PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Programa de Pós-Graduação stricto sensu em História Aline de Vasconcelos Silva O PROJETO NACIONALISTA DE JOÃO GOULART: ANÁLISE DOS DISCURSOS DE 1961 A 1964 MESTRADO EM HISTÓRIA São Paulo 2012 2 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Programa de Pós-Graduação stricto sensu em História Aline de Vasconcelos Silva O PROJETO NACIONALISTA DE JOÃO GOULART: ANÁLISE DOS DISCURSOS DE 1961 A 1964 MESTRADO EM HISTÓRIA Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em História, sob a orientação do Prof. Dr. Antonio Pedro Tota. São Paulo 2012 3 BANCA EXAMINADORA 4 AGRADECIMENTOS Ao Prof. Dr. Antonio Pedro Tota, que abraçou meu projeto com generosidade, me assistindo pacientemente ao longo de todo o desenvolvimento da pesquisa, com apontamentos norteadores e estimulantes. Ao Prof. Dr. Antonio Rago Filho, não somente pela colaboração nas bancas de qualificação e defesa, mas pelas aulas inspiradoras, tão importantes no meu processo de formação, desde a graduação. À Profª. Dra. Lívia Cotrim, também figura marcante na minha formação, que, além de ser um exemplo como professora, generosamente, estimulou a iniciativa desta pesquisa e colaborou com o seu desenvolvimento, inclusive participando das bancas de qualificação e defesa. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo suporte financeiro que viabilizou a execução desta pesquisa. Ao Sr. Clodesmidt Riani, que me recebeu com extrema atenção e disponibilizou seu acervo particular para consulta. Aos professores e colegas do Curso de Ciências Sociais da Fundação Santo André, onde fiz minha graduação, em especial aos professores, Ivan Cotrim, Terezinha Ferrari, Carlos Alberto Cordovano Vieira, além de Lívia e Rago. Aos amigos que tornaram a rotina de aulas muito mais prazerosas e produtivas − amigos que admiro e com os quais criei laços de afeto, Eduardo Gramani Hipólide, Felipe Henrique Gonçalves, Leandro Cândido, Mariana Barbedo e Vladmir Luis. E àqueles que, há anos, me acompanham, de perto ou à distância, Danilo Amorim, Luiz Diogo Soglia, Roberto Rodrigues e Tatiane Britos. Um agradecimento especial aos meus pais, José Carlos e Maria Fátima, que sempre me apoiaram com generosidade. Foram o suporte, o carinho e a paciência dos dois que suavizaram minhas dificuldades e me permitiram seguir na direção escolhida. Também à minha sobrinha, Laurinha, que tantas vezes me devolveu o sorriso nos meus momentos de cansaço. E à pessoa a quem nenhum agradecimento que eu possa aqui escrever fará justiça; a quem me estimulou e apoiou de todas as maneiras possíveis, desde o suporte técnico até o 5 emocional, me apontando caminhos e possibilidades e me auxiliando com amor e enorme paciência em todas as horas, inclusive e principalmente nas mais tensas: Rodrigo Pereira Chagas. Sua ajuda e companheirismo foram fundamentais, não apenas neste trabalho, mas na minha vida. 6 RESUMO O objetivo central desta pesquisa é a análise dos discursos de João Goulart, pronunciados entre 07 de setembro de 1961 e 31 de março de 1964 (período em que ocupou a Presidência da República), buscando extrair suas especificidades conceituais, suas proposições e seus limites, dentro do processo histórico em que está inserido, explicitando o vínculo orgânico existente entre as propostas e os apelos de tal discurso e um momento da história brasileira marcado por intensas movimentações políticas e debates sobre os rumos do país. Partindo da totalidade dos discursos reunidos, identificamos os principais temas abordados, em torno dos quais são articuladas as propostas mais relevantes defendidas por Goulart em seu governo. Tais temas estão agrupados em três eixos: emancipação econômica e reformas de base, com destaque para a reforma agrária; política externa independente nas relações exteriores entre Brasil e Estados Unidos e entre Brasil e América Latina; e instabilidade da ordem legal. Palavras-chave: João Goulart; reformas de base; nacionalismo, política externa independente. 7 ABSTRACT Central objective of this research is an analysis of speeches of João Goulart, articulated between September 07, 1961 and March 31, 1964 (time when he was the President of the Republic), searching to extract its conceptual specificities, propositions and bounds, within of the historical process which he represented, indicating the existing organic bond between the propositions and appeals of such speech and the moment of intense political movements and debates on country directions of the Brazilian history. Starting by the entirety of the speech collection, we identify the main topics discussed, around which Goulart's most relevant propositions defended at the time of his government. Such themes are grouped among three axes: economic emancipation and basic reforms, with an emphasis on land reform; independent policy for international relations between Brazil and United States and Brazil and Latin America; and unstableness of legal order. Keywords: João Goulart; basic reforms; nationalism, independent foreign policy. 8 SUMÁRIO: INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 9 1. JOÃO GOULART: EMANCIPAÇÃO ECONÔMICA E REFORMAS ............................. 19 1.1. Nacionalismo e Trabalhismo: Vargas e o PTB ............................................................. 26 1.2. Emancipação Econômica ............................................................................................... 32 1.2.1. Lei da remessa de lucros ....................................................................................... 34 1.2.2. Reformas de Base .................................................................................................. 42 1.2.2.1. Reforma Agrária ....................................................................................... 56 2. RELAÇÕES EXTERIORES: política externa independente e a tentativa de formação de um bloco latino-americano ......................................................................... 84 2.1. Relações entre Brasil e Estados Unidos ........................................................................ 85 2.1.1. AMFORP e ITT: as encampações de Brizola e as negociações financeiras com os Estados Unidos ..................................................................... 87 2.1.2. A questão de Cuba e a Aliança para o Progresso ............................................. 106 2.2. Relações entre Brasil e América Latina ...................................................................... 126 3. JOÃO GOULART E A INSTABILIDADE DA ORDEM LEGAL................................... 133 3.1. Posse na presidência, emenda parlamentarista e plebiscito ......................................... 135 3.2. Democracia e mobilização popular ............................................................................. 149 3.3. Pedido de decretação de estado de sítio ...................................................................... 154 3.4. Últimos meses do governo Goulart ............................................................................. 158 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 173 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: .................................................................................. 180 9 INTRODUÇÃO O objetivo central desta pesquisa é a análise dos discursos de João Goulart, pronunciados entre 07 de setembro de 1961 e 31 de março de 1964 – período em que ocupou a Presidência da República1 – e, partindo desta análise, buscar a ampliação das reflexões sobre o complexo contexto histórico brasileiro no período imediatamente anterior ao golpe militar de 1964. A escolha do objeto, bem como do recorte temporal, considerou o fato de que ainda não há um estudo que tenha como objeto central os discursos do presidente João Goulart, apesar de seu governo ter sido deposto por um golpe de Estado que mudou claramente a ―direção‖ da história nacional. Além disso, apesar do grande número de trabalhos referentes ao período que antecedeu o golpe militar de 1964 no Brasil, não existe um consenso entre os pesquisadores e, muitas vezes, nem mesmo convergência dos fatores por eles apontados no que diz respeito às análises das propostas apresentadas pelo governo João Goulart ou as motivações, sejam elas políticas ou econômicas, que teriam engendrado sua derrubada. Também não é nossa pretensão criar um consenso sobre esta problemática, mas apenas contribuir para o enriquecimento do debate. Ainda que não seja o propósito deste trabalho uma análise pormenorizada e comparativa das várias interpretações sobre o tema proposto, nos momentos, em que forem necessárias para uma melhor compreensão dos assuntos abordados pela nossa pesquisa, serão apontadas algumas das principais diligências já realizadas, explicitando a distinção, caso ela exista, de nosso posicionamento em relação a estas. No entanto, para esta introdução, optamos por realizar uma problematização inicial em torno da teoria que balizou hegemonicamente a temática de que faz parte o período aqui estudado: a ―teoria do populismo‖. O populismo: uma problematização inicial Desde o período em que os discursos analisados nessa pesquisa foram realizados, até o presente momento, várias foram as investidas que se debruçaram sobre as problemáticas que envolvem o governo João Goulart e sua queda. Ainda que hajam divergências variadas, as análises desenvolvidas até o começo dos anos 1990, com poucas exceções, tiveram por base a 1 Neste período, João Goulart sempre ocupou a função de chefe de Estado, embora de sua posse até janeiro de 1963, não tenha sido o chefe do governo; pois vigorava então um sistema híbrido de parlamentarismo e presidencialismo, no qual coube ao Primeiro Ministro, indicado pelo presidente, mas submetido à aprovação do Congresso Nacional, a chefia do governo da República. 10 chamada ―teoria do populismo‖. Ainda que recentemente esse referencial teórico venha sendo superado por alguns pesquisadores,2 o populismo permanece como uma referência teórica de grande relevância. Como nos mostra Rubem Barboza Filho,3 a noção de populismo, seja como categoria, seja como teoria, ―tornou-se o caminho obrigatório para a apreensão das razões do Estado, dos partidos, dos políticos, das classes, dos setores de classe, acabando por se transformar no patrimônio teórico por excelência dos cientistas sociais brasileiros sobre esta fase da vida nacional‖.4 O historiador Jorge Ferreira, em publicação mais recente, aponta no mesmo sentido, ao afirmar que: Para os professores que formam os nossos filhos, a política brasileira e as relações entre Estado e a classe trabalhadora durante o período de 1930 a 1964 encerram um ―senso comum‖, no sentido gramsciano do termo, nomeado de populismo.5 Tendo como pano de fundo um amplo debate nas ciências sociais sobre a ―mudança social‖ na América Latina,6 bem como o debate sobre seu desenvolvimento econômico, surgem os primeiros esforços para compreender esse período complexo da realidade brasileira que antecedeu o golpe militar de 1964, procurando explicar suas origens e causas. Muitas das pesquisas realizadas afirmaram o golpe como derivado da ―crise do populismo‖ ou do ―pacto populista‖, que teria predominado na política brasileira desde 1930, com Getúlio Vargas, compondo uma aliança de classes. Desta forma, a crise do ―pacto populista‖ teria sido desencadeada pela sinalização de uma tendência nas ―massas‖, até então mantidas sob o controle das lideranças populistas, em avançar os limites estabelecidos pela classe dominante neste ―pacto‖. Iniciado em 1930, o pacto populista teria se estendido até seu colapso, em 1964, e envolvido personagens de diferentes tradições políticas – todos reduzidos à categoria de ―populistas‖ –, tais como: Getúlio Vargas, Adhemar de Barros, Eurico Gaspar Dutra, Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart. Ou seja, 2 Um exemplo são os pesquisadores cujo esforço nesse sentido pode ser encontrado na coletânea organizada por Jorge Ferreira: FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2001. 3 Autor, já nos anos 1980, da crítica de maior envergadura de que tomamos conhecimento sobre as análises do populismo. 4 BARBOZA FILHO, Rubem. Teoria do Populismo: uma revisão. Belo Horizonte: UFMG, dissertação de mestrado, 1980, p.174. 5 FERREIRA, J. O populismo e sua história. In: _______________ (org.). Op. cit., p. 81. 6 MARSAL, Juan. Cambio social en América Latina: crítica de algunas interpretaciones dominantes en las ciencias sociales. Buenos Aires: Solar/Hachette, 1965. 11 Além do desconhecimento das peculiaridades e da anulação de historicidades, projetos políticos que fincaram tradições políticas, e que ainda hoje se manifestam na sociedade brasileira, como o trabalhismo petebista e o liberalismo udenista, dissolvem-se e confundem-se em um mesmo rótulo: tratar-se-ia do populismo.7 É importante notar que o quadro teórico sobre o qual a ―teoria do populismo‖ foi estabelecida é amplo e contraditório: uma mescla entre o liberalismo e o marxismo. Desta forma, não é estranho que Rubem Barboza Filho afirme que o populismo ―não oferece um eixo fundamental de análise e de interpretação‖, redundando em uma abordagem inadequada de uma série de questões concretas do período abarcado pelo conceito.8 Sendo assim, o termo ―período populista‖ tanto é utilizado para imputar um caráter antidemocrático aos governos daquele momento histórico, como para justificar um colapso na forma de dominação própria da passagem de uma ―sociedade tradicional‖ para uma ―sociedade moderna‖: De fato, para a teoria do populismo, a democracia, o partido e o líder populista são em conjunto ou cada um per si o feiticeiro nefasto, que executa a mágica insuperável de atar as massas aos setores dominantes. Isto é, no quadro das hegemonias impossíveis, acabam por ser as massas, uma vez que reconhecem a dominação constituída, as responsáveis pela sustentação do 9 status quo dominante. Na verdade, não existe ―uma‖ teoria do populismo que sirva de base aos vários autores, mas sim um núcleo teórico e metodológico comum, que é apropriado de forma variada pelos diferentes autores. Além disso, foram se acumulando, ao longo dos anos, interpretações e revisões sobre o populismo. Como indica o historiador Jorge Ferreira, antes de o populismo entrar e se firmar no debate acadêmico no Brasil, ele já havia surgido, em 1945, como imagem politicamente desmerecedora que as elites liberais fizeram de Vargas, ―ressaltando a demagogia, a manipulação, a propaganda política, a repressão policial‖:10 A partir daí, e até 1964, as oposições liberais, com amplo acesso aos meios de comunicação, delinearam, com maior nitidez, imagens que aludiam à cooptação política dos sindicatos, à corrupção estatal e à demagogia eleitoral, todas patrocinadas pelos trabalhistas.11 Já enquanto categoria acadêmica, a origem do populismo guarda ligações com a ―teoria da sociedade massa‖, desenvolvida inicialmente na Europa. No entanto, sua ascensão à 7 FERREIRA, J. Introdução. In: ____________ (org.). Op. cit., p. 11. BARBOZA FILHO, R. Op. cit., p. 176. 9 CHASIN, José. A sucessão na crise e a crise na esquerda. In: Revista Ensaio, n. 17/18, 1989, p. 81. 10 FERREIRA, J. Introdução. In: ____________ (org.). Op. cit., p. 8. 11 Ibidem, p. 9. 8 12 teoria explicativa da política brasileira está vinculada, principalmente, à modernização do pensamento sociológico latino-americano, em especial ao desenvolvido na Argentina, cujos principais representantes são Gino Germani e os membros de sua equipe: Torcuato Di Tella e Jorge Graciarena. O pensador italiano refugiado na Argentina, Gino Germani, propõe um projeto de modernização para a sociologia latino-americana apoiado em instituições e autores que ocupavam posições estratégicas no cenário das ciências sociais latino-americana,12 procurando estabelecer uma rede de colaboração internacional. No Brasil, essa rede se expressou principalmente com o sociólogo Luiz de Aguiar Costa Pinto, no Rio de Janeiro, e, em São Paulo, com o grupo que ficou conhecido como ―Escola Paulista‖, cujo principal representante foi Florestan Fernandes.13 E apesar de os outros autores brasileiros terem utilizado cientificamente o termo anteriormente,14 será, principalmente, pelo grupo que se organiza na Universidade de São Paulo que a teoria do populismo ganhará maior visibilidade e se aprofundará no país: A primeira fase [da ―teoria do populismo‖] cobriria a produção inicial de Weffort, Ianni, Leôncio M. Rodrigues e outros. O segundo momento teria sido mais desenvolvido por Weffort e Alvaro Moisés, enquanto o último receberia recorte decisivo com Francisco de Oliveira e Régis de Castro Andrade.15 Francisco Weffort será o mais conhecido dentre os teóricos do populismo. Em artigos publicados já na década de 1960, e que posteriormente comporiam o livro O populismo na política brasileira,16 destacou a manipulação e dominação exercidas pelos líderes populistas demagogos sobre a classe trabalhadora recém constituída e na qual os princípios democráticos ainda não haviam fincado raízes. Weffort será o responsável por constituir o núcleo-base de referências para as análises posteriores do populismo, tendo como um dos pontos principais a 12 ―En todos los casos, se trata de nombres de instituiciones y de personas con algún grado de compromisso con un modo de entender la sociología, conocido con el nombre de 'sociologia científica'. Muchos de esos nombres ocupaban entonces espacios estratégicos en la red internacional de instituciones consagradas a promover el desarrollo de las ciencias sociales en la región, especialmente UNESCO, FLACSO, CLAPCS, CEPAL‖. In: BLANCO, Alejandro. Razón y modernidad: Gino Germani y la sociologia en la Argentina. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2006, p. 239. Como aponta o autor, em torno da Revista Latinoamericana de Sociología, organizada por Germani, estão pessoas como: Luiz de Aguiar Costa Pinto, Orlando Fals Borda, Florestan Fernandes, Peter Heintz e José Medina Echevarria. 13 Ver: BLANCO, A. Op. Cit., pp. 187-252. 14 Autores do chamado Grupo de Itatiaia, o qual deu origem ao Instituto Superior de Estudo Brasileiros (ISEB) utilizaram o termo em textos dos anos 1950 e início dos 1960. Ver: GOMES, Angela de Castro. O populismo e as Ciências Sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito; e FERREIRA, Jorge. O nome e a coisa: o populismo na política brasileira. In: FERREIRA, J. Op. cit., pp. 17-124. 15 BARBOZA FILHO, R. Op. cit., pp. 176-177. 16 WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. A primeira edição data de 1978, embora muitos dos artigos tenham sido escritos ainda nos anos 1960. 13 reedição de procedimentos liberais, mas tomando como referência elementos do marxismo. Dessa forma, Reedita-se o procedimento liberal de eliminação das classes do horizonte teórico, embora esta eliminação busque se fundamentar no próprio marxismo. Da mesma forma que Arendt e Weber, afirma-se a classe no econômico para negá-la no social e político. A argumentação reducionista aparentemente mantém esta negação no interior da teoria marxista, afirmando que a uma classe em formação corresponderia um comportamento político imperfeito, ou seja, de massa.17 A mesma tendência é encontrada em outra importante referência sobre o tema, Octavio Ianni. Em O colapso do populismo,18 escrito entre 1966 e 1967, Ianni, ao mesmo tempo em que enfatiza as contradições geradas pelo desenvolvimento urbano-industrial brasileiro e pela inserção das ―massas‖ no âmbito político – que acabam por manifestar interesses opostos aos da classe dominante –, ressalta também o caráter conservador do golpe militar, que teria sido desfechado contra as reformas e a ampliação de direitos às camadas populares. Neste livro, a categoria populismo não impede o autor de diferenciar os ―projetos de desenvolvimento‖19 do período da industrialização brasileira, na medida em que aborda a problemática em seu viés econômico. Contudo, o autor mantém a posição sobre a política já estabelecida nos textos de Weffort. Ao logo do tempo − e ao se tornar uma análise corrente nas ciências sociais − o populismo acabou por não reter sua significação teórica inicial; ou seja, ―quanto mais se difundiu e dominou, tanto menos significação foi capaz de guardar, a ponto de hoje animar sem ressalvas desde os editoriais da grande imprensa até os mais modestos folhetins dos mais bisonhos remanescentes da esquerda extralegal‖.20 Ao institucionalizar-se, compondo a explicação acadêmica do pré-64, a ideia de populismo realiza um movimento de pinça: por um lado encontrou, bases no senso comum dos anos 1940, como nota Ferreira; e, por outro, ao ser alçada à teoria, sedimentou ―na dimensão imaginária de gerações de alunos de cursos de níveis médio e superior na área das ciências humanas, a ideia de que teria existido um ‗populismo na política brasileira‘‖.21 17 Ibidem, p. 186. IANNI, Octavio. O colapso do populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. 19 Ianni traça diferenças fundamentais do projetos desenvolvimentistas decorrentes de Getúlio Vargas (modelo de substituição de importações) e Juscelino Kubitschek (associado ao capital estrangeiro). 20 CHASIN, J. Op. cit., p. 83. 21 FERREIRA, J. Introdução. In: ___________. Op. cit., p. 10. 18 14 Nesta construção, que transita entre o senso comum e a academia, ―o político populista /.../ surge como um personagem que agiria de má-fé, mentindo e enganando o povo, sobretudo nas épocas de eleições, prometendo tudo e nada cumprindo‖.22 Em uma ótica mais ampla, cria-se ―um cenário de ‗populistas‘ e ‗pelegos‘, eis a imagem que temos da política brasileira entre 1930 e 1964‖.23 Daí decorre uma série de desdobramentos lamentáveis que, no limite e paradoxalmente, podem justificar a supressão do voto em nome da ―boa política‖. Desta forma, o princípio da classificação, que identifica a categoria na experiência brasileira, acabou por ser associado a um critério de valor que hierarquiza e condena in totum o populismo e tudo que ele possa adjetivar.24 Dá-se continuidade, desta forma, a uma velha forma de tratar a história dos trabalhadores no Brasil, diagnosticando a origem de todos os males do país em ―uma relação desigual, destituída de reciprocidade e interlocução‖, pautada em uma classe trabalhadora débil e uma sociedade civil gelatinosa; ao mesmo tempo em que se atrela a ―um certo tipo de marxismo que defendia um modelo de classe trabalhadora, uma determinada consciência que lhe respondia e um caminho, único e portanto verdadeiro‖.25 Enquanto categoria analítica, a teoria se estabeleceu como tipificação, através da qual as pesquisas sobre o período, na maior parte das vezes, acabam engessadas pelas características básicas que definem o paradigma do populismo. Dessa forma, ao identificar e classificar o objeto pesquisado ao paradigma do populismo, inviabiliza o desvendamento da particularidade do discurso dos vários agentes que compuseram o período. Em suma, tende a afirmar a universalização da categoria e não a apreender a lógica do objeto analisado. O fundamental a ser destacado é que o fato de apontarmos uma série de limitações à categoria ou ―teoria‖ do populismo, não significa invalidar as contribuições dos autores que com ela trabalharam. Não podemos ignorar a enorme contribuição de Octavio Ianni, Francisco de Oliveira, René Dreifuss, Caio Navarro de Toledo ou Pedro Cezar Dutra Fonseca. Busca de fontes e análise dos discursos Um dos indícios de que a teoria do populismo se sobrepôs, em boa medida, às análises da especificidade do processo histórico do pré-64 e do próprio golpe é o fato de haver poucos estudos sobre o governo João Goulart − quadro que vem mudando progressivamente nos 22 Ibidem, p. 8. Ibidem, p. 10 24 GOMES, Angela de Castro. O populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito. In: FERREIRA, J. Op. cit., p. 21. 25 FERREIRA, J. O nome e a coisa: o populismo na política brasileira. In: _______________. Op. cit., p. 62. 