1
DIREITOS HUMANOS E A CIDADANIA DOS POVOS INDIGENAS, E SEUS
DESCENDENTES, SITUADOS NOS GRANDES CENTROS URBANOS: UMA
ABORDAGEM SOBRE A REALIDADE DOS TICUNAS “URBANOS” NA
CIDADE DE DEUS – MANAUS
DERECHOS HUMANOS Y CIUDADANÍA DE LOS PUEBLOS INDÍGENAS Y SUS
DESCENDIENTES SITUADOS EN LOS GRANDES CENTROS URBANOS: UN
ABORDAJE SOBRE LA REALIDAD DE LOS TICUNAS "URBANOS" EN LA
CIUDAD DE DIOS - MANAUS
Nadja Christine de Castro Souza*
RESUMO
O relacionamento do Estado com as tribos, povos indígenas, e descendentes, em área
dita urbana baseia-se em uma situação política e jurídica em crise. Em panorama, as
políticas públicas e a estagnação jurídica-legislativa permanecem vinculadas a idéias
antropológicas e etnocêntricas, e impõem o estigma generalizante e imobilizador de
índio a povos como os Ticuna, obrigando-os a permanecer em território delimitado
como meio de assegurar a terra, a sobrevivência em proteção diferenciada por parte do
Estado e da Lei, ao mesmo tempo que, sujeitos a políticas de assistência falhas, são de
igual forma obrigados a iniciar movimento migratório aldeia/cidade, acabando por fixarse de forma marginalizada nas cidades. Fixamo-nos no caso dos Ticunas e seus
descendentes ditos “Urbanos”, que estabeleceram-se na cidade de Manaus, na busca de
cidadania e que figuram como uma espécie de “novos apátridas” em que não são mais
tidos como índios e tampouco se integram como “não-índios”, apresentando-se como
abandonados tanto pelo sistema de proteção diferenciada quanto pela proteção
generalizada dada em nome dos Direitos Humanos aos outros cidadãos e estrangeiros.
PALAVRAS-CHAVES:
DIREITO AMBIENTAL URBANO – INDIOS –
CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS
*
Mestranda do Programa de Mestrado em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas –
UEA e estudante do projeto CEL/UFAM, línguas indígenas –TICUNA/MAGUTA
2
RESUMEN
La relación del estado con las tribus, pueblos indígenas y descendientes en un área dicha
urbana, se basa en una situación política y jurídica en crisis. En panorama, las políticas y
la estancada jurídica-legislativa permanecen vinculadas a ideas antropológicas y
etnocéntricas e imponen el estigma generalizado e inmovilizador de indio a pueblos,
como los Ticuna, obligándolos a permanecer en territorio delimitado como medio de
asegurar la tierra, sobrevivir en la protección diferenciada por parte del Estado y de la
Ley, al mismo tiempo en que sujetos a fallas de políticas de asistencia son de igual
forma, obligados a iniciar un movimiento migratorio aldea/ciudad, acabando por fijarse
de forma marginal en las ciudades. Fijémonos en el caso de Ticunas y sus descendientes
dichos "Urbanos", que se establecieron en la ciudad de Manaus, en busca de ciudadanía
y que figuran como una especie de "nuevos apatriados" en que no son más tenidos como
indios y tampoco se integran como "no-indios", presentándose como abandonados tanto
por el sistema de protección diferenciada como por la protección generalizada dada en
nombre de los Derechos Humanos a los otros ciudadanos y extranjeros.
PALABRAS
CLAVA:
DERECHO
AMBIANTAL
URBANOS
-
INDIOS
-
CIUDADANÍA Y DERECHOS HUMANOS
INTRODUÇÃO
O presente trabalho desenvolveu-se no interesse por investigar a relação entre a
cidadania e os direitos humanos disponibilizados aos povos indígenas, e seus
descendentes - que estejam vivendo no meio ambiente urbano em cidade e metrópoles e a cidadania e
direitos humanos que essas pessoas querem ver reconhecidas
juridicamente.
