1 DIREITOS HUMANOS E A CIDADANIA DOS POVOS INDIGENAS, E SEUS DESCENDENTES, SITUADOS NOS GRANDES CENTROS URBANOS: UMA ABORDAGEM SOBRE A REALIDADE DOS TICUNAS “URBANOS” NA CIDADE DE DEUS – MANAUS DERECHOS HUMANOS Y CIUDADANÍA DE LOS PUEBLOS INDÍGENAS Y SUS DESCENDIENTES SITUADOS EN LOS GRANDES CENTROS URBANOS: UN ABORDAJE SOBRE LA REALIDAD DE LOS TICUNAS "URBANOS" EN LA CIUDAD DE DIOS - MANAUS Nadja Christine de Castro Souza* RESUMO O relacionamento do Estado com as tribos, povos indígenas, e descendentes, em área dita urbana baseia-se em uma situação política e jurídica em crise. Em panorama, as políticas públicas e a estagnação jurídica-legislativa permanecem vinculadas a idéias antropológicas e etnocêntricas, e impõem o estigma generalizante e imobilizador de índio a povos como os Ticuna, obrigando-os a permanecer em território delimitado como meio de assegurar a terra, a sobrevivência em proteção diferenciada por parte do Estado e da Lei, ao mesmo tempo que, sujeitos a políticas de assistência falhas, são de igual forma obrigados a iniciar movimento migratório aldeia/cidade, acabando por fixarse de forma marginalizada nas cidades. Fixamo-nos no caso dos Ticunas e seus descendentes ditos “Urbanos”, que estabeleceram-se na cidade de Manaus, na busca de cidadania e que figuram como uma espécie de “novos apátridas” em que não são mais tidos como índios e tampouco se integram como “não-índios”, apresentando-se como abandonados tanto pelo sistema de proteção diferenciada quanto pela proteção generalizada dada em nome dos Direitos Humanos aos outros cidadãos e estrangeiros. PALAVRAS-CHAVES: DIREITO AMBIENTAL URBANO – INDIOS – CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS * Mestranda do Programa de Mestrado em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas – UEA e estudante do projeto CEL/UFAM, línguas indígenas –TICUNA/MAGUTA 2 RESUMEN La relación del estado con las tribus, pueblos indígenas y descendientes en un área dicha urbana, se basa en una situación política y jurídica en crisis. En panorama, las políticas y la estancada jurídica-legislativa permanecen vinculadas a ideas antropológicas y etnocéntricas e imponen el estigma generalizado e inmovilizador de indio a pueblos, como los Ticuna, obligándolos a permanecer en territorio delimitado como medio de asegurar la tierra, sobrevivir en la protección diferenciada por parte del Estado y de la Ley, al mismo tiempo en que sujetos a fallas de políticas de asistencia son de igual forma, obligados a iniciar un movimiento migratorio aldea/ciudad, acabando por fijarse de forma marginal en las ciudades. Fijémonos en el caso de Ticunas y sus descendientes dichos "Urbanos", que se establecieron en la ciudad de Manaus, en busca de ciudadanía y que figuran como una especie de "nuevos apatriados" en que no son más tenidos como indios y tampoco se integran como "no-indios", presentándose como abandonados tanto por el sistema de protección diferenciada como por la protección generalizada dada en nombre de los Derechos Humanos a los otros ciudadanos y extranjeros. PALABRAS CLAVA: DERECHO AMBIANTAL URBANOS - INDIOS - CIUDADANÍA Y DERECHOS HUMANOS INTRODUÇÃO O presente trabalho desenvolveu-se no interesse por investigar a relação entre a cidadania e os direitos humanos disponibilizados aos povos indígenas, e seus descendentes - que estejam vivendo no meio ambiente urbano em cidade e metrópoles e a cidadania e direitos humanos que essas pessoas querem ver reconhecidas juridicamente. Segundo o IBGE, em 1991, Manaus contava com 952 indígenas. O CIMI (Conselho Indígena) estima, a partir de um levantamento realizado em 1996 pela pastoral indígena, que a população indígena em Manaus seria de 8.500 indivíduos de diferentes etnias indígenas. As estimativas da COIAB (Confederação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) afirma que variam de 15.000 a 20.000 indígenas em 3 Manaus. Segundo trabalho de pesquisa de campo desenvolvido pela FIOCRUZ em parceria com a Universidade do Amazonas, sobre