23 15 últimos anos − e não haver nenhum que se concentre no resgate específico dos discursos do ex-presidente. Tanto é assim, que a documentação que constitui o conjunto integral dos discursos ainda não foi sequer compilada.26 Procurando contribuir com estudos que venham a preencher esta ausência na historiografia, nossa pesquisa busca extrair do discurso de João Goulart suas especificidades conceituais, suas proposições e seus limites, dentro do processo histórico em que está inserido; para, dessa forma, expor o vínculo orgânico existente entre as propostas e apelos de tal discurso e um momento da história brasileira marcado por intensas movimentações políticas e debates sobre os rumos do país. Sendo assim, ao resgatar e analisar um conjunto significativo de discursos, a pesquisa não busca apenas apresentar e elencar as ideias propagadas isoladamente, mas, principalmente, contribuir para a problematização do momento de inflexão vivido naquele período. Com o conjunto documental reunido,27 foi analisada a totalidade dos documentos coletados, com o intento de extrair as categorias que sintetizassem a posição do Goulart e fornecessem a base de seu ideário. Nossa posição, portanto, foi a de desenvolver uma análise imanente do discurso, visando revelar os conteúdos específicos do ideário de João Goulart, em sua articulação e lógica próprias. Tal procedimento constitui um passo imprescindível para a efetivação de um adensamento analítico da gênese histórica e função social do ideário em questão;28 uma vez que, perscrutar a gênese histórica do discurso é compreender os fundamentos concretos dos 26 Em nosso esforço para a constituição de uma base documental suficiente para a análise sistemática do período e para a composição de um material que pudesse ser aproveitado por estudos posteriores, foram utilizados documentos coletados em diferentes fontes: publicações oficiais da Presidência da República na época (pouco divulgadas e dispersas em diferentes acervos), discursos e entrevistas publicados em jornais ou revistas do período e/ou em publicações posteriores (como as de Kenny Braga, Carlos Castello Branco, Jorge Ferreira e Angela Castro Gomes), além de manuscritos. Para esta compilação foram de fundamental importância o contato com os acervos da Biblioteca de Presidência da República, em Brasília, do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), pertencente à Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, do Centro de Memória Clodesmidt Riani, em Juiz de Fora, e do acervo do jornal Correio da Manhã, no Arquivo Público do Estado de São Paulo. 27 Ainda que não tenha sido possível reunir a totalidade dos discursos de Goulart, não há dúvida de que os mais de 180 discursos analisados, além da documentação secundária, compuseram uma amostragem significativa para execução da pesquisa. 28 Este tripé analítico – análise imanente, gênese histórica e função social – compõe o que Lukács chamou de pesquisa genética: ―devemos tentar pesquisar as relações nas suas formas fenomênicas iniciais e ver em que condições estas formas fenomênicas podem tornar-se cada vez mais complexas e mediatizadas [...] se quisermos compreender os fenômenos em sentido genético, o caminho da ontologia é inevitável, e que se deve chegar a extrair das várias circunstâncias que acompanham a gênese de um fator qualquer os momentos típicos necessários para o processo‖. In: HOLZ, Hans Heinz, et all. Conversando com Lukács. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1969, pp. 13-14. Ainda sobre o tema, ver: LUKÁCS, Georg. El asalto a la razón. Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica, 1959. E, para um debate mais aprofundado da problemática metodológica ver: CHASIN, J. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009. 16 quais ele é expressão ideológica. Por outro lado, resgatar a função social desta formação ideológica nos permite ―identificar a perspectiva histórica que o pensador em questão abraça, isto é, a direção − progresso, conservação ou retrocesso − para o qual apontam as formulações por ele propostas‖.29 Assim sendo, o fenômeno ideológico não será tratado como uma falsa consciência, mas sim, como uma expressão do pensamento voltada para a ação do indivíduo. Também é importante ressaltar que identificamos a ideologia por sua função social e não pela qualidade de seu discurso. O fato de um dado discurso ser falso ou verdadeiro não o impede de cumprir funções sociais, de ser ―veículo de conscientização e prévia ideação da prática social dos homens‖.30 Dentro desta concepção lukacsiana, a praxis política é um dos modos da ideologia em termos restritos: ―o âmbito, pois, da política é aquele que afeta e envolve a globalidade da formação social‖.31 Conforma-se assim que, tanto a pesquisa genética do ideário de João Goulart, quanto a compreensão de tal ideário como uma ideologia, ambos nos sentido lukacsiano,32 estão sustentados pela compreensão de que as diferentes formas de pensamento são expressões conscientes – reais ou ilusórias – de suas verdadeiras relações no tecido social, ―brotam sempre do terreno comum do intercâmbio social‖33 A falsidade ou correção das representações não são motivadas, assim, por mecanismos puramente ideais, inerentes à própria constituição da esfera subjetiva, mas derivam da potência ou dos limites do modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida, ou seja, os limites à devida apreensão 34 dos nexos constitutivos da realidade são postos socialmente. Considerando o discurso político como ―uma dada forma de conscientização de determinados problemas concretos e a indicação de uma solução para eles‖, apontando para uma determinada direção nas práticas políticas, ―independentemente do grau de falsidade de sua concepção‖ ou de seu possível caráter manipulatório, entendemos que a análise do 29 PRADES, Maria Dolores. Ideologia e política na obra de Oliveira Vianna. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas (SP), 1991, p. 14. 30 VAISMAN, Ester. A ideologia e sua determinação ontológica. In: Revista Ensaio, n. 17/18, 1989, p. 421. 31 Ibidem, p. 425. 32 Trata-se de concepções do ―velho‖ Lukács, ou seja, o teórico que faz o resgate do caráter ontológico da obra marxiana. No mesmo sentido, incorporamos a recuperação do ―estatuto ontológico‖ marxiano realizada por José Chasin, em Marx - estatuto ontológico e resolução metodológica. 33 CHASIN, José apud VAISMAN, Ester. A usina onto-societária do pensamento. In: Revista Ensaios Ad Hominem, Tomo I - dossiê Marx. Santo André: Ad Hominem, 1999, p. 262. 34 VAISMAN, Ester. A usina onto-societária do pensamento. In: Revista Ensaios Ad Hominem, Tomo I - dossiê Marx. Santo André: Ad Hominem, 1999, p. 262. 17 discurso estabelecida nesse trabalho contribuirá para a apreensão dos ―eixos de um dos pólos das lutas travadas neste período‖.35 A compreensão da determinação social do pensamento, e de seu papel na atividade humana, além de esclarecer a importância de apreender aquelas concepções, ilumina os problemas básicos que se põem para uma análise de discurso, indicando, desse modo, o caminho a ser percorrido.36 Neste procedimento, recorremos constantemente às citações, por vezes longas, dos discursos de João Goulart, a fim de evitar a deturpação do discurso realmente emitido e a imputação de concepções alheias àquelas presentes no conjunto dos discursos de Goulart. Sumariamente apontada a base teórico-metodológica a qual está vinculada a pesquisa, é importante destacar que, como critério para a organização do trabalho, partimos da totalidade dos discursos reunidos, identificando os principais temas abordados – em torno dos quais são articuladas as propostas mais relevantes defendidas por Goulart em seu governo. Agrupamos tais temas em três eixos e para cada um deles foi dedicado um capítulo. O primeiro capítulo aborda os dois elementos que formam o núcleo central das proposições de João Goulart para o governo do país: 1) a emancipação econômica nacional, como objetivo, e 2) as reformas de base, que seriam o meio para atingir o primeiro, ao mesmo tempo em que também contemplariam a ampliação dos direitos sociais. Neste capítulo, procuraremos apontar as bases do pensamento expresso por Goulart – fundamentalmente o nacionalismo varguista e o trabalhismo do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) – bem como suas propostas de reformas, relacionando-as às análises conjunturais que faz sobre o país. Ao abordar as reformas, não teremos como objetivo uma análise detalhada de cada proposta ou do impacto que poderia ser produzido no caso de sua concretização; mas apenas explicitar o conteúdo do programa reformista, defendido por João Goulart em diversas ocasiões, e destacar o seu posicionamento sobre elas. Vale apontar que, entre todas as chamadas reformas de base, foi dado maior destaque para a reforma agrária, visto a relevância do espaço que ela ocupa na documentação analisada e a repercussão que provocou na época. No capítulo seguinte, apontaremos o papel que o governo João Goulart atribuía às relações internacionais do Brasil. Embora seja necessário comentar a chamada política externa independente, mantida pelo país ao longo do governo Jango, o principal foco do 35 COTRIM, Lívia C. de A. O ideário de Getúlio Vargas no Estado Novo. Dissertação de Mestrado em Ciência Política. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas (SP), 1999, pp. 22-23. 36 Ibidem, p. 22. 18 capítulo estará nas relações entre Brasil e Estados Unidos e nas relações entre o Brasil e os demais países latino-americanos. Este foco se justifica pela documentação encontrada (os discursos realizados ao longo das viagens presidenciais aos Estados Unidos e México, em 1962, e ao Chile e Uruguai, em 1963) e pelo vínculo que estas relações tinham com as propostas do governo Goulart. Como principais temáticas do capítulo estão: a postura dos Estados Unidos em resposta ao posicionamento brasileiro, no que se refere à encampação de empresas americanas e ao comunismo cubano, e as tentativas brasileiras de acordos financeiros e de articulação com os países latino-americanos. Já no último capítulo, trataremos da ―instabilidade da ordem legal‖ que rondou o governo de João Goulart desde os momentos turbulentos que antecederam sua posse até a efetivação do golpe que o depôs em 1º de abril de 1964. Neste bloco, daremos destaque ao posicionamento de Goulart nos vários episódios, a saber: emenda parlamentarista; plebiscito para a volta do presidencialismo; solicitação do estado de sítio; acusações de instituição de uma ―república sindical‖, ou até mesmo de comunismo e golpismo. Explicitando a posição de Goulart, buscaremos dialogar com algumas das análises já realizadas sobre esses episódios, sem termos, contudo, a pretensão de reconstituir todos os fatos que compunham e influenciavam a conjuntura daquele momento. Nas considerações finais, retomaremos os principais apontamentos e análises feitos ao longo dos capítulos, a fim de reuni-los de modo conciso, e problematizar o momento de inflexão que o governo de João Goulart representou na história brasileira. 19 1. JOÃO GOULART: EMANCIPAÇÃO ECONÔMICA E REFORMAS Os diversos trabalhos referentes ao período que antecedeu o golpe militar de 1964 no Brasil, apesar de explicitarem inúmeras divergências, muito frequentemente fazem referências à importância e à complexidade apresentadas pela conjuntura brasileira na década de 1960, seja nas esferas política e econômica, como na movimentação social. Como coloca Dênis de Moraes, A passagem dos anos 50/60, com efeito, nos revela tempos de euforia desenvolvimentista, de acelerada politização da sociedade, de amplos debates sobre a eficácia revolucionária da arte, de exploração de reivindicações dos trabalhadores urbanos e rurais, de sonhos com uma Sierra Maestra que nos livrasse do imperialismo, do latifúndio e da miséria.37 Ou ainda, como coloca o cientista político Caio Navarro de Toledo, sobre a intensa movimentação do início da década de 1960, O golpe estancou um rico e amplo debate político e ideológico que se processava em órgãos governamentais, partidos políticos, associações de classe, entidades culturais, revistas especializadas (ou não), jornais etc. Assim, nos anos 60, conservadores, liberais, nacionalistas, socialistas e comunistas formulavam publicamente suas propostas e se mobilizavam politicamente em defesa de seus projetos sociais e econômicos.38 Toledo aponta como fatores componentes da riqueza e singularidade do período as diferentes propostas políticas formuladas e defendidas no pré-64 e a grande difusão que obtinham tais ideias em diferentes meios de comunicação; as inovações do cinema novo; a mobilização dos movimentos estudantis e sindicais; e a organização dos trabalhadores rurais nas Ligas Camponesas ou, a partir de 1962, em sindicatos rurais; concluindo, com a constatação de Roberto Schwartz de que, ―no pré-64, o Brasil começava a ficar ‗irreconhecivelmente inteligente‘‖.39 Internacionalmente, a agitação também era constante: a Guerra Fria polarizava as posições dos Estados nacionais; a Revolução Cubana se consolidava com o apoio soviético; e o projeto da ―Aliança para o Progresso‖, dos Estados Unidos, buscava aproximação com os países latino-americanos na tentativa de impedir a influência soviética e a eclosão de novos movimentos revolucionários. 37 MORAES, Dênis. A esquerda e o golpe de 64: vinte e cinco anos depois, as forças populares repensam seus mitos, sonhos e ilusões. Rio de Janeiro: Espaço e tempo, 1989, p. 24. 38 TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. In: REIS, D. A.; RIDENTI, M; MOTTA, R. P (orgs.). O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois. (1964-2004). Bauru (SP): Edusc, 2004, p, 69. 39 Ibidem, p. 19. 20 Quando, em 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros renuncia à presidência da república, uma sequência de vários dias em que as capas dos jornais de maior circulação do Brasil vinham destacando as notícias relacionadas ao tenso ambiente internacional é interrompida. Manchetes sobre a corrida nuclear entre Estados Unidos e União Soviética, sobre as tensões em torno da recente construção do muro de Berlim, ou ainda sobre o acirramento do conflito pela libertação da Argélia, cedem seu lugar de destaque à política brasileira, percebendo-se a grave crise que se abria com a saída de Quadros. Afinal, renunciava o presidente brasileiro eleito com quase 6 milhões de votos (cerca de 48% do total) e empossado há menos de 8 meses. E ainda havia um agravante: o vice-presidente, João Goulart, além de estar fora do país, em visita a China comunista, era alvo de uma conspiração liderada pelos ministros militares para que não assumisse seu cargo na Presidência da República. Contra João Goulart, pesava sua história como líder do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e, principalmente, sua passagem como Ministro do Trabalho do segundo governo de Getúlio Vargas, de quem era grande admirador e a quem considerou um ―estadista que empenhou a própria vida para conter as terríveis forças do obscurantismo e para que pudéssemos prosseguir na dura caminhada da libertação do nosso povo e da nossa Pátria‖.40 Aproximando-se de Vargas desde 1945, João Goulart havia trilhado sua carreira política no PTB, elegendo-se, em 1947, deputado estadual no Rio Grande do Sul, em 1950, deputado federal e, em 1952, presidente do PTB. Com a volta de Getúlio Vargas, como presidente eleito em, 1951 e após turbulências entre lideranças sindicais grevistas e o Ministério do Trabalho, Goulart assume a pasta do Trabalho em junho de 1953, onde permanece até fevereiro de 1954. Sua atuação como Ministro do Trabalho, embora não muito duradoura, foi marcante na formação de sua imagem junto aos diversos setores da política brasileira. Sua disposição em receber e dialogar com as lideranças sindicais e sua iniciativa de conceder um aumento de até cem por cento ao salário mínimo – que, na realidade, fora apenas suficiente para cobrir a defasagem de anos sem aumento real – incomodaram setores conservadores e militares, que chegaram a expressar sua insatisfação num documento que ficou conhecido como ―Manifesto dos Coronéis‖. Diante da pressão dos militares e dos ataques de parte da imprensa, sobretudo 40 GOULART, João. Dez anos da morte de Vargas. In: BRAGA, Kenny. et al. (coord.) João Goulart: Perfil, discursos e depoimentos (1919-1976). (Perfis Parlamentares Gaúchos). Porto Alegre: Assembléia Legislativa do Estado do RS, 2004, p. 245. Discurso escrito no exílio por ocasião dos dez anos da morte de Getúlio Vargas (24 de agosto de 1964) e encaminhado ao líder do PTB na Câmara dos Deputados, Doutel de Andrade. 21 de Carlos Lacerda,41 João Goulart deixou o cargo de ministro – o que não impediu a validação do aumento do salário mínimo por ele proposto. Em 1955, apesar da campanha contrária, que procurou identificá-lo com o peronismo argentino e com a possibilidade de formação de uma ―república sindical‖,42 Jango é eleito vice-presidente da República na chapa de Juscelino Kubitschek – que pertencia ao Partido Social Democrático (PSD) – e, durante seu mandato, exerceu importante papel de mediação entre os movimentos sindicais e o governo. Nas eleições presidenciais seguintes, no ano de 1960, Goulart se reelegeu vice-presidente, mas, desta vez, separado do candidato a presidente de sua chapa, o general Henrique Teixeira Lott (do PSD). Jânio Quadros (do Partido Democrata Cristão – PDC) foi o presidente eleito nessa ocasião, mas renunciará com poucos meses de governo, alegando que ―forças terríveis‖ teriam se levantado contra ele. Anos mais tarde, o próprio Jânio assumiria sua real intenção de voltar à presidência com poderes totais, contando com o apoio de uma manifestação popular, que na verdade não ocorreu. 43 Como lembra Celso Furtado, Quadros parece haver excluído a hipótese de que as forças da direita o abandonassem em época de aguda intranquilidade social, tanto mais que a opção era ter, como presidente, João Goulart, político comprometido com o que lhes parecia ser o pior da herança getulista.44 Diante da renúncia, os ministros militares, liderados pelo Ministro da Guerra, Marechal Odílio Denys, passam a atuar contrariamente à posse constitucional de Goulart e divulgam uma nota conjunta em que afirmam ―a absoluta inconveniência, na atual situação, do regresso ao país do Vice-Presidente, sr. João Goulart‖, sob a alegação de que Já no tempo em que exercia o cargo de Ministro do Trabalho, o sr. João Goulart demonstrara, bem às claras, suas tendências ideológicas, incentivando e mesmo promovendo agitações sucessivas e frequentes nos 41 Carlos Lacerda foi um dos principais e mais populares opositores de Getúlio Vargas e das forças políticas a ele ligadas. Jornalista e proprietário do jornal carioca Tribuna da Imprensa, Lacerda era filiado à União Democrática Nacional (UDN), partido pelo qual foi eleito vereador em 1947 e, posteriormente, deputado federal. Em 1960, também será eleito governador do estado da Guanabara, cargo a partir do qual, fará forte oposição à posse e ao governo de João Goulart. Para maiores detalhes, ver: ABREU, Alzira Alves de; BELOCH, Israel; LATTMANWELTMAN, Fernando (Coord.). Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001. 42 O episódio de maior repercussão desta campanha ficou conhecido como ―Carta Brandi‖ e consistiu numa acusação feita por Carlos Lacerda de que João Goulart estaria ligado ao contrabando de armas da Argentina para o Brasil, com o objetivo de armar supostas ―brigadas obreiras‖. Lacerda, inclusive, apresentou como documento uma carta endereçada a Goulart e assinada pelo deputado peronista argentino Antonio Brandi, cuja falsidade somente ficou comprovada após as eleições. Ver FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela M. C. Jango: as múltiplas faces. Rio de Janeiro: FGV, 2007. 43 Ver QUADROS, Jânio; ARINOS, Afonso. História do Povo Brasileiro. Vol. V. São Paulo: Editores Culturais, 1968. 44 FURTADO, Celso. Obra Autobiográfica de Celso Furtado. Tomo II. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 197. 22 meios sindicais, com objetivos evidentemente políticos e em prejuízo mesmo dos reais interesses das nossas classes trabalhadoras. E não menos verdadeira foi a ampla infiltração que, por essa época, se processou no organismo daquele Ministério, até em pontos-chaves de sua administração, bem como nas organizações sindicais, de ativos e conhecidos agentes do comunismo internacional, além de incontáveis elementos esquerdistas. No cargo de vice-presidente, sabido é que usou sempre de sua influência em animar e apoiar, mesmo ostensivamente, movimentações grevistas promovidas por conhecidos agitadores. /.../ Na Presidência da República, em regime que atribui ampla autoridade e poder pessoal ao chefe do governo, o Sr. João Goulart constituir-se-á, sem dúvida, no mais evidente incentivo a todos aqueles que desejam ver o país mergulhado no caos, na anarquia, na luta civil. As próprias Forças Armadas, infiltradas e domesticadas, transformar-se-iam, como tem acontecido noutros países, em simples milícias comunistas.45 Desencadeia-se, assim, uma profunda crise política, que ficará conhecida como a crise da legalidade, que na realidade, constituía uma tentativa golpista perpetrada por militares e civis conservadores. Em resposta à ação dos ministros militares e em defesa da posse constitucional de João Goulart, houve intensa mobilização popular no Rio Grande do Sul, sob a liderança de Leonel Brizola – então governador do Estado e cunhado de Goulart –, além de manifestações de estudantes e trabalhadores em diversas localidades, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro. Montou-se em Porto Alegre um Comitê de Resistência Democrática que articulava 400 comitês de bairro e totalizou, nos doze dias da crise, 100 mil voluntários inscritos. Como relata Amir Labaki, Porto Alegre foi o centro da resistência. A Praça da Matriz, defronte ao Palácio Piratini, sede do governo estadual, era ocupada constantemente por milhares de pessoas, vinte e quatro horas por dia. Nos momentos de maior tensão ou importância, chegaram a se comprimir nela quase setenta mil pessoas.46 Além de Brizola, o governador de Goiás, Mauro Borges, também articulou um movimento de resistência, chegando a ameaçar: ―Se não for respeitada a democracia, distribuirei armas ao povo e marcharei sobre Brasília‖.47 Embora com atuações discretas, vários outros governadores, de diversos partidos, inclusive da União Democrática Nacional (UDN), manifestaram apoio ao cumprimento da Constituição. A voz discordante maior 45 Tribuna da Imprensa apud FERREIRA, J.; GOMES, A. M. C. Op. cit., pp. 136-137. LABAKI, Amir. 1961: a crise da renúncia e a solução parlamentarista. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 70. 47 Última Hora, Rio de Janeiro, 31 ago. 1961, apud: FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 305. 46 23 destaque foi a de Carlos Lacerda, então governador da Guanabara, que além de apoiar o veto dos ministros militares à posse de Jango, chegou a reprimir duramente manifestações populares a favor da legalidade e a censurar jornais cariocas que publicaram o Manifesto do Marechal Lott ou que defenderam a posse de Goulart. Entre os militares, houve um grupo considerável que se posicionou contrariamente à decisão dos ministros, dentre o qual se destaca o General Machado Lopes, chefe do III Exército, cuja adesão ao movimento legalista deu grande força à resistência comandada por Brizola no Rio Grande do Sul, uma vez que Além de possuir a mais poderosa artilharia e o mais completo parque de manutenção do país, o III Exército contava com importantes regimentos de infantaria, unidades blindadas e 40 mil homens. Somados aos 13 mil da Brigada Militar, armados e entusiasmados, Machado Lopes contava com um poder de resistência que não poderia ser subestimado pelos ministros militares.48 Diante da divisão entre os próprios militares,49 da falta de apoio externo e interno e da mobilização popular, os golpistas recuaram e negociaram a posse de Goulart condicionada à implantação de um sistema parlamentarista, reduzindo, assim, os poderes do Presidente da República. Demonstrando um caráter conciliador, que seria objeto de duras críticas por parte de vários movimentos de esquerda, e mesmo contrariando grande parte dos membros do seu partido, João Goulart decide aceitar a emenda parlamentarista. Em seu discurso de posse, no dia 7 de setembro de 1961, o próprio Goulart ressalta suas características conciliadoras, apontando sua disposição para a negociação e apaziguamento das tensões, e não para a radicalização: Sabem os partidos políticos, sabem os parlamentares, sabem todos que, inclusive por temperamento, inclino-me mais a unir do que a dividir; prefiro pacificar a acirrar ódios; prefiro harmonizar a estimular ressentimentos. Promoveremos a paz interna, paz com dignidade, paz que resulte da segurança das nossas instituições, da garantia dos direitos democráticos, do respeito permanente à vontade do povo e à inviolabilidade da soberania nacional.50 Ratificando essa tendência, Goulart compõe um gabinete ministerial que nomeia como gabinete de ―conciliação nacional‖, por abrigar representantes de distintas correntes e partidos 48 FERREIRA, J. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular 1945-1964, p. 295. Ver D‘ARAÚJO, Maria Celina; CASTRO, Celso (orgs.). Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997, pp. 175-176; e MOURÃO FILHO, Olympio. Memórias: a verdade de um revolucionário. Porto Alegre: L&PM, 1978, pp. 28-29. 50 GOULART, João. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961). Brasília: IBGE, 1962, p. 10. 49 24 políticos, chefiado por Tancredo Neves (PSD) − figura-chave na negociação estabelecida para que Goulart aceitasse a emenda parlamentarista. Em contato com as correntes políticas, através de seus chefes e líderes, entreguei, desde a minha chegada a Brasília, ao partido de maior representação no Parlamento, a Presidência do Conselho de Ministros, na pessoa do eminente Doutor Tancredo Neves, que teve a incumbência constitucional de organizar o Ministério de acordo com as demais agremiações partidárias, fazendo-o com o alto espírito público de que é dotado. Em conseqüência, formou-se um governo de coalizão.51 Todavia, as dificuldades de João Goulart não se limitariam à crise de agosto. O país passava por um momento delicado na economia, tendo que superar entraves a seu desenvolvimento econômico. Um estudo da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1956, sobre o desenvolvimento do Brasil já considerava improvável a manutenção do índice de crescimento da década de 1950 para o decênio seguinte e lembrava não só a deterioração das relações de troca, com o pesado serviço da dívida externa, cujos compromissos deveriam ser saldados no período seguinte; além disso o valor real das reservas de depreciação acumuladas nos anos recentes estava sendo reduzido devido ao aumento dos preços dos equipamentos importados.52 A projeção de tal estudo mostrou-se correta e, a partir de 1962, com o agravamento dos obstáculos opostos pelas estruturas internas − sem contar a formidável pressão política oposta pelos mais variados grupos das velhas elites antirreformistas, o declínio da expansão se manifestou. E sem personalismos estreitos, a verdade é que apesar de tudo foi muito menor que o estimado.53 Um dos fatores que tornavam previsíveis as dificuldades econômicas para o período era a construção de Brasília, realizada por Juscelino Kubitschek ainda nos anos 1950 e para a qual ―os investimentos públicos, inclusive aqueles financiados pelos fundos de Previdência Social, foram no possível canalizados‖,54 isto sem haver um cálculo inicial do que isso tudo representava de pressão sobre os recursos disponíveis. Ainda que a obra tenha representado uma aceleração do crescimento da economia e gerado uma euforia na classe empresarial, No plano social, os efeitos foram inquestionavelmente negativos: redução dos investimentos sociais e baixa dos salários reais, em consequência da maior pressão inflacionária. Ademais, no setor externo teve início a acumulação de uma dívida cuja reciclagem se fará mais adiante, com sérias concessões ao Fundo Monetário Internacional. Era o ponto de partida do 51 Ibidem, p. 14. Discurso proferido em 8 de setembro de 1961, no Palácio do Planalto, ao ser investido do cargo de Presidente da República. 52 RODRIGUES, José Honório. Conciliação e reforma no Brasil: um desafio histórico político. Rio de Janeiro, 1965, p. 214. 53 Ibidem, p. 215. 54 FURTADO, C. Op. cit., p. 64. 25 período dos desequilíbrios macroeconômicos que conduzirão à situação de semidesgoverno, a qual servirá de justificativa para o golpe militar de 1964.55 Sendo assim, o governo teria que enfrentar os desafios de uma espiral inflacionária, gerada ainda durante a gestão anterior e acelerada pela emissão monetária descontrolada efetuada durante a crise; além de impasses econômicos resultantes do modelo desenvolvimentista, a saber: desequilíbrio na balança de pagamentos e defasagem dos salários. De acordo com Cibilis da Rocha Viana, Às distorções geradas pelo processo de desenvolvimento na economia brasileira /.../ vieram somar-se os efeitos negativos da política cambial adotada pelo governo Quadros – a elevação dos preços e do custo de vida; o desequilíbrio financeiro das contas públicas; o agravamento da deterioração dos termos de troca no comércio exterior.56 Assim, à instabilidade política, que marcou a posse de João Goulart e que permanece na maior parte do período em que governou, junta-se também a instabilidade econômica, agravada pelas volumosas emissões de moeda realizadas durante a crise de agosto – foram Cr$ 58 bilhões, somente nas duas semanas da sedição dos ministros militares.57 Outro aspecto a ser destacado nessa conjuntura é o da mobilização de diferentes movimentos de trabalhadores, que, desde o fim da Segunda Guerra vinha em um crescente.58 Trabalhadores rurais e urbanos intensificavam sua atuação política e reivindicatória: as Ligas Camponesas ganhavam cada vez mais visibilidade na sua luta pela reforma agrária e por melhores condições trabalho; assim como os operários urbanos, diante da defasagem dos salários reais, criavam novas formas de organização, com greves cada vez mais frequentes. Em contrapartida a esta movimentação, os setores conservadores da sociedade − sobretudo ruralistas e grupos ligados ao capital estrangeiro, representados principalmente pela UDN e 55 Ibidem, p. 65. VIANA, Cibilis da Rocha. Reformas de base e a política nacionalista de desenvolvimento: de Getúlio a Jango. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980, p. 104. 57 Relatório do Banco do Brasil S. A., 1961, apud MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964. Rio de Janeiro: Revan/ Brasília (DF): EdUnB, 2001, p. 66. 58 ―No período democrático do pós-guerra (1945-1964), os trabalhadores tomaram a direção de seus sindicatos e mostraram tanta combatividade que o governo Dutra interveio em quase todos, logo depois de colocar o Partido Comunista na ilegalidade. Em resposta, os trabalhadores elegeram em 1950 Getúlio Vargas à presidência, o qual permitiu que, por meio de eleições, ganhas pelas chapas de oposição, os trabalhadores retomassem a direção de seus órgãos de classe. Grandes movimentos grevistas ocorreram em seguida. A greve de têxteis, metalúrgicos, marceneiros, gráficos vidreiros, em 1953, mobilizou 300 mil trabalhadores e manteve São Paulo paralisada durante três semanas /.../ Qualquer um que tenha vivido os anos anteriores ao golpe de 1964 não pode deixar de se assombrar com essas considerações. Entre 1955 e 1964, as Ligas Camponesas mobilizaram legiões de trabalhadores rurais para ocuparem centenas de latifúndios, de norte a sul do país‖. SINGER, Paul. ―Notas de leitura dum clássico‖. In: FERNANDES, Florestan. Sociedade de classe e subdesenvolvimento. São Paulo: Global, 2008, pp. 16-17. 56 26 por uma de suas figuras de maior destaque, Carlos Lacerda − também se articulavam contra as políticas reformistas e trabalhistas que contrariassem seus interesses, aumentando ainda mais a tensão no âmbito político. Com tudo isso, para manter-se no poder, João Goulart teria que superar as dificuldades econômicas no plano nacional e internacional, atender às graves necessidades das camadas populares, além de defender-se dos ataques de grupos conservadores – que criticavam seu reformismo, acusando-o de comunista – e também de setores da esquerda, incluindo membros de seu próprio partido – que recusavam a prática conciliatória e exigiam maior radicalização. Como meio para superar tamanho desafio, e enfrentando os problemas reais que a ele e ao país se impunham, Jango valeu-se do programa das chamadas reformas de base; não como um plano de emergência para alguém que assume a chefia de um governo em condições inesperadas, mas como desdobramento dos apontamentos que já vinha expressando nos últimos anos, dentro de seu partido – o PTB, que ganhava importância ―na construção de um discurso em prol de mudanças‖ e que se consolidava como um ―partido reformista e popular‖59 – e em seus mandatos na vice-presidência da república. Dada a importância que o debate em torno das propostas de reformas ganhou naquela conjuntura, procuraremos, no primeiro item deste capítulo, investigar as origens e principais influências da formulação do programa reformista defendido por Goulart ao chegar à presidência – projeto que gerou intensos debates entre os vários grupos sociais e que terá sua discussão interrompida pelo golpe militar. 1.1. Nacionalismo e Trabalhismo: Vargas e o PTB O discurso de João Goulart, tanto como sua carreira política, será construído sob a influência da imponente figura de Getúlio Vargas e dentro do Partido Trabalhista Brasileiro – criado pelo próprio Vargas em 15 de maio de 1945, cerca de um mês após ser criada a União Democrática Nacional (UDN).60 De acordo com Angela de Castro Gomes, o PTB tinha uma proposta mais diretamente dirigida à classe trabalhadora, em especial a urbana, apontando para a articulação de um partido de massas 59 D‘ARAÚJO, Maria Celina. Sindicatos, carisma e poder: o PTB de 1945-65. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996, p. 97. 60 O Partido Social Democrata (PSD) é criado, também por Vargas em 17 de julho do mesmo ano. Ver: GOMES, Angela de Castro. ―Partido Trabalhista Brasileiro (1945-1965): getulismo, trabalhismo, nacionalismo e reformas de base‖. In: FEREIRA, Jorge; AARÃO REIS FILHO, Daniel. Nacionalismo e Reformismo Radical: (19451964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007 (As esquerdas no Brasil; v. 2), p. 56. 27 com bases sindicais. Seu modelo inspirador foi o Partido Trabalhista inglês, e seus fundamentos foram lançados a partir do Ministério do Trabalho, com a mobilização das lideranças sindicais e dos organismos previdenciários. /.../ Trata-se de um partido criado para ser popular e nacionalista, defendendo um formato de Estado intervencionista e agitando, como principal bandeira, o trabalhismo.61 Além da inspiração no trabalhismo inglês, o PTB contava com o peso da presença de Getúlio Vargas e dos princípios por ele defendidos, como o desenvolvimento nacional autônomo e a ampliação da legislação social. Sobretudo a partir de 1950, período da vitoriosa campanha que levou Vargas de volta à presidência da república, os ideários trabalhista e getulista se fundem num discurso em defesa do desenvolvimento econômico, da justiça social e da libertação econômica. Ainda de acordo com a autora, Como encarnação da nação e como grande inspirador do ideário trabalhista, Vargas torna-se um símbolo de justiça social e de progresso econômico para a população do país. O carisma do presidente estabeleceu neste solo raízes profundas e, quando o Estado Novo iniciou, ―de dentro‖, uma transição para um regime-liberal-democrático, o culto à sua figura, ou melhor, o getulismo, era uma realidade política ao lado do trabalhismo.62 Outra grande referência do trabalhismo petebista será Alberto Pasqualini, membro do partido desde 1946 e autor do livro Bases e sugestões para uma política social, de 1948, no qual reúne suas principais ideias e que muito influenciará o discurso dos setores de maior destaque dentro do partido, inclusive o liderado por João Goulart. Esta influência pode ser notada na defesa que Pasqualini faz, e que Goulart retomará, de um trabalhismo cristão, convergente com a doutrina social da Igreja; de um capitalismo ―solidarista‖, voltado ao bem-estar da coletividade, dos princípios humanistas, cooperativos, e contrário ao abuso do poder econômico e à ―usura social‖ (que, segundo Pasqualini, se caracteriza pelo enriquecimento não decorrente do ―trabalho socialmente útil‖, mas da ―apropriação indevida do trabalho alheio);63 de um Estado ―distribuidor‖ dos recursos, de forma a atender as necessidades da coletividade e buscando a efetivação da justiça social; e da extensão da legislação trabalhista ao trabalhador rural.64 Posteriormente, já como presidente da república, em visita ao Rio Grande do Sul, Goulart alude ao teórico trabalhista, dizendo: Ficai certos, meus conterrâneos, de que prosseguiremos na luta ―por uma ordem social mais justa em nosso país‖, conforme preconizava o saudoso e 61 Ibidem, p. 59 e p. 62. Ibidem, p. 57. 63 PASQUALINI, Alberto. Apud: VIANA, Cibilis da Rocha. Op. cit., p. 59. 62 64 Sobre as ideias defendidas por Alberto Pasqualini, ver: GRIJÓ, Luiz Alberto. ―Alberto Pasqualini: o teórico do trabalhismo‖. In: FEREIRA, J.; AARÃO REIS FILHO, D. Op. cit. pp. 83-99 e VIANA, C. R. Op. cit. Cap. 5. 28 ilustre filho desta terra, que foi Alberto Pasqualini. Ficai certos de que continuaremos batalhando para que os que são muito ricos, nesta pátria, sejam menos ricos, para que os pobres sejam, por sua vez, menos miseráveis e para que o povo do Brasil possa viver com mais dignidade.65 Dessa maneira, João Goulart, ao mesmo tempo em que traz em sua formação políticoideológica os princípios defendidos por Getúlio Vargas e pelo trabalhismo petebista, pouco a pouco, constituirá também, ele próprio, uma figura de destaque e de liderança dentro do partido. Como presidente nacional do PTB desde 1952 e, principalmente, como Ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, de junho de 1953 a fevereiro de 1954, Goulart, em diversas ocasiões, terá a oportunidade de falar em nome do partido e de defender os princípios trabalhistas. Segundo Angela de Castro Gomes, o significado da indicação de Jango por Vargas ao Ministério do Trabalho revelaria uma nova estratégia política que seria encaminhada por seu ministro — em lugar de acionar mecanismos repressivos, estabelecer conversações com os sindicalistas e negociar a greve. Uma fórmula que procurava recuperar a popularidade de Vargas junto aos trabalhadores, costurando alianças com sindicatos e retomando esse canal de comunicação política para o governo. /.../ Dessa forma, a postura de Jango, negociando e se antecipando às demandas dos trabalhadores, inclusive forçando os empregadores a fazer concessões, foi freqüentemente vista e denunciada não como forma de esvaziar conflitos, mas de estimulá-los, pregando a ―luta de classes‖.66 Justamente pela grande penetração que possuía no meio sindical, a indicação de João Goulart ao ministério foi bastante criticada, sendo até mesmo apontada como indício de supostas articulações do governo de Vargas para o estabelecimento de uma ditadura sindicalista no Brasil. Respondendo a esta e a outras acusações e aproveitando para manifestar suas posições, Jango afirmou: Também não passa de torpe intriga o boato de que sou contra o capitalismo. À frente do Ministério do Trabalho estou pronto para aplaudir e estimular os capitalistas que, fazendo de sua força econômica um meio legítimo de produzir riquezas, dão sempre às suas iniciativas um sentido social, humano e patriótico. Sou contra, isso sim, o capitalismo parasitário, exorbitando no ganho e imediatista no lucro, contra o capitalismo cevado à base da especulação, que afinal só contribui para o desajustamento social. Não é admirável que, enquanto uns estão ameaçados e morrem de fome, outros ganham num ano aquilo que normalmente deveriam ganhar em 50 anos ou até séculos.67 65 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 59. Discurso proferido em homenagem em frente ao Palácio Piratini, em Porto Alegre, no dia 30 de outubro de 1961. 66 GOMES, A. C. Op. cit., pp. 68-69. 67 GOULART, J. Resposta aos jornais e ao The New York Times. In: BRAGA, K. et al. (coord.) Op. cit., pp. 191192. 29 E em seu discurso de posse no ministério, Goulart procurou expor as bases que fundamentariam sua ação na pasta do Trabalho. Embora fosse meu desejo, reconheço que seria exaustivo, nesta oportunidade, dizer detalhadamente dos propósitos que me animam no cumprimento da investidura com que fui distinguido pelo eminente presidente Getúlio Vargas. Limito-me a ressaltar que pertenço a um partido político cujo programa se assenta na defesa dos interesses dos trabalhadores através do sistema de perfeito entendimento com as classes patronais, tendo como finalidade principal o bem-estar de todos e o progresso da Nação. Não poderia, pois, à frente do Ministério do Trabalho, sob pena de trair minha própria formação doutrinária, deixar de seguir as inspirações desse programa e das suas diretrizes fundamentais sem, no entanto, perder de vista enormes responsabilidades das horas difíceis que atravessamos Meus senhores, despido de cargo ou da ambição do poder, meus objetivos são claros e definidos, resumindo-se na conquista de uma ordem social mais justa, sem a mínima quebra das nossas tradições democráticas. Não trago para o Ministério um programa de inquietações – como pretendem alguns setores políticos – e nem prometo solucionar milagrosamente os inúmeros problemas dos trabalhadores. Todos sabem, de resto, que esses problemas são conseqüência da realidade econômica que, no Brasil de hoje, se apresenta particularmente difícil às classes proletárias.68 Ainda de acordo com Gomes, a carta de demissão que João Goulart enviará a Getúlio Vargas na ocasião de sua demissão, após a grande repercussão da sua proposta de aumento do salário mínimo, constitui documento importante dos princípios defendidos pelo trabalhismo petebista. Nela, além de declarar sua certeza de que ―atendendo aos humildes, contribuía para a verdadeira harmonia social‖ Goulart afirma: Não me deixei intimidar com o descontentamento que minha conduta provocou naqueles que vivem acumulando lucros à custa do suor alheio. Não recuei nem mesmo quando mais afoita e desabusada se tornou a ação nefasta de determinados setores econômicos. Consequentemente, fui acusado de fomentar greves, de promover agitações nos meio operários, de articular a luta de classes, passando até a figurar como implacável inimigo do capitalismo. Tão injusta quanto as outras, porém, é esta última acusação. Há um capitalismo honesto, amigo do progresso, de sentido sadiamente nacionalista, que sempre mereceu meu aplauso e o meu apoio. Há outro, entretanto, que jamais deixará de contar com a minha formal repulsa. Refiro-me ao capitalismo desumano, absorvente de forma e essência, caracteristicamente anti-brasileiro, que gera trustes e cria privilégios, e que, não tendo pátria, não hesita em explorar e tripudiar sobre a miséria do povo.69 No dia seguinte ao pedido de demissão de Goulart, uma nota oficial elaborada pela Comissão Executiva Nacional do PTB, além de se solidarizar com o ex-ministro e defender as propostas por ele feitas, afirmava que o partido permaneceria ―na luta contra a usura social e 68 Ibidem, pp. 193-194. Carta de demissão enviada por João Goulart a Getúlio Vargas em 22 de fevereiro de 1954. Arquivo Getúlio Vargas, CPDOC-FGV Classificação: GV c1954.02.22/1. Grifos nossos. 69 30 os desmandos do poder econômico‖ e reivindicava, entre outros pontos: a extensão da legislação trabalhista ao campo; a reforma agrária; e a ―libertação econômica nacional e contra a agiotagem internacional‖.70 De acordo com o historiador Jorge Ferreira, sobre a importância do conteúdo expresso nas mensagens de Jango e da comissão executiva de seu partido, No discurso do ministro e na nota oficial do PTB está presente um conjunto de ideias, crenças e concepções que marcou o trabalhismo brasileiro e criou sólidas tradições na cultura política do país. Com base no difuso ideário getulista, e indo além dele, a geração de trabalhistas liderada por Goulart ―refundou‖ o PTB, tornando-o um partido com feições reformistas que, até 1964, somente tenderia a radicalizar. É verdade que a carta-testamento de Vargas obteve uma repercussão muito maior, até mesmo pelas condições dramáticas com que surgiu no cenário político brasileiro, tornando-se uma espécie de ‗manifesto trabalhista‘. No entanto, os fundamentos da cartatestamento – até suas ideias mais avançadas – já estavam presentes no texto de despedida de Goulart do Ministério do Trabalho e na nota oficial de seu partido: soberania nacional, libertação econômica do país dos controles das agências financeiras internacionais, defesa das riquezas naturais contra os interesses das empresas monopolistas estrangeiras, condenação do capitalismo predatório e usurário, ampliação da legislação social aos assalariados urbanos e sua extensão ao mundo rural, reforma agrária, melhoria das condições de vida da população, reconhecimento da cidadania política e social dos trabalhadores e do movimento sindical, entre outras questões.71 Como veremos ao longo deste trabalho, os discursos que João Goulart proferirá ao chegar à presidência da república, inúmeras vezes, trarão novamente à tona o conjunto de ideias que já pode ser notado, tanto nos seus próprios discursos como presidente do PTB, ministro, e vice-presidente da república, como nos próprios documentos do seu partido. Portanto, quando aponta a emancipação econômica e a justiça social como objetivos a serem alcançados por seu governo, através de medidas reformistas, Goulart não lança mão de uma novidade, de uma carta tirada da manga para sobreviver à crise política e econômica; mas retoma princípios já defendidos por Getúlio Vargas, pelo programa trabalhista do PTB, além de outros setores da sociedade, como intelectuais, movimentos operários e estudantis da época. Contudo, a chamada ―herança política‖ de Vargas, se por um lado será apontada pelos opositores de Jango como algo a ser expurgado, como tendência antidemocrática e demagógica, por outro, será reivindicada pelo próprio Goulart e por seu partido como 70 Nota publicada em O Radical, Rio de Janeiro, 25 fev. 1954, apud FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 138. Grifo nosso. 71 Idem. 31 continuidade de um projeto progressista de desenvolvimento nacional e de integração política e econômica da classe trabalhadora. Já na presidência da república, Goulart constantemente fará referências a Vargas semelhantes a esta – expressa em um de seus primeiros discursos, realizado ainda no mês de sua posse, em homenagem que recebeu na sede da União Nacional dos Estudantes (UNE) no Rio de Janeiro: trago a certeza de que jamais trairemos o nosso passado e os ideais imperecíveis de um homem que se sacrificou em defesa do povo, que lutou até o último momento da sua vida contra forças poderosas que se opunham aos interesses da nossa pátria. Há poucos minutos, em companhia de Tancredo Neves e Oliveira Brito, depositávamos flores junto ao busto do grande Presidente Vargas, flores que não simbolizam apenas saudades, mas que representam a reafirmação do seu pensamento, nesta hora em que assumimos os destinos do País.72 Em outras oportunidades, João Goulart reafirmará ainda sua fidelidade ―aos princípios de justiça social defendidos por Getúlio Vargas‖,73 a quem considerava um ―pioneiro de todas as grandes batalhas pela independência econômica de nossa pátria‖;74 ―o comandante dos primeiros combates pela libertação econômica do Brasil, o criador da legislação social, o estadista sereno e amigo do povo‖;75 homem ―incompreendido na sua luta incansável, até ser vencido pela reação‖.76 Mantendo-se vinculado, portanto, ao discurso varguista, assumindo a presidência da república no dia 7 de setembro de 1961, dia em que se comemora a independência do Brasil – data escolhida pelo próprio Jango pela sua significação simbólica, uma vez que as condições de sua posse já estavam estabelecidas desde o dia 5 – João Goulart segue defendendo como meta fundamental do governo brasileiro atingir sua emancipação econômica complementando sua emancipação política. A independência política que, há 140 anos, foi conquistada pela bravura de nossos antepassados, que se fizeram heróis de nossa História, Deus há de 72 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 22. Discurso proferido em 24 de setembro de 1961. 73 GOULART, João. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962). Brasília: IBGE, 1963, p. 81. Discurso proferido em 01 de maio de 1962, em Volta Redonda (RJ), por ocasião das comemorações do Dia do Trabalho. 74 Ibidem, p. 99. Discurso proferido em 11 de junho de 1962, no Palácio das Laranjeiras, Rio de Janeiro, ao ser instalada a Eletrobrás. 75 Ibidem, p. 75. 76 Ibidem, p. 92. Discurso de 13 de maio de 1962, em Santos (SP), na inauguração da nova sede do Sindicato dos Operários nos Serviços Portuários de Santos, São Vicente e Guarujá. 32 permitir que seja completada com a nossa total emancipação econômica, que temos o dever de legar a nossos filhos, em nome do Brasil eterno.77 1.2. Emancipação Econômica João Goulart colocava a emancipação econômica do país como ―a missão de sua geração‖78 e como pressuposto para o alcance da justiça social. Logo em seu discurso de posse, após a crise que levou o país a uma ameaça de guerra civil, Goulart convocava todos os brasileiros a se mobilizarem para a ―única luta interna‖ em que deveriam se empenhar: para a luta pela emancipação econômica do país, definida por ele como ―a luta contra o pauperismo, a luta contra o subdesenvolvimento‖.79 No entanto, como seria possível para um país com o histórico de desenvolvimento do Brasil, de passado de exploração colonial, de economia predominantemente agrárioexportadora, de industrialização hipertardia e subordinada, atingir a emancipação econômica? Ainda mais num momento avançado do século XX, em que as potências mundiais já estavam bem definidas e blindadas pelo seu poderio econômico e militar? Apesar dos enormes obstáculos existentes à realização deste objetivo, Goulart o reafirmou durante todo o seu governo, tendo que lembrar constantemente que, para tanto, não abriria mão da ordem legal e dos princípios democráticos, ou muito menos romperia com o capitalismo por uma solução socialista. A opção propagada por Goulart defendia o desenvolvimento da indústria nacional conjuntamente com uma reestruturação da produção agrária e a integração crescente da população urbana e rural no mercado interno. Não seria fácil viabilizá-la; seriam necessárias reformas estruturais. E para defendê-las, o presidente convocava a todos os brasileiros, especialmente, os trabalhadores que formavam sua base de apoio. Aqui estão os trabalhadores para prosseguirem na caminhada encetada em 1930, com a Revolução Industrial, e continuada em 1950, com a campanha pela emancipação, de que a Petrobrás é símbolo vivo. Emancipação que se completará através das reformas democráticas, que, mudando as estruturas arcaicas, alterando as estruturas obsoletas, irão atender melhor as reivindicações do povo, disposto a transpor a barreira do subdesenvolvimento.80 77 Ibidem, p. 154. Discurso pronunciado em Brasília, no dia 7 de setembro de 1962, pela rede de radiodifusão de "A Voz do Brasil‖. 78 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 86. Discurso proferido em Belo Horizonte, no dia 17 de novembro de 1961, por ocasião do encerramento do Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas. 79 Ibidem, p. 10. 80 ―Goulart: seguirei a linha de Vargas‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 24 ago. 1963. 33 Ao falar sobre a política de emancipação que seria levada a cabo por seu governo, Goulart afirma que seriam tomadas medidas com vistas ―à libertação do Brasil das garras que o escravizam e dificultam o seu desenvolvimento‖;81 no entanto, em outros momentos, também pondera que: A política de emancipação do governo assenta em bases realistas. Ela não é contra ninguém, ou seja, não se traduz por medidas de caráter nacionalista excludente. Destina-se a criar a base econômica e financeira para uma política nacional independente.82 Este cuidado é bastante compreensível, lembrado o nível de radicalização das posições políticas do período. Além disso, duas das principais medidas defendidas em nome da emancipação nacional geraram grandes e polêmicos debates, pois tocavam em interesses de grupos econômicos poderosos no país; foram elas a reforma agrária (que será tratada mais à frente) e a regulamentação da remessa de lucros para o exterior. Apesar do posicionamento de João Goulart ser amplamente criticado como ―populista‖ – categoria que, como vimos, em muitos casos, será utilizada sem qualquer análise das particularidades da posição de Jango –, as posições expostas acima, claramente ligadas a trajetória nacional-trabalhista do autor, não podem ser tidas como meras idiossincrasias ou discurso isolado naquele momento histórico. Podemos tomar como exemplo, o debate que se desenvolvia na época pela chamada Escola Paulista de Sociologia − grupo de intelectuais por vezes tido como o verdadeiro centro científico da época, em oposição aos intelectuais próximos ao governo.83 Esta Escola, apesar da oposição aos intelectuais nacionalistas, em boa, medida acompanhava tendências das ciências sociais latino-americanas e entendia a autonomia do país como base de qualquer projeto de ―modernização‖: Se ou enquanto a sociedade subdesenvolvida não possuir requisitos estruturais e dinâmicos para engendrar processos de automatização econômica, sociocultural e política, ao nível do padrão de integração, funcionamento e desenvolvimento da ordem social competitiva, ela ficará condenada ao destino histórico inerente ao capitalismo dependente (qualquer 81 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 58. Discurso pronunciado em 30 de outubro de 1961, em Porto Alegre, em frente ao Palácio Piratini, ao ser homenageado pelo povo, na primeira visita ao Rio Grande do Sul como Presidente da República. 82 Entrevista concedida à jornalista Barbara Smith, do ―The Economist‖. Publicado em: ―JG dá entrevista admitindo coexistência com comunistas‖. Correio da Manhã, 17 fev. 1963. 83 A expressão intelectual que claramente acompanhava a direção do pensamento nacional-trabalhista do governo localizava-se principalmente no Rio de Janeiro, através do ISEB. Segundo a leitura de alguns especialistas sobre os intelectuais daquela época ―a elite intelectual paulista não sentia entusiasmo em associar-se à criação ideológica dos isebianos ou à pregação da vulgata marxista, e menos ainda em lançar-se na aventura da ‗marcha para o povo‘‖, por isso poderiam ser mais ‗neutros‘ e praticar um verdadeiro pensamento científico. PÉCAULT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1995, p. 173. 34 que seja a fórmula empregada para disfarçar esse destino) ou terá de procurar no socialismo (qualquer que seja a via pela qual ele se desencadeie historicamente) as soluções para os seus dilemas econômicos, sociais e políticos.84 E, na nota que segue o excerto acima, Fernandes afirma: ―A alternativa socialista foi deixada de lado, pois as investigações comprovam que o capitalismo mantém-se, no Brasil (independente de qualquer artifício analítico dos investigadores), como a opção histórica ‗possível‘ e ‗desejada‘ socialmente‖.85 Obviamente que essa ideia constitui expressão e síntese significativa do trabalho de um grupo que foi formado desde 1953, mas que se fragmentará e mudará de posição em boa medida entre 1964 e 1968.86 Mas, o que queremos destacar aqui é que, em traços gerais, não obstante o fato desses intelectuais se posicionarem criticamente com relação a Jango, suas pesquisas apresentam como proposta elementos estruturais que também foram defendidos pelo próprio Presidente João Goulart (ainda que partindo de outras referências): o descarte do socialismo como meio de modernização do Brasil e a autonomização do país como objetivo central para obter o desenvolvimento. 1.2.1. Lei da remessa de lucros A proposta de se disciplinar o capital estrangeiro investido no Brasil não será uma originalidade do governo Goulart – este tema já vinha sendo debatido desde 1946, por ocasião do Decreto-lei nº 9025, que limitava a remessa de juros, lucros e dividendos em 8% anuais do capital estrangeiro registrado, mas que acabou não sendo executado. Vargas, em seu segundo governo, discutiu o tema e, sobre a não execução do referido decreto, falou: Assim, um mero Regulamento, baixado por autoridade de menor hierarquia, sabotou totalmente não só o espírito, mas o próprio texto do Decreto-lei, e conseguiu inaugurar, em surdina e sem que ninguém se desse conta, um sistema de vazamento subterrâneo de moeda brasileira para o exterior. Vazamento tão grande, tão extorsivo do fruto do trabalho de milhões de brasileiros, que, em menos de 5 anos, se logrou subtrair à economia nacional 84 FERNANDES, F. Op. cit., p. 35. Idem. 86 O texto foi feito por Florestan, mas o próprio autor aponta nesse texto que serviu como uma espécie de fio condutor ―ligando hipóteses e conclusões fundamentadas de várias investigações‖ de um grupo bastante numeroso, do qual podemos destacar os nomes de Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Paul Singer, José de Souza Martins, Francisco Weffort, entre outros. 85 35 uma soma fabulosa, quase equivalente ao total do papel-moeda circulante no país e que foi escandalosamente incorporada ao capital estrangeiro.87 Apesar desta fala contundente, Vargas também não encontrou condições de tornar efetivo um maior controle sobre as remessas de capitais para o exterior. Se por um lado, mantinha a intenção de regulamentar o capital estrangeiro e a remessa de lucros para evitar ―abusos‖, por outro, reafirmava em seus discursos a importância do investimento estrangeiro para o desenvolvimento econômico do país, deixando claro que não romperia com o capital internacional.88 Em situação semelhante se encontrará o presidente João Goulart. Dias após sua posse, em discurso pela comemoração do 15º aniversário da Constituição brasileira de 1946, o presidente expõe sua expectativa de que o Legislativo – centro do governo então parlamentarista – a fim de tornar efetivas na prática algumas conquistas sociais que figuravam na Constituição, regulamentasse, entre as várias reformas necessárias, a ―disciplina do capital estrangeiro‖: Estou certo de que o Congresso Nacional, refletindo as aspirações do povo, há de oferecer à Nação os estatutos legais inadiáveis, equacionando, de maneira prudente, porém segura, problemas como o da reforma agrária, o dos abusos do poder econômico, o da reforma bancária, o das novas diretrizes educacionais, o da disciplina do capital estrangeiro, distinguindo e apoiando o que representa estímulo ao nosso desenvolvimento e combatendo o que espolia nossas riquezas.89 E, um mês depois, reforçou: Estou certo de que o Parlamento transformará brevemente em realidade as justas aspirações do povo, quais sejam aquelas que dizem respeito ao acesso à terra dos agricultores que a regam com seu suor e seu sacrifício; as legítimas reivindicações das donas de casa, das populações pobres, que não podem permitir que se continue a assistir sem protesto à sangria da nossa economia através da evasão de divisas para o exterior, quando o povo aqui vive na miséria e no sacrifício.90 No entanto, tanto como na época de Vargas, o Brasil não estava em condições de prescindir do capital estrangeiro para manter ou acelerar seu ritmo de crescimento econômico. Se por um lado a limitação da remessa de lucros para o exterior era apontada como meio para 87 VARGAS, Getúlio. Apud: FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Vargas: o capitalismo em construção: 1906-1954. São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 410. 88 Cf. FONSECA, P. C. D. Op. cit., pp. 402-428. 89 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 18. Discurso proferido em 18 de setembro de 1961, em Brasília. 90 Ibidem, pp. 41-42. Discurso proferido no Palácio do Planalto, em Brasília, no dia 18 de outubro de 1961, ao receber, em audiência especial, uma comissão de senhoras, representantes de várias entidades nacionais. 36 barrar a ―sangria‖ das riquezas nacionais, aprofundando a ―miséria do povo brasileiro‖, 91 por outro, o investimento estrangeiro constituía importância fundamental no financiamento do desenvolvimento econômico, sobretudo no setor industrial. Sintomático desta situação é o seguinte trecho da ―Mensagem ao Congresso Nacional‖, enviada pelo presidente João Goulart na abertura do ano legislativo de 1962: O desenvolvimento nacional e as reformas de base acham-se ligados à conjuntura internacional. Desenvolvimento e reformas serão retardados se os recursos internacionais, muitos dos quais hoje encaminhados para a preservação da paz armada, não puderem ser postos, em tempo, e em quantidades crescentes, à disposição dos países subdesenvolvidos.92 Diante desta situação, João Goulart ao mesmo tempo em que defendia a necessidade de regulamentação do capital estrangeiro, procurava também esclarecer que esta regulamentação não significaria, de modo algum, um fechamento do país a este capital. O desenvolvimento não é um negócio, uma empresa mercantil dos velhos tempos de colonialismo, mas sim uma política nacional. Quem pensa no desenvolvimento, quem lhe estrutura as etapas e lhe propõe os fins somos nós, os brasileiros. Estamos prontos a pagar o preço justo pela valiosa colaboração recebida. Mas essa colaboração não pode retirar do nosso controle soberano as medidas e providências indispensáveis a articular o comportamento do capital estrangeiro com os objetivos fundamentais que temos em vista alcançar. /.../ A contribuição externa é importante, é preciosa, é necessária. Mas ela não deve comandar nem desfigurar a política determinada pelos imperativos da nossa emancipação econômica.93 Esta disposição por parte do presidente em estabelecer alguma disciplina sobre os capitais externos e sua remessa para o exterior gerou inúmeras controvérsias e tornou-se um dos assuntos relevantes na visita que João Goulart faria aos Estados Unidos no ano de 1962. Duas semanas antes de sua viagem, o presidente antecipou sua posição sobre o tema em almoço oferecido pela Câmara Norte-Americana de Comércio. Em seu discurso, assegurou que seu governo não cultivaria ―qualquer sorte de preconceito ou má vontade‖ contra os representantes do capital estrangeiro e admitiu que os investidores externos deveriam ―obter a remuneração adequada aos recursos financeiros empregados, de modo a cobrir os riscos que possam ocorrer‖. Mas, após expressar gratidão pela ―atividade pioneira‖ daqueles que teriam 91 Ibidem, p. 75. Discurso proferido em 09 de novembro de 1961, no Palácio do Planalto, em evento com prefeitos e vereadores de todo o Brasil. 92 GOULART, João. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1962. Brasília: Congresso Nacional, 1962, p. XIV. 93 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 103. Discurso proferido em 10 de dezembro de 1961, no Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 37 ajudado a ―conquistar e ampliar nosso mercado interno, introduzindo e difundindo novos métodos‖, apontou: Entendemos, outrossim, que os investimentos devem ser selecionados no interesse conjugado do Brasil e de quem os aplica, rigorosamente garantidos, mas, igualmente, orientados, quanto à sua finalidade, no rumo do que convenha mais precipuamente à política do nosso desenvolvimento. E nesta ordem de considerações é claro que eu não seria leal nem sincero para com os senhores se dissesse que situo no mesmo plano de minha consideração, como brasileiro e como homem com as responsabilidades de governo, todas as hipóteses de investimento. A hipótese, por exemplo, de uma indústria produtora de quinquilharias ou qualquer atividade comercial meramente intermediária ou especulativa, em concorrência às nacionais, de um lado; e do outro, qualquer empreendimento econômico básico ou necessário em que a técnica e os recursos estrangeiros ocupem os espaços vazios da produção indispensável ao progresso, não devem representar a mesma coisa. /.../ Todos terão de compreender, porém, que o Brasil se reserva o direito de estabelecer suas próprias regras e, desde que oferece segurança, tranqüilidade e rentabilidade ao investimento estrangeiro, não abre mão de sua prerrogativa de encaminhá-lo em harmonia com os reclamos do seu desenvolvimento.94 Mesmo com a reivindicação desta prerrogativa sobre a entrada de capital estrangeiro, Goulart afirmou não existir ―qualquer atitude suspeita ou prevenida‖ contra a entrada de capital estrangeiro que se dispusesse a colaborar com a emancipação econômica brasileira. E quanto ao retorno de capitais, explica: Quanto ao retorno de capitais ou remessa de lucros para os países de origem, todos os senhores também devem ter presente que se trata de uma operação que envolve altos interesses nacionais e que, portanto, não pode processar-se desordenadamente. Temos a mais sincera preocupação em proporcionar garantias ao capital, para que ele continue conosco, se incorpore ao Brasil e aqui permaneça na batalha pelo desenvolvimento nacional. E é por isso que, em relação a esse problema, manifestei, na última mensagem que dirigi ao Congresso Nacional, a propósito da necessidade de um estatuto legal que defina e assegure o âmbito de atuação do capital estrangeiro, o meu apelo para que se encontrasse a justa solução, de interesse do Brasil. E tal solução será a consistente em evitar a xenofobia contra os recursos e os elementos de fora que colaboram honestamente em nossa vida econômica, impossibilitando, também, qualquer ação espoliativa contra a nossa economia, que aí está para ajudar e ser ajudada, mas que não pode mais ser colonizada.95 A posição expressa por Goulart aos empresários estrangeiros no Brasil foi mantida em seus discursos posteriores, inclusive em seus pronunciamentos em solo americano, onde se manifestou da seguinte forma: 94 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 33-34. Discurso proferido em 23 de março de 1962, no Rio de Janeiro. Grifos nossos. 95 Ibidem, pp. 34-35. Grifos nossos. 38 Legislar sobre o capital estrangeiro, como, agora, mais uma vez, pretendemos fazer no Brasil, não significa dificultar, embaraçar ou hostilizar as atraentes possibilidades de aplicação que em nossas áreas de atividade existem para esse capital. Ao Brasil só não interessa o capital predatório ou meramente especulador, porque este enriquece o seu investidor à custa dos sacrifícios do povo. A experiência de investimentos estrangeiros no Brasil vem do século passado e mostra de modo eloqüente que nunca, em nosso país, foram negados nem estímulos nem garantias a esses capitais.96 O esclarecimento do presidente João Goulart estava prestado. Restava saber se ele seria suficiente para tranqüilizar os investidores estrangeiros e, principalmente, os Estados Unidos, uma vez que, apesar das ponderações, o governo mantinha o combate ao ―capital predatório ou espoliativo‖. Outras situações, naquele mesmo ano, ofereceram oportunidade para o presidente ratificar seus argumentos. As mais marcantes foram: a inauguração das primeiras unidades geradoras da usina hidrelétrica de Três Marias (Minas Gerais), construída com participação de capital japonês; a assinatura do acordo entre a Companhia Vale do Rio Doce e a Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira e sua associada, S. A. Mineração Trindade, para exportação de minério de ferro; e a assinatura de contratos entre a Central Elétrica de Urubupungá e firmas italianas, para a construção da usina hidrelétrica de Três Lagoas, no Mato Grosso. Nessas ocasiões, Jango expressou seu aplauso ao capital estrangeiro ―bem intencionado‖, que teria contribuído com o esforço pela emancipação econômica e com o progresso nacional. Especificou ainda as áreas prioritárias de investimento externo: ―o capital estrangeiro que conosco venha colaborar no campo da siderurgia, no campo da energia e em outros setores de fundamental importância para a infra-estrutura básica de nosso desenvolvimento, esse capital há de ter sempre o apoio do Governo‖. Nesse sentido, prometeu ―uma justa e mesmo generosa retribuição‖ aos que desejassem colaborar na ―batalha pelo progresso nacional‖.97 Não obstante as diversas tentativas de Goulart em assegurar garantias ao capital estrangeiro ―colaborador‖, a iniciativa, por parte do governo, de distinguir capitais ―colaboradores‖ de capitais ―predatórios‖, e definir medidas que limitassem a atuação deste último, não agradava os setores ligados ao capital internacional. Tanto foi assim, que, mesmo conseguida a aprovação da lei de remessa de lucros pelo Congresso Nacional em fins de 1961 – instituindo o registro de capitais estrangeiros e das operações de transferência de rendimentos para o exterior, bem como limitando as remessas anuais de lucros para o exterior 96 Ibidem, p. 60. Discurso proferido no dia 6 de abril de 1962, em Nova York, no banquete oferecido pelas associações americano-brasileiras. Grifo nosso. 97 Ibidem, p. 215. 39 em 10% do investimento registrado –, Goulart não a sancionou de imediato; deixou que se cumprisse o prazo para que o próprio Legislativo a promulgasse, o que ocorreu em 3 de setembro de 1962. Segundo Luiz Alberto Moniz Bandeira, autor de um dos primeiros trabalhos publicados sobre o governo Jango, baseado em entrevista com o próprio Goulart, Quando, em fins de 1961, o Congresso aprovou a lei que limitava as remessas de lucros para o exterior, ele não quis sancioná-la, nem vetá-la. Embora lhe fosse favorável, o que jamais escondera, lavou as mãos como Pilatos, talvez para não incompatibilizar-se, logo no início do governo, com os EUA. Deixou o prazo constitucional expirar, a fim de que coubesse à Mesa do Congresso a função de promulgá-la. E não a regulamentou, principalmente porque imaginava utilizá-la como instrumento de negociação com os norte-americanos.98 Realmente, os anos de 1962 e 1963 foram de tentativas de negociação com os Estados Unidos, tanto no que diz respeito a investimentos e negociação de prazos para pagamento da dívida, quanto no tocante ao problema com as subsidiárias americanas atuantes nos serviços públicos brasileiros. No entanto, como veremos adiante, as conversações não alcançaram grande êxito. Protelar a sanção e a regulamentação da lei de remessa de lucros teria significado fraqueza, capitulação dos princípios nacionalistas ou traquejo político por parte de Goulart? Difícil responder. O certo é que João Goulart era alvo de desconfianças dos norte-americanos desde os tempos em que fora Ministro do Trabalho de Vargas,99 que o prazo para cumprimento de parte dos compromissos do país com a dívida externa se aproximava de seu termo e que a economia brasileira necessitava de novos investimentos. Goulart – que sempre fez questão de salientar sua preferência pela negociação, e não pelas rupturas – estava nos primeiros meses de seu governo e optou por deixar a lei seguir o curso mais longo até sua efetivação. No entanto, é claro que essa protelação não passaria despercebida; e acabou dando margens para que parte dos setores nacionalistas, que apoiaram a lei, visse sua atitude com desconfiança.100 98 MONIZ BANDEIRA, L. A. Op. cit., p. 114. Pouco depois de João Goulart assumir o Ministério do Trabalho do governo Getúlio Vargas, o influente jornal ―The New York Times‖ cogitou que o ministro pudesse ―utilizar sua influência para inclinar o movimento trabalhista brasileiro para o agrupamento de trabalhadores latino-americanos, controlados pelos peronistas‖ – o que ―seria uma traição ao seu país e a seu movimento trabalhista‖. GOULART, J. Resposta aos jornais e ao The New York Times. In: BRAGA, K. Op. cit. pp. 190-191. 100 Ver: TOLEDO, Caio Navarro de. O governo Goulart e o golpe de 64. São Paulo: Brasiliense, 2004, pp. 116120. E, do mesmo autor, ―A democracia populista golpeada‖, in: TOLEDO, C. N. (org.). 1964: visões críticas do golpe: democracia e reformas no populismo. Campinas: UNICAMP, 1997, pp. 36-37. Já para Marco Antonio Villa, ―O episódio serviu para demonstrar a dubiedade do governo‖. VILLA, Marco Antonio. Jango: um perfil (1945-1964). São Paulo: Globo, 2004, pp. 153-154. 