Segundo o IBGE, em 1991, Manaus contava com 952 indígenas. O CIMI
(Conselho Indígena) estima, a partir de um levantamento realizado em 1996 pela
pastoral indígena, que a população indígena em Manaus seria de 8.500 indivíduos de
diferentes etnias indígenas. As estimativas da COIAB (Confederação das Organizações
Indígenas da Amazônia Brasileira) afirma que variam de 15.000 a 20.000 indígenas em
3
Manaus. Segundo trabalho de pesquisa de campo desenvolvido pela FIOCRUZ em
parceria com a Universidade do Amazonas, sobre o tema Populações Indígenas da
Cidade de Manaus, a população indígena de Manaus apresenta-se de forma bastante
dispersa em vários bairros e áreas de invasão da cidade de Manaus, porém existiriam
bairros da cidade de Manaus em que se vislumbraria relativa concentração de
determinada etnia1: como um aldeiamento urbano, é o caso dos Ticunas fixados no
bairro Cidade de Deus.
Na atualidade, a existência de povos indígenas em áreas urbanas das cidades já não
pode ser ignorada na realidade latino-americana, mas a tempos faz parte da dinâmica
social amazônica, todavia aos povos indígenas - que se deslocam de seus locais de
origem para viver permanentemente na cidade – o futuro imediato inicialmente reserva a
destituição de direitos de diferenciação (que possuiriam se suportassem o isolamento
espacial de suas aldeias), e pela ousadia de sair do cerco territorial (que o Estado
determina para suas malocas agrupadas) destinados são à perda do direito de identidade,
pois muitas vezes não são mais enquadrados e reconhecidos como indígenas, nem
mesmo pelas entidades do poder público e indigenistas.
A questão dos que aqui denominaremos “Ticunas Urbanos” sobressai da
destituição dos direitos de identidade indígena (atrelados a territorialidade) que é
imposta aos membros de tribos que pisam em solo urbano (dito não-índio) de cidades
brasileiras, para revelar que a destituição do estereotipo “índio” nem sempre é sinônimo
de reconhecimento de “direitos de não-índios” para essas pessoas: direito à educação,
moradia, trabalho, liberdade de culto, liberdade de se expressar e de se autodenominar.
1. OS TICUNAS
Neste trabalho vamos nos deter, mais especificamente, ao grupo étnico
descendente ou provindo dos povos Ticuna, e situados em forma de “aldeia urbana” no
bairro Cidade de Deus - Zona Leste, em uma área de ocupação não-ordenada, embora no
meio urbano da cidade de Manaus possam ser encontradas várias outras etnias; como os
1
Dados disponíveis em Populações Indígenas da Cidade de Manaus; inserção na Cidade e Ligação com a
Cultura. Texto de autoria de Evelyne Marie Therese Mainbourg, Maria Ivanilde Araújo e Iolene
Cavalcante de Almeida, apresentado como trabalho no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos
Populacionais, em Ouro Preto – Minas gerais, em novembro de 2002
4
Mura (que moram no bairro do Mauzinho) os Sateres-Mawé (que residem parte no
conjunto Santos Dumont).
O motivo da escolha da etnia Ticuna decorre de características singulares desta
etnia, tais como os fatos: 1) relacionados à LINGUA: possuem uma língua isolada, ou
seja, que não compartilha tronco lingüístico, com tradição oral2 e que está em processo
de dicionarização e de construção da escrita3.
2) relacionados à CULTURA: Essa
linguagem ainda denota uma cultura híbrida peculiar à etnia Ticuna, em que, os ticunas
aldeados de Benjamin Constant ou de Tabatinga (Brasil) ou Letícia (Colômbia)
conservam suas raízes culturais de linguagem mas adaptam a seus cotidiano os costumes
ocidentais, da sociedade capitalista, para sobreviver, portanto são obrigados a aprender
uma segunda lÍngua: Português, ou espanhol, conforme a civilização mais próxima. 3)
relacionados ao ESPAÇO GEOGRAFICO: por serem uma etnia originada da área do
Alto Solimões, espalhada em tríplice fronteira do Brasil, Peru e Colômbia,4 portanto
sujeita a legislações de cada país, conforme o espaço territorial que afirmem pertencer5.
1.1 A ETNIA TICUNA E O HISTORICO DE ASSIMILAÇÃO E RECOMBINAÇÃO
DE ELEMENTOS DE OUTRAS CULTURAS COM A PRÓPRIA
Em conformidade com as informações produzidas pela pesquisadora colombiana
do Instituto Amazônico de Investigações – Imani (Universidade de Letícia), Prof.
