PROJETO LEITURA E DIDATIZAÇÃO MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS MANUEL ANTÔNIO DE ALMEIDA Possíveis dialogismos trabalhados neste projeto: 1. Anti-herói/herói picaresco ou quixotesco (leituras 1 e 3) 2. Romântico de exceção (leitura 2) 3. A malícia e as milícias: jeitinho e corrupção (leitura 4) 4. As idiossincrasias cariocas e o espírito brasileiro (leitura 5) LEITURA 1 ANTI-HERÓI/HERÓI PICARESCO OU QUIXOTESCO I Leia, com atenção, os excertos a seguir, antes de trabalhar com as questões propostas. O primeiro faz parte do trecho inicial do romance de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias, considerado pela crítica como “romance de exceção, dentro do período romântico”; o segundo é o prefácio escrito por Miguel de Cervantes, em 1605, para sua obra-prima O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha. TEXTO 1 por Davi Fazzolari Mas voltemos à esquina. Quem passasse por aí em qualquer dia útil dessa abençoada época veria sentado em assentos baixos, então usados, de couro, e que se denominavam – cadeiras de campanha – um grupo mais ou menos numeroso dessa nobre gente conversando pacificamente em tudo sobre que era lícito conversar: na vida dos fidalgos, 1 nas notícias do Reino e nas astúcias policiais do Vidigal. Entre os termos que formavam essa equação meirinhal pregada na esquina havia uma quantidade constante, era o Leonardo-Pataca. Chamavam assim a uma rotunda e gordíssima personagem de cabelos brancos e carão avermelhado, que era o decano da corporação, o mais antigo dos meirinhos que viviam nesse tempo. A velhice tinha-o tornado moleirão e pachorrento; com sua vagareza atrasava o negócio das partes; não o procuravam; e por isso jamais saía da esquina; passava ali os dias sentado na sua cadeira, com as pernas estendidas e o queixo apoiado sobre uma grossa bengala, que depois dos cinqüenta era a sua infalível companhia. Do hábito que tinha de queixar-se a todo o instante de que só pagassem por sua citação a módica quantia de 320 réis, lhe viera o apelido que juntavam ao seu nome. filho feio e sem graça alguma, e o amor que lhe tem põe-lhe uma venda nos olhos para que não veja suas falhas, antes as toma por graças e discrições e as conta aos amigos como agudezas e donaires. Mas eu, que, embora pareça pai, sou padrasto de D. Quixote, não quero seguir o corrente do uso suplicando-te, quase com as lágrimas nos olhos, como outros fazem, leitor caríssimo, que perdoes ou dissimules as faltas que neste meu filho vires, pois não és seu parente nem seu amigo, e tens a alma em teu corpo e teu livrearbítrio no justo ponto (...). ALMEIDA, Manuel Antônio de. 1. A apresentação das personagens, na prosa de ficção, geralmente se vale das qualidades físicas e psicológicas que servirão de arma e escudo, para essas mesmas personagens, durante o enredo. Destaque do texto 1: Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Saraiva, 2006 (Clássicos Saraiva). TEXTO 2 Desocupado leitor: sem meu juramento podes crer que eu quisera que este livro, como filho do entendimento, fosse o mais formoso, o mais galhardo, e mais discreto que se pudesse imaginar. Mas não pude eu contravir a ordem da natureza, que nela cada coisa engendra sua semelhante. E assim que poderá engendrar o estéril e mal cultivado engenho meu, senão a história de um filho seco, mirrado, caprichoso e cheio de pensamentos vários e nunca imaginados por outro alguém, tal como quem fosse engendrado num cárcere, onde todo desconforto tem seu assento, e onde todo o triste ruído faz sua morada? O sossego, o lugar aprazível, a amenidade dos campos, a serenidade dos céus, o murmurar das fontes, a quietude do espírito dão ocasião bastante para que as musas mais estéreis se mostrem fecundas e ofereçam ao mundo partos que o cumulem de maravilha e de contento. Não raro acontece a um pai ter um SAAVEDRA, Miguel de Cervantes. O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha, Primeiro Livro; tradução de Sérgio Molina. São Paulo: Ed. 34, 2002. a) As expressões que compõem as características físicas da personagem chamada Leonardo-Pataca. b) As expressões que compõem as características psicológicas da personagem em questão. c) Quanto às intenções do autor ao criar a personagem, o que esse conjunto de características, destacadas em suas respostas anteriores, pode revelar? 2. A obra de Miguel de Cervantes, escrita no início do século XVII, portanto mais de duzentos anos antes do romance de Manuel Antônio de Almeida, é apontada pelos especialistas como uma das responsáveis pelo declínio das Novelas de Cavalaria, já que criou um herói com características contrárias às do herói convencional. 2 Novela de Cavalaria – Manifestação literária medieval que narra as peripécias e aventuras de heróicos cavaleiros. Geralmente em busca do amor de uma donzela, eles enfrentam inúmeros desafios e seres maravilhosos, como dragões e monstros, exaltando ideais de coragem, lealdade e honra. a) Que expressões, no trecho destacado, aproximam a obra de Cervantes do que se convencionou chamar Novela de Cavalaria? b) Que expressões distanciam a descrição do protagonista das descrições dos típicos heróis de cavalaria (os cavaleiros)? LEITURA 2 ROMÂNTICO DE EXCEÇÃO Responda a estas questões prévias para, em seguida, iniciar a leitura de novos textos. 