 188)
A comenda correspondia a um ambiente territorial circunscrito, no qual, os
freires cavaleiros, delimitados por um conjunto de direitos territoriais e jurisdicionais,
atuavam como autoridades senhoriais e poderiam usufruir dos bens e rendimentos de tal
delimitação. Os comendadores eram escolhidos pelo Mestre da Ordem. (SILVA, 2002,
p. 188).
Ao assumir seu espaço, o comendador deveria imediatamente emanar um
inventário sobre as condições em que se encontravam sua delimitação no ato da posse.
Sobre os inventários, conforme Isabel L. Morgado Sousa e Silva, haveria a
possibilidade de os comendadores serem dispensados de tal exigência, caso o Mestre o
entendesse e autorizasse, o que não seria de estranhar numa situação de guerra, mais
comum em terras do além-mar, principalmente no Norte da África, ou quando a isso os
obrigava a prestação de serviços ao monarca. (2002, p. 191). Desta forma, só assim a
sua atuação poderia ser julgada posteriormente através das visitações, uma vez que,
além de contribuir para defensiva do reino utilizando armas e cavalos, era dever do
comendador uma boa rentabilização de sua comenda. Ainda na perspectiva de Isabel L.
Morgado, a Ordem de Cristo, em papel de titular senhorial, não podia deixar de
aproveitar os recursos de seus domínios, bem como os direitos que lhes eram inerentes,
quer a nível territorial, quer em nível de rendimento substancial que provinha da
cobrança dos dízimos nos territórios que estavam sob sua jurisdição. Portanto, a
concessão de comendas era de acuidade para a Mesa Mestral de Cristo, a fim de gerar
os rendimentos necessários para seus negócios passaram, após 1503, a ser geridos por
D. Manuel. (2002, p. 193).
A fim de obter um contingente para combater no Norte da África, D. Manuel, a
partir do Capítulo Geral da Ordem de Cristo que reuniu na região de Tomar, no ano de
1503, conseguiu inserir um reduzido número de comendas que deveria ser concedidas
exclusivamente a quem fosse combater no norte africano durante o período de quatro
anos. Importa-nos salientar, pautado na análise de Fernanda Olival, que a instituição das
comendas não foi algo de restrita criatividade e iniciativa manuelina, afinal, já nas
cortes de Coimbra-Évora de 1472-1473, os capítulos dos povos pediam que os
cavaleiros das ordens passassem a servir em África; nas de 1481-1482, insistiam na
aplicação dos Mestrados de Santiago e Avis para as despesas dos lugares além-mar,
juntamente com o de Cristo, quando falecesse o duque de Viseu; propunham que as
comendas fossem atribuídas através de serviços feitos nesses locais, onde a Coroa
estipulasse. Com base em tal argumentação, podemos perceber que a instituição das
comendas em 1503, já houvera sido um planejamento e desejo surgido em finais do
século XV, através das Cortes. (2005, p.770-771). Segundo Margarida Durães, sobre a
situação de D. Manuel
simultaneamente mestre e monarca, conduziu ao reforço a ampliação dos
réditos da Ordem de Cristo. Para atingir os seus objetivos, o monarca
conseguiu autorização papal para tomar posse dos rendimentos de inúmeros
mosteiros, que tinha sido extintos na sequência da grave que os atingiu nos
séculos XIV e XV, transformando-os em comendas para, com elas, poder
agraciar os cavaleiros que prestassem serviços à Coroa e ao Reino, nas
praças do Norte de África. (DURÃES, 2004, p. 231)
D. Manuel justificava ainda, que os cavaleiros de Cristo foram estabelecidos
para servir a Deus na guerra contra os mouros e infiéis. Neste sentido, ainda se valendo
da reunião de Tomar, o monarca instituiu 30 comendas no Norte da África de 10.000
reais anuais cada uma (verba essa que seria amputada da Mesa Mestral de Cristo),
especificamente destinadas a quem habitava ou já tinha se estabelecido em territórios
magrebinos. Portanto, utilizando dos rendimentos da Ordem de Cristo, que não eram
escassos, a partir de tais comendas o monarca visava formar condições de assegurar os
espaços em África.
A política de concessão das comendas da Ordem de Cristo, com as estruturas e
regimentos baseados na herança do templo, persistiu de 1503, ano do começo da
concessão das benesses, até meados da primeira década do século XVI. Segundo F.