o tema Populações Indígenas da Cidade de Manaus, a população indígena de Manaus apresenta-se de forma bastante dispersa em vários bairros e áreas de invasão da cidade de Manaus, porém existiriam bairros da cidade de Manaus em que se vislumbraria relativa concentração de determinada etnia1: como um aldeiamento urbano, é o caso dos Ticunas fixados no bairro Cidade de Deus. Na atualidade, a existência de povos indígenas em áreas urbanas das cidades já não pode ser ignorada na realidade latino-americana, mas a tempos faz parte da dinâmica social amazônica, todavia aos povos indígenas - que se deslocam de seus locais de origem para viver permanentemente na cidade – o futuro imediato inicialmente reserva a destituição de direitos de diferenciação (que possuiriam se suportassem o isolamento espacial de suas aldeias), e pela ousadia de sair do cerco territorial (que o Estado determina para suas malocas agrupadas) destinados são à perda do direito de identidade, pois muitas vezes não são mais enquadrados e reconhecidos como indígenas, nem mesmo pelas entidades do poder público e indigenistas. A questão dos que aqui denominaremos “Ticunas Urbanos” sobressai da destituição dos direitos de identidade indígena (atrelados a territorialidade) que é imposta aos membros de tribos que pisam em solo urbano (dito não-índio) de cidades brasileiras, para revelar que a destituição do estereotipo “índio” nem sempre é sinônimo de reconhecimento de “direitos de não-índios” para essas pessoas: direito à educação, moradia, trabalho, liberdade de culto, liberdade de se expressar e de se autodenominar. 1. OS TICUNAS Neste trabalho vamos nos deter, mais especificamente, ao grupo étnico descendente ou provindo dos povos Ticuna, e situados em forma de “aldeia urbana” no bairro Cidade de Deus - Zona Leste, em uma área de ocupação não-ordenada, embora no meio urbano da cidade de Manaus possam ser encontradas várias outras etnias; como os 1 Dados disponíveis em Populações Indígenas da Cidade de Manaus; inserção na Cidade e Ligação com a Cultura. Texto de autoria de Evelyne Marie Therese Mainbourg, Maria Ivanilde Araújo e Iolene Cavalcante de Almeida, apresentado como trabalho no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, em Ouro Preto – Minas gerais, em novembro de 2002 4 Mura (que moram no bairro do Mauzinho) os Sateres-Mawé (que residem parte no conjunto Santos Dumont). O motivo da escolha da etnia Ticuna decorre de características singulares desta etnia, tais como os fatos: 1) relacionados à LINGUA: possuem uma língua isolada, ou seja, que não compartilha tronco lingüístico, com tradição oral2 e que está em processo de dicionarização e de construção da escrita3. 2) relacionados à CULTURA: Essa linguagem ainda denota uma cultura híbrida peculiar à etnia Ticuna, em que, os ticunas aldeados de Benjamin Constant ou de Tabatinga (Brasil) ou Letícia (Colômbia) conservam suas raízes culturais de linguagem mas adaptam a seus cotidiano os costumes ocidentais, da sociedade capitalista, para sobreviver, portanto são obrigados a aprender uma segunda lÍngua: Português, ou espanhol, conforme a civilização mais próxima. 3) relacionados ao ESPAÇO GEOGRAFICO: por serem uma etnia originada da área do Alto Solimões, espalhada em tríplice fronteira do Brasil, Peru e Colômbia,4 portanto sujeita a legislações de cada país, conforme o espaço territorial que afirmem pertencer5. 1.1 A ETNIA TICUNA E O HISTORICO DE ASSIMILAÇÃO E RECOMBINAÇÃO DE ELEMENTOS DE OUTRAS CULTURAS COM A PRÓPRIA Em conformidade com as informações produzidas pela pesquisadora colombiana do Instituto Amazônico de Investigações – Imani (Universidade de Letícia), Prof. Eliizabeth Rianõ Umbarila), os Ticunas são povos ditos indígenas da Amazônia que possuem um histórico de processos de povoamento e geração de assentamentos a partir de uma mobilidade provocada em muito por constante pressões externas ( desta forma os Ticunas mudam de paisagem geográfica conforme as condições propiciadas pelas circunstancias que lhe foram impostas pelo mundo ocidental que lhe contactava em cada época, construindo novos territórios nesse processo). Segundo Paulo Roberto Abreu Bruno, em seu artigo de “reflexões sobre a educação escolar Ticuna”, o grupo já possui aproximados 350 anos de contato com 2 Disponível em: : http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADngua_ticuna, consultado em 16/09/2006 Marilia Facó é a principal referência lingüística, sendo importante pesquisadora da língua Maguta (ticuna) e elaboradora do dicionário e das regras escritas Ticunas. 