1. É comum a expressão “romantismo de exceção” quando a crítica se refere ao romance Memórias de um sargento de milícias, publicado pela primeira vez em 1852. a) Que características justificam plenamente essa expressão? 3. Compare os dois textos. Ambos descrevem personagens com informações mínimas, antes que iniciem, de fato, as peripécias inseridas no enredo. b) A obra de Cervantes aqui destacada poderia, ao seu tempo, ser considerada também uma narrativa de exceção? a) Quanto ao foco narrativo, em que as estruturas das duas narrativas se aproximam ou se distanciam? A seguir, além de mais um excerto do romance de Manuel Antônio de Almeida, leremos o trecho final de A pata da gazela, romance escrito por José de Alencar e que alcançou grande popularidade na segunda metade do século XIX, durante a fase final do Romantismo brasileiro. Trata-se de uma obra escrita em 1870, portanto quase vinte anos após a publicação de Memórias de um sargento de milícias. Foco narrativo – É o ponto de vista, adotado por um narrador, pelo qual se apresenta o enredo para o leitor. Quando o narrador, além de narrar, participar das ações do enredo, como um narrador-personagem, o foco narrativo estará em primeira pessoa. Quando o narrador não estiver envolvido em qualquer ação dentro do enredo, o foco narrativo estará em terceira pessoa. TEXTO 3 b) Por que, em sua opinião, os autores fizeram essa opção? Quem Amélia amou desde o princípio foi Leopoldo. A vaidade, o galanteio que se nutre de brilhantes futilidades, a seduziam por momentos, e rendiam ao capricho de Horácio. Mas passado esse enlevo, sua alma sentia a atração irresistível que a impelia para o seu pólo. Disso que durante dois meses passava na vida íntima da moça, ela própria não se apercebia; foi depois da cena do baile, que ela entrou em si, e compreendeu as sublevações recônditas de sua alma, e o drama que aí se agitava desde muito. 3 Leopoldo começara a freqüentar a casa de Sales poucos dias depois da partida de D. Clementina. As duas almas, por tanto tempo separadas, só esperavam o momento de se unirem ou antes de se entranharem uma na outra. Às tardes, no jardim, entre cortinas de flores, elas celebravam esse místico himeneu do amor, único eterno e indissolúvel, porque se faz no seio do Criador. Pelo voto de todos se apressou o dia do casamento, que os noivos exigiram se fizesse inteiramente à capucha, e sem prévia participação. A razão desse empenho, só Amélia a sabia e nunca a disse. Eram escrúpulo de seu pudor: depois do que tinha acontecido, não queria que lhe dessem outra vez o título de noiva. Terminada a cerimônia, e feitas as felicitações do costume, correram os minutos em agradável conversação. Eram onze horas, quando Leopoldo entrou no toucador em que sua noiva o esperava. Sentada em uma conversadeira, Amélia sorriu para seu marido; porém através das largas dobras do roupão de cambraia, percebia-se o tremor involuntário que agitava seu lindo talhe. – É meu presente! disse ela com timidez. E apresentou ao noivo um objeto envolto em papel de seda, atado com fita azul. Abrindo, achou Leopoldo dois mimosos pantufos de cetim branco, os mesmos que Amélia começara a bordar no dia seguinte ao baile. O moço enleado, não compreendia. Insensivelmente seu olhar desceu à fímbria do roupão. Sobre a almofada de veludo e entre os folhos da cambraia, apareciam as unhas rosadas de dois pezinhos divinos. Uma onda de rubor derramou-se pelo semblante da moça, cujos lábios balbuciaram uma palavra. – Calce! Leopoldo ajoelhou aos pés da noiva. O temporal, desabando nesse momento, bateu com violência nos vidros da janela, que fechou-se. TEXTO 4 Sua história tem pouca coisa de notável. Fora Leonardo algibebe em Lisboa, sua pátria; aborrecera-se porém do negócio, e viera ao Brasil. Aqui chegando, não se sabe por proteção de quem, alcançou o emprego de que o vemos empossado, e que exercia, como dissemos, desde tempos remotos. Mas viera com ele no mesmo navio, não sei fazer o que, uma certa Maria da hortaliça, quitandeira das praças de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitota. O Leonardo, fazendo-se-lhe justiça, não era nesse tempo de sua mocidade mal apessoado, e sobretudo era maganão. Ao sair do Tejo, estando a Maria encostada à borda do navio, o Leonardo fingiu que passava distraído por junto dela, e com o ferrado sapatão assentou-lhe uma valente pisadela no pé direito. A Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu-se como envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de disfarce um tremendo beliscão nas costas da mão esquerda. Era isto uma declaração em forma, segundo os usos da terra: levaram o resto do dia de namoro cerrado; ao anoitecer passou-se a mesma cena de pisadela e beliscão, com a diferença de serem desta vez um pouco mais fortes; e no dia seguinte estavam os dois amantes tão extremosos e familiares, que pareciam sê-lo de muitos anos. Quando saltaram em terra começou a Maria a sentir certos enojos: foram os dois morar juntos: e daí a um mês manifestaram-se claramente os efeitos da pisadela e do beliscão; sete meses depois teve a Maria um filho, formidável menino de quase três palmos de comprido, gordo e vermelho, cabeludo, esperneador e chorão; o qual, logo depois que nasceu, mamou duas horas seguidas sem largar o peito. E este nascimento é certamente de tudo o que temos dito o que mais nos interessa, porque o menino de quem falamos é o herói desta história. ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Saraiva, 2006 (Clássicos Saraiva). ALENCAR, José de. A pata da gazela. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1960 (Obra Completa). 4 2. Destaque do texto de José de Alencar expressões que revelam a atração impulsionada pelo sentimento amoroso e uma cena em que, em sua opinião, simbolicamente se dá o enlace matrimonial. 3. Identifique a passagem do texto 4 que narra a aproximação amorosa dos pais do protagonista Leonardo. Compare, agora, os textos 3 e 4. 4. Qual dos dois está mais próximo das características do Romantismo? Justifique sua resposta a partir do texto escolhido. 5. O que distancia a outra obra das expectativas do leitor romântico? LEITURA 3 TEXTO 5 Passemos por alto sobre os anos que decorreram desde o nascimento e batizado do nosso memorando, e vamos encontrá-lo já na idade de sete anos. Digamos unicamente que durante todo este tempo o menino não desmentiu aquilo que anunciara desde que nasceu: atormentava a vizinhança com um choro sempre em oitava alta; era colérico; tinha ojeriza particular à madrinha, a quem não podia encarar, e era estranhão até não poder mais. Logo que pôde andar e falar tornou-se um flagelo; quebrava e rasgava tudo que lhe vinha à mão. Tinha uma paixão decidida pelo chapéu armado do Leonardo; se este o deixava por esquecimento em algum lugar ao seu alcance, tomava-o imediatamente, espanava com ele todos os móveis, punha-lhe dentro tudo que encontrava, esfregava-o em uma parede, e acabava por varrer com ele a casa; até que a Maria, exasperada pelo que aquilo lhe havia de custar aos ouvidos, e talvez às costas, arrancava-lhe das mãos a vítima infeliz. Era, além de traquinas, guloso; quando não traquinava, comia. A Maria não lhe perdoava; trazia-lhe bem maltratada uma região do corpo; porém ele não se emendava, que era também teimoso, e as travessuras recomeçavam mal acabava a dor das palmadas. Assim chegou aos sete anos. ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. ANTI-HERÓI/HERÓI PICARESCO OU QUIXOTESCO II Assim como Memórias de um sargento de milícias pode ter recebido influências d'O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, o romance de Manuel Antônio de Almeida também pode ter estendido seu registro de mundo para obras brasileiras que foram escritas mais tarde, em um diálogo sempre vivo e aquecido. Confrontaremos agora o protagonista Leonardo com outros heróis da literatura nacional, ainda na fase inicial de suas vidas: Macunaíma e Brás Cubas. São Paulo: Saraiva, 2006 (Clássicos Saraiva). TEXTO 6 “No fundo do Mato-Virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.” [...] Ficava no canto da maloca, trepado no jirau da paxiúba, espiando o trabalho dos outros e principalmente os 5 dois manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na força de homem. O divertimento dele era decepar cabeça de saúva. Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém. E também espertava quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e nus. Passava o tempo do banho dando mergulho, e as mulheres soltavam gritos gozados por causa dos guaimuns dizque habitando a água-doce por lá. No mucambo si alguma cunhatã se aproximava dele pra fazer festinha. Macunaíma punha a mão nas graças dela, cunhatã se afastava. Nos machos guspia na cara. Porém respeitava os velhos e freqüentava com aplicação a murua a poracê o torê o bacorocô a cucuicogue, todas essas danças religiosas da tribo. Quando era pra dormir trepava no macuru pequeninho sempre se esquecendo de mijar. Como a rede da mãe estava por debaixo do berço, o herói mijava quente na velha, espantando os mosquitos bem. Então adormecia sonhando palavras feias, imoralidades estrambólicas e dava patadas no ar. ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. 2. Destaque do texto 6 os termos utilizados por Mário de Andrade para descrever Macunaíma, quando o “herói sem nenhum caráter” está com uma idade muito próxima do herói de Memórias de um sargento de milícias. 3. É possível identificar no protagonista de Mário de Andrade aspectos psicológicos já presentes em Memórias de um sargento de milícias? Para oferecer uma resposta completa, procure empregar elementos dos textos apresentados. Agora, levante hipóteses. 4. Aparentemente, os protagonistas das duas obras destacadas estão distantes do conceito comum de herói. a) A partir do contexto de cada obra, o que justificaria tal distância? b) Teria nascido um novo conceito de herói no romance escrito por Manuel Antônio de Almeida? Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1987, p. 9-12. Os dois trechos transcritos situam-se na introdução dos respectivos romances e anunciam os primeiros passos dos heróis. A obra de Manuel Antônio de Almeida, como sabemos, é de 1852, mas os leitores brasileiros só puderam ler Macunaíma: o herói sem nenhum caráter, romance mais conhecido de Mário de Andrade, em 1928, data de sua primeira edição. Com base nas duas leituras, responda as questões propostas. 1. Destaque do texto 5 expressões que caracterizam o protagonista Leonardo em sua infância. Machado de Assis, em Memórias póstumas de Brás Cubas – um dos romances mais importantes da literatura brasileira, publicado em 1882 e considerado marco inicial do Realismo no Brasil –, apresenta um curioso capítulo em que o herói, narrador-personagem, descreve-se em sua infância. Esse estranho protagonista, que narra sua vida depois de morto, costuma tecer alguns comentários de inclinação psicológica. Vejamos. TEXTO 7 CAPÍTULO XI – O MENINO É PAI DO HOMEM CRESCI; e nisso é que a família não interveio; cresci naturalmente como crescem as magnólias e os gatos. Talvez os gatos são menos matreiros, e com certeza, as magnólias são menos inquietas de que eu era na minha infância. Um poeta dizia que o menino é pai do homem. Se 6 isto é verdade, vejamos alguns lineamentos do menino. Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de "menino diabo"; e verdadeiramente não era outra cousa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce "por pirraça"; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, – algumas vezes gemendo, – mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um –"ai, nhonhô!" – ao que eu retorquia: – "Cala a boca, besta!" – Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes me repreendia à vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos. Não se conclua daqui que eu levasse todo o resto da minha vida a quebrar a cabeça dos outros nem a esconderlhes os chapéus; mas opiniático, egoísta e algo contemptor dos homens, isso fui; se não passei o tempo a esconder-lhes os chapéus, alguma vez lhes puxei pelo rabicho das cabeleiras. (...) Sim, meu pai adorava-me. Minha mãe era uma senhora fraca, de pouco cérebro e muito coração, assaz crédula, sinceramente piedosa, – caseira, apesar de bonita, e modesta, apesar de abastada; temente às trovoadas e ao marido. O marido era na Terra o seu deus. Da colaboração dessas duas criaturas nasceu a minha educação, que, se tinha alguma cousa boa, era no geral viciosa, incompleta, e, em partes, negativa. Meu tio cônego fazia às vezes alguns reparos ao irmão dizia-lhe que ele me dava mais liberdade do que ensino, e mais afeição do que emenda; mas meu pai respondia que aplicava na minha educação um sistema inteiramente superior ao sistema usado; e por este modo, sem confundir o irmão, iludia-se a si próprio. (...) Bem diferente era o tio cônego. Esse tinha muita austeridade e pureza; tais dotes, contudo, não realçavam um espírito superior, apenas compensavam um espírito medíocre. Não era homem que visse a parte substancial da Igreja; via o lado externo, a hierarquia, as preeminências, as sobrepelizes, as circunflexões. Vinha antes da sacristia que do altar. Uma lacuna no ritual excitava-o mais do que uma infração dos mandamentos. Agora, a tantos anos de distância, não estou certo se ele poderia atinar facilmente com um trecho de Tertuliano, ou expor, sem titubear, a história do símbolo de Nicéia; mas ninguém, nas festas cantadas, sabia melhor o número e casos das cortesias que se deviam ao oficiante. Cônego foi a única ambição de sua vida; e dizia de coração que era a maior dignidade a que podia aspirar. Piedoso, severo nos costumes, minucioso na observância das regras, frouxo, acanhado, subalterno, possuía algumas virtudes, em que era exemplar – mas carecia absolutamente da força de as incutir, de as impor aos outros; Não digo nada de minha tia materna, D. Emerenciana, e aliás era a pessoa que mais autoridade tinha sobre mim; essa diferençava-se grandemente dos outros; mas viveu pouco tempo em nossa companhia, uns dous anos. Outros parentes e alguns íntimos não merecem a pena de ser citados; não tivemos uma vida comum, mas intermitente, com grandes claros de separação. O que importa é a expressão geral do meio doméstico, e essa aí fica indicada, vulgaridade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído, frouxidão da vontade, domínio do capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta flor. ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, v. 1. 7 5. O texto de Machado de Assis apresenta um título muito curioso, “O menino é pai do homem”. a) Após ler o texto com cuidado, procure decifrar o título. b) Levando em consideração que o narrador é um tanto arrogante em sua maneira de apresentar os fatos, localize, no texto, elementos que comprovem a sua resposta anterior. 