Por que o Brasil não
O
conjunto de fatores
econômicos,
socioculturais e políticos é
brasileiros
históricos,
que
nos
faz
Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, dizia que algumas coisas no Brasil
nunca seriam entendidas por um estrangeiro. E perguntava: “Como é
que um inglês vai entender o que é ponto facultativo, um feriado que
não é feriado, que é considerado facultativo mas é obrigatório?” A
cada dia, o quotidiano brasileiro enriquece a coleção de exemplos que
poderiam ser utilizados pelo inesquecível humorista se fosse vivo.
Recentemente, quando o governo decidiu impor um teto aos salários
públicos, descobriu-se que parlamentares e magistrados teriam direito a
receber o dobro do valor estipulado, o que foi rapidamente apelidado
de teto duplex. Vá se entender que uma casa possa ter dois tetos...
Apesar da aparência farsesca, esses fatos são rigorosamente
verdadeiros e demonstram bem as armadilhas a que um observador
desavisado está sujeito quando tenta analisar nosso país pelos caminhos
da sabedoria convencional. A impressão de que o Brasil que eu conhecia
na prática era muito diferente daquele que via descrito na maioria dos
livros dos estudiosos levou-me a pesquisar durante três anos o conjunto
Belmiro Valverde Jobim Castor
de fatores históricos, econômicos, socioculturais e políticos que nos fez
assim. O resultado foi um livro, O Brasil não é para amadores, lançado
no início de junho de 2000. O subtítulo Estado, governo e burocracia na terra do jeitinho é tão importante quanto
o título, porque um traço fundamental da formação nacional brasileira foi a presença dominadora (e quase
sempre sufocante) do poder público.
O Início do “Jeitinho”
Na época da colonização, o Estado português
controlava ferreamente toda a vida da sociedade,
determinando os tecidos das roupas dos colonos (não
podiam usar sedas e brocados), regulando a lascívia
das escravas, proibindo a imprensa, a existência de
escolas e todo e qualquer tipo de indústria. Quando
o Brasil conquistou a independência, as elites locais
não conseguiram (ou não quiseram) se livrar dessa
subordinação econômica, política e psíquica em
relação aos governantes. Estes, então, usaram e abusaram
do poder de autorizar, proibir, facilitar ou dificultar as coisas
de acordo com critérios nem sempre compreensíveis a
todos, invocando o “interesse nacional”, a “proteção contra
a ganância”, o “desenvolvimento do empresariado nativo”
e outras frases grandiloqüentes.
Dessa mistura entre um Estado sufocante e uma nação
submissa nasceu uma sociedade essencialmente formalista,
ou seja, em que as aparências externas conflitam com a
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é para Amadores?
essência verdadeira das coisas. Um enorme arcabouço
de leis, regulamentos e posturas complica e dificulta a vida
dos comuns, inibe a iniciativa individual e perpetua a
dependência do Estado e o compradio. Enquanto isso, as
elites se sentem descompromissadas em relação ao
restante da nação, como se existissem dois países distintos,
o de seus privilégios e o das obrigações dos outros. E
como a nação se defende dessa situação? Com uma
combinação de expediência, esperteza e capacidade de
adaptação, consagrada em prosa e verso com o nome de
jeitinho brasileiro. O jeitinho – que aliás não é brasileiro e
sim universal – tem o mérito de permitir que um processo
de acomodação social relativamente suave substitua as
rupturas violentas da ordem legal: muitas leis iníquas e
disfuncionais são simplesmente esquecidas, não pegam
e acabam por cair em desuso. Mas essa capacidade de
adaptação tem seu preço na eternização de padrões muito
frouxos de cidadania e de responsabilidade social.
Enquanto cada indivíduo se achar no direito de interpretar
a obrigatoriedade das leis de acordo com suas próprias
conveniências, o país não amadurecerá civicamente.