4 Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ticuna, consultado em 16/09/2006 5 Eliizabeth Rianõ Umbarila. Organizando su espacio, construyendo su território. Transformaciones de los asentamientos Ticuna ... Leticia: Universidad Nacional de Colombia. 2003 3 5 representações da mentalidade européia, dita não-india,6 período no qual a sociedade Ticuna incorporou comportamentos e fez assimilações, ao mesmo tempo em que preservou e reafirmou outros aspectos de uma vida social Ticuna: as técnicas que usavam na roça, a fabricação de cestos, redes, peneiras, mascaras de festas, zarabatanas, o uso do veneno curare e da substancia timbó7. O convívio e trocas culturais ao longo da história de assentamentos e migrações dos membros da tribo, tornam o estudo do grupo Ticuna especialmente válido para entender uma situação dinâmica mas juridicamente complexa de migração de pessoas ditas indígenas para a Zona Urbana e os resultados sociais e jurídicos de seus estabelecimentos permanentes nas cidades. 2.OS TICUNAS “URBANOS” EM MANAUS A despeito de observar-se que o processo de movimentos migratórios dos Ticunas é antigo e de múltiplas motivações, tendo inclusive migrado para áreas de transição e se estabelecido em pequenos municípios como Benjamin Constant-Amazonas,8 em termos espaciais estamos tratando de um povo estabelecido historicamente em regiões distantes de Manaus, no Alto Solimões, e portanto falamos de um deslocamento de amplitude, distante dos limites territoriais em demarcados pelo Estado Brasileiro como terra indígena, terra para índio viver. A presença dessa etnia nesse espaço urbano de Manaus pode bem representar a recuperação da movimentação histórica da população Ticuna, mas denuncia também mazelas que envolvem as faltas e carências de atuação do setor público na garantia dos direitos básicos das populações indígenas do país. Segundo relatos de moradores Ticunas, situados no bairro Cidade de Deus, o surgimento da urbanização dos povos Ticunas em Manaus tem se efetivado como uma experiência de sobrevivência dessas populações. A busca por educação, por trabalho e 6 Como informação ilustrativa das relações entre os Ticunas e não-indios, os primeiros já se foram caracterizados ao longo dos tempos como fornecedores de drogas do sertão, mão de obra escrava, força de trabalho indígena no “barracão” e na extração de látex e após inserção gradual no sistema de mercado ocidental, sua proletarização, como um processo que relaciona o definhamento do sistema de extração da borracha à uma nova dinâmica de território. Ainda há noticias de uso dos ticunas como aviões do trafico internacional, e no alistamento militar para as áreas de fronteira). 7 Paulo Roberto Abreu Bruno. Pra frente com a escola: reflexões sobre a educção escolar “Ticuna”. Rastros da Memória: historuas e trajetórias. pág 237-278 8 Conforme “Mapa n.º 4 – Área que ocuparían los Ticuna durante los siglos XVI y XVII”, “Mapa n.º 12 – Registro de la ubicacion de Ticunas por autores modernos”, “Mapas n.º 24, 25, 26 e 27 – Movilidad de la poblacion...” e “Tabela 4 - Las tierras Ticuna en Brasil “ dispostos por Elizabeth Riaño Umbarila, obra já citada, respectivamente às pág. 74 e em enexo. 