6. O protagonista de Memórias póstumas de Brás Cubas, descrito em suas atitudes, nos faz lembrar do protagonista de outras memórias, as de um sargento de milícias. a) Destaque adjetivos que servem para descrever Brás Cubas. b) Compare os textos. As descrições da infância dos protagonistas os distanciam ou os aproximam? 7. A obra de Manuel Antônio de Almeida é reconhecida, entre os críticos, como precursora da apresentação em primeiro plano das camadas populares na Literatura brasileira. Já a obra de Machado de Assis tratou dos temas em voga no Realismo, predominantemente, a partir das elites burguesas do século XIX. De posse dessas informações, responda: a) A reação dos adultos, nos dois textos, para as “traquinagens” dos meninos será a mesma? Apresente trechos dos textos que confirmem sua resposta. b) Desprezando a época de publicação, em uma primeira leitura, a qual das duas reações, destacadas em sua resposta anterior, você atribuiria o termo “realista”? Comente sua resposta, levando em consideração o uso comum dos termos “realista” e “romântico”. Agora, levante novas hipóteses. 8. Seria possível atribuir a teoria expressa no título do capítulo escrito por Machado de Assis (O menino é pai do homem) ao personagem de Manuel Antônio de Almeida? 9. Seria possível ler na descrição de Brás Cubas uma influência direta do texto de Manuel Antônio de Almeida? LEITURA 4 A MALÍCIA E AS MILÍCIAS: JEITINHO E CORRUPÇÃO Há na literatura brasileira certa tradição quanto ao protagonista arrevesado, torto, gauche. O anti-herói formulado por Manuel Antônio de Almeida para o seu romance único pode estar só quando pensamos em meados do século XIX. Contudo, estará muito bem acompanhado quando o olhar for mais panorâmico. Os textos selecionados nesta fase da atividade revelam estreita ligação entre o imaginário literário da malandragem e os sambas que se produziram com o tema. A “malandragem” carioca/brasileira pode ser ouvida também nos sambas de Noel Rosa, Geraldo Pereira, Moreira da Silva, entre muitos outros. Paulinho da Viola, um dos principais nomes do samba contemporâneo, referiu-se diretamente à obra de Manuel Antônio de Almeida e, em 1966, a Portela desfilou ao som de “Memórias de um sargento de milícias” (que foi gravado por Martinho da Vila). Não deixe de ouvir. Os textos 9, 10 e 11 ilustram bem a referida tradição da nossa literatura. Leia-os com atenção e responda as próximas questões. 8 Escola de Samba Portela 1966 Enredo: Memórias de um sargento de milícias Compositor: Paulinho da Viola Era no tempo do rei Quando aqui chegou Um modesto casal Feliz pelo recente amor Leonardo, tornando-se meirinho Deu a Maria Hortaliça um novo lar Um pouco de conforto e de carinho Dessa união nasceu um lindo varão Que recebeu o mesmo nome de seu pai Personagem central da história Que contamos neste carnaval (...) Era temido pelo povo da cidade Luizinha, primeiro amor Que Leonardo conheceu E que dona Maria A outro como esposa concedeu Somente foi feliz Quando José Manuel morreu Nosso herói outra vez se apaixonou Quando sua viola a mulata Vidinha Esta singela modinha contou: Se os meus suspiros pudessem Aos seus ouvidos chegar Verias que uma paixão Tem poder de assassinar TEXTO 8 (...) O tema do sermão foi a necessidade de buscar o Leonardo uma ocupação, de abandonar a vida que levava, gostosa sim, porém sujeita a emergências tais como a que acabava de dar-se. A sanção de todas as leis que a predadora impunha ao seu ouvinte eram as garras do Vidigal. – Haveis de afinal cair-lhe nas unhas, dizia ela no fim de cada período; e então o côvado e meio te cairá também nas costas. Esta idéia do côvado e meio fez brecha no espírito do Leonardo: ser soldado era naquele tempo, e ainda hoje talvez, a pior coisa que podia suceder a um homem. Prometeu pois sinceramente emendar-se e tratar de ver um arranjo em que estivesse ao abrigo de qualquer capricho policial do terrível major. Achar porém ocupação para quem nunca cuidou nela até certa idade, e assim de pé para mão, não era das coisas mais fáceis. Entretanto o zelo da comadre pôs-se em atividade, e poucos dias depois entrou ela muito contente, e veio participar ao Leonardo que lhe tinha achado um excelente arranjo que o habilitava, segundo pensava, a um grande futuro, e o punha perfeitamente a coberto das iras do Vidigal; era o arranjo de servidor na ucharia real. Deixando de parte o substantivo ucharia, e atendendo só ao adjetivo real, todos os interessados e o próprio Leonardo regalaram os olhos com o achado da comadre. Empregado da casa real?! oh! isso não era coisa que se recusasse; e então empregado na ucharia! essa mina inesgotável, tão farta e tão rica!… A proposta da comadre foi aceita sem uma só reflexão contra, da parte de quem quer que fosse. Como a comadre pudera arranjar semelhante coisa para o afilhado é isso que pouco nos deve importar. Dentro de poucos dias achou-se o Leonardo instalado no seu posto, muito cheio e contente de si. O major, que o não perdia de vista, soube-lhe dos passos, e mordeu os beiços de raiva quando o viu tão bem aquartelado; só deixando a vida que levava podia o Leonardo cortar ao major pretextos para pôr-lhe a unha mais dia menos dia. – Se ele se emenda?! dizia pesaroso o major; se ele se emenda perco eu a minha vingança… Mas… (e esta esperança o alentava) ele não tem cara de quem nasceu para emendas. O major tinha razão: o Leonardo não parecia ter nascido para emendas. Durante os primeiros tempos de serviço tudo correu às mil maravilhas; só algum mal-intencionado poderia notar em casa de Vidinha uma certa fartura desusada na despensa; mas isso não era coisa em que alguém fizesse conta. 