Capitalismo Protegido,
Estatal e Informal
Ambiente Econômico
Em todos os campos, constatamos a existência desses
dois Brasis, o das aparências e o das realidades, o das elites
e o do restante da nação, o daqueles que exercem e o
daqueles que não exercem a cidadania. Na economia,
veremos que, contrariamente ao que parece à primeira vista,
o Brasil não é um país capitalista, guiado pelas regras da
economia de mercado, pois o tipo de capitalismo que
praticamos não segue, exatamente, o modelo liberalcompetitivo que Adam Smith e seus seguidores tinham em
mente. Na verdade, praticamos durante décadas (e ainda
praticamos em muitos setores) um tipo de capitalismo
protegido, que criou um empresariado fortemente
dependente de favores e benesses governamentais e
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insulado da livre competição, por diferentes barreiras
de tributos e tarifas de importação, necessidade de
autorizações governamentais, manipulação de
mecanismos de financiamento público, ou qualquer
outra. A esse capitalismo protegido se somaram
o capitalismo estatal e o capitalismo informal.
Em nosso país, as “leis” de mercado foram
subvertidas pelo tamanho e importância das
empresas estatais, que, também por décadas,
dominaram os setores infra-estruturais básicos e o
fornecimento de serviços públicos, praticando preços
monopolistas. Enquanto isso, o formalismo brasileiro,
que transformou qualquer iniciativa em uma via
dolorosa de autorizações, proibições, fiscalizações
burocráticas e sangrias tributárias, acabou por
empurrar para a informalidade (leia-se ilegalidade)
milhões de indivíduos e empresas, que constituem
uma gigantesca e tentacular economia informal (com
quase 50% do total do PIB e dos postos de emprego)
operando à margem das obrigações fiscais e dos
direitos trabalhistas.
Enquanto cada indivíduo se achar
no direito de interpretar a
obrigatoriedade das leis de acordo
com suas próprias conveniências,
o país não amadurecerá civicamente
Nos últimos anos, o aparato empresarial estatal
foi virtualmente desmontado pelo processo de
privatização, mas, para dar um toque surrealista ao
cenário, boa parte das ações de empresas públicas
foi vendida para fundos de pensões de funcionários
das autarquias e empresas estatais, constituídos,
majoritariamente, com doações orçamentárias. Ou
seja, com o processo de privatização, o que era de
propriedade pública passou, em boa parte, à
propriedade de alguns poucos milhares de
funcionários públicos. Mais uma difícil de entender...
Falsos Preguiçosos
No plano social, outra realidade que passa ao
largo da sabedoria convencional: contrariamente ao
que muitos pensam, trabalha-se mais aqui do que
nos países do Primeiro Mundo. Na realidade,
podemos dizer que somos o país dos falsos
preguiçosos, pois, tirando nossa impontualidade
crônica (que é uma verdade incontestável e
lamentável), a nossa suposta indolência é uma tolice
repetida com foros de verdade: segundo o IBGE,
72% da população empregada em nosso país
trabalha mais de 40 horas e 40% mais de 45 horas
por semana em sua ocupação principal. Enquanto
isso, o regime de 39, 36 e mesmo de 32 horas
semanais já começa a virar rotina em muitos lugares
do mundo desenvolvido.
E a produtividade? Não dizem as estatísticas que
a produtividade média do trabalhador brasileiro é
menos da metade de um trabalhador do Primeiro
Mundo? É necessário cautela com esse tipo de
afirmação, pois não se pode comparar a
produtividade de um trabalhador americano, japonês
ou alemão, que passou 12 anos em média na escola
e que dispõe de um enorme parque de robôs,
máquinas de controle numérico e sistemas de
produção computadorizada, com a de um brasileiro,
que passou 4 anos e meio na escola e não dispõe da
mesma tecnologia. Uma comparação como essa
corresponderia a dizer que João é mais veloz do que
José porque percorre a mesma distância em metade
do tempo, sem mencionar que João está no volante
de um carro e José montado em um cavalo. Quando
as condições de preparo educacional dos
trabalhadores e de utilização de tecnologia de ponta
são as mesmas, os níveis de produtividade brasileiro
são iguais aos dos países mais desenvolvidos, como
atestam os estudos de benchmark realizados por
diversas empresas multinacionais. Super-homens só
existem nas histórias em quadrinhos.