99 40 Contudo, em 17 de janeiro de 1964, foi assinada a regulamentação da Lei 4131 que, enfim, tornava efetiva a disciplina das remessas de lucros para o exterior. Na ocasião, Goulart discursou, repetindo a diferenciação entre o capital estrangeiro ―colaborador‖ e ―desenvolvimentista‖ e o capital ―colonizador‖ e ―imperialista‖.101 O primeiro seria o que ―aqui se confundiu com os nossos próprios interesses‖; o que ―se dispõe a integrar-se na recuperação econômica dos países onde são investidos‖, ao qual cabe ―a notabilizante missão de associar-se ao esforço que estão desenvolvendo as nações pobres para superar e vencer, de uma vez por todas, as barreiras do subdesenvolvimento‖. A esse seriam concedidas ―condições tranqüilas de expansão, dentro do prisma de nossos interesses comuns‖. Já o segundo, por ter como ―único intuito ampliar seus lucros à custa do atraso e da estagnação do país‖ e embaraçar o ―progresso nacional‖, não mereceria ―qualquer contemplação‖; seria apenas um ―remanescente do século passado, que insiste em sobreviver num mundo que passou por profundas e radicais transformações‖. Nesse sentido, João Goulart considerou a lei como ―um passo no sentido de dotar o país dos elementos legais que libertem as forças potenciais necessárias a seu desenvolvimento‖. E a inclui num histórico conjunto de ―providências que têm como linha de ação a defesa e a segurança dos interesses da economia nacional‖, do qual fariam parte: a criação da Petrobrás, por Vargas; a criação da Eletrobrás; o decreto que estabelecera o monopólio das importações de petróleo, de dezembro de 1963; a criação da Empresa Brasileira de Telecomunicações (EMBRATEL); e o decreto, de novembro de 1963, que determinara o controle prévio dos preços de importação de matérias-primas para a indústria química e farmacêutica. Vê-se, nesta questão, que João Goulart, ainda que reafirmando a busca pela emancipação econômica nacional, e mesmo tomando algumas medidas concretas neste sentido, não cogitava nenhuma ruptura com o capital internacional, seja ele oriundo de investidores privados ou de empréstimos via instituições internacionais de crédito, como o Fundo Monetário Internacional – FMI. O presidente parece até mesmo manter uma visão otimista do capital estrangeiro, ao esperar que sua intenção cooperativa com o esforço nacional pela emancipação econômica e superação do subdesenvolvimento preponderasse sobre o interesse do lucro imediato; e que existisse, realmente, um ―prisma de interesses comuns‖ que permitisse acordos satisfatórios, tanto para o capital estrangeiro quanto para um 101 As citações que se seguem estão em: ―JG ressalta lei de remessa‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 18 jan. 1964. Discurso proferido em Petrópolis, Rio de Janeiro. 41 país que deseja atingir autonomia econômica e modificar sua posição na divisão internacional do trabalho. Este posicionamento de Goulart não foi diferente da posição que assumira, assim como tantos outros trabalhistas, ao longo de quase todo o governo de Juscelino Kubitschek – cuja política econômica optou por um ―desenvolvimento associado‖ e que, na verdade, se mostrou subordinado. A transferência de empresas nacionais para o controle estrangeiro, mediante compra ou associação, acompanhou o desenvolvimento industrial do país /.../ mas durante o governo Juscelino Kubitschek, se confundiu com o impulso da industrialização, da qual serviu como parâmetro, equacionada a economia brasileira segundo as conveniências de uma divisão internacional do trabalho. O Brasil cresceu, sem dúvida, mas apoiado na expansão da indústria de bens de consumo (automóveis, eletrodomésticos etc), comandada pelo capital estrangeiro, cujos países de origem procuravam a todo custo reservar-se a produção de bens de capital, a tecnologia e o nervo financeiro, como condição de sua preponderância.102 Com exceção das críticas realizadas por Goulart no fim do governo JK, apontando a necessidade de reformas e de que os encargos do desenvolvimento não recaíssem somente contra os mais pobres,103 não houve, por parte das forças nacionalistas um posicionamento mais contundente, contrário à política econômica adotada pelo governo de Kubitschek. Ao contrário, o surto de crescimento produzido pela expansão do setor industrial com as empresas multinacionais era visto como um grande passo rumo ao desenvolvimento do país. Na análise econômica feita por Octavio Ianni, ―a contradição entre a ideologia nacionalista e a política econômica internacionalizante‖ não teria se tornado aguda durante o governo JK, por dois motivos: ―porque as forças políticas nacionalistas não haviam elaborado uma interpretação objetiva das condições e possibilidades da economia brasileira, enquanto economia nacional‖ e ―porque a política econômica ditadas pelas estruturas de dependência e as relações de tipo imperialista estavam produzindo um surto notável de desenvolvimento econômico‖.104 A própria fala de João Goulart, ao assumir seu segundo mandato como vice-presidente da república, em 01 de fevereiro de 1961, parece dar base à análise de Ianni: ―É certo que o esforço realizado para vencer, em curto prazo, as etapas do desenvolvimento, custou ao país pesados sacrifícios, mas estes se acham sobejamente justificados pela importância dos 102 MONIZ BANDEIRA, L. A. Cartéis e desnacionalização (a experiência brasileira: 1964-1974). Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1975, pp. 12-13. 103 MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 60. 104 IANNI, Octavio. Estado e Planejamento Econômico no Brasil (1930-1970). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 186. 42 resultados alcançados‖.105 No entanto, segundo documento citado por Moniz Bandeira, em ―O Governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil (1961-1964)‖ – uma carta ao senador Benedito Valadares, na época presidente do PSD – João Goulart, já no ano de 1959, manifestara seu temor de que a economia brasileira estivesse ―caindo progressivamente na dependência de interesses internacionais, sob a pressão direta de companhias estrangeiras ou de instituições por elas controladas, como o FMI e as agências oficiais de crédito‖; alertando ainda que seria ―sabido que os grandes interesses não só se colocam muitas vezes em antagonismo com os interesses superiores do povo, como também procuram conquistar a própria máquina administrativa do Estado para assumir as rédeas de sua direção econômica‖.106 Sendo assim, João Goulart já vislumbrava as consequências que se somavam aos ―pesados sacrifícios‖ já sentidos pela população. Só não imaginava que seria ele o homem à frente do governo na ocasião de enfrentar tais consequências, que acabaram por impor grandes dificuldades a sua tentativa de reorientação da política econômica, no sentido de construir uma estrutura que permitisse a autonomia de decisões.107 Vê-se, portanto, que, apesar de conhecer os problemas que acompanham os investimentos estrangeiros, Goulart também sabia que o país não tinha condições de abrir mão dele. A lei da remessa de lucros seria, então, uma tentativa de continuar a receber esses investimentos, mantendo nas mãos da orientação nacionalista do Estado ―as rédeas de sua direção econômica‖. O breve tempo de vida da lei 4131, regulamentada em janeiro de 1964 e revogada, no que tinha de essencial, em meados do mesmo ano pelo governo militar de Castelo Branco, indicou a inviabilidade desta conciliação. 1.2.2. Reformas de Base Como já mencionado em item anterior, desde fins do governo JK, o tema das reformas passa a ser abordado nos pronunciamentos de João Goulart. No ano de 1959, portanto ainda como vice do presidente Kubitschek, Goulart se pronunciara nos seguintes termos: Esse povo pode e sabe suportar privações para que o país se mantenha independente e se desenvolva, mas é necessário que esse sacrifício não 105 Discurso pronunciado pelo vice-presidente da República João Goulart (PTB-RS), como presidente do Senado, em 1º de fevereiro de 1961, 41ª Legislatura, 3ª Sessão Legislativa. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/noticias/pronunciamento-de-jango-defende-reformas-de-base.aspx>. Acesso em 31 de dezembro de 2009. 106 MONIZ BANDEIRA, O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 60. 107 IANNI, Octavio. Estado e Planejamento Econômico no Brasil (1930-1970), p. 175. 43 recaia apenas sobre os menos afortunados, mas sobre todas as classes, proporcionalmente, e que ao mesmo tempo se adotem medidas de reforma social tendentes a impedir que uma pequena minoria, nadando em luxo e na ostentação, continue afrontando as privações e a miséria de milhares e milhares de brasileiros.108 A reivindicação de reformas de base aparece de forma mais explícita, mas ainda bastante geral, em discurso realizado no Senado, em 1º de fevereiro de 1961 – momento em que João Goulart ocupa a vice-presidência pela segunda vez, agora no governo Jânio Quadros, e antes de ser aventada a possibilidade de chegar à presidência: A técnica moderna já se revela capaz de eliminar não apenas os grandes males físicos, mas também os males sociais, dos quais o maior de todos é a miséria. E para isso são necessárias reformas de base na estrutura econômico-social do País, pelas quais temos reclamado reiteradas vezes, e que dependem de esforço conjunto do Poder Legislativo e da administração pública.109 Vê-se que, neste primeiro momento, as reformas de base são apontadas como uma necessidade para a eliminação da miséria, ―o maior de todos os males sociais‖; seriam medidas que pudessem diminuir o enorme abismo social entre uma minoria privilegiada e a maioria da população brasileira. Já como presidente, João Goulart seguirá o que preconizara anteriormente; e, menos de duas semanas após sua posse, discursando em comemoração ao aniversário da Constituição, mais uma vez se coloca a favor de implementação de reformas. Visto sua posse ter se efetivado sob a condição da emenda parlamentarista, Goulart deposita no Congresso Nacional sua expectativa de que fossem efetivadas, quando necessárias, as regulamentações constitucionais que equacionassem, de maneira prudente, porém segura, problemas como o da reforma agrária, o dos abusos do poder econômico, o da reforma bancária, o das novas diretrizes educacionais, o da disciplina do capital estrangeiro, distinguindo e apoiando o que representa estímulo ao nosso desenvolvimento e combatendo o que espolia nossas riquezas.110 Embora as chamadas reformas de base constituam uma série de reformas distintas, mas coerentes em seu conjunto – reforma agrária, reforma administrativa, reforma bancária, reforma tributária, reforma cambial, reforma eleitoral, reforma urbana e reforma universitária 108 MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 60. Citando documento datilografado integrante do arquivo pessoal de João Goulart. 109 Discurso pronunciado pelo vice-presidente da República João Goulart (PTB-RS), como presidente do Senado, em 1º de fevereiro de 1961, 41ª Legislatura, 3ª Sessão Legislativa. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/noticias/pronunciamento-de-jango-defende-reformas-de-base.aspx>. Acesso em 31 de dezembro de 2009. Grifo nosso. 110 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 18. 44 (ou educacional) –, com exceção da reforma agrária, em poucas oportunidades, o presidente Jango abordará em seus discursos as demais reformas de modo detalhado. Ao longo de todo o seu governo – principalmente em sua fase inicial, parlamentarista –, o apelo pela implementação de reformas aparecerá muitas vezes em seus discursos como uma necessidade para a manutenção da ―paz social‖. Contudo, para que tais reformas fossem realmente efetivadas, seria também indispensável a existência de ―paz política‖. Indicativa da divisão dentro do grupo político acerca das propostas reformistas, a relação entre ―paz política‖ e ―paz social‖ será constante nos discursos de João Goulart. No discurso que realiza na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, ainda no mês de sua posse – setembro de 1961 – o presidente, primeiramente, aponta que, tanto a ―paz política‖ quanto a ―paz social‖ constituem condição para a solução dos problemas de base do país e, consequentemente, para seu desenvolvimento. Logo em seguida, coloca a ―paz política‖ como condição para a obtenção da ―paz social‖, através da efetivação de providências imediatas para a solução dos problemas sociais (identificados por ele com o subdesenvolvimento). Dessa forma, a ―paz política‖ deveria servir à causa social e ao progresso do país. Está na consciência de todos que o Brasil se lançou decisivamente à solução das questões fundamentais do seu desenvolvimento. Está igualmente na consciência de todos que o encaminhamento e a solução dos nossos problemas de base demandam paz política e social /.../. A paz política, que precisamos manter e consolidar, constitui, de início, a condição para que a paz fundada na justiça social mostre sua face a todos os brasileiros. A pobreza das populações rurais, as reivindicações dos trabalhadores urbanos, a carestia da vida, a defeituosa estruturação das relações econômicas e sociais, o combate, enfim, ao subdesenvolvimento, constituem, entre tantos outros, problemas da maior gravidade, que exigem providências imediatas. A paz política deve servir à causa da paz social, à causa do progresso e das melhorias das condições de vida da população.111 Em poucas palavras, o raciocínio exposto neste e em tantos outros discursos de João Goulart é o de que a ―paz política‖ possibilitaria a concretização de reformas que, por sua vez, garantiriam a ―paz social‖ e o desenvolvimento econômico do país. Estes argumentos são reiterados no já referido discurso, proferido no mês de outubro, na sede da revista O Cruzeiro. Em outras ocasiões, o foco se desloca da relação entre ―paz política‖ e ―paz social‖ para a relação entre reformas e ―paz interna‖. Apesar de manter a relação entre ―paz social‖ e desenvolvimento econômico, agora as medidas de reforma social aparecem como condição para a manutenção da ―paz interna‖. Se no discurso anterior a paz política se referia às 111 Ibidem, p. 25. Discurso proferido em 28 de setembro de 1961. 45 relações no interior do grupo dos políticos, quando passa a falar em ―paz interna‖, Goulart se refere à harmonia (ou conflito) entre as classes. Sei também, Senhores Vereadores, como são sentidas nesta Câmara as dificuldades e as angústias do povo, especialmente em face da elevação constante do custo de vida. Este é o mais sério problema nacional que temos a enfrentar — o que mais preocupa o povo — e, por isso, tudo faremos para resolvê-lo com a urgência necessária, já que pode levar-nos a conseqüências imprevisíveis, porque todos sabemos que as medidas apenas de superfície não atenderão aos reclamos mais sentidos das populações. O Governo, sobretudo o Conselho de Ministros, através de providências a curto prazo, está procurando melhorar essa situação. Mas as medidas reclamadas pelo povo nas praças públicas, reclamadas pelos sindicatos nas suas sedes, reclamadas pelas donas de casa nos seus lares — estas são medidas de profundidade, que atinjam a estrutura básica do País, para, através delas, proporcionarmos melhores condições de vida aos brasileiros, com a participação de todos nas riquezas nacionais. Somente através de medidas corajosas poderemos tirar dos que têm muito, para entregar aos que nada têm, a fim de criarmos um clima de paz e tranqüilidade, tão indispensável ao desenvolvimento do País. E é preciso que as forças vivas da Nação compreendam a imperiosidade dessas reformas, em seu próprio benefício.112 Não tenhamos, porém, senhores congressistas, maiores ilusões: a paz interna continuará exposta a intermitentes ameaças de aventurismos, se não concentrarmos todos os nossos esforços para que melhores se tornem as condições de vida do povo brasileiro, para que sejam cada vez mais reduzidos os tremendos desníveis que separam sempre, e cada vez mais perigosamente, a imensa maioria do nosso povo de uns poucos grupos privilegiados. Os exemplos que se nos oferecem a respeito do que afirmo estão hoje à porta da nossa própria casa, eclodindo cada vez mais explosivamente nesta nossa sofrida e espoliada América Latina. Provam eles que não há reforma política ou revisão institucional consolidadora da paz interna sem que tal transição seja acompanhada de uma democracia econômica, sem que a redistribuição das riquezas nacionais se efetue de forma crescentemente equitativa, sem que se elimine de vez o conceito anticristão de que é aos mais pobres que deve caber a maior carga de sacrifícios na libertação dos nossos povos da angústia do subdesenvolvimento. /.../Ainda agora, documento fundamental da nossa época, a Encíclica ―Mater et Magistra‖ alerta o mundo para a urgência de novo equacionamento dos males sociais que afligem extensas áreas do Universo, especialmente a América do Sul, ameaçando, pela violência dos seus efeitos, as aspirações de uma vida melhor e as liberdades essenciais ao Homem. Sinto-me à vontade, senhores congressistas, para alertar a Nação sobre a necessidade inadiável de mobilizar todas as suas forças, no sentido de acelerar essas reformas. Amplia-se cada vez mais, no seio das próprias classes dirigentes, a área dos que aceitam essa realidade, reconhecendo que, se coube ao povo, até agora, a maior parcela de sacrifícios para que o Brasil 112 Ibidem, pp. 50-51. Discurso proferido em 25 de outubro de 1961, na Câmara Municipal de Belém. Grifos nossos. 46 rompa as barreiras do subdesenvolvimento, essa contribuição já atingiu os limites do suportável.113 Assim, se a ―paz política‖ aparece como condição para a obtenção da ―paz social‖, esta última se identifica com a ―paz interna‖; e seria condição para o desenvolvimento do país e para a manutenção da ordem democrática. Suas constantes manifestações a favor de reformas e do atendimento de reivindicações populares são acompanhadas, em diferentes discursos, de reiteradas afirmações de defesa da ordem democrática e da fraternidade cristã. Quando preconizamos reformas e lutamos para que o País se ajuste à verdadeira realidade, não estamos pregando senão a ordem e o respeito ao regime democrático, pois não acredito que nenhuma democracia possa sobreviver sobre a miséria de um povo. Acredito, sim, que através de uma melhor distribuição das riquezas, com a reformulação de problemas de interesse fundamental para o povo, ou seja, com uma melhor estruturação do nosso sistema econômico-social, poderemos assegurar paz, tranqüilidade e harmonia a todos os brasileiros — desejo máximo de toda a Nação.114 A nossa luta comum condiz com os sentimentos cristãos e pacíficos do nosso povo, constituindo também o anseio de todas as forças progressistas, que necessitam da harmonia social para continuar no seu patriótico esforço, visando ao desenvolvimento nacional. Ninguém pode desejar o agravamento dos problemas sociais e muito menos a intranqüilidade do povo, que conduzem à angústia, que conduzem ao desespero e que levam quase sempre à revolta e imprevisão.115 Interessante manifestação de João Goulart nesse sentido será seu discurso aos portuários na cidade de Santos, no dia 13 de maio de 1962: O que interessa ao Brasil são as reformas que nos tragam tranqüilidade e paz social, e aqui repito, sob o testemunho insuspeito dos trabalhadores, que desejamos verdadeiramente essa paz e essa tranqüilidade, Estou convencido de que nenhum país terá paz social se repousar sobre a miséria das classes operárias e a infelicidade dos mais humildes. Não sei se aqueles que combatem as reformas desejam realmente a paz social: Deus e o tempo se encarregarão de demonstrá-lo.116 Em outra oportunidade, reforçando a ideia de que as reformas, ao contrário de incentivar revoltas, contribuiriam para um ―clima de paz e entendimento‖ essencial ao futuro do país, Jango afirma: ―Se desejássemos provocar a rebelião, não estaríamos defendendo 113 Ibidem, pp. 63-64. Discurso proferido em 30 de outubro de 1961, em Porto Alegre, na solenidade de encerramento do II Congresso das Assembleias Legislativas do Brasil. Grifos nossos. 114 Ibidem, p. 75. Discurso proferido em 9 de novembro de 1961, em Brasília. Grifos nossos. 115 Ibidem, p. 80. Discurso, já citado, proferido na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, em Belo Horizonte, no dia 17 de novembro de 1961. 116 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 88-89. Discurso proferido na inauguração da nova sede do Sindicato dos Operários nos Serviços Portuários de Santos, São Vicente e Guarujá (SP). 47 reformas para evitá-la, para melhor atender à estrutura social e econômica do País, reformas através das quais conquistaremos a justiça social que desejamos‖.117 Até aqui, vimos o apelo das reformas como medidas de conteúdo principalmente social, amenizadoras das desigualdades; e que, por isso, garantiriam maior tranqüilidade ao país. No entanto, veremos também que, no discurso de João Goulart, essas reformas estão, além disso, vinculadas à sua ideia de desenvolvimento do país. Para ele, as reformas fariam ―do Brasil uma nação forte e independente‖,118 na medida em que atenderiam ao imperativo de se ―reformular certos conceitos que entravam o livre desenvolvimento das nossas forças econômicas, constrangem e desfiguram a realidade social‖.119 No entanto, quais seriam, para João Goulart, os entraves ao desenvolvimento? Em discurso na solenidade de instalação da Eletrobrás, proferido no Rio de Janeiro, em 11 de junho de 1962, Goulart aponta: Estamos, na verdade, atravessando uma fase difícil do processo de desenvolvimento, tanto vale dizer, do processo em que muitas transformações estruturais de nossa organização social e econômica se acham em curso. No panorama de uma sociedade, como a brasileira, em que a terra, o capital e o trabalho se encontram sob a pressão de problemas de crescimento, de criação de melhores níveis de vida, de atendimento de exigências materiais e culturais, relativas a uma população em rápida expansão, deparamos sinais incontestáveis de que uma grande obra de reforma se apresenta diante de nós, desafiando a capacidade dos governantes.120 Para o presidente João Goulart, mais do que medidas superficiais, seriam necessárias reformas estruturais que permitissem a correção os desequilíbrios sociais e assegurassem a emancipação econômica do país.121 Ao longo da Mensagem ao Congresso Nacional de 1963, Goulart afirma que as medidas submetidas à apreciação do Congresso ―sob as denominações genéricas de reformas agrária, urbana, tributária, bancária e administrativa‖ têm o objetivo de ―adaptar o nosso quadro institucional aos reclamos de um desenvolvimento econômico orientado por critérios de Justiça Social‖.122 E, em defesa das reformas aponta: A correção das distorções e desequilíbrios, o fortalecimento da estrutura da economia, o aperfeiçoamento da máquina administrativa e o afinamento dos instrumentos diretos ou indiretos de orientação dos investimentos, que 117 Ibidem, p. 121. Grifo nosso. Discurso proferido em João Pessoa, no dia 29 de julho de 1962, perante concentração popular. 118 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 58. Discurso, já citado, proferido em Porto Alegre, em 30 de outubro de 1961. 119 Ibidem, p. 124. Discurso de 31 de dezembro de 1961, transmitido pela rede de radiodifusão de ―A Voz do Brasil‖, ao ensejo da passagem do ano. 120 Ibidem, pp. 100-101. Grifo nosso. 121 ―JG dá entrevista admitindo coexistência com comunistas‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 17 fev. 1963. 122 GOULART, João. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1963. Brasília: Congresso Nacional, 1963, pp. 9-10. 