Olival e L. F. Oliveira, o esforço manuelino de ligação da milícia tomarense ao Norte de
África seria alcançado com a criação das comendas-novas, por oposição às que existiam
desde a época dos templários. Neste sentido, o monarca português manteve
relativamente às bases estruturais das antigas comendas e propôs a criação de benesses
com demais singularidades e que, desta forma, viessem ao encontro e legitimasse suas
veemências. (2010, p. 566).
Importa-nos destacar, todavia, que a criação das comendas só se concretizaria
devido aos feitos portugueses no norte-africano, principalmente após as medidas
tomadas em 1503 e, consequentemente, o bom relacionamento firmado com a Igreja por
meio de importantes serviços prestados na luta contra o infiel e expansão da fé cristã.
A dedicação da Coroa na política de guerra no Norte da África foi notável, como
ficou comprovado com a ocupação de Safim, em 1508, a conquista definitiva de
Azamor, em 1513, e a manutenção das praças africanas de Ceuta, Tânger, Alcácer e
Arzila. (SILVA, 2009, p. 109). Ainda na perspectiva de Isabel L. Morgado Sousa e
Silva,
[...] a monarquia portuguesa fez questão de anunciar à Europa, num ato de
manifesta propaganda, que ostentou em embaixada de magnificência ao
Papa Leão X em Março de 1514 (data da chegada desta a Roma, sob a
responsabilidade de Tristão da Cunha). Para além do incontestável
deslumbre provocado pelo exotismo e pela abundância e opulência das
ofertas, a reação da cúria pontifícia foi imediata e de reconhecimento. Assim
nos é dado avaliar pelas várias concessões feitas a favor da monarquia
portuguesa, concessão de rendas e mosteiros e igrejas para instituição das
comendas na Ordem de Cristo e, também, a concessão de cruzada. (SILVA,
2009, p. 110)
A embaixada levada a cabo sob a responsabilidade de Tristão da Cunha gerou
como resultado a bula Redemptor Noster Dominus Jesus Christus. Segundo Fernanda
Olival, a partir desta bula, datada de 29 de Abril de 1514, fora permitido a retirada de
20.000 cruzados de mosteiros, igrejas paroquiais e priorados, a fim de erigir comendasnovas que deveriam ficar exclusivas a quem combatesse em territórios da África, ou até
mesmo em outras localidades, desde que fosse comprovada a luta contra o infiel. (2005,
p. 773). Todavia, para tal concessão, foram estipuladas pela Santa Sé três condições que
deveriam ser seguidas pelos portugueses: primeiramente, haveriam de manter com
dignidade os clérigos; segundo, construir e manter em condições satisfatórias os locais
de cultos; e por último, favorecer os homens de menos opulência.1 Seguidos tais
princípios, o Estado português poderia fazer uso de tais concessões conforme seus
interesses.
Para F. Olival e L. F. Oliveira tais benesses advindas pela bula Redemptor
Noster Dominus Jesus Christus viria a ter condições e critérios bem estruturados por D.
Manuel em Outubro de 1514, o qual através de uma carta régia
tratou de precisar as condições e os critérios com base nos quais se
concederiam as comendas-novas, circunscrevendo o modo como os ditames
papais seriam cumpridos. Estabeleceu que as comendas-novas fossem dadas
a quem servisse dois anos no Norte de África, com carta régia para o efeito,
na qual indicaria o local onde tais desempenhos deviam ocorrer. Seria isto
as custas de cada um e não era necessário ter previamente o hábito para
poder solicitar ao rei o documento de autorização para ir "servir comenda
ao Norte de África" [...] (OLIVAL; OLIVEIRA, 2010, p. 566)
As boas relações entre a monarquia portuguesa, na figura de D. Manuel, e o
papado, representado por Leão X, eram notáveis e até certo ponto compreensíveis. A
busca pela asseguração dos territórios além-mar, visados pela monarquia portuguesa,
era de evidente beneficiamento para os ideais eclesiásticos. D. Manuel, rei de território
cristão, ao se propor combater diante dos infiéis, portanto, inimigos da fé cristã, estava a
serviço dos interesses da Igreja com relação aos ideais cruzados de expansão da fé
cristã. Segundo L. F. Oliveira e F. Olival, as praças africanas eram, há muito tempo,
vistas como a chave da conquista de África e da libertação de Jerusalém, principal alvo
das pretensões cristãs. (2010, p. 565).
Dentro desse quadro pode-se afirmar que os objetivos de D. Manuel com as
empresas nas praças norte-africanas eram ambições políticas, religiosas, econômicas e
sociais.