Eliizabeth Rianõ Umbarila), os Ticunas são povos ditos indígenas da Amazônia que
possuem um histórico de processos de povoamento e geração de assentamentos a partir
de uma mobilidade provocada em muito por constante pressões externas ( desta forma os
Ticunas mudam de paisagem geográfica conforme as condições propiciadas pelas
circunstancias que lhe foram impostas pelo mundo ocidental que lhe contactava em cada
época, construindo novos territórios nesse processo).
Segundo Paulo Roberto Abreu Bruno, em seu artigo de “reflexões sobre a
educação escolar Ticuna”, o grupo já possui aproximados 350 anos de contato com
2
Disponível em: : http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADngua_ticuna, consultado em 16/09/2006
Marilia Facó é a principal referência lingüística, sendo importante pesquisadora da língua Maguta
(ticuna) e elaboradora do dicionário e das regras escritas Ticunas.
4
Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ticuna, consultado em 16/09/2006
5
Eliizabeth Rianõ Umbarila. Organizando su espacio, construyendo su território. Transformaciones de
los asentamientos Ticuna ... Leticia: Universidad Nacional de Colombia. 2003
3
5
representações da mentalidade européia, dita não-india,6 período no qual a sociedade
Ticuna incorporou comportamentos e fez assimilações, ao mesmo tempo em que
preservou e reafirmou outros aspectos de uma vida social Ticuna: as técnicas que
usavam na roça, a fabricação de cestos, redes, peneiras, mascaras de festas, zarabatanas,
o uso do veneno curare e da substancia timbó7.
O convívio e trocas culturais ao longo da história de assentamentos e migrações
dos membros da tribo, tornam o estudo do grupo Ticuna especialmente válido para
entender uma situação dinâmica mas juridicamente complexa de migração de pessoas
ditas indígenas para a Zona Urbana e os resultados sociais e jurídicos de seus
estabelecimentos permanentes nas cidades.
2.OS TICUNAS “URBANOS” EM MANAUS
A despeito de observar-se que o processo de movimentos migratórios dos Ticunas
é antigo e de múltiplas motivações, tendo inclusive migrado para áreas de transição e se
estabelecido em pequenos municípios como Benjamin Constant-Amazonas,8 em termos
espaciais estamos tratando de um povo estabelecido historicamente em regiões distantes
de Manaus, no Alto Solimões, e portanto falamos de um deslocamento de amplitude,
distante dos limites territoriais em demarcados pelo Estado Brasileiro como terra
indígena, terra para índio viver.
A presença dessa etnia nesse espaço urbano de Manaus pode bem representar a
recuperação da movimentação histórica da população Ticuna, mas denuncia também
mazelas que envolvem as faltas e carências de atuação do setor público na garantia dos
direitos básicos das populações indígenas do país.
Segundo relatos de moradores Ticunas, situados no bairro Cidade de Deus, o
surgimento da urbanização dos povos Ticunas em Manaus tem se efetivado como uma
experiência de sobrevivência dessas populações. A busca por educação, por trabalho e
6
Como informação ilustrativa das relações entre os Ticunas e não-indios, os primeiros já se foram
caracterizados ao longo dos tempos como fornecedores de drogas do sertão, mão de obra escrava, força de
trabalho indígena no “barracão” e na extração de látex e após inserção gradual no sistema de mercado
ocidental, sua proletarização, como um processo que relaciona o definhamento do sistema de extração da
borracha à uma nova dinâmica de território. Ainda há noticias de uso dos ticunas como aviões do trafico
internacional, e no alistamento militar para as áreas de fronteira).
7
Paulo Roberto Abreu Bruno. Pra frente com a escola: reflexões sobre a educção escolar “Ticuna”.
Rastros da Memória: historuas e trajetórias. pág 237-278
8
Conforme “Mapa n.º 4 – Área que ocuparían los Ticuna durante los siglos XVI y XVII”, “Mapa n.º 12 –
Registro de la ubicacion de Ticunas por autores modernos”, “Mapas n.º 24, 25, 26 e 27 – Movilidad de la
poblacion...” e “Tabela 4 - Las tierras Ticuna en Brasil “ dispostos por Elizabeth Riaño Umbarila, obra já
citada, respectivamente às pág. 74 e em enexo.