6 por relações afetivas fora de seus modos próprios de vida é busca por superar as lacunas do poder publico imposta para aqueles que se alcunham como “índios”. Dissimular-se como apenas um brasileiro configura na atualidade a força para fazer emergir o compromisso do Estado com os direitos humanos e a cidadania negadas aos que permanecem na demarcação territorial destinada aos guetos florestais em que se tornaram os aldeiamentos indígenas. Em um contexto de privação de direitos, de abandono quanto à saúde, educação e uma imposição de desigualdade que pouco atende os interesses indígenas e sim, marginaliza e impõe vida lamuriosa aos filhos da tribo que nascem nessa geração, famílias tem se mobiliado nas ultimas décadas das áreas ditas não-urbanas para engendrar na esfera urbana em busca do acesso a cidadania e aos direitos humanos. Por esses pontos, a presença de famílias Ticuna, e descendentes nascidos na área urbana, ou até filhos de pai ou mãe “não-índio”, no bairro Cidade de Deus –Manaus, abre exigências de reflexão sobre questões relativas a “território”, “identidade”, “mestiçagem”, recorrendo a mecanismos internos de legitimação de suas relações familiares entre as pessoas Ticunas da Cidade de Deus, para através de sua forma de ver a vida, obter pistas que auxiliem o repensar sobre a identidade étnica desse povo especifico, e assim entender as formas e modalidades de inserção dessas pessoas no espaço urbano e, por extensão, no próprio mundo “não-índio”, o que querem e o que lhes é oferecido como direitos de cidadania e em termos de direitos humanos. Nosso objetivo encampa inicialmente a necessidade de investigar a questão da descrição institucional e legal dada aos índios que estão nos centros urbanos, e a concepção de território relacionada por tais pessoas, para chegarmos à questões quanto a identidade pela autodenominação das pessoas Ticunas que moram de forma permanente na área existente no Bairro Cidade de Deus, por exemplo, se eles se reconhecem como índios, mas sem esquecer da denominação decorrente do social, da sociedade, apontada por Pierre Bourdieu9 para determinar como esses Ticunas são denominados pela sociedade e pelo direito, e como ele se relaciona com o “estereotipo imaginário” que se impõe entre a autodenominação que pleiteia e a visão da sociedade não-índio dessa denominação. 3 IDENTIDADE E TERRITORIO NA QUESTÃO INDIGENA TICUNA 9 Pierre Bourdieu, O poder simbolico. 7 O conceito legal de índio, está consubstanciado no art. 3º da Lei nº 6.001, o Estatuto do Índio. Art. 3º (...), I – Índio ou Silvícola – É todo indivíduo de origem e ascendência précolombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional”. (Lei nº 6.0001 de 19 de dezembro de 1973). João Pacheco de Oliveira (1995)10 afirma que “Na primeira acepção,’índio’ constitui um indicativo de um estado cultural manifestado pelos termos que em diferentes contextos o podem vir a substituir – silvícola, íncola, aborigene, selvagem, primitivo, entre outros. Todos carregados com o claro denotativo de morador das matas, de vinculação com a natureza, de ausência dos benefícios da civilização. A imagem típica, expressa por pintores, ilustradores, artistas plásticos, desenhos infantis e chargistas, é sempre de um inidividuo nu, que apenas l~e no grande livro da natureza, que se desloca livremente pela floresta e que apenas carrega consigo (ou exibe em seu corpo) marcas de uma cultura exótica e rudimentar, que remete à origem da historia da humanidade.” E continua dizendo que “Na segunda acepção, ‘índio’ indica um segmento da população brasileira que enfrenta problemas de adaptação à sociedade nacional em decorrência de sua vinculação com tradições pré-colombianas. Como um mecanismo compensatório àqueles que foram os primeiros moradores do território nacional, a legislação assegura aos índios uma assistência especial por parte da União, entre essas atribuições salientando-se o reconhecimento e a salvaguarda das terras que se fizerem necessárias para a plena reprodução econômica e cultural destes grupos étnicos. E o que acontece se o ‘índio’ não se atrelar nem a concepção de morador das matas e nem suas tradições constituírem os principais problemas de adaptação à sociedade nacional não-índia? E se como os Ticunas do