48 resultarão da execução do plano e de introdução das reformas de base, permitirão, inclusive, que, a partir de 1966, se contemple a possibilidade de elevar a taxa anual de crescimento da economia para 8%.123 O fato de Goulart colocar as reformas de base como condição e estímulo ao desenvolvimento econômico nacional, ao mesmo tempo em que aponta que este desenvolvimento ―será orientado por critérios de justiça social‖, decorre de que um dos principais objetivos de suas reformas era o da ampliação e fortalecimento do mercado interno. Só a cegueira, só a incompreensão podem pretender o desenvolvimento e o progresso dentro de estruturas inteiramente superadas, que não atendem mais aos mínimos reclamos de justiça e paz social. /.../ No instante em que através das reformas, pudermos melhorar o poder aquisitivo do povo brasileiro, a própria indústria nacional será a grande beneficiada.124 Enfrentamos, hoje, problemas resultantes da capacidade ociosa de setores da nossa produção, que só poderão ser resolvidos com a expansão do mercado interno. Este constitui um dos objetivos fundamentais das reformas de base, pois, somente através delas, poderemos transformar a grande maioria da população brasileira, que permanece marginalizada, em elementos ativos do processo econômico.125 Dessa forma, o programa reformista procurava atender tanto à demanda de parte do empresariado por maior ritmo do crescimento econômico, quanto às aspirações populares de aumento do seu poder aquisitivo. Em poucas palavras, seu objetivo era simplesmente aliar desenvolvimento econômico com progresso social. Vimos, portanto, quais são os objetivos gerais do conjunto das chamadas reformas de base: diminuir a desigualdade social, a partir de uma melhor distribuição das riquezas, mantendo, assim a ―paz social‖; e eliminar os entraves do desenvolvimento econômico do país. Mas quais seriam, concretamente, as medidas – até aqui tratadas genericamente como reformas de base – defendidas por Goulart para atingir esses objetivos? O programa reformista era constituído pelas seguintes medidas: reforma agrária; reforma tributária; reforma bancária; reforma cambial; reforma administrativa; reforma eleitoral; reforma urbana; e reforma universitária. Justificando a necessidade das reformas de 123 Ibidem, p. 22. ―JG a brigadeiros: reformas de base‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 31 jan. 1964. Grifos nossos. Transcrição de discurso proferido em jantar oferecido pelo presidente no Palácio Rio Negro, Petrópolis, aos brigadeiros recentemente promovidos na pasta da Aeronáutica. 125 ―JG anuncia reforma do sistema cambial‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 20 fev. 1964. Grifo nosso. Transcrição de pronunciamento realizado através de cadeia de rádio e televisão, no dia anterior à publicação. 124 49 base naquela conjuntura, Roland Corbisier126 explica, apontando cada uma das contradições que demandariam as respectivas reformas: o desenvolvimento, tal como vinha sendo realizado, procurando privilegiar a iniciativa particular e o capital estrangeiro, agravou todos os desequilíbrios internos, intensificando as contradições entre o processo eleitoral, corrompido pelo poder econômico, e as expectativas e reivindicações das massas populares; entre as instituições políticas e administrativas e as metas do desenvolvimento; entre a necessidade de aumentar a arrecadação, a fim de dotar o Poder Público dos recursos necessários à realização das próprias reformas, e as limitações de um sistema tributário discriminatório e injusto; entre regiões do País e setores da economia, em pleno desenvolvimento, como a Região Centro-Sul, e outros, como a Região Nordeste e o setor agrícola, estagnados no arcaísmo de suas estruturas feudais e escravocratas; entre o crescimento das populações urbanas e a escassez e a carestia dos imóveis residenciais; entre a necessidade de estimular a produção, pela democratização e a nacionalização do crédito, e a limitação dos favores bancários aos grupos privilegiados e às regiões que menos precisam desses favores; entre a necessidade de poupar cambiais, para aplicá-las nas metas prioritárias do desenvolvimento, e o esbanjamento, a dilapidação das moedas fortes na importação do luxuoso e do supérfluo; entre as exigências do processo de industrialização e um ensino aristocrático e livresco, que não proporciona aos educandos o conhecimento dos problemas nacionais, nem os habilita ao trabalho e à solução desses problemas.127 Sobre esta situação de ―contrastes‖ na sociedade brasileira e a necessidade de transformações para combatê-los, Jango se manifesta nos seguintes termos na Mensagem ao Congresso, já em 1964: Os contrastes mais agudos que a sociedade brasileira apresenta, na fase atual do seu desenvolvimento, são de natureza estrutural, e, em virtude deles, a imensa maioria da nossa população é sacrificada, quer no relativo à justa e equânime distribuição da renda nacional, quer no referente à sua participação na vida política do País e nas oportunidades de trabalho e de educação que o desenvolvimento a todos deve e pode oferecer. Por isso mesmo que estruturais, estas contradições só poderão ser resolvidas mediante reformas capazes de substituir as estruturas existentes por outras compatíveis com o progresso realizado e com a conquista dos novos níveis de desenvolvimento e bem-estar. /.../ Consciente das distorções verificadas ao longo do nosso processo de transformação social e da necessidade imperiosa de reformas estruturais e institucionais, assumi a responsabilidade de comandar a luta pela renovação pacífica da sociedade brasileira, como encargo primeiro e responsabilidade mais alta da investidura com que me honrou a vontade dos meus concidadãos. Optei pelo combate aos privilégios e pela iniciativa das reformas de base, por força das quais se realizará a substituição de estruturas 126 Roland Corbisier atuou como intelectual integrante do Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB – e deputado federal pelo PTB entre os anos de 1963 e 1964. 127 CORBISIER, Roland. ―Lógica e cronologia das reformas‖. In: MUNTEAL, O.; VENTAPANE, J.; FREIXO, A. (Org.) O Brasil de João Goulart: um projeto de nação. Rio de Janeiro: PUC-RIO / Contraponto, 2006, pp. 147-148. 50 e instituições inadequadas à tranqüila continuidade do nosso progresso e à instauração de uma convivência democrática plena e efetiva.128 Uma das primeiras ocasiões em que o presidente se refere explicitamente às várias reformas que comporiam o conjunto das reformas de base será na cerimônia de posse do economista Celso Furtado como ―Ministro sem Pasta para o Planejamento‖: É indispensável reformar a nossa economia agrária. E indispensável aparelhar o Governo com os instrumentos adequados para que possa governar em benefício do povo, reformando o sistema fiscal, o sistema bancário e modernizando, enfim, a máquina administrativa. Devemos construir um sistema educacional à altura das necessidades de uma nação que caminha, no presente decênio, para os 100 milhões de habitantes. Precisamos transformar os frutos da nossa industrialização em bem-estar para a maioria da população brasileira, dando-lhe melhores condições sanitárias e de habitação e pleno acesso à educação básica.129 Como já foi dito em outra oportunidade, com exceção da reforma agrária – a mais debatida e à qual será dedicado um item exclusivo neste texto –, em poucas oportunidades, o presidente João Goulart trata de cada uma das reformas. Elas aparecerão somente em alguns discursos públicos, de forma bastante geral, e, com mais detalhes, nas mensagens anuais encaminhadas ao Congresso Nacional – principalmente as dos anos de 1963 e 1964. Buscaremos, aqui, destacar os principais argumentos de Goulart sobre cada uma das reformas. Sobre a reforma eleitoral, que pretendia estender o voto aos analfabetos e conceder elegibilidade aos sargentos, Goulart argumentou: A reforma eleitoral impõe-se para tornar cada vez mais autêntica a voz do povo no Parlamento, evitando-se injunções estranhas e inadmissíveis — demagógicas ou financeiras — na formação das assembléias populares.130 São inadmissíveis, na composição do corpo eleitoral, discriminações contra os militares, como as praças e os sargentos, chamados ao dever essencial de defender a Pátria e assegurar a ordem constitucional, mas privados, uns, do elementar direito do voto, outros da elegibilidade para qualquer mandato. Outra discriminação inaceitável atinge milhões de cidadãos que, embora investidos de todas as responsabilidades civis, obrigados, portanto, a conhecer e a cumprir a lei e integrados na força de trabalho com seu contingente mais numeroso, são impedidos de votar, por serem analfabetos. Considerando-se que mais da metade da população brasileira é constituída de iletrados, pode-se avaliar o peso dessa injustiça, que leva à conclusão 128 GOULART, João. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1964. Brasília: Congresso Nacional, 1964, pp. VI-VII. 129 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 157-158. Discurso proferido em 27 de setembro de 1962, no Palácio do Planalto. 130 Ibidem, p. 78. Discurso proferido no dia l de maio de 1962, em Volta Redonda (RJ), nas comemorações do Dia do Trabalho. 51 irrecusável de que o atual quadro de eleitores já não representa a Nação, urgindo sua ampliação para salvaguarda da democracia brasileira.131 Já em defesa da reforma tributária, que buscava um aumento de arrecadação do Estado, aumentando a carga sobre os impostos diretos (como o imposto de renda) e aliviando a carga tributária sobre os produtos e serviços (impostos indiretos), João Goulart afirmava: Torna-se também premente a reforma tributária, que permita ao Governo ir buscar recursos nas mãos daqueles a quem o processo inflacionário favorece com lucros desmedidos, e aplicá-los em benefício da Nação, corrigindo desigualdades excessivas e enfrentando as grandes dificuldades orçamentárias, sem necessidade de recorrer a emissões ou outros encargos que importem em novos sacrifícios para o povo.132 Quando falo, também, em reforma tributária, não me refiro apenas a providências para cobrir déficits orçamentários. Em países mais adiantados, constantemente citados por homens que ainda não admitiram a necessidade de reformas de profundidade, o imposto de renda é pago numa proporção que atinge até 90% de certos lucros. No entanto, aqui no Brasil, desgraçadamente, os que mais lucros obtêm são, muitas vezes, os que menos recolhem aos cofres públicos. É necessário, portanto, que se faça uma revisão total na sistemática arrecadadora do País, para que todos contribuam de conformidade com seus lucros, especialmente os que mais se beneficiam com a inflação.133 Além dos pontos já presentes nos discursos citados acima, Goulart procura ressaltar a importância da reforma tributária para a ―restauração das finanças públicas a um nível de equilíbrio estável‖ e a necessidade de uma ―reforma drástica e profunda do sistema e da máquina arrecadadora, de modo a evitar a evasão fiscal‖.134 Lembra, ainda, que o imposto não deve ser considerado ―apenas como fundo da receita pública, mas primordialmente, como instrumento para a realização das reformas e como estímulo ao desenvolvimento‖.135 Também apontada por Goulart como uma das reformas ―imperiosas‖ está a reforma bancária – fundamental, segundo o presidente, para estimular o desenvolvimento econômico do país. O sistema bancário precisa ser atualizado para assegurar uma organização de crédito e financiamento capaz de alimentar o progresso econômico do País. A indústria, a agricultura e o comércio necessitam de crédito largamente 131 GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1964, p. LV. 132 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 78. 133 Ibidem, p. 90. 134 GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1962, p. 35. 135 GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1963, p. 12. 52 difundido, a juros normais, para se desenvolverem e melhor contribuírem para o aumento da produção nacional.136 Tal reforma teria como objetivos: democratização e seletividade do crédito (de acordo com as necessidades do desenvolvimento), com subordinação da rede bancária particular a um sistema oficial de crédito. O controle exercido pelo órgão central seria, de acordo com Goulart, no sentido de conter o fluxo inflacionário. Na presente conjuntura nacional, impõe-se com igual imperatividade a Reforma Bancária. A inexistência de um autêntico sistema de Banco Central no País tem aumentado as dificuldades do Governo para disciplinar o fluxo monetário e controlar a inflação. Salvar o País das conseqüências imprevisíveis de uma hiperinflação, dotá-lo de reformas estruturais que libertem a plenitude das forças potenciais de seu desenvolvimento, aprimorar e fortalecer o regime democrático, são as maiores tarefas que nos cabe cumprir em 1963.137 Além de obter maior controle sobre a inflação, um órgão centralizado como o Banco Central também deveria, segundo Goulart, selecionar e distribuir o crédito de forma a impulsionar o desenvolvimento econômico. De há muito o País reivindica, por intermédio de suas forças econômicas, a implantação de um órgão autêntico e centralizado, com autonomia de decisões, para a direção da política monetária e bancária, que disponha de maior força coercitiva para o controle de processos inflacionários. Foi o que visou atender a proposta do Poder Executivo enviada ao Congresso, ao mesmo tempo em que procura dotar o Governo de condições que melhor lhe permitam selecionar o crédito para o impulso das verdadeiras forças de produção.138 Contudo, mesmo indicando que o objetivo da reforma bancária seria ―dotar o país dos instrumentos imprescindíveis à efetiva execução das políticas monetárias, creditícia e cambial‖, desobstruindo ―o pleno exercício das funções do poder público na orientação do processo do desenvolvimento‖ – o que configura maior controle por parte do Estado –, o texto do anteprojeto da reforma explicita certa cautela com as possíveis repercussões no sistema bancário: Restringe-se o anteprojeto aos aspectos gerais da política monetária e creditícia, não dispondo, por isso mesmo, sobre a especialização das instituições de crédito de natureza bancária. Parece temerário, no atual estágio de desenvolvimento do sistema bancário, delimitar as atividades 136 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 77-78. GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1963, p. 12. 138 GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1964, pp. XXXVIII-XXXIX. 137 53 desses organismos, posto que isso poderia afetar sua estabilidade financeira.139 De menor repercussão, mas sempre referida nas mensagens encaminhadas pelo presidente ao Congresso Nacional, a reforma administrativa teria como objetivo modificar a máquina administrativa do Estado, ―simplificando e racionalizando sua organização‖, provendo-a de técnicos qualificados e recursos capazes de efetivar planos de desenvolvimento.140 Segundo Jango, a reforma administrativa seria imprescindível para libertar o poder executivo ―das velhas amarras da organização burocrática tradicional‖ e possibilitar ao Estado ―maior dinamismo e eficiência‖ no desempenho de suas funções.141 Para ele, A máquina administrativa do Estado não acompanhou as exigências do crescimento nacional. Numa fase em que o Poder Público assume novas e múltiplas funções, em grande parte de caráter técnico, assistimos ao abandono progressivo do sistema do mérito na seleção dos servidores públicos, fonte de desestímulo à formação de quadros de pessoal especializado e de desarticulação de importantes setores da Administração. A Reforma Administrativa é da mais absoluta urgência, pois dela depende o Governo para levar a bom termo a efetiva execução das demais reformas e para desempenhar a sua tarefa de elemento propulsor do desenvolvimento nacional.142 De maior apelo popular, a reforma urbana objetivava sanar o problema habitacional nos centro urbanos. Esta reforma foi destacada entre os atos do executivo que seriam apoiados pela Frente Única de Apoio às Reformas de Base – articulada, principalmente, por San Tiago Dantas, no início de 1964, numa tentativa de sustentação do governo Goulart pelos parlamentares. De acordo com o programa reformista, mostrava-se necessário: 1. Levantamento imediato, a começar pelos grandes centros urbanos, das necessidades de habitação das classes populares e estabelecimento, para cada uma delas, em cooperação com os poderes competentes, de Planos de Reforma Urbana, que proporcionem a cada família um teto próprio, adquirido com o salário ou vencimento, e impeçam a especulação imobiliária e o enriquecimento sem causa de proprietários, à custa de obras e melhoramentos públicos. 2. Estímulo, sem privilégios cambiais ou monopólios de fato, à produção em série de casas populares, para atendimento a baixo preço e com lucros controlados, dos planos habitacionais aprovados pelo Governo.143 139 ―Enviado ao Congresso anteprojeto de reforma bancária‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 24 mar. 1963. CORBISIER, R. Op. cit., pp. 153-154. 141 GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1962, pp. XI-XII. 142 GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1963, pp. 11-12. 143 ―Goulart lançou frente de apoio às reformas de base‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 06 fev. 1964. 140 54 No mês seguinte à publicação do programa acima citado – que foi, também, o último mês do governo de João Goulart – a reforma urbana constituiu um dos temas do comício da Central do Brasil, no dia 13 de março. Nele, Jango anunciou que assinaria, como de fato fez logo no dia seguinte, o decreto que regulamentaria o preço dos aluguéis. O decreto nº 53.702, de 14 de março de 1964, previa o encaminhamento de estudos para desapropriação, por utilidade social, de imóveis desocupados e tabelou o preço dos aluguéis da seguinte forma: aluguel de um quarto: até 1/5 do salário mínimo local; aluguel de habilitação (sic) de quarto e cozinha ou quitinete: até 2/5 do salário mínimo local; aluguel de habilitação (sic) de sala, um quarto e cozinha ou quitinete: até 3/5 do salário mínimo local; aluguel de habilitação (sic) de sala, um quarto, cozinha e dependências de empregado: até 4/5 do salário mínimo local; aluguel de habitação de sala e dois quartos, com serviço de empregados: ate 1 salário mínimo local; aluguel de habitação de sala, 3 quartos com serviço de empregados: até 1 e 1/2 salário mínimo local; aluguel de mobiliário completo: até 20% do valor do aluguel mensal do apartamento.144 Pouco presente nos discursos anteriores de João Goulart, a reforma cambial, assim como a urbana, ganhou destaque já na fase final do governo, com a Instrução nº 263 da Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC), através da qual, segundo o economista Pedro Cezar Dutra Fonseca, Goulart recorreu-se a uma política cambial bastante heterodoxa, um misto de câmbio fixo para produtos essenciais – como café e açúcar, nas exportações, e petróleo, trigo, papel de imprensa e equipamentos para a PETROBRAS, nas importações –, em que o dólar foi mantido no patamar oficial anterior, coexistindo com câmbio flutuante para os demais produtos.145 Em pronunciamento através de cadeia de rádio e televisão, João Goulart colocou a Instrução nº 263 como a primeira de uma série de medidas ―tendentes a sanear as finanças internas e a resguardar o processo de desenvolvimento do país‖. Segundo o presidente, A reforma elimina o inconveniente de deterioração progressiva da remuneração cambial dos produtos exportados em relação aos custos internos crescentes. Ao mesmo tempo, atende à preocupação de evitar impacto inflacionário na economia e agravamento do custo de vida, ao manter uma taxa especial para determinada gama de produtos importados. /.../ Assegura-se ainda com a reforma, o monopólio para o Banco do Brasil das divisas produzidas pelo café e açúcar, produtos que vêm obtendo boa 144 Decreto nº 53.702, de 14 de Março de 1964. Publicado originalmente em: Diário Oficial da União - Seção 1 16/03/1964, p. 2491. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1960-1969/decreto-5370214-marco-1964-393664-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 17 de novembro de 2011. 145 FONSECA, Pedro Cezar Dutra. A crise do governo Goulart: uma interpretação. In: Encontro Nacional de Economia Política, n. 9, Uberlândia (MG), 2004. Disponível em: <http://www.sep.org.br/artigo/9_congresso_old/ixcongresso03.pdf>. Acesso em: 17 de novembro de 2011. 55 cotação no mercado internacional, o que representará uma disponibilidade de mais de um bilhão de dólares, para que o Governo possa atender a seus programas prioritários.146 Sendo assim, o objetivo da reforma cambial seria a garantia do monopólio do câmbio para defender o valor da moeda nacional e controlar o orçamento cambial, além de impedir ―a importação do luxuoso e do supérfluo‖ e aplicar ―o saldo de moedas fortes na importação do que é necessário à realização das metas prioritárias do desenvolvimento e da emancipação econômica do País‖.147 Última das reformas citadas neste bloco, a reforma universitária foi explicitada por João Goulart somente em sua Mensagem ao Congresso Nacional de 1964. Nela, a reforma universitária aparece como necessária ao atendimento de exigências do desenvolvimento e como meio para corrigir a estrutura fragmentária, que multiplica, dentro da mesma Universidade, instalações, equipamentos e pessoal para tarefas idênticas, provocando a desproporção entre os seus orçamentos e o número de alunos matriculados e, por conseguinte, determinando baixa rentabilidade do investimento público. A centralização do ensino e da pesquisa em grandes setores básicos, a serviço de toda a Universidade, com eliminação dos núcleos dispersos pelas suas várias unidades, representará substancial economia de meios, por um lado, e, por outro, a possibilidade de ampliar as matrículas nas escolas, seja no ciclo básico, seja no ciclo profissional.148 Apontando a necessidade de garantir a liberdade do docente e abolir a vitaliciedade da cátedra, a reforma também tinha como preocupação outros níveis de ensino, além do superior: Esforçar-se-á o Governo por assegurar a todos o direito à escola média, tornando-a acessível, em etapas sucessivas de escolarização, a toda a juventude, como ainda tentará recuperar a população que a falta secular de escolas tornou marginal do processo educacional e, por conseqüência, do sistema de produção. Por outro lado, imprimirá novo sentido ao sistema escolar, de modo que ele não sirva, apenas, a uma camada privilegiada, mas seja a forma de habilitação do homem comum para o trabalho e para a sua integração na comunidade nacional. Democratização da cultura e habilitação profissional são os princípios básicos que nortearão todo o esforço governamental para que o sistema escolar possa satisfazer, de fato, as aspirações e necessidades do povo brasileiro.149 146 ―JG anuncia reforma do sistema cambial‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 20 fev. 1964. Transcrição de pronunciamento feito no dia anterior à publicação. 147 CORBISIER, R. Op. cit., p. 166. 148 GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1964, pp. 170-171. 149 Ibidem, p. 163. 56 De maneira sintética, os objetivos da reforma universitária eram: democratização da formação científica superior; formação de pessoal técnico qualificado que atendesse à demanda de uma indústria crescente; e estímulo à produção de ―conhecimento científico da realidade nacional‖.150 Depois de apresentadas, sucintamente, as linhas gerais desse conjunto de reformas, cabe a explanação e o debate da reforma de maior repercussão ao longo de todo o governo João Goulart e a que, se realizada, causaria maior impacto na estrutura econômica do país: a reforma da estrutura da propriedade agrária. Devido à complexidade do tema e à quantidade de material a ele correspondente, a reforma agrária será tratada separadamente. 1.2.2.1. Reforma Agrária Abordar questões agrárias e fundiárias no Brasil significa tocar num conjunto bastante complexo de elementos econômicos, políticos e sociais que, ao longo da história, construíram uma estrutura relacionada não somente à propriedade fundiária, mas também à estrutura de classes e ao modelo de capitalismo e industrialização estabelecidos no país. Esta complexidade de elementos, assim como das implicações econômicas e sociais por eles trazidas, faz com que o debate sobre o tema, no Brasil, seja sempre acirrado e difícil. A presença do latifúndio na história deste país desde o momento da formação de seu território e de sua sociedade possibilita dizer que o problema agrário no Brasil teria origem na própria forma de ocupação do seu território pelos colonizadores portugueses, através das sesmarias – uma ocupação que tinha como objetivo a formação de estrutura material e social que atendesse aos interesses da metrópole, sem considerar os desdobramentos desta estrutura naquela sociedade em formação. No entanto, constatar que o latifúndio está presente no Brasil desde o surgimento desta sociedade, não explica as razões pelas quais ele, mesmo trazendo graves consequências sociais, permanecera até a década de 1960, período sobre o qual nos debruçamos neste trabalho, e mantenha-se até hoje. Sua manutenção foi defendida com afinco pelas classes dirigentes do país em diferentes momentos de sua história, inclusive por legislações de caráter preventivo a quaisquer reformas na estrutura agrária. Desde o período de formação do Brasil-Colônia até o século XIX, (inclusive no período de fins deste mesmo século, quando o Brasil deixa sua condição de colônia), a 150 CORBISIER, R. Op. cit., pp. 169-171. 