Ambições políticas - através do asseguramento das posses em África e ampliação
dos domínios portugueses, o monarca português adquirira notável admiração aos demais
reinos cristãos e, ademais, adquirira também respeito e veneração de seus súditos.
Segundo Olival em um século ainda marcado pelos ideais religiosos, ser súdito de um
rei que, além de expandir os territórios portugueses, combatesse contra o infiel era algo
de grande prestígio interno, principalmente pelo fato de D. Manuel ter ascendido ao
trono em condições excepcionais e ter que mostrar suas capacidades governamentais,
devido ao fato de não ter sido um herdeiro direto, e por isso, não ter teoricamente se
preparado para assumir um reinado. Ainda segundo a autora, a cruz tomarense era,
sobretudo, um símbolo do rei D. Manuel, o qual chegou ao trono de forma imprevista e
que procurava afirmar-se pelos seus recursos e, nesta perspectiva, a Ordem de Cristo era
um deles. (2005, p. 776)2
Ambições religiosas - D. Manuel, representante de um século nos quais as teorias
vigentes eram de que o rei fora escolhido por vontade divina. Por sinal, segundo
Angélica Barros Gama, em algumas imagens constantes da edição das Ordenações de
1514, está o rei em majestade, portando uma coroa aberta e armadura, ladeado pela sua
divisa, a esfera armilar e pelas armas do Reino, representada pelo escudo manuelino. Na
sua mão direita está sempre o cetro real, símbolo da justiça, a que se prende uma fita,
chamada filactério, onde se lê DEO IN CELO TIBI AUTEM IN MUNDO (Deus no céu
como também no mundo). É evidente a intenção de representar a ligação entre o terreno
e o divino, e lembrar a noção de dualidade especular entre uma Corte terrena,
encabeçada pelo rei e uma Corte celestial encabeçada por Cristo. (2012, p. 30).
Desta forma, o monarca haveria de realizar feitos em concordância com as
pretensões eclesiásticas, pois conforme já citamos, conquistar o Norte de África era
fundamental para reconquista de Jerusalém. Além do mais, conforme ressalta Abel dos
Santos Cruz, a Santa Sé concedia, através da publicação de bulas, importantes rendas
eclesiásticas aos cruzados, o que fez com que os interesses religiosos nas praças do
Magrebe crescessem significativamente ao longo dos séculos XV e XVI. (1995, p. 29).
Ambições econômicas - o domínio da região do norte-africano possibilitaria
além do asseguramento marroquino, o estabelecimento de trocas comerciais com a costa
ocidental africana e, além disso, uma importante posição no comércio do Estreito de
Gibraltar e no comércio do Mediterrâneo. Para Abel dos Santos Cruz:
[...] O Habt [Ceuta, Alcácer Ceguer, Tânger e Arzila] habitado por
pequenos agricultores, serranos e pescadores, oferecia gado e peixe; A
Duquela e Enxovia [Azamor, Mazagão e Safim] habitada por nómadas
árabes e berberes, eram zonas de grande produção cerealífera; e o Suz [Sta.
Cruz do Cabo de Gué] região densamente povoada, além de proporcionar
algodão e açúcar de boa qualidade, atraía os mercadores porque à região
convergia o comércio trans-saariano. A estas razões junta-se a procura de
novos mercados. (1995, p. 29)
Inclusive, as ambições econômicas podem ter inseridas em seu contexto as
ambições sociais, pois, novos domínios portugueses possibilitariam novas regiões para
ascensão econômica e social de parcelas de súditos portugueses, como, por exemplo, os
lusitanos providos de comendas. Conforme cita António Dias Farinha:
Os diferentes estratos sociais tinham vantagens econômicas com a
colonização das praças da África do Norte. A exploração das terras era
fonte de rendimentos [...] Os cargos militares e civis eram asperamente
disputados. Os reis favoreciam com "moradias", comendas e outras benesses
os que se dispunham a servir em África. Os burgueses interessavam-se pelos
contratos de abastecimento das diferentes praças, associando-se, necessário,
a comerciantes estrangeiros [...], Grande número de particulares, pequenos
comerciantes, pescadores e artesãos mantinham relações privilegiadas com
Marrocos. Eram homens comprometidos com o abastecimento em víveres,
armas, materiais de construção e outros produtos necessários à vida
naquelas fronteiras e ao provimento das armadas que ali de dirigiam. Os
pescadores algarvios habituaram-se a frequentar os ricos mares das costas
marroquinas. O contrabando de todo o gênero de mercadorias florescia nos
portos portugueses, em especial do Algarve. Procuravam obter produtos
diversos, como as especiarias, que, embora em quantidades diminutas,
afluíam aos mercados norte-africanos. Este comércio fomentava o gosto
pelos produtos exóticos que se desenvolvia em Portugal e em toda a Europa.