9 O Leonardo porém parece que recebera de seu pai a fatalidade de lhe provirem sempre os infortúnios dos devaneios do coração. Dentro do pátio da ucharia morava um toma-largura em companhia de uma moça que lhe cuidava na casa; a moça era bonita, e o toma-largura um machacaz talhado pelo molde mais grotesco; a moça fazia pena a quem a via nas mãos de tal possuidor. O Leonardo, cujo coração era compadecido, teve, como todos, pena da moça; e apressemo-nos a dizer, era tão sincero esse sentimento que não pôde deixar de despertar também a mais sincera gratidão ao objeto dele. Quem pagou o resultado da pena de um e da gratidão da outra foi o toma-largura. Vidinha lá por casa começou a estranhar a assiduidade do novo empregado na sua repartição, e a notar o quer que fosse de esmorecimento de sua parte para com ela. Um dia o toma-largura tinha saído em serviço; ninguém esperava por ele tão cedo: eram 11 horas da manhã. O Leonardo, por um daqueles milhares de escaninhos que existem na ucharia, tinha ido ter à casa do toma-largura. Ninguém porém pense que era para maus fins. Pelo contrário era para o fim muito louvável de levar à pobre moça uma tigela de caldo do que há pouco fora mandado a el-rei… Obséquio de empregado da ucharia. Não há aqui nada de censurável. Seria entretanto muito digno de censura que quem recebia tal obséquio não o procurasse pagar com um extremo de civilidade: a moça convidou pois ao Leonardo para ajudá-la a tomar o caldo. E que grosseiro seria ele se não aceitasse tão belo oferecimento? Aceitou. De repente sente-se abrir uma porta: a moça, que tinha na mão a tigela, estremece, e o caldo entorna-se. O toma-largura, que acabava de chegar inesperadamente, fora a causa de tudo isto. O Leonardo correu precipitadamente pelo caminho mais curto que encontrou; sem dúvida em busca de outro caldo, uma vez que o primeiro se tinha entornado. O toma-largura corre-lhe também ao alcance, sem dúvida para pedir-lhe que trouxesse desta vez quantidade que chegasse para um terceiro. O caso foi que daí a pouco ouviu-se lá por dentro barulho de pratos quebrados, de móveis atirados ao chão, gritos, alarido; viu-se depois o Leonardo atravessar o pátio da ucharia à carreira e o toma-largura voltar com os galões da farda arrancados, e esta com uma aba de menos. ................................................ No dia seguinte o Leonardo foi despedido da ucharia. ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Saraiva, 2006 (Clássicos Saraiva). TEXTO 9 CAPRICHO DE RAPAZ SOLTEIRO (NOEL ROSA – 1933) Nunca mais esta mulher Me vê trabalhando! Quem vive sambando Leva a vida para o lado que quer De fome não se morre Neste Rio de Janeiro Ser malandro é um capricho De rapaz solteiro TEXTO 10 RAPAZ FOLGADO (NOEL ROSA – 1932) Deixa de arrastar o teu tamanco Pois tamanco nunca foi sandália E tira do pescoço o lenço branco Compra sapato e gravata Joga fora esta navalha que te atrapalha 10 Com chapéu do lado deste rata Da polícia quero que escapes Fazendo um samba-canção Já te dei papel e lápis Arranja um amor e um violão Malandro é palavra derrotista Que só serve pra tirar Todo o valor do sambista Proponho ao povo civilizado Não te chamar de malandro E sim de rapaz folgado TEXTO 11 HOMENAGEM AO MALANDRO (CHICO BUARQUE – 1977) Eu fui fazer um samba em homenagem À nata da malandragem (...) Agora já não é normal O que dá de malandro regular, profissional Malandro com aparato de malandro oficial Malandro candidato a malandro federal Malandro com retrato na coluna social Malandro com contrato, com gravata e capital Que nunca se dá mal Mas o malandro pra valer Não espalha Aposentou a navalha Tem mulher e filho e tralha e tal Dizem as más línguas que ele até trabalha Mora lá longe e chacoalha Num trem da Central são, dentro do que já foi chamado pela crítica de “estética da malandragem”, dois obstáculos a serem superados e que, via de regra, determinam as peripécias do anti-herói. Em vez de enfrentar as leis e os rituais sociais regulares, o “malandro” corrompe os caminhos e burla as regras. Peripécia – Termo, de origem grega, que se refere a uma reviravolta na narrativa, com a mudança, geralmente inesperada, do destino de uma personagem. 1. No texto 8, encontre e reproduza, com suas palavras, o modo como Leonardo encontra emprego e começa a trabalhar, bem como os motivos que o levaram a isso. 2. O que fez Leonardo para perder o emprego “arranjado” pela comadre? 11 3. O texto 9 – Capricho de rapaz solteiro, de Noel Rosa – apresenta uma tomada de decisão baseada no ambiente em que se vive. a) De qual decisão se trata? Transcreva o trecho correspondente. b) Qual ambiente justifica essa tal decisão? c) O que o sambista arrisca perder, quando toma sua decisão? 