57 estrutura econômica brasileira permanece fundamentada na monocultura, no latifúndio e no trabalho escravo. No entanto, de acordo com José de Souza Martins, a questão agrária começa a se definir quando o Estado brasileiro, no século XIX, pressionado por alguns setores das elites e, sobretudo, pelas grandes potências da época, que queriam expandir seus mercados (coisa impossível com a escravidão, pois escravo não compra), decide acabar com a escravidão.151 Dessa forma, as pressões pelo fim do escravismo e para o estabelecimento do trabalho livre começam a ser sentidas por aqui num momento em que o território brasileiro ainda era pouco ocupado; e o fim da escravidão torna-se uma ameaça à abundância de mão-de-obra, mesmo assalariada (uma vez que os escravos libertos poderiam simplesmente ocupar porções de terra e tornarem-se produtores, ainda que somente para sua própria subsistência, ao invés de trabalhar para os fazendeiros em troca de salário). Para livrar-se desta ameaça, a aristocracia latifundiária antecipa-se e institui, em 1850,152 a Lei de Terras, garantindo ―um regime de propriedade que impedisse o acesso à propriedade da terra a quem não tivesse dinheiro para comprá-la, mesmo que fosse terra pública ou devoluta‖.153 Além disso, como nos lembra Emília Viotti da Costa, a Lei de Terras também abriu espaço para a legalização de grandes propriedades adquiridas ilegalmente: Tanto os que obtiveram propriedades ilegalmente, por meio da ocupação, nos anos precedentes à lei, como os que receberam doações mas nunca preencheram as exigências para a legitimização de suas propriedades puderam registrá-las e validar seus títulos após demarcar seus limites e pagar as taxas – isso se tivessem realmente ocupado e explorado a terra.154 A Lei de Terras, portanto, ao mesmo tempo em que retira a copropriedade do Estado do direito de propriedade– o que obstaculiza possíveis tentativas de reforma agrária pela ação estatal – também instituiu ―bloqueios ao acesso à propriedade por parte dos trabalhadores, de modo que eles se tornassem compulsoriamente força de trabalho das grandes fazendas‖.155 Trabalhando com os Anais do Congresso Brasileiro da época do debate da Lei, Emília Viotti da Costa constatou: 151 MARTINS, José de Souza. A questão agrária brasileira e o papel do MST. In: STÉDILE, João Pedro (org.). A Reforma Agrária e a Luta do MST. Rio de Janeiro: Vozes, 1997, p. 13. 152 Mesmo ano da Lei Eusébio de Queirós, que proíbe o tráfico de escravos. A abolição da escravidão no Brasil virá somente em 1888. 153 MARTINS, J. S. Op. cit., p. 14. 154 COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, p.171. 155 MARTINS, J. S. O poder do atraso: Ensaios de Sociologia da História Lenta. São Paulo: Ed. Hucitec, 1994, p. 76. 58 Todos os defensores do projeto insistiam que, subjacente a esses argumentos particulares, estava o fato de que a lei criaria condições para que o fazendeiro obtivesse trabalho livre para substituir os escravos, cujo fornecimento estava ameaçado pela iminente interrupção do tráfico negreiro. É óbvio que, para eles, a nova política de terras tinha como um de seus objetivos resolver o torturante problema da força de trabalho.156 Dessa forma, quando a abolição da escravidão é instituída pelo Estado brasileiro, deixa uma massa de ex-escravos sem as menores condições de sobrevivência, transformando-os em mão-de-obra farta e extremamente barata à disposição dos latifundiários. Embora o capital, naquele momento de seu processo de expansão mundial, entrasse em contradição com o escravismo, no Brasil, diferentemente do que ocorreu nos países que realizaram suas Revoluções Burguesas, as transformações sociais necessárias à reprodução capitalista foram realizadas pelas ―mesmas elites responsáveis pelo patamar de atraso em que se situavam numa situação histórica anterior‖.157 Com isso, a estrutura agrária no Brasil permanece inalterada e mantém-se assim mesmo no período em que se inicia o processo efetivo de industrialização do Brasil (início dos anos 1930). Como afirma Francisco de Oliveira, o que ocorre no Brasil a partir da década de 1930 não é um conflito entre a nova e a velha elite (respectivamente, burguesia industrial e aristocracia agrária), mas sim o estabelecimento de um novo padrão de acumulação que prescinde da ―destruição completa do antigo modo de acumulação‖;158 forma-se um novo modelo que congrega formas distintas, mas não contrapostas, de acumulação, permitindo a união entre burguesia e oligarquia. Ou nas palavras de Maria Dolores Prades: Diferente dos casos clássicos, por exemplo, onde o capital industrial se impõe às velhas formas ―derivadas ou secundárias‖, no caso brasileiro, a constituição do ―verdadeiro capitalismo‖ evidencia uma conexão estrutural da burguesia industrial com o quadro anteriormente existente, onde a economia agrária de feitio latifundiário predomina. Profundamente marcado por essa conexão, o capital industrial aqui se ressente, desde suas origens, do bloqueio e dos obstáculos impostos pela estrutura atrasada anterior. Limitação essa responsável pelo caráter conciliador que perpassa o processo de modernização nacional e que se manifesta na subordinação dos ―novos‖ interesses econômicos às ―velhas‖ estruturas produtivas, assim como no atraso do desenvolvimento das forças produtivas no país.159 Esta aliança entre burguesia e oligarquia no período não impede a cautela, por parte dos representantes dos interesses oligárquicos, quanto à nova organização econômica do país 156 COSTA, E. V. Op. cit., p. 179. MARTINS, J. S. O poder do atraso: Ensaios de Sociologia da História Lenta. São Paulo: Ed. Hucitec, 1994, p. 58. 158 OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista/ O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003, p. 65. 159 PRADES, Maria Dolores. Op. cit., p. 254. 157 59 em seu processo de desenvolvimento industrial. Expressão disso foi o estabelecimento, na Constituição de 1946 (durante o governo Dutra), de um dispositivo para a manutenção do latifúndio: a obrigatoriedade de indenização prévia e em dinheiro aos proprietários de terras desapropriadas, mesmo que para fins sociais e de reforma agrária. Dessa maneira, a reforma agrária ficaria economicamente inviabilizada ao Estado brasileiro. Apesar deste dispositivo constitucional, José de Souza Martins aponta o período que se segue à Constituição de 1946 e vai até 1964 como um período de enfraquecimento das oligarquias latifundiárias. Segundo ele, este enfraquecimento decorre tanto das modificações das condições sociais e da dinâmica dos conflitos de classes resultantes do desenvolvimentismo deste período, quanto do desencadeamento dos movimentos sociais no campo. Um dos reflexos destas mudanças seria a intensificação do debate em torno da necessidade de reformas sociais, dentre as quais a reforma agrária era a mais central, pois discutia a base material das relações de classe. Contudo, o autor aponta que ―não havia, na elite, uma classe antagônica suficientemente forte e consciente de seus interesses e de suas oposições, como uma burguesia industrial ou simplesmente uma burguesia moderna, oposta aos interesses do latifúndio‖,160 que fosse capaz de encabeçar a realização das reformas sociais dentro das opções políticas e ideológicas da própria elite. Assim, as tensões acumuladas no campo fortaleciam os movimentos de esquerda e a própria movimentação dos trabalhadores rurais, como os reunidos nas Ligas Camponesas.161 Tal cenário, inserido no contexto da Guerra Fria, ―dava às dispersas e frágeis lutas do campo uma dimensão que não tinham e uma importância que decorria antes de sua inserção em conflitos ideológicos mais amplos e não de sua própria força ou de sua própria representatividade‖.162 160 MARTINS, J. S. O poder do atraso, p. 74. As Ligas Camponesas surgem da mobilização dos trabalhadores rurais do Engenho Galiléia, em Vitória do Santo Antão, Pernambuco. Estes trabalhadores organizam, com a permissão do fazendeiro proprietário do engenho, uma cooperativa funerária com o objetivo de diminuir os custos de sepultamento dos mortos (que, aliás, eram cada vez mais freqüentes, denunciando as condições miseráveis em que viviam). No entanto, vendo na organização de seus trabalhadores uma ameaça, o fazendeiro intenta a retomada das terras então ocupadas pelas lavouras dos trabalhadores do engenho. Inconformados com esta ação, os trabalhadores procuram em Recife o advogado e deputado Francisco Julião, que sugere ao grupo a atuação pela via legalista, reivindicando o direito da Lei do Inquilinato. O movimento consegue, desta forma, impedir que suas terras fossem retomadas e, daí em diante, ganha importância; passando a atuar, também, em outras localidades e de formas distintas da maneira inicial, chegando, durante o governo João Goulart, a reivindicar uma reforma agrária radical. Ver: AZEVEDO, Fernando Antonio. Ligas Camponesas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. 162 MARTINS, J. S. O poder do atraso, p. 75. 161 60 Será nesta conjuntura que João Goulart se posicionará, tão logo assuma a presidência da república, a favor da efetivação de uma reforma agrária no Brasil – reivindicação que, inclusive, já fora assumida pelo PTB desde os anos 1950. Reforma Agrária e regulamentação constitucional Logo no dia 18 de setembro de 1961, discursando na ocasião do 15º aniversário da Constituição de 1946, Goulart inclui a reforma agrária no conjunto de ―problemas‖ a serem equacionados pelo Congresso Nacional, através de necessárias regulamentações constitucionais: Estou certo de que o Congresso Nacional, refletindo as aspirações do povo, há de oferecer à Nação os estatutos legais inadiáveis, equacionando, de maneira prudente, porém segura, problemas como o da reforma agrária, o dos abusos do poder econômico, o da reforma bancária, o das novas diretrizes educacionais, o da disciplina do capital estrangeiro, distinguindo e apoiando o que representa estímulo ao nosso desenvolvimento e combatendo o que espolia nossas riquezas; regulamentando preceitos constitucionais, como e quando se fizer necessário, concretizando medidas de maior alcance social, que ainda figuram no texto da Carta Magna como meras conquistas sem efetividade prática, de modo, enfim, que o povo sinta que, ao defender o regime democrático, defende, em verdade, seus próprios interesses, que são os superiores interesses do País.163 E será justamente a falta de tal regulamentação constitucional um dos maiores obstáculos à execução de qualquer programa de reforma agrária naquela conjuntura. Como vimos, a obrigação de indenização prévia e em dinheiro no caso de desapropriação fundiária, inviabilizava a reforma. De acordo com o presidente, a Constituição de 1946, ao mesmo tempo em que reconhecia ―por um lado, a função social da propriedade, ao admitir a desapropriação por interesse social‖, por outro impossibilitava ―a aplicação prática desse princípio, ao estabelecer que toda e qualquer desapropriação se faça pela prévia e justa indenização em dinheiro‖.164 E uma emenda constitucional que contornasse este obstáculo não era da alçada de Jango ou do Conselho de Ministros do período parlamentarista; mas somente seria possível através da atuação e aprovação do Congresso Nacional. Sobre esta dificuldade de implementação de uma reforma agrária, Jango falará em diversas ocasiões. Na Mensagem encaminhada ao Congresso, pela abertura do ano legislativo 163 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 18. Ibidem, p. 85. Discurso proferido em 17 de novembro de 1961, no encerramento do Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, realizado em Belo Horizonte, Minas Gerais. 164 61 de 1962, o presidente atribui à reforma agrária a condição de ―ideia-força irresistível‖, presente em todas as camadas da população; e reclama: Urge efetivá-la, tornando-a financeiramente possível, sem sobrecarregar demasiado o País com o ônus do investimento necessário. Será preciso reduzir ao mínimo o custo financeiro da reforma, por meio de legislação que fixe o critério do valor para a desapropriação com o fim social e estabeleça alternativa para a prévia indenização em dinheiro.165 Outro discurso importante dentre os que Goulart proferiu defendendo a regulamentação constitucional a fim de viabilizar a reforma agrária, está o realizado em Belém do Pará, ainda em 1961, no qual argumentou: É necessário que se tenha a coragem de dizer as coisas como realmente são, para se conseguirem reformas. É necessário que se votem leis de profundidade, pois sabem os homens ilustres do Pará, sabem os intelectuais, os estudantes e os trabalhadores que de nada adianta falarmos em reforma agrária, por exemplo, se não iniciarmos a nossa luta pela reforma da Constituição. E se o Parlamento brasileiro, com o seu alto patriotismo, pôde, em momento difícil do País, modificar a Carta Magna para resolver uma crise política, poderá também, a qualquer momento, modificá-la novamente, para evitar uma crise ainda mais grave, que é a crise social em que vive o povo brasileiro, que é a crise da fome ou a crise do mal-estar nos lares pobres, e que poderá transformar-se num movimento revolucionário muito mais perigoso do que o movimento que há pouco ameaçou o Brasil.166 Dessa forma, ao mesmo tempo em que aponta a viabilidade de uma reforma constitucional – afinal uma emenda fora aprovada havia pouco: a que limitou seus poderes como condição para sua posse na presidência – João Goulart alertava para o fato de que a não efetivação de reformas, sobretudo a da reforma agrária, poderia desencadear movimentações contra a ordem legal. Aliás, o apelo pela solidariedade à população rural em dificuldades extremas e o alerta da ameaça que a manutenção da situação de miséria no campo representava à legalidade e à ―harmonia social‖ serão argumentos que João Goulart utilizará em outras manifestações públicas em favor da reforma agrária. Por diversas vezes, a reforma agrária será invocada como meio de obtenção de maior justiça social e possibilitar ―condições dignas de vida‖ a uma população crescente, impedindo que vegetasse na ―pobreza e na incultura‖.167 Tal forma de tratar a reforma agrária tanto 165 GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1962, p. XIII. 166 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 51. Grifo nosso. Discurso proferido no dia 25 de outubro de 1961. 167 ―A população do País está crescendo à taxa vertiginosa de 3,3% ao ano, ao passo que a taxa na América Latina é de 2,9% e a taxa média no mundo de 1,7% anuais. Isto significa que, possuindo hoje 70 milhões de habitantes, o Brasil terá 130 milhões em 1980 e 210 milhões no ano 2000. Temos de nos preparar para dar trabalho e condições dignas de vida a essa população, não permitindo que ela cresça e vegete na pobreza e na incultura. Esta constitui uma tarefa gigantesca, que exige, evidentemente, transformações estruturais na 62 convergia com os ―ideais de fraternidade cristã‖ assumidos por Jango em seus discursos,168 como compunha o quadro de uma situação de alerta, em que a miséria no campo poderia fomentar iniciativas revolucionárias, que, a seu ver, deveriam ser evitadas – é possível e, em vários momentos, provável, que Goulart utilize tanto do discurso cristão, como o ―antirrevolucionário‖, para marcar sua distância do comunismo, de que foi constantemente acusado. Nas comemorações Trabalho de 1962, João Goulart alertava para a existência de ―sintomas de impaciência popular‖ quanto à urgência da reforma agrária, afirmando a necessidade de que se fosse ―ao encontro das legítimas aspirações da população rural, ajudando-a a libertar-se das condições de extrema penúria /.../ e dando-lhe a oportunidade de participar dos benefícios da civilização industrial‖.169 Esse alerta se repetirá, inclusive na Mensagem encaminhada ao Congresso pela abertura do ano legislativo de 1964 – há menos de um mês do golpe militar ser desfechado – desta vez, de modo mais enfático: Para atender velhas e justas aspirações populares, ora em maré montante que ameaça conduzir o País a uma convulsão talvez sangrenta, sinto-me no grave dever de propor ao exame do Congresso Nacional um conjunto de providências a meu ver indispensáveis e já agora inadiáveis, para serem, afinal, satisfeitas as reivindicações de 40 milhões de brasileiros.170 A correção das anomalias da estrutura fundiária nacional, originada de obsoleta concepção do direito de propriedade, faz-se mister seja iniciada com urgência, pois, além de constituir ponto de estrangulamento que impede a rápida dinamização da produção agrícola, causa mal-estar social capaz de assumir proporções imprevisíveis, na medida em que a explosão demográfica, principalmente nas áreas mais subdesenvolvidas, aumenta a pressão pela posse da terra, como meio de sobrevivência.171 Contudo, talvez a mais significativa manifestação de João Goulart sobre esta questão tenha sido a realizada no Parque Solon de Lucena, em João Pessoa, numa concentração de trabalhadores rurais, em que diz: A reforma agrária que desejamos e haveremos de realizar − e para tanto os brasileiros estão desde já convocados − não é uma obra de esbulho, nem de espoliação e muito menos motivo de apreensão, porque, acima de tudo, é um instrumento de luta pelo nosso desenvolvimento econômico e deve ser, antes sociedade‖. GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 18. Discurso proferido no Rio de Janeiro, em 25 de janeiro de 1962, por ocasião do encerramento da VI Conferência Rural Brasileira. 168 ―Tenho-me empenhado pela implantação de uma política dinâmica em nosso país, que possibilite a solução de nossos problemas de base, inclusive o da reforma agrária, para que se possa obter mais justiça social, garantir as liberdades individuais e proporcionar aos brasileiros condições dignas de existência, de acordo com os nossos ideais de fraternidade cristã‖. Ibidem, p. 14. Discurso proferido em Araraquara (SP), em 19 de janeiro de 1962, instalação do Congresso Rural Estadual, promovido pela Federação das Associações Rurais do Estado de São Paulo. 169 Ibidem, p. 77. 170 GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1964, p. LII. 171 Ibidem, p. 96. 63 de mais nada, tarefa de justiça social. Dentro destas linhas de conciliação, que refletem profundas convicções no meu espírito, chego à terra das Ligas Camponesas, fruto do instinto associativo do nordestino pela sua sobrevivência, certo de que, apesar da carga emocional que o problema de convivência entre proprietários e trabalhadores rurais em muitos lugares está provocando, havereis de compreender que, nos quadros da legalidade democrática, o problema não traz os aspectos sombrios das lutas fratricidas. Com reformas hábeis, oportunas e humanas, será possível encontrar a solução devida e esperada, a solução desejada pela Nação brasileira. /.../ Proprietários rurais há que dispensam aos trabalhadores um tratamento infrahumano, indiferentes às suas necessidades, ou dão uma retribuição mesquinha ao seu suor e ao seu trabalho. Isso tem gerado em amplas áreas do Nordeste um sentimento de inconformidade e de revolta, que se não for contido, com a esperança de melhores dias, poderá degenerar em processos explosivos, dos quais ninguém, muito menos o País, poderá obter lucros. Não há de ser, porém, pelo critério de alguns transviados do dever e do próprio sentimento de humanidade que um problema de tal natureza há de ter solução. Temos que o resolver no quadro da lei. A Constituição terá que ser modificada, e sê-lo-á certamente, para que a reforma possa transformarse na realidade desejada por todos os brasileiros. Acreditamos no patriotismo daqueles que haverão de atender, reformando a Constituição brasileira, aos interesses da Nação. Acreditamos que esta Constituição há de ser revisada pelo patriotismo daqueles que têm o dever, de reformá-la, para que, através dela, se possa atingir a verdadeira harmonia e a verdadeira paz social, isto é, para que se possa chegar a um Brasil que não seja apenas das minorias, mas também dos trabalhadores, do povo brasileiro, enfim.172 Dessa forma, João Goulart explicita os objetivos de sua proposta de reforma agrária – desenvolvimento econômico e justiça social – e ratifica seu posicionamento de conciliação perante aos riscos de convulsão social gerados pela condição miserável em que vivia (e ainda vive) grande parte dos trabalhadores rurais. No entanto, vale ressaltar, que não obstante, em sua fala, João Goulart defenda ―linhas de conciliação‖, o presidente também deixa claro que a solução não poderia ser atingida a partir do critério dos proprietários – ―alguns transviados do dever e do próprio sentimento de humanidade‖ – mas sim pela lei. Também se pode notar que, se por um lado Goulart denuncia o tratamento subumano dispensado à grande parte dos trabalhadores rurais, por outro, procura apaziguar o que entende como ―carga emocional‖, provocada pelo ―problema da convivência entre proprietários e trabalhadores rurais‖ – o ―sentimento de inconformidade e de revolta‖ gerado entre os trabalhadores diante da mesquinhez de certos proprietários de terras – através da via legal, ―nos quadros da legalidade democrática‖. Contudo, para que esta grave questão fosse resolvida legalmente, evitando uma ―luta fratricida‖, mais uma vez, o presidente reclama a regulamentação constitucional, apelando para o patriotismo dos congressistas. 172 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 119-120. Discurso proferido em 29 de julho de 1962. Grifos nossos. 64 Esse pedido de emenda ou reforma constitucional que viabilizasse a execução da reforma agrária será repetido pelo presidente Goulart inúmeras vezes ao longo de todo o seu período de governo. No ano de 1963, chegou inclusive a enviar, juntamente com o anteprojeto de reforma agrária, uma mensagem a Auro de Moura Andrade e Ranieri Mazili, respectivamente, presidentes do senado e da câmara dos deputados, solicitando ―a modificação constitucional como requisito para a reforma agrária‖, uma vez que a previsão constitucional da indenização prévia e em dinheiro representava um ―obstáculo de impraticável transposição ao mais adequado uso social da terra‖.173 Debatendo-se ainda por esta questão, Jango insistiu na necessidade da alteração constitucional, chegando a afirmar, segundo reportagem do jornal Correio da Manhã, que ―a aprovação de um projeto de reforma agrária sem a vinculação com a reforma constitucional, não passaria de um engodo, seria uma ‗tapeação‘‖.174 A posição de Goulart diante da possibilidade e das consequências de uma reforma agrária sem a revisão constitucional já fora exposta claramente num discurso proferido aos portuários, em 1962, em que se expressa nos seguintes termos: É preciso também dizer, com franqueza, que reformas apenas de superfície não resolvem os graves problemas nacionais. No tocante à reforma agrária, por exemplo, entendo que sem a modificação de dispositivos constitucionais não será possível realizá-la em benefício do povo. Por um artigo de nossa Carta Magna, as desapropriações só poderão ser efetuadas mediante prévia e justa indenização em dinheiro. Ora, evidentemente, se fôssemos proceder desta maneira, não haveria tal reforma no Brasil. Não chegaríamos a fazêla se o Governo tivesse que despender quantias fabulosas na compra de terras e pagar preços que serviriam, afinal, não para ajudar o trabalhador, mas para enriquecer ainda mais o latifundiário. Não defendo, também, a expropriação de terras. Sou favorável a que se pague ao proprietário, mas que se lhe pague o valor à altura daquilo que se lhe pode pagar, e que o pagamento seja feito a longo prazo e em títulos da União. Se fôssemos emitir o necessário para o pagamento das áreas desapropriadas, antes que se fizesse a reforma agrária já a inflação teria corroído o organismo do País, e o levaria, decerto, à revolução. Façamos a reforma em termos que realmente atendam aos interesses dos pequenos produtores e possibilitem o acesso à terra àqueles que não a possuem e que, por isso, são obrigados a pagar preços extorsivos, sob o regime de arrendamento ou de parceria.175 173 ―Estrutura agrária do Brasil é um enorme entrave ao progresso‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 23 mar. 1963. Mensagem transcrita integralmente pelo jornal. 