6
por relações afetivas fora de seus modos próprios de vida é busca por superar as lacunas
do poder publico imposta para aqueles que se alcunham como “índios”. Dissimular-se
como apenas um brasileiro configura na atualidade a força para fazer emergir o
compromisso do Estado com os direitos humanos e a cidadania negadas aos que
permanecem na demarcação territorial destinada aos guetos florestais em que se
tornaram os aldeiamentos indígenas.
Em um contexto de privação de direitos, de abandono quanto à saúde, educação e
uma imposição de desigualdade que pouco atende os interesses indígenas e sim,
marginaliza e impõe vida lamuriosa aos filhos da tribo que nascem nessa geração,
famílias tem se mobiliado nas ultimas décadas das áreas ditas não-urbanas para
engendrar na esfera urbana em busca do acesso a cidadania e aos direitos humanos.
Por esses pontos, a presença de famílias Ticuna, e descendentes nascidos na área
urbana, ou até filhos de pai ou mãe “não-índio”, no bairro Cidade de Deus –Manaus,
abre exigências de reflexão sobre questões relativas a “território”, “identidade”,
“mestiçagem”, recorrendo a
mecanismos internos de legitimação de suas relações
familiares entre as pessoas Ticunas da Cidade de Deus, para através de sua forma de ver
a vida, obter pistas que auxiliem o repensar sobre a identidade étnica desse povo
especifico, e assim entender as formas e modalidades de inserção dessas pessoas no
espaço urbano e, por extensão, no próprio mundo “não-índio”, o que querem e o que lhes
é oferecido como direitos de cidadania e em termos de direitos humanos.
Nosso objetivo encampa inicialmente a necessidade de investigar a questão da
descrição institucional e legal dada aos índios que estão nos centros urbanos, e a
concepção de território relacionada por tais pessoas, para chegarmos à questões quanto a
identidade pela autodenominação das pessoas Ticunas que moram de forma permanente
na área existente no Bairro Cidade de Deus, por exemplo, se eles se reconhecem como
índios, mas sem esquecer da denominação decorrente do social, da sociedade, apontada
por Pierre Bourdieu9 para determinar como esses Ticunas são denominados pela
sociedade e pelo direito, e como ele se relaciona com o “estereotipo imaginário” que se
impõe entre a autodenominação que pleiteia e a visão da sociedade não-índio dessa
denominação.
3 IDENTIDADE E TERRITORIO NA QUESTÃO INDIGENA TICUNA
9
Pierre Bourdieu, O poder simbolico.
7
O conceito legal de índio, está consubstanciado no art. 3º da Lei nº 6.001, o
Estatuto do Índio.
Art. 3º (...), I – Índio ou Silvícola – É todo indivíduo de origem e ascendência précolombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico
cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional”. (Lei nº 6.0001
de 19 de dezembro de 1973).
João Pacheco de Oliveira (1995)10 afirma que “Na primeira acepção,’índio’
constitui um indicativo de um estado cultural manifestado pelos termos que em
diferentes contextos o podem vir a substituir – silvícola, íncola, aborigene, selvagem,
primitivo, entre outros. Todos carregados com o claro denotativo de morador das matas,
de vinculação com a natureza, de ausência dos benefícios da civilização. A imagem
típica, expressa por pintores, ilustradores, artistas plásticos, desenhos infantis e
chargistas, é sempre de um inidividuo nu, que apenas l~e no grande livro da natureza,
que se desloca livremente pela floresta e que apenas carrega consigo (ou exibe em seu
corpo) marcas de uma cultura exótica e rudimentar, que remete à origem da historia da
humanidade.”
E continua dizendo que “Na segunda acepção, ‘índio’ indica um segmento da
população brasileira que enfrenta problemas de adaptação à sociedade nacional em
decorrência de sua vinculação com tradições pré-colombianas. Como um mecanismo
compensatório àqueles que foram os primeiros moradores do território nacional, a
legislação assegura aos índios uma assistência especial por parte da União, entre essas
atribuições salientando-se o reconhecimento e a salvaguarda das terras que se fizerem
necessárias para a plena reprodução econômica e cultural destes grupos étnicos.
E o que acontece se o ‘índio’ não se atrelar nem a concepção de morador das
matas e nem suas tradições constituírem os principais problemas de adaptação à
sociedade nacional não-índia? E se como os Ticunas do bairro Cidade de Deus, as
dificuldades não se referirem tão somente à questão de terra, mas de direitos urbanos por
desrespeito a direitos humanos, direitos fundamentais, direitos de cidadania? Como se
trata a questão dos índios na Cidade?