4. Em Rapaz folgado, outro samba de Noel Rosa, que se lê no texto 10, mais uma vez estão em debate o trabalho, o sambista e a malandragem. a) Destaque as palavras que se referem à malandragem. Geralmente, a negação do trabalho e a conquista amorosa b) A voz poética pede ao “malandro” que abandone essa condição. Qual é o trabalho proposto para a mudança de vida? Voz poética – Instrumento de quem fala, no poema. É o elemento da linguagem poética que está para a poesia como o narrador está para a prosa. Quando a temática é lírica, para se referir à voz poética, é comum o uso da expressão “eu-lírico”. c) Destaque os instrumentos de trabalho propostos no samba. b) Por que, no quarto verso desse samba, o sambista diz que perdeu a viagem? c) Para onde foi, afinal, a malandragem? d) No samba de Chico Buarque, o “malandro” sofreu transformação? 7. Posicione-se: • Você considera o “jeitinho brasileiro” um motivo de orgulho? Trata-se de um benefício que tem seu preço ou de um mal necessário que auxilia o desenvolvimento do país? d) Haverá real transformação, caso o “malandro” acate as sugestões da voz poética? Assim como a literatura de Manuel Antônio de Almeida registra a formação do caráter nacional, a música popular brasileira dá vazão a esse mesmo registro de modo universal e estende a condição do “malandro” ao que se convencionou chamar “jeitinho brasileiro”. O samba de Chico Buarque, Homenagem ao malandro, aqui destacado no texto 11, sugere que o malandro, agora (o samba é de 1977), saltou das camadas populares e pertence à elite nacional. 5. Destaque da letra de Chico Buarque expressões que confirmam a presença dos “malandros” nas esferas do poder. 6. Apesar do tom de denúncia, assim como no romance de M. A. Almeida, não haverá, no samba de Chico Buarque, julgamento moral da conduta do “malandro”. O sambista parece respeitar a presença tradicional do malandro em seu meio social. a) A quem se faz a homenagem do título? LEITURA 5 AS IDIOSSINCRASIAS CARIOCAS E O ESPÍRITO BRASILEIRO OU VAI, RIO, SER GAUCHE NA VIDA O Rio de Janeiro foi um dos espaços narrativos mais freqüentes da literatura nacional no século XIX. Manuel Antônio de Almeida escreve na década de l850, mas reporta-se ao “tempo do rei”, apontando para as primeiras décadas daquele século. O Rio de Leonardo-Pataca e de seu filho Leonardinho não está muito distante daquele que recebeu D. João VI e sua coroa portuguesa. Pesquise e amplie seu repertório temático. Dois cronistas maiores da literatura brasileira contemporânea farão o leitor se lembrar das aventuras de Leonardo pelas ruas do Rio de Janeiro. Leia com atenção os textos seguintes e responda às próximas questões. 12 TEXTO 12 CARIOCA DA GEMA JOÃO ANTÔNIO Carioca, carioca da gema seria aquele que sabe rir de si mesmo. Também por isso, aparenta ser o mais desinibido e alegre dos brasileiros. Que, sabendo rir de si e de um tudo, é homem capaz de se sentar ao meio-fio e chorar diante de uma tragédia. O resto é carimbo. Minha memória não me permite esquecer. O tio mais alto, o meu tio-avô Rubens, mulherengo de tope, bigode frajola, carioca, pobre, porém caprichoso nas roupas, empaletozado como na época, empertigado, namorador impenitente e alegre e, pioneiro, me ensinar nos bondes a olhar as pernas nuas das mulheres e, após, lhes oferecer o lugar. Que havia saias e pernas nuas nos meus tempos de menino. Folgado, finório, malandreco, vive de férias. Não pode ver mulher bonita, perdulário, superficial e festivo até as vísceras. Adjetivação vazia... E só idéia genérica, balela, não passa de carimbo. Gosto de lembrar aos sabidos, perdedores de tempo e que jogam conversa fora, que o lugar mais alegre do Rio é a favela. E onde mais se canta no Rio. E, aí, o carioca é desconcertante. Dos favelados nasce e se organiza, como um milagre, um dos maiores espetáculos de festa popular do mundo, o Carnaval. O carimbo pretensioso e generalizador se esquece de que o carioca não é apenas o homem da Zona Sul badalada – de Copacabana ao Leblon. Setenta e cinco por cento da população carioca moram na Zona Centro e Norte, no Rio esquecido. E lá, sim, o Rio fica mais Rio, a partir das caras não cosmopolitas e se o carioca coubesse no carimbo que lhe imputam não se teriam produzido obras pungentes, inovadoras e universais como a de Noel Rosa, a de Geraldo Pereira, a de Nelson Rodrigues, a de Nelson Cavaquinho... Muito do sorriso carioca é picardia fina, modo atilado de se driblarem os percalços. Tenho para mim que no Rio as ruas são faculdades; os botequins, universidade. Algumas frases apanhadas lá nessas bigornas da vida, em situações diversas, como aparentes tipos-a-esmo: “Está ruim pra malandro” – o advérbio até está oculto. “Quem tem olho grande não entra na China”. “A galinha come é com o bico no chão”. “Negócio é o seguinte: dezenove não é vinte”. “Se ginga fosse malandragem, pato não acabava na panela”· “Não leve uma raposa a um galinheiro”. “Se a farinha é