bairro Cidade de Deus, as dificuldades não se referirem tão somente à questão de terra, mas de direitos urbanos por desrespeito a direitos humanos, direitos fundamentais, direitos de cidadania? Como se trata a questão dos índios na Cidade? É importante distinguir os termos usados para se referir às etnias que vivem nos centros urbanos. A FUNAI trouxe o termo “desaldeado” para designar os índios que 10 João Pacheco de Oliveira. Muita terra para pouco índio? Uma introdução (critica) ao indigenismo e à atualização do preconceito. p. 78 8 saiam de suas aldeias de origem, porém o histórico de “mobilização” e “assentamentos” dos Ticunas não coaduna com a idéia de desentrelaçamento com a aldeia, perda de identidade pelo deslocamento. Esse termo leva a ignorância de que a identidade Ticuna está ligada além da dimensão de um lugar delimitado de chão, tão somente. Fugindo da visão exógena, não-índia, de território e da lide pela demarcação de territórios como relação histórica, o que os Ticunas do bairro Cidade de Deus pleiteiam é a etnoterritorialidade. Uma Etnoterritorialidade que não é um conjunto de direitos reclamados e sim uma realidade vivida, que transcende a questão das “reclamações territoriais” de demarcação e titulação de terras para engendrar na defesa e revitalização da identidade étnica. Ainda podemos encontrar denominações como “índios urbanos” que para João Pacheco de Oliveira (2000)11 são os que vivem fixados nas cidades e formam pequenas ‘aldeias’. Enquanto “índios citadinos” são índios que tem contato com a cidade, mas não se fixam na mesma de forma permanente, apesar de alguns passarem períodos longos na área urbanizada. Adotamos a concepção de “índios urbanos” para nos referirmos aos Ticunas que residem no bairro Cidade de Deus, e estão de forma permanente fora e suas aldeias de origem, em pequeno grupos de familiares, alguns trabalhando nos centros urbanos, seja em artesanatos, seja em empresas, adaptando a denominação para o termo “Ticunas Urbanos”, para melhor caracterizar tais pessoas como etnia. É necessário salientar que a constituição federal de 1988 apesar de não se referir expressamente aos Índios nas Cidades, assegurou a todos assimilando Direitos Humanos Universais, ao tempo em que garantia os direitos culturais, resguardando para cada povo o direito “de manter sua cultura, seu saber, sua religião, sua medicina e seu Direito, e também beneficiar-se dos avanços, descobertas e saberes que possam de alguma forma melhorar sua vida, segundo sua vontade e cosmovisão”12 Assim, esses direitos dizem respeito à relação entre povos indígenas e Estado e interferem nas políticas públicas, estratégias geopolíticas, impactos de intervenção nas estruturas espaciais, modificações de estruturas regionais e até nas dinâmicas de mercado. Em outras palavras, das visibilidade e garantir a identidade a Índios Urbanos é evidenciar que o Estado Brasileiro tem demonstrado historicamente ser incapaz de 11 12 João Pacheco Oliveira. Índios urbanos no Brasil e política lingüística. 2000 Carlos Mares. As novas questões jurídicas nas relações dos Estados nacionais com os índios. Pág 56. 9 atender dignamente às demandas desses povos enquanto tutelados e situados em suas aldeias originais, e igualmente não possuem políticas publicas implementadas que garantam melhoria de qualidade de vida a esta parcela diferenciada da população urbana, e por isso preferem invisibilizar os índios urbanos, negando-lhes sua identidade e imputando-lhes o destino ultrapassado de assimilação cultural. Conforme recomenda Tourinho Filho13 é bom destacar a diferença entre integração e assimilação. Citando Manuela Carneiro da Cunha, afirma que integração ‘refere-se a uma articulação das sociedades indígenas com a sociedade que as domina, manifesta nos vários planos da vida social’. Essa articulação não supõe sua assimilação, sua diluição na sociedade envolvente. Grupos indígenas continuam com sua identidade étnica distinta e, no entanto articulam-se com a sociedade