É importante distinguir os termos usados para se referir às etnias que vivem nos
centros urbanos. A FUNAI trouxe o termo “desaldeado” para designar os índios que
10
João Pacheco de Oliveira. Muita terra para pouco índio? Uma introdução (critica) ao indigenismo e à
atualização do preconceito. p. 78
8
saiam de suas aldeias de origem, porém o histórico de “mobilização” e “assentamentos”
dos Ticunas não coaduna com a idéia de desentrelaçamento com a aldeia, perda de
identidade pelo deslocamento. Esse termo leva a ignorância de que a identidade Ticuna
está ligada além da dimensão de um lugar delimitado de chão, tão somente. Fugindo da
visão exógena, não-índia, de território e da lide pela demarcação de territórios como
relação histórica, o que os Ticunas do bairro Cidade de Deus pleiteiam é a
etnoterritorialidade.
Uma Etnoterritorialidade que não é um conjunto de direitos
reclamados e sim uma realidade vivida, que transcende a questão das “reclamações
territoriais” de demarcação e titulação de terras para engendrar na defesa e revitalização
da identidade étnica.
Ainda podemos encontrar denominações como “índios urbanos” que para João
Pacheco de Oliveira (2000)11 são os que vivem fixados nas cidades e formam pequenas
‘aldeias’. Enquanto “índios citadinos” são índios que tem contato com a cidade, mas
não se fixam na mesma de forma permanente, apesar de alguns passarem períodos
longos na área urbanizada.
Adotamos a concepção de “índios urbanos” para nos referirmos aos Ticunas que
residem no bairro Cidade de Deus, e estão de forma permanente fora e suas aldeias de
origem, em pequeno grupos de familiares, alguns trabalhando nos centros urbanos, seja
em artesanatos, seja em empresas, adaptando a denominação para o termo “Ticunas
Urbanos”, para melhor caracterizar tais pessoas como etnia.
É necessário salientar que a constituição federal de 1988 apesar de não se referir
expressamente aos Índios nas Cidades, assegurou a todos assimilando Direitos Humanos
Universais, ao tempo em que garantia os direitos culturais, resguardando para cada povo
o direito “de manter sua cultura, seu saber, sua religião, sua medicina e seu Direito, e
também beneficiar-se dos avanços, descobertas e saberes que possam de alguma forma
melhorar sua vida, segundo sua vontade e cosmovisão”12
Assim, esses direitos dizem respeito à relação entre povos indígenas e Estado e
interferem nas políticas públicas, estratégias geopolíticas, impactos de intervenção nas
estruturas espaciais, modificações de estruturas regionais e até nas dinâmicas de
mercado. Em outras palavras, das visibilidade e garantir a identidade a Índios Urbanos é
evidenciar que o Estado Brasileiro tem demonstrado historicamente ser incapaz de
11
12
João Pacheco Oliveira. Índios urbanos no Brasil e política lingüística. 2000
Carlos Mares. As novas questões jurídicas nas relações dos Estados nacionais com os índios. Pág 56.
9
atender dignamente às demandas desses povos enquanto tutelados e situados em suas
aldeias originais, e igualmente não possuem
políticas publicas implementadas que
garantam melhoria de qualidade de vida a esta parcela diferenciada da população urbana,
e por isso preferem invisibilizar os índios urbanos, negando-lhes sua identidade e
imputando-lhes o destino ultrapassado de assimilação cultural.
Conforme recomenda Tourinho Filho13 é bom destacar a diferença entre integração
e assimilação. Citando Manuela Carneiro da Cunha, afirma que integração ‘refere-se a
uma articulação das sociedades indígenas com a sociedade que as domina, manifesta nos
vários planos da vida social’. Essa articulação não supõe sua assimilação, sua diluição na
sociedade envolvente. Grupos indígenas continuam com sua identidade étnica distinta e,
no entanto articulam-se com a sociedade nacional’. Citando Rondon, Tourinho Filho
continua seu pensamento afirmando que “Os índios devem ser integrados, sim, na posse
de seus direitos”.
Afirmando, em seguida, que “ Enquanto o índio não perder a
consciência de que é índio, temos um índio”.