pouca o meu pirão primeiro”. “Há duas coisas em que não se pode confiar. Quando alguém diz ‘deixe comigo’ ou ‘este cachorro não morde’”. “Amigo, bebendo cachaça, não faço barulho de uísque”. “Da fruta de que você gosta eu como até o caroço”. “A vida é do contra: você vai e ela fica”. Como filosofia de vida ou não, vivendo numa cidade em que o excesso de beleza é uma orgia, convivendo com grandezas e mazelas, o carioca da gema é um dos poucos tipos nacionais para quem ninguém é gaúcho, paraibano, amazonense ou paulista. Ele entende que está tratando com brasileiros. ANTONIO, João. Ô, Copacabana. São Paulo: Editora Cosac & Naify, 2001, p. 142. TEXTO 13 O CARIOCA É. ANTES DE TUDO. MILLÔR FERNANDES Os paulistanos (!) que me perdoem, mas ser carioca é essencial. Os derrotistas que me desculpem, mas o carioca taí mesmo pra ficar e seu jeito não mudou. Continua livre por mais que o prendam, buscando uma comunicação humana por mais que o agridam, aceitando o pão que o diabo amassou como se fosse o leite da bondade humana. O carioca, todos sabem, é um cara nascido dois terços no Rio e outro terço em Minas, Ceará, Bahia, e São Paulo, sem 13 falar em todos os outros Estados, sobretudo o maior deles o estado de espírito. Tira de letra, o carioca, no futebol como na vida. Não é um conformista – mas sabe que a vida é aqui e agora e que tristezas não pagam dívidas. Sem fundamental violência, a violência nele é tão rara que a expressão "botei pra quebrar" significa exatamente o contrário, que não botou pra quebrar coisa nenhuma, mas apenas "rasgou a fantasia", conseguiu uma profunda e alegre comunicação – numa festa, numa reunião, num bate-coxa, num ato de amor ou de paixão – e se divertiu às pampas. Sem falar que sua diversão é definitivamente coletiva, ligada à dos outros. Pois, ou está na rua, que é de todos, ou no recesso do lar, que, no Rio é sempre, em qualquer classe social, uma openhouse, aberta sob o signo humanístico do "pode vir que a casa é sua". Carioca, é. Moreno e de 1,70 metro de altura na minha geração, com muitos louros de 1,80 metro importados da Escandinávia na geração atual, o carioca pensa que não trabalha. Virador por natureza, janota por defesa psicológica, autocrítico e autogozador não poupando, naturalmente, os amigos e a mãe dos amigos – ele vai correndo à praia no tempo do almoço apenas pra livrar a cara da vergonhosa pecha de trabalhador incansável. E nisso se opõe frontalmente ao "paulista", que, se tiver que ir à praia nos dias da semana, vai escondido pra ninguém pensar que ele é um vagabundo. Amante de sua cidade, patriota do seu bairro, o carioca vai de som (na música), vai de olho (é um paquerador incansável e tem um pescoço que gira 360 graus), vai de olfato (o odor é de suprema importância na fisiologia sexual do carioca). Sem falar, que, em tudo, vai de espírito; digam o que disserem, o papo, invenção carioca, ainda é o melhor do Brasil, incorporando as tendências básicas do discurso nacional: o humanismo mineiro, o pragmatismo paulista, a verborragia baiana. E basta ouvir pra ver que o nervo de todas as conversas cariocas, a do bar sofisticado como a do botequim pobre e sujo, por isso mesmo sofisticadíssimo, a do livingroom granfa, a da cama (antes e depois), é o humor, a críti- ca, a piada, a graça, o descontraimento. Não há deuses e nada é sagrado no Olimpo da sacanagem. O carioca é, antes de tudo, e acima de tudo, um lúdico. Ainda mais forte e mais otimista do que o homem da anedota clássica que, atravessado de lado a lado por um punhal, dizia: "Só dói quando eu rio", o carioca, envenenado pela poluição, neurotizado pelo tráfego, martirizado pela burocracia, esmagado pela economia, vai levando, defendido pela couraça verbal do seu humor. Só dói quando ele não ri. Só dói quando ele não bate papo. Só dói quando ele não joga no bicho. Só dói quando ele não vai ao Maracanã. Só dói quando ele não samba. Só dói quando ele esquece toda essa folclorada acima, que lhe foi impingida anos a fio com o objetivo de torná-lo objeto de turismo, e enfrenta a dura realidade... carioca. FERNANDES, Millôr. Que País é Este? Rio de Janeiro: Editora Nórdica, 1978, p. 50. A imagem do carioca, como a de brasileiros de outros Estados, é, muitas vezes, criada pelas aparências. O texto 12 quer desfazer mal-entendidos e revelar a verdadeira face do carioca. 1. Com suas palavras, descreva o verdadeiro perfil do carioca, segundo a crônica de João Antônio, Carioca da gema. 2. Agora, faça o mesmo a partir da crônica de Millôr Fernandes, O carioca é. Antes de tudo. 3. Elabore um breve comentário para a seguinte questão: Será possível considerar as personagens de Manuel 14 Antônio de Almeida como os tataravôs das pessoas descritas em suas respostas anteriores? 4. Posicione-se: • Ao confrontar o brasileiro descrito nas últimas duas respostas com a caracterização dos tipos sociais registrada mais de um século antes, no romance de Manuel Antônio de Almeida, será possível verificar uma mudança na personalidade do brasileiro? • O jeito de ser do brasileiro determina o perfil do país? 15