nacional’. Citando Rondon, Tourinho Filho continua seu pensamento afirmando que “Os índios devem ser integrados, sim, na posse de seus direitos”. Afirmando, em seguida, que “ Enquanto o índio não perder a consciência de que é índio, temos um índio”. O conceito de identidade étnica suscitado por Tourinho Neto resgata a necessidade de estabelecer-se a abrangência do conceito de identidade e de território tradicionalmente atrelado a conceituação jurídica de índio, para compor uma conceituação e se iguale ao pensamento social e decida sobre a manutenção ou não de distinção de índio aldeado e índios urbanos. Como “identidade étnica” valemo-nos do conceito estabelecido por Fredrik Barth14 no qual expõe que as identidades étnicas “[...] não dependem de uma ausência de mobilidade, contato e informação.”, pelo contrário, o autor afirma que a interação entre grupos diferentes pode ser um fator definidor de identidades distintas, ou seja, não causa o seu desaparecimento, mudança ou aculturação. Nesse sentido, a identidade não é vista de forma estática, ou original, ligada essencialmente à raça, mas sim, como algo em fluxo e mudança permanente que depende da natureza das relações sociais que se estabelecem entre o índio e outros sujeitos e grupos étnicos. A tradição não é mais a repetição dos estereótipos (cocar, corpo pintado, permanência vitalícia na delimitação de um território, etc.) que remontam ao imaginário retrogrado de grande parcela da sociedade e do Estado, tais símbolos 13 Fernando da Costa Tourinho Neto. Os povos indígenas e as sociedades nacionais conflito de normas e superação. Pág 194 14 Fredrik Barth, grupos étnicos e suas fronteiras, 1998, pág. 188 10 podem fazer parte da cultura, dos ritos mas não descrevem a essência daquela pessoa, de sua etnia, pois “as autodefinições dos agentes sociais e não apenas as designações que utilizam para nomear as extensões que ocupam. (..) focalizando os fenômenos recentes onde o ‘tradicional’ é considerado como atrelado a fatos presentes e às atuais reinvindicações dos movimentos sociais.” 15 Para terem seus direitos a territórios espaciais muitos Ticunas aceitam se submeter aos velhos esteriótipos de “índios” da época de nossos antigos colonizadores e a estagnar seus passos durante toda a vida ao cerco espacial destinado pelo Estado, mas em busca de melhores condições de vida muitos Ticunas procuram obter direitos urbanos na cidade de Manaus, enquanto brasileiros, iniciando no entanto contendas etnoterritoriais.16 Nesta abordagem mais ampla, reforça-se o posicionamento de que a identidade não estaria veiculada simplesmente ao território original em que a lei enclausura um povo, mas veiculada ao discurso, ao vinculo social e emocional que este mantém com a comunidade de que se diz participe. Assim, ver um índio falando português, circulando nas grandes cidades ou mesmo no exterior, requerendo tratamento médico no sistema SUS, trabalho em empresas, educação, debatendo seus problemas, não deveria causar tanto estupor,17 nem significaria, a priori, ser este afastado de sua etnia e aculturado, pois é em seu discurso que ele se fará identificar como índio. Seguindo o pensamento de Fredrik Barth, o Índio Urbano poderia se adaptar a hábitos urbanos para ter acesso aos meios e lugares que lhe ajudarão a criar uma estrutura social e econômica de sobrevivência, sem que isso signifique uma mudança de identidade étnica. Poderia argumentar, como motivo para permanecer na área urbana sobre o direito de ir e vir que vigora além das grades invisíveis impostas pelo Estado, quanto sobre o direito de se autodeterminar, de ser “outro”, de ser diferente - no que deve ser considerado como diferença favorável a sua qualidade de vida e igual no que se refere a sua característica humana. 