O conceito de identidade étnica suscitado por Tourinho Neto resgata a necessidade
de estabelecer-se a abrangência do conceito de identidade e de território
tradicionalmente atrelado a conceituação jurídica de índio, para compor uma
conceituação e se iguale ao pensamento social e decida sobre a manutenção ou não de
distinção de índio aldeado e índios urbanos.
Como “identidade étnica” valemo-nos do conceito estabelecido por Fredrik
Barth14 no qual expõe que as identidades étnicas “[...] não dependem de uma ausência de
mobilidade, contato e informação.”, pelo contrário, o autor afirma que a interação entre
grupos diferentes pode ser um fator definidor de identidades distintas, ou seja, não causa
o seu desaparecimento, mudança ou aculturação.
Nesse sentido, a identidade não é vista de forma estática, ou original, ligada
essencialmente à raça, mas sim, como algo em fluxo e mudança permanente que
depende da natureza das relações sociais que se estabelecem entre o índio e outros
sujeitos e grupos étnicos. A tradição não é mais a repetição dos estereótipos (cocar,
corpo pintado, permanência vitalícia na delimitação de um território, etc.) que remontam
ao imaginário retrogrado de grande parcela da sociedade e do Estado, tais símbolos
13
Fernando da Costa Tourinho Neto. Os povos indígenas e as sociedades nacionais conflito de normas e
superação. Pág 194
14
Fredrik Barth, grupos étnicos e suas fronteiras, 1998, pág. 188
10
podem fazer parte da cultura, dos ritos mas não descrevem a essência daquela pessoa, de
sua etnia, pois “as autodefinições dos agentes sociais e não apenas as designações que
utilizam para nomear as extensões que ocupam. (..) focalizando os fenômenos recentes
onde o ‘tradicional’ é considerado como atrelado a fatos presentes e às atuais
reinvindicações dos movimentos sociais.” 15
Para terem seus direitos a territórios espaciais muitos Ticunas aceitam se submeter
aos velhos esteriótipos
de “índios” da época de nossos antigos colonizadores e a
estagnar seus passos durante toda a vida ao cerco espacial destinado pelo Estado, mas
em busca de melhores condições de vida muitos Ticunas procuram obter direitos
urbanos na cidade de Manaus, enquanto brasileiros, iniciando no entanto contendas
etnoterritoriais.16
Nesta abordagem mais ampla, reforça-se o posicionamento de que a identidade não
estaria veiculada simplesmente ao território original em que a lei enclausura um povo,
mas veiculada ao discurso, ao vinculo social e emocional que este mantém com a
comunidade de que se diz participe.
Assim, ver um índio falando português, circulando nas grandes cidades ou mesmo
no exterior, requerendo tratamento médico no sistema SUS, trabalho em empresas,
educação, debatendo seus problemas, não deveria causar tanto estupor,17 nem
significaria, a priori, ser este afastado de sua etnia e aculturado, pois é em seu discurso
que ele se fará identificar como índio.
Seguindo o pensamento de Fredrik Barth, o Índio Urbano poderia se adaptar a
hábitos urbanos para ter acesso aos meios e lugares que lhe ajudarão a criar uma
estrutura social e econômica de sobrevivência, sem que isso signifique uma mudança de
identidade étnica.
Poderia argumentar, como motivo para permanecer na área urbana sobre o direito
de ir e vir que vigora além das grades invisíveis impostas pelo Estado, quanto sobre o
direito de se autodeterminar, de ser “outro”, de ser diferente - no que deve ser
considerado como diferença favorável a sua qualidade de vida e igual no que se refere a
sua característica humana.
15
Alfredo Wagner Berno de Almeida. Terras Tradicionalmente Ocupadas. Pág 17
locais de contradiscurso, de vinculo simbólico que vitalize sua diferenciação de direitos de cidadania
enquanto “outro”, apesar de brasileiro, mas que não o exclua de seus direitos humanos enquanto “igual”,
por também ser humano
17
João Pacheco de Oliveira. Muita terra para pouco índio? Uma introdução (critica) ao indigenismo e à
atualização do preconceito, pág. 78
16
11
Mas a realidade é que não obstante, ao avanço da Magna Carta, os Direitos a
identidade étnica, aos direitos humanos e fundamentais das pessoas pertencentes a povos
indígenas não são respeitados na prática, o movimento indígena nacional requer a
ampliação dos direitos constitucionais dos índios para aqueles que vivem na cidade,
como os Ticunas Urbanos, pois só se é protegido enquanto Ticuna enquanto tais pessoas
não ultrapassam o território a que são atrelados por Lei.