(1999, p. 11)
Neste sentido, em inícios do século XVI as empresas em África tomam novos
aportes. A partir da junção de interesses da monarquia portuguesa e do papado de
Roma, tornou-se comum o papa Leão X conceder bulas de cruzadas em território
magrebino e outorgar medidas a fim de adaptar à Ordem de Cristo aos interesses régios
portugueses. Todo esse processo viria ainda a beneficiar os rendimentos do Mestrado de
Cristo e, consequentemente, traria recursos com os quais a política expansionista
usufruirá. Através do aumento dos ganhos e da concessão de bulas, a fim da criação das
comendas-novas e dos propósitos reais, D. Manuel se cercou de condições para
distribuir benefícios e adquirir condições para combater além-mar. Além desses feitos o
rei lusitano pôde contrair um corpo de súditos obedientes; através do auxílio papal,
contribuindo para moldar a Ordem de Cristo conforme beneficiasse seus
empreendimentos e interesses. Segundo SILVA, neste contexto
o Romano Pontífice ao responder às solicitações régias, privilegiava a
Ordem de Cristo e a monarquia, garantindo a D. Manuel o respeito dos seus
súditos e a sua colaboração na luta contra os infiéis [...] o recurso aos bens
e rendimentos eclesiásticos do reino ficava, assim, fundamentado e
legitimado. (2002, p. 304)
As pretensões manuelinas não se encerravam em 1514, com a criação das
comendas-novas. Segundo Fernanda Olival, em 19 de Janeiro de 1516, o papa Leão X,
através da bula Honestis votis, autorizava também a criação, no prazo de um ano, de
outras comendas-novas com base nos haveres de 50 igrejas do padroado real, porém tais
criações foram baseadas nas condições estabelecidas por D. Manuel em Outubro de
1514. (2005, p. 773).
A partir dessas novas comendas, D. Manuel busca, podendo usufruir das
determinações fixadas dois anos antes, o maior aliciamento de braços para combater em
África. Conforme F. Olival e L.F. Oliveira, já não seria mais necessário, para usufruir
de comendas, ter previamente o hábito de Cristo ou imperativos religiosos. (2010, p.
566). Isto é, se inicia na Ordem de Cristo um processo de vulgarização dos quadros
institucionais. Os objetivos de D. Manuel com essa medidas eram claros: atrair braços
para combater em África, e neste quadro, desejava atrair para a cruzada em África
parcelas da nobreza portuguesa.
As ações tomadas por D. Manuel para empuxar para a cruzada africana setores
da nobreza não podem ser compreendidas apenas como uma forma de o Venturoso
desafogar as despesas da Corte e buscar aliciá-los para uma atividade que traria
benefícios ao reino. Podemos entender a pretensão manuelina em utilizar a nobreza tal
classe nos empreendimentos em África se analisarmos dois fatores demasiadamente
pertinentes: 1) a formação que a nobreza passara ao longo dos séculos, na estruturação
de uma classe com demasiadas características guerreiras e bélicas, atributos que seriam
cruciais na manutenção das posses africanas após a (2) fracassada construção da
fortaleza de Marmora, em 1515; evento esse que faria com que o movimento de
expansão portuguesa para novas praças fossem cessados, e as atenções voltassem
estritamente para asseguramento das praças até então conquistadas. (OLIVAL, 2007, p.
773-777). Conforme cita António Maria Falcão Pestana de Vasconcelos:
Tendo em conta que muitos dos nobres que pretendiam ingressar nestas
instituições tinham como um dos objetivos dar continuidade a uma das suas
principais funções - a guerra -, não é de estranhar que também a normativa
lhe dedique uma especial atenção, isentado os que a ela se dedicavam de
determinadas obrigações, nomeadamente de natureza espiritual. (2008, p.