15 Alfredo Wagner Berno de Almeida. Terras Tradicionalmente Ocupadas. Pág 17 locais de contradiscurso, de vinculo simbólico que vitalize sua diferenciação de direitos de cidadania enquanto “outro”, apesar de brasileiro, mas que não o exclua de seus direitos humanos enquanto “igual”, por também ser humano 17 João Pacheco de Oliveira. Muita terra para pouco índio? Uma introdução (critica) ao indigenismo e à atualização do preconceito, pág. 78 16 11 Mas a realidade é que não obstante, ao avanço da Magna Carta, os Direitos a identidade étnica, aos direitos humanos e fundamentais das pessoas pertencentes a povos indígenas não são respeitados na prática, o movimento indígena nacional requer a ampliação dos direitos constitucionais dos índios para aqueles que vivem na cidade, como os Ticunas Urbanos, pois só se é protegido enquanto Ticuna enquanto tais pessoas não ultrapassam o território a que são atrelados por Lei. 2. A REALIDADE TICUNA NA CIDADE DE DEUS-MANAUS Mendiga a etnia Ticuna tanto na área dita urbana quanto na área dita rural. Se tutelados na grande massa designada de “índios” é negado ao povo Ticuna (Maguta, Tukuna) a identidade que o diferencia de outros povos pré-“descobrimento” e submetidos a política indigenista deficitária do Governo, se englobados na massa de cidadãos da urbes é submetido a políticas universais que mais o prejudicam que o beneficiam, parecendo impor como castigo aos índios que se aventuram a viver na cidade o peso da marginalização, é negado a legitimação de povo Ticuna (Maguta, Tukuna) que o diferencie dos outros brasileiros As políticas a que são submetidos são políticas de privações. Segundo entrevistas com moradores Ticunas e descendentes, o movimento migratório aldeia/cidade verificado com os Ticunas do bairro Cidade de Deus aparenta ter origem em um contexto de demanda por melhores condições de cidadania. No entanto, em um contato estabelecido junto ao grupo possibilitou-se, de maneira mais informal, conhecer a forma como essas famílias se organizam e vivem nessa região, suas dificuldades, facilidades, hábitos e sustentação. Dentre os quais falta de saneamento básico, não inclusão dessa população urbana no sistema de políticas publicas do Governo e a ausência de assistência do grupo pela FUNAI, relatos de falta de educação diferenciada, de invisibilidade do grupo enquanto etnia indígena para a Lei, e de preconceito e discriminação racial em virtude das características diacintricas externadas. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Apenas iniciamos neste trabalho reflexões sobre o momento de transição e de mudanças intensas na percepção jurídica e social dos Ticunas Urbanos. Constatamos como é delicada e difícil a situação legal dos índios urbanos, pois uma vez morando nos 12 centros urbanos, sem comunidades étnicas organizadas, não são reconhecidos como “índios” pelas instituições oficiais, como já mencionamos. A idéia de que retornem definitivamente para as aldeias de origem, e para os territórios que o Estado vai demarcando para receberem ali tratamento diferenciado, não apresenta sentido para a maioria dos Ticunas Urbanos, em função de terem ainda menores condições de qualidade de vida nesses locais. Para permanecer no centro urbano e viver em grupo, sem perder sua identidade étnica, os Ticunas do bairro Cidade de Deus vivem e cultivam seus costumes, temendo algumas vezes pela manutenção de sua cultura dentro da família, através dos filhos nascidos no meio urbano, pois a cultura indígena exteriorizada ainda é sinônimo de marginalização e estigmatização por parte da maioria dos cidadão não-índios das cidades. A possibilidade de refletir sobre a condição de grupo estigmatizado dos Ticunas Urbanos revelou não só traços das carências de políticas publicas referentes à disponibilização e aplicação dos direitos humanos e fundamentais proporcionados aos demais habitantes de Manaus, como denunciou a impossibilidade de aplicar plenamente a idéia de cidadania diferenciada pela inefetividade das normas constitucionais de reconhecimento, pois falta acesso e representação nos debates sobre assuntos indigenistas quanto a questão dos Índios na Cidade. Os Ticunas Urbanos, enquanto atores indígenas do meio ambiente das cidades se encontram hoje em