2. A REALIDADE TICUNA NA CIDADE DE DEUS-MANAUS
Mendiga a etnia Ticuna tanto na área dita urbana quanto na área dita rural. Se
tutelados na grande massa designada de “índios” é negado ao povo Ticuna (Maguta,
Tukuna)
a identidade que o diferencia de outros povos pré-“descobrimento” e
submetidos a política indigenista deficitária do Governo, se englobados na massa de
cidadãos da urbes é submetido a políticas universais que mais o prejudicam que o
beneficiam, parecendo impor como castigo aos índios que se aventuram a viver na
cidade o peso da marginalização, é negado a legitimação de povo Ticuna (Maguta,
Tukuna) que o diferencie dos outros brasileiros As políticas a que são submetidos são
políticas de privações.
Segundo entrevistas com moradores Ticunas e descendentes, o movimento
migratório aldeia/cidade verificado com os Ticunas do bairro Cidade de Deus aparenta
ter origem em um contexto de demanda por melhores condições de cidadania. No
entanto, em um contato estabelecido junto ao grupo possibilitou-se, de maneira mais
informal, conhecer a forma como essas famílias se organizam e vivem nessa região, suas
dificuldades, facilidades, hábitos e sustentação. Dentre os quais falta de saneamento
básico, não inclusão dessa população urbana no sistema de políticas publicas do
Governo e a ausência de assistência do grupo pela FUNAI, relatos de falta de educação
diferenciada, de invisibilidade do grupo enquanto etnia indígena para a Lei, e de
preconceito e discriminação racial em virtude das características diacintricas externadas.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apenas iniciamos neste trabalho reflexões sobre o momento de transição e de
mudanças intensas na percepção jurídica e social dos Ticunas Urbanos. Constatamos
como é delicada e difícil a situação legal dos índios urbanos, pois uma vez morando nos
12
centros urbanos, sem comunidades étnicas organizadas, não são reconhecidos como
“índios” pelas instituições oficiais, como já mencionamos. A idéia de que retornem
definitivamente para as aldeias de origem, e para os territórios que o Estado vai
demarcando para receberem ali tratamento diferenciado, não apresenta sentido para a
maioria dos Ticunas Urbanos, em função de terem ainda menores condições de
qualidade de vida nesses locais. Para permanecer no centro urbano e viver em grupo,
sem perder sua identidade étnica, os Ticunas do bairro Cidade de Deus vivem e cultivam
seus costumes, temendo algumas vezes pela manutenção de sua cultura dentro da
família, através dos filhos nascidos no meio urbano, pois a cultura indígena exteriorizada
ainda é sinônimo de marginalização e estigmatização por parte da maioria dos cidadão
não-índios das cidades.
A possibilidade de refletir sobre a condição de grupo estigmatizado dos Ticunas
Urbanos revelou não só traços das carências de políticas publicas referentes à
disponibilização e aplicação dos direitos humanos e fundamentais proporcionados aos
demais habitantes de Manaus, como denunciou a impossibilidade de aplicar plenamente
a idéia de cidadania diferenciada pela inefetividade das normas constitucionais de
reconhecimento, pois falta acesso e representação nos debates sobre assuntos
indigenistas quanto a questão dos Índios na Cidade.
Os Ticunas Urbanos, enquanto atores indígenas do meio ambiente das cidades se
encontram hoje em busca de bagagem de experiências para o desafio de fazer autonomia
sobre a marcha por visibilidade jurídica e social, para exercer a exigibilidade de seus
direitos no cenário democrático. Ainda é um longo caminho, onde a questão política
sobressai ás questões de Direito e, ora postergam, ora desviam o olhar, mas que não mais
invisibilizam tais pessoas visto que o grupo Ticuna Urbano já demonstra buscar em sua
condição de estigmatizado, valores que modifiquem a percepção de inferioridade e
preconceito, utilizando de sua reafirmação cultural enquanto Índio Urbano para externar
a conscientização (própria, dos filhos, e externa) de uma postura de aceitação e
construção de seus valores, de sua historia, de sua consciência, e da conquista mais
efetiva de um espaço social urbano para o Índio.
13
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Em 23 de setembro de 2006, a primeira turma do