O Papel do Estado
O fato é que chegamos ao final do século XX
como a oitava economia do mundo, com níveis de
industrialização e de modernidade relativamente
elevados. No entanto, enquanto o Primeiro Mundo
ingressa na Terceira Revolução Industrial, na Era do
Conhecimento, a população brasileira ainda apresenta altos
índices de analfabetismo, baixos índices qualitativos de
educação fundamental e convive com doenças endêmicas
e problemas de saúde pública que outras nações (mesmo
mais pobres) já superaram há muito tempo. As
oportunidades estão desigualmente distribuídas: os 1% mais
ricos da população detêm o mesmo porcentual da renda
nacional que os 50% mais pobres; a expectativa média de
vida ao nascer de um nordestino é seis anos menor que a
de um habitante do Sul; os salários dos negros e pardos
são menores que os dos brancos de mesmo nível
educacional; e a possibilidade de um estudante oriundo de
uma escola pública entrar em uma universidade pública e
gratuita é muito menor que a de um adolescente oriundo
das escolas particulares.
O papel do Estado para superar esses problemas e esses
desequilíbrios é fundamental. Como o processo de privatização
o liberou de sua condição de maior produtor de bens e serviços
econômicos, o Estado brasileiro deveria, agora, se concentrar
na ampliação dos serviços públicos essenciais para
universalizar o acesso à educação de qualidade, à saúde, à
habitação salubre, ao trabalho, à proteção contra a violência
e o esbulho, ou, em outras palavras, propiciar o acesso de
toda a população a uma vida minimamente digna. Ao invés
disso, vive um processo de sucateamento material e humano
e de profunda anemia financeira, que o impede de cumprir,
com mínima eficácia, esse papel.
Não compete ao mercado reduzir
desigualdades sociais, corrigir
disparidades de renda e de acesso a
oportunidades nem promover a justiça.
Para isso, as sociedades civilizadas
criaram o Estado.
É verdade que, em todo o mundo, as máquinas estatais
perderam poderes, recursos e prestígio nos últimos anos,
e, hoje em dia, economias politicamente administradas são
exotismos em extinção. Em todos os quadrantes, reina
soberano “o mercado”, a economia privada, guiada pelas
“leis” da oferta e da procura, em que a alocação dos
recursos é decidida individualmente pela multidão de
agentes econômicos (indivíduos, famílias, empresas) e não
pela vontade de alguns planejadores e tecnoburocratas do
setor público. E quase como corolário, muitos desavisados
são levados a acreditar que o Estado não é mais necessário
e que suas obrigações serão assumidas “pelo mercado”.
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Ambiente Econômico
Seria o mercado que criaria as oportunidades de ascensão
social, de aumento da afluência e do bem-estar, da
educação, da saúde e da nutrição e assim por diante?
No entanto, é preciso compreender que não compete
ao mercado reduzir desigualdades sociais, corrigir
disparidades de renda e de acesso a oportunidades nem
promover a justiça. Para isso, as sociedades civilizadas
criaram o Estado, um poder que se coloca acima dos
interesses particulares dos indivíduos e dos grupos sociais,
para que, agindo em nome da sociedade, garanta os direitos
de todos, coíba os excessos e a ganância dos mais fortes
e poderosos, corrija com seus investimentos e sua ação
os desequilíbrios econômicos, sociais, raciais e políticos e
promova a universalização das oportunidades. Em outras
palavras, o Estado existe para que, agindo em nome da
nação, criem-se as condições básicas de desenvolvimento
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r e v i s t a F A E B U S I N E S S , n . 1, nov. 2001
de uma sociedade justa. O Brasil tem de substituir o Estado
gigantesco, ineficiente e voraz com que conviveu ao longo
de sua história por uma nova configuração política e social,
que Michel Crozier, o grande sociólogo francês, denominou
de État modeste, em que o modesto se contrapõe ao
arrogante e insensível.
Não se trata de tarefa fácil, mas está ao nosso alcance.
Não é tarefa para principiantes, mas pode ser realizada.
Afinal, o Brasil não é mesmo para amadores...
Belmiro Valverde Jobim Castor é Ph.D em Administração Pública pela
University of Southern California (USC) e professor no curso de pósgraduação da FAE Business School. E-mail: [email protected]
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