busca de bagagem de experiências para o desafio de fazer autonomia sobre a marcha por visibilidade jurídica e social, para exercer a exigibilidade de seus direitos no cenário democrático. Ainda é um longo caminho, onde a questão política sobressai ás questões de Direito e, ora postergam, ora desviam o olhar, mas que não mais invisibilizam tais pessoas visto que o grupo Ticuna Urbano já demonstra buscar em sua condição de estigmatizado, valores que modifiquem a percepção de inferioridade e preconceito, utilizando de sua reafirmação cultural enquanto Índio Urbano para externar a conscientização (própria, dos filhos, e externa) de uma postura de aceitação e construção de seus valores, de sua historia, de sua consciência, e da conquista mais efetiva de um espaço social urbano para o Índio. 13 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras Tradicionalmente Ocupadas. Terras de Quilombos, terras indígenas, “babaçuais livres, “castanhais do povo”, faxinais e fundos de pastos. Coleção Tradição& Ordenamento Jurídico. Manaus: PPGSCA-UFAM/ Fundação Ford, 2006 ARRUDA, Rinaldo. Territórios indígenas no Brasil: aspectos jurídicos e socioculturais. BARROSO-HOFFMANN, Maria Barroso; LIMA, Antonio Carlos de Souza (orgs.) Etnodesenvolvimento e politicas públicas: bases para uma nova política indigenista. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria – LACED, 2002131-150 BARTH, FREDRIK, O guru, o iniciador e outras variações antropológicas (tradução: John Cunha Comerford). Rio de janeiro: Contra Capa Livraria.2000. BARROSO-HOFFMANN, Maria Barroso; LIMA, Antonio Carlos de Souza (orgs.) Etnodesenvolvimento e politicas públicas: bases para uma nova política indigenista. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria – LACED, 2002 __________________________. Estado e povos indigenas: bases para uma nova política indigenista II. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria – LACED, 2002 __________________________.Além da tutela: bases para uma nova política indigenista III. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria – LACED, 2002 CASTRO, Eduardo B. Viveiros de. A autodeterminação indígena como valor. Anuário antropológico, 81. Fortaleza/Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 1983 DANTAS, Fernando Antônio de Carvalho. “Humanismo latino: o Estado brasileiro e a questão indígena”. MEZZAROBA, Orides (organizador) - Florianópolis: Fundação Boiteux; [Treviso]: Fondazione Cassamarca, 2003. _________________Hiléia Revista de Direito Ambiental da Amazônia.n.º 02. Manaus: edições Governo do Estado/ Secretaria de Estado da Cultura, 2004. p. FILHO, Carlos Frederico Marés de Souza Filho. O Renascer dos Povos Indígenas para o direito. Curitiba. Editora Juruá, 1998. ___________________. As novas questões jurídicas nas relações dos Estados Nacionais com os indios. BARROSO-HOFFMANN Além da tutela: bases para uma nova política indigenista III. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria – LACED, 2002. pag. 49- 61 MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: O declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987 14 NIMUENDAJÚ, CURT. 1883-1945. Os índios Tukuna(1929). Textos indigenistas: relatórios, monografias, cartas. São Paulo: Ed. Loyola, 1982 NETO, Fernando da Costa Tourinho. Os povos indígenas e as sociedades nacionais: conflito de normas e superação”. LIMA, André (organizador). O Direito para o Brasil SocioAmbiental. Porto Alegre: ISA, 2002. pág. 189-230 OLIVEIRA, João Pacheco de Oliveira. “Muita terra para pouco índio? Uma introdução (crítica) ao indigenismo e à atualização do preconceito” Silva, Aracy Lopes da; GROPIOM, Luis D. (orgs) A temática indígena na Escola. Brasília. MeC, 1995. OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. “Bases para uma política indigenista”. Sociologia do Brasil indígena, Brasília – DF, Tempo Brasileiro/ Unb, 1978. Pp. 28-52 SANTOS, Boa Ventura de Souza. Reconhecer para Libertar. Os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 2003.