588)
Ainda segundo esse autor, para além do interesse militar, a nobreza visava
também nas instituições religioso-militares uma possibilidade de ascender a cargos e
dignidades de relevo no seio de tais milícias. Os cavaleiros pertencentes à Ordem de
Cristo, por exemplo, podiam ascender a cargos/dignidades com prestígios sociais e que,
pela sua importância, lhes permitiam ter acesso direto aos centros de decisão - a Corte e à principal fonte de poder - o rei. Além do mais, o acesso a novas fontes de
rendimento e a possibilidade que estas instituições proporcionavam a quem nelas
ingressavam na qualidade de freires cavaleiros, nomeadamente de poderem vir a
administrar, muitas vezes a título vitalício, vastas áreas geográficas, como as comendas
concedidas por D. Manuel a quem combatesse em África, e de poderem usufruir da
concessão de benefícios monetários, também atraíam nobres para admissão à ordem.
(2008, p. 588).
Portanto, D. Manuel buscou, a partir de 1516, a participação efetiva de setores
da nobreza, que há muito já desejava voltar às suas atividades guerreiras e adquirir
benefícios. Para que tal auxílio fosse ainda mais cobiçado e procurado, o monarca, além
dos regimentos afixados em 1514, passou a conceder uma série de vantagens3 para que
os nobres moradores da Casa Real fossem aliciados: caso se disponibilizassem a
combater em África, continuariam a receber as suas moradias, em cevada e dinheiro,
como se estivessem em território português. Sendo assim, imediatamente ao ato de
começar servir em África ficariam aptos a receber comendas, não tendo que ter
cumprido previamente dois anos de serviço (no entanto, quem fossem beneficiados
nessas circunstâncias deveriam continuar a servir de forma a cumprir o tempo, não se
podendo retirar antes). Ademais, quem terminasse os dois anos de ações realizadas em
prol do reino português em território africano e ainda não fosse proprietário de
comendas, poderia fazer chegar ao monarca uma espécie de certidão assinada pelo
capitão de onde prestara o auxílio, na qual haveria de ser declarado: o tempo de serviço,
o número do contingente de homens e de cavalos pelos quais dispunha e serviram à sua
custa; além dos feitos relevantes e as perdas de cavalos, homens ou outras.4 Tendo
obedecido tais critérios, ficaria a cargo do monarca a concessão da benesse para tal
súdito.
As pretensões manuelinas no início da segunda década do século XVI, conforme
já citamos, estavam voltadas primordialmente para defensiva das posses norte-africanas
já conquistadas. Para Fernanda Olival, depois do fracasso da construção da fortaleza de
Marmora, em 1515, a expansão portuguesa no Norte de África sofreu uma paragem
prolongada, praticamente até 1578. (2005, p. 777)
Torna-se fidúcio destacarmos que as ações expansionistas de D. Manuel,
iniciadas em 1495 com sua subida ao trono português até a sua morte em 1521, foram
de grande importância para o reino de Portugal. Seu reinado foi admirado e venerável
em relação aos seus empreendimentos marítimos, e durante seu governo ocorreram
eventos de crucial importância para formação do primeiro Império Marítimo do planeta.
A partir de Então, todas as ambições e entusiasmos da Europa concentravam-se em
Lisboa. Neste sentido, a ação chefiada por Tristão da Cunha só fora possível, devido ao
asseguramento de importantes praças em África iniciadas após 1503, com a instituição
das comendas da Ordem de Cristo. Portanto, o título de Rei de Portugal e dos Algarves
de aquém e de além-mar, senhor da navegação e da conquista da Etiópia, Arábia,
Pérsia e Índia, no qual D. Manuel se intitulou foi muito por conta do usufruto das
instituições da Ordem de Cristo, e dentre elas, as comendas.
Notas:
1. SILVA, Isabel L. M. S. . A Ordem de Cristo (1417-1525). 2002 (página 287).
2. Para complementar a leitura, leia-se: SOUSA, M.. Reis e Rainhas de Portugal.
SPORPRESS, 2002.
3. Segundo Silva, com relação aos benefícios em combater no Norte de África, em
setembro de 1514, em resposta a uma súplica manuelina, diretamente associada às
condições que presidiam ao provimento destas comendas, Leão X concedera
indulgência plenária para todos os que morressem nas guerras de África e da Índia.
Segundo tal medida enfatizada pela autora, pode-se ter em evidência que a partir de tal
ação, houvera um aumento considerável de interessados nas empresas além-mar. (2002,
p. 302).
4. OLIVAL, Fernanda. Norte de África ou Índia? Ordens Militares e serviços (século
XVI). 2005. (páginas 774-775).
REFERÊNCIAS
Fonte
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A EXPANSÃO DOS DOMÍNIOS PORTUGUESES NO NORTE