174 ―Goulart admite reforma ministerial e diz ser normal situação militar‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 14 mai. 1963. Grifo nosso. Reportagem realizada a partir de uma ―palestra com os jornalistas‖, realizada no dia anterior, na residência de Goulart, em Copacabana. 175 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 89-90. Discurso na inauguração de uma nova sede do Sindicato dos Operários dos Serviços Portuários de Santos, São Vicente e Guarujá, em 13 de maio de 1962. Grifos nossos. 65 Também no famoso discurso da Central do Brasil, em grande comício realizado dias antes do golpe militar que o depôs, o presidente Jango afirmará que ―reforma agrária com pagamento prévio e em dinheiro não é reforma agrária; como consagra a Constituição, é negócio agrário que interessa apenas ao latifundiário‖.176 Vemos, dessa forma, que ao longo de todo o período em que ocupou a presidência – seja na fase parlamentarista, ou na presidencialista – João Goulart reclamou, até mesmo com insistência, na mudança do dispositivo constitucional que, a seu ver, impossibilitava uma reforma agrária no Brasil. Debateu e argumentou sem sucesso, visto que o poder legislativo não acatou suas propostas de emendas constitucionais ou de reforma agrária, ignorando o resultado de pesquisas como a do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística, o IBOPE – empresa de caráter privado – que, em 1963, apontava uma média de 62% dos eleitores como favoráveis à realização da reforma agrária e considerando-a como a mais urgente das reformas necessárias ao país.177 A conjuntura favorável à reforma é ressaltada por Darcy Ribeiro, 178 quando, em carta à Glauber Rocha, responde sobre ―uma aparente dualidade‖ entre o que Jango era em sua vida privada – um ―fazendeiro-invernista bem-sucedido e rico‖ – e o papel que desempenhava na vida pública – o de ―político reformista‖. Para Darcy, a simples suposição dessa dualidade traz implícita a ideia de que as personalidades são entidades inteiriças e coerentes, o que é muito duvidoso. Mais verdadeira é talvez a observação de que os homens atuam na vida social, e particularmente na arena política, muito mais de acordo com as circunstâncias que se apresentam – as conjunturas, como se diz – do que com o ideário que acaso tenham. /.../ um homem não exprime, no poder, a sua ideologia pessoal, mas a conjuntura política com que ascendeu. 179 E, para dar um exemplo claro do significado de sua afirmação, Ribeiro lembra que, em 1962, fora procurado por Juscelino Kubitschek, com o pedido de que formulasse ―um plano de governo com vista à campanha eleitoral de 1965‖, dizendo que ―desejava o plano mais avançado de reformas estruturais, a começar por uma reforma agrária‖. Sobre este fato, Darcy Ribeiro questiona: Que significa isso? Parece compatível com o JK que conhecemos – flor da politicagem profissional brasileira – a imagem de um reformador radical? 176 GOULART, J. Discurso de 13 de março. In: MUNTEAL, O.; VENTAPANE, J.; FREIXO, A. Op. cit., p. 40. RODRIGUES, J. H. Op. cit., p. 229. 178 Darcy Ribeiro, antropólogo, um dos fundadores e primeiro reitor da Universidade de Brasília (UnB), foi Ministro da Educação e Cultura no governo Jango, de 18 de setembro de 1962 a 24 de janeiro de 1963, assumindo, posteriormente, a chefia do Gabinete Civil, onde permaneceu até o golpe militar, que destituiu seus direitos políticos. 179 RIBEIRO, Darcy. Sobre o óbvio. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986, pp. 193-194. 177 66 Pois esse era o papel que ele se supunha chamado a representar. Isso porque, naquela conjuntura, aparentemente só uma política reformista lhe prometia o aspirado acesso ao poder. 180 Nesta conjuntura, Jango se encontrava, então, ―sujeito às mesmas expectativas e pressões‖ e, segundo Ribeiro, ―talvez também estivesse mais capacitado a atendê-las, apesar de suas ideias e até de seus interesses pessoais e classistas‖.181 Reforma agrária e comunismo Como vimos no item anterior, a defesa da reforma agrária exposta por João Goulart faz referências constantes aos ideais cristãos e democráticos. A reiteração do vínculo entre a defesa destes princípios e das reformas de base – sobretudo, da reforma agrária – é uma resposta de Jango, por vezes sutil, e por outras mais direta, a possíveis acusações de comunismo. Conhecedor de tais acusações e ―desconfianças‖, Goulart argumentava: Modificações na estrutura agrária sempre acompanharam a história das nações. São uma fatalidade na evolução das etapas do processo social. Este é precisamente o nosso caso. A reforma agrária no Brasil não deve estar ligada a reivindicações de natureza ideológica ou sectária. Trata-se de indeclinável exigência das condições econômico-sociais do nosso desenvolvimento, do bem-estar do povo. É medida de natureza social, sem dúvida, mas, com ênfase ainda mais expressiva, é medida de ordem técnica imposta pelas condições objetivas da nossa vida nacional. Não me importa a convicção ideológica do observador. O que ele não poderá negar é que as relações entre os que trabalham e os que possuem a terra são, de modo geral, um obstáculo ao desenvolvimento da produção agrícola, ao aumento da sua produtividade, a uma melhor distribuição das rendas. Esta situação, meus caros estudantes, é que devemos temer, e não a reforma agrária. A situação que a reforma agrária deverá corrigir é que é alarmante e cheia de perigos para a legalidade democrática.182 De fato, ainda não há muitos anos, falar de reforma agrária suscitava apreensões e desconfianças. Hoje, nenhum pensamento conhecedor da realidade brasileira, tenha o colorido ideológico que tiver, será capaz de negar a sua necessidade. Precisamente por essa razão, o que já não convém é fazer do debate do problema um expediente para lhe adiar o encaminhamento prático. /.../ Hoje, não a reclamam apenas partidos e ideologias. Ela é reclamada pela consciência política nacional.183 180 Ibidem, p. 195. Idem. 182 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 102. Grifos nossos. Discurso proferido em 10 de dezembro de 1961, em solenidade do Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 183 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 17-20. Discurso proferido em 25 de janeiro de 1962, na solenidade de encerramento da VI Conferência Rural Brasileira, na cidade do Rio de Janeiro. Grifos nossos. 181 67 Sendo assim, João Goulart aponta a necessidade da reforma agrária como uma questão ―de ordem técnica‖, intrínseca e imprescindível ao desenvolvimento econômico do país, e não uma decisão de ―ordem ideológica‖. E, para mostrar que sua proposta, longe de estar vinculada a ideologias consideradas subversivas, na verdade refletiria preocupações de setores notoriamente contrários ao comunismo, Goulart assim se manifesta: Meus conterrâneos: de há muito me venho batendo, com calor patriótico, para que se realizem no País as reformas de base, que são reclamadas pelo interesse de toda a Nação. Há alguns anos atrás, como bem o sabeis, quando qualquer cidadão se dispunha a tratar desse problema, e mesmo, ao de leve, se referia à necessidade de levar-se a cabo a reforma agrária, passava ele a figurar no rol dos subversivos, dos pregoeiros da desordem. Hoje, porém, essa reforma constitui uma aspiração geral, principalmente daqueles que realmente se interessam pela grandeza do Brasil e por sua independência econômica. Hoje, não são somente os trabalhadores do campo, apoiados pelos seus companheiros das cidades, que reivindicam a reforma agrária, em bases justas, de modo a possibilitar o acesso à terra aos homens que a trabalham e nela se sacrificam. Hoje, são os Bispos brasileiros da Igreja Católica que, em manifesto, pedem um novo estatuto da terra; são os trabalhadores de outras nações que clamam, nas suas fábricas e nos seus sindicatos, pela libertação, na América Latina, dos homens do campo, escravos do latifúndio. Ainda há pouco, quando visitava os Estados Unidos da América, conversando com representantes de suas classes operárias, ouvi deles afirmações como esta: ―Temos receio de que o povo americano, através de contribuições, carreie recursos para a agricultura dos países sul-americanos e, especialmente, dos países onde ainda não se fez a reforma agrária, porque certamente esses recursos, fornecidos através de empréstimos ou de qualquer outra modalidade, não vão servir para libertar o pequeno agricultor, nem para libertar o homem que não tem terras e que a trabalha. Ao contrário, vão servir apenas para enriquecer mais aqueles já enriquecidos com o trabalho dos camponeses em suas terras‖. Se eu tivesse citado, neste instante, uma frase de Kruschev, de um chefe chinês ou de um líder cubano, todos vós estaríeis dizendo que aqui também se levanta a agitação. Reproduzi, porém, as palavras que me foram ditas por trabalhadores de uma nação democrática, apontada como exemplo às demais. Portanto, esse sentimento de reforma já existe no coração e na compreensão de brasileiro, a todos, enfim, que queiram lutar pelo desenvolvimento deste país. Não desejamos importar figurinos estrangeiros para realizá-la: ela deverá possuir tonalidades locais, ser obra de brasileiros para brasileiros, tanto nas suas origens quanto nos seus objetivos.184 Goulart, em sua fala, procura comprovar sua afirmação de que a reforma agrária no Brasil seria uma ―aspiração geral‖, reclamada não somente por ―partidos e ideologias‖, apontando que, tanto a Igreja Católica como os trabalhadores de um país usado como exemplo na defesa da ordem democrática e combate ao comunismo aprovariam a realização de tal reforma. 184 Ibidem, pp. 124-125. Discurso proferido em 29 de julho de 1962, ao receber o titulo de Cidadão Campinense e a faixa de Presidente da Legalidade, em Campina Grande (PB). 68 Ainda no sentido de marcar sua posição, diferenciando-se de propostas ligadas ao comunismo, João Goulart ressalta o fato de que sua proposta não constituiria uma vitória da classe trabalhadora na luta de classes, mas sim uma medida que permitiria ―associar‖ trabalhadores e proprietários num esforço pelo bem da coletividade e pelo fim da ―exploração do homem pelo homem‖, retomando aqui uma expressão antes utilizada por Getúlio Vargas. a reforma agrária que compreendo, que prego, e que o Brasil exige, não é a que consistiria em transformar trabalhadores em proprietários e proprietários em trabalhadores, mas aquela que, atendendo a uns e outros, permita associar a todos, com direitos e deveres fixados, no esforço conjunto pelo bem-estar da coletividade, fazendo assim cessar a exploração do homem pelo homem, e abrindo, ao mesmo tempo, as perspectivas de uma utilização racional da terra para quem esteja em condições de aproveitá-la no interesse social, que há de ser o mais relevante dos legítimos fundamentos a justificar sua propriedade e seu domínio.185 É necessário salientar aqui que, quando Getúlio Vargas falava em ―exploração do homem pelo homem‖, a identifica com o ―predomínio da lei de seleção animal‖ propiciado pelo liberalismo econômico. Segundo ele, ou remediamos /.../ os males que afligem o povo ou este perderá a confiança e a si mesmo se prejudicará, caindo em excessos condenáveis. Se pretendemos verdadeiramente viver como civilizados, cumpre-nos não admitir, como condição para prosperar, o predomínio brutalizante da lei de seleção animal, a exploração do homem pelo homem. 186 Sendo assim, tanto em Vargas quanto em João Goulart, o fim ―da exploração do homem pelo homem‖, nada tem a ver com a ideologia comunista. Goulart, inclusive, faz questão de destacar que a reforma agrária por ele defendida não está apenas desvinculada de qualquer avanço comunista, como também seria uma forma de combatê-lo; uma vez que reforçaria os laços do povo com o regime democrático e multiplicaria o número daqueles que defenderiam a propriedade privada. Por diversas vezes, Goulart ressaltará o conteúdo antirevolucionário de uma reforma agrária no país naquele momento. Em seus discursos, aponta que a realização das reformas eliminaria o ―sentimento de angústia‖ que poderia levar a revoltas e a ―caminhos imprevisíveis‖. Estou convencido que o próprio direito de propriedade /.../ ficaria muito mais respeitado se maior fosse o número de proprietários rurais no interior da nossa pátria. Hoje existem, no Brasil, dois milhões e oitocentos mil proprietários; e a terra, num país com essa vastidão territorial, apenas dois milhões e oitocentos mil brasileiros têm um pedaço de terra dentro de nosso país. É claro /.../ que se amanhã, ao invés de dois milhões e oitocentos mil, nós pudéssemos multiplicar para dez ou quinze milhões de brasileiros, que 185 Ibidem, p. 118. Discurso proferido em 29 de julho de 1962, no Parque Solon de Lucena, em João Pessoa. Grifos nossos. 186 Ver: COTRIM, Lívia C. de A. Op. cit., pp. 274-275. 69 também fossem proprietários, muito maior seria o número daqueles que defenderiam a propriedade e que tornaria mais legítimo o direito de respeito a essa propriedade. /.../ É necessário que o povo brasileiro não se deixe iludir com mistificações. Aqueles que dizem que a reforma que pretendemos é para reforçar e valorizar forças estranhas ao sentimento cristão do povo brasileiro estão enganados /.../. Não é se negando os anseios legítimos do povo que se fortalece o regime democrático; não é dizendo não ao povo que se melhoram as leis ou a Constituição. Se desejarmos lutar, cristã e democraticamente, contra as forças que contrariam o sentimento cristão do povo brasileiro, então /.../ vamos ao encontro do povo e de suas reivindicações! É os atendendo naquilo que é justo e democrático é que eles, não agredidos, não passem a [inaudível] de angústia, que quase sempre leva ao desespero e que, quase sempre leva à revolta das camadas populares. Esse é o pensamento do governo. /.../ porque está sempre presente no nosso pensamento a palavra daquele amigo de Juiz de Fora e de todos os brasileiros, aquele presidente /.../ que dizia que a violência gera violência e que com compreensão, com entendimento e com amor, a paz vai se construir para a eternidade. É exatamente esse o nosso pensamento. É com o pensamento voltado para o imortal presidente Getúlio Vargas, que nós desejamos as reformas e que nós a desejamos pacífica e democraticamente.187 Não se compreende /.../ que o que outros países já fizeram há anos, inclusive países aqui da América Latina, não possam também ser promovidos no Brasil, e que não o sejam como nós desejamos, dentro de um clima de paz e de compreensão entre todos os brasileiros. Porque a não realização dessas reformas — o que representaria o estrangulamento dos mais sentidos anseios do povo brasileiro — poderia conduzir o Brasil a caminhos imprevisíveis. /.../ O que desejamos, com essas reformas, é integrar na sociedade brasileira mais de quarenta milhões de irmãos nossos, também brasileiros, que precisam participar da vida de seu País e da riqueza nacional. Esta é a paz que há de incorporar todo o povo à sociedade que nós todos desejamos, à sociedade cristã de um país livre, de um país independente.188 Reafirmando, portanto, a particularidade da reforma agrária defendida por seu governo, João Goulart faz questão de assinalar que, além de pacífica, a reforma proposta deveria ser ―tipicamente nacional‖, considerando as necessidades sociais e econômicas do desenvolvimento do país. E, desse modo, sua reforma agrária não seguiria os exemplos e fórmulas das reformas realizadas em outras partes do mundo, principalmente entre os países comunistas. Para o presidente Jango: A reforma agrária brasileira deve ser executada sem choques violentos e consoante os moldes reais de nossa estrutura rural. A reforma que desejamos possui características brasileiras e deverá atender, de preferência, aos 187 Transcrição de discurso proferido em 31 de maio de 1963, na sessão solene de entrega do título honorário de juiz forano, na Câmara Municipal de Juiz de Fora (MG). Arquivo de áudio em CD que acompanha: GOMES, Angela de Castro; FERREIRA, Jorge. Jango: as múltiplas faces. 188 ―JG: reformas são para defender democracia‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 07 mar. 1964. Transcrição de discurso proferido no Palácio do Planalto, em Brasília, em reunião do presidente com 300 prefeitos brasileiros, no dia anterior à publicação. 70 interesses dos nossos trabalhadores rurais. É preciso que eu afirme com clareza ao povo /.../ que não desejamos, ninguém deseja mesmo, importar uma reforma para implantá-la no Brasil. O que desejamos é uma reforma tipicamente nacional, que atenda aos interesses dos trabalhadores rurais, uma reforma sobre a qual se plante somente uma bandeira, a bandeira auriverde do Brasil. Não desejamos reformas de outros países, repito. A reforma da União Soviética terá servido aos seus povos no instante em que foi praticada; a reforma da China pode convir aos chineses; mas a reforma que convém ao Brasil é a reforma desejada pelo povo brasileiro, é a reforma que atenda às nossas necessidades e aos legítimos anseios do País. A reforma agrária que desejamos e haveremos de realizar − e para tanto os brasileiros estão desde já convocados − não é uma obra de esbulho, nem de espoliação e muito menos motivo de apreensão, porque, acima de tudo, é um instrumento de luta pelo nosso desenvolvimento econômico e deve ser, antes de mais nada, tarefa de justiça social.189 Venho defendendo, com insistência e absoluta convicção, a necessidade de se reformular o sistema agrário nacional, e tenho reafirmado, reiteradamente, a minha esperança de que o Brasil encontre, dentro em breve, uma solução autenticamente brasileira para o problema da reforma agrária, de modo que a revolução reclamada para o campo se processe tranquila e pacificamente e atenda aos seus objetivos fundamentais de desenvolvimento e justiça social.190 Também em discurso na faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, João Goulart reafirmou que ―o Brasil não precisava de padrões‖ para as reformas que proporcionariam ―paz e justiça sociais‖ ao país. Segundo ele, não haveria ―a necessidade de importar normas e figurinos, porque o povo brasileiro tem suas características próprias e o país as suas condições geográficas específicas e que, portanto, a reforma era brasileira – verde e amarela – feita para brasileiros‖.191 As posições de João Goulart aqui explicitadas se mantêm ao longo de todo o período em que ocupou a presidência da república. Suas explicações e esclarecimentos acerca de sua proposta de reforma agrária estão presentes desde seus discursos de 1961 aos de 1964. Seja falando em eventos ruralistas, seja em concentrações de trabalhadores, o presidente Jango explicitava argumentos defensivos de possíveis acusações de comunismo, ao mesmo tempo 189 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 118-119. Discurso proferido em 29 de julho de 1962, no Parque Solon de Lucena, em João Pessoa. Grifos nossos. 190 Ibidem, p. 161. Discurso proferido em 29 de setembro de 1962, ao visitar o Simpósio e a I Exposição do Milho, na cidade de Catanduva (SP). Grifos nossos. 191 ―Justiça social exige reforma agrária em moldes brasileiros‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 06 abr. 1963. Transcrição de discurso proferido no dia anterior à publicação. Vale apontar que há uma divergência entre a citação aqui utilizada e a citada por Marco Antonio Villa, cuja fonte é o jornal O Estado de S. Paulo, não verificado na nossa pesquisa. Na citação feita por Villa o texto seria: ―Nossa bandeira é verde-amarela. Não precisamos de patrões para defendê-la‖. Cf. VILLA, M. A. Op. cit., p. 103. Enquanto que na reportagem do Correio da Manhã, o texto é: ―Frisou que o Brasil não precisava de padrões para tais reformas, nem tinha a necessidade de importar normas e figurinos, porque o povo brasileiro tem suas características próprias e o país as suas condições geográficas específicas e que, portanto, a reforma era brasileira – verde e amarela – feita para brasileiros‖. 71 em que procurava expor os princípios da reforma agrária que defendia. Sustentava uma reforma agrária que, não obstante o conteúdo social gerado pela inclusão econômica de parcela considerável da população rural brasileira, constituía uma necessidade econômica do desenvolvimento nacional. Uma reforma que, longe de incorporar ideais comunistas, objetivava a ampliação da defesa da propriedade privada, bem como a contenção de possíveis movimentos revolucionários violentos. Reforma que, em suas palavras, seria ―genuinamente brasileira‖ e realizada pacificamente, dentro de uma ―perspectiva democrática e cristã‖. 192 Ou seja, a reforma agrária buscada por Goulart, ainda que tivesse como tônica o atendimento das particularidades e demandas nacionais, se filiava claramente ao padrão de desenvolvimento e aspirações capitalistas. Reforma agrária e desenvolvimento Como vimos, João Goulart considerava a reforma agrária também como uma medida de ordem técnica, necessária ao desenvolvimento econômico. Procuraremos, por ora, compreender a leitura do histórico do desenvolvimento brasileiro que leva Goulart a fazer tal afirmação. Em diversas ocasiões, o presidente Jango apontava ―a ausência de uma reestruturação agrária‖ como um obstáculo à ―marcha do progresso‖ do país. Para ele, ―sem uma agricultura progressista‖ seria impossível ―uma economia nacional equilibrada‖; e a estrutura agrícola naquele momento não mais atenderia ―às necessidades do crescimento da economia geral do País.193 Uma das maiores questões apontadas por Goulart era a urgência em aumentar a produtividade agrícola brasileira. O Brasil reclama uma reforma agrária que possibilite a revisão das relações jurídicas e econômicas entre os que trabalham a terra e os que detêm a propriedade rural, para que seja possível libertar a produção agrícola dos seus seculares entraves e proporcionar maior produtividade ao agricultor, assegurando-lhe justa participação nas riquezas, para dotar o País de uma agricultura moderna, racional e mecanizada, de alto rendimento produtivo. Evidentemente, no Brasil, tal lei agrária deve possuir características de maleabilidade, para acomodá-la às variadas condições regionais e de modo a 192 ―Não desejo suprimir vantagens legitimamente auferidas por parcelas do povo, nem tampouco me move o desejo insano de atingir o patrimônio de quem quer que seja. O que me anima é o trabalho em prol da justiça. O que desejo é dar condições para que todos tenham vantagens num futuro próximo, e todos possam um dia igualmente defender o patrimônio que possuem. A essência do trabalhismo, para mim, reside em dar a cada um o respeito que se tem a si próprio. É dentro dessa perspectiva democrática e cristã, genuinamente brasileira, que atende às nossas melhores tradições culturais, que se coloca a minha pregação‖. GOULART, J. Entrevista concedida à Revista Manchete, no mês de novembro de 1963. In: CASTELLO BRANCO, Carlos. Introdução a Revolução de 1964. Tomo 2. A queda de João Goulart. Rio de Janeiro: Artenova, 1975, p. 244. 193 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), pp. 83-84. Discurso proferido 17 de novembro de 1961, no encerramento do Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, em Belo Horizonte. 72 respeitar as unidades de produção bem organizadas, de bom rendimento, sem levar em conta a sua extensão. Creio ser dever do Governo estimular todas as iniciativas que se preocupam com a questão agrária nacional, procurando solucionar os seus problemas, pois o aumento da produção e a elevação do padrão de vida do trabalhador rural constituem meta fundamental para os destinos do Brasil.194 A preocupação acerca da produtividade agrícola de então pode ser mais bem compreendida considerando que, segundo dados apontados por Darcy Ribeiro, em seu livro As Américas e a civilização, no Brasil de 1960, as propriedades brasileiras com mais de mil hectares de área – latifúndios –, embora absorvessem 47,3% das terras apropriadas do país, ―cultivavam, tão-somente, 2,3% das mesmas contribuindo seus cultivos com apenas 11,5% do total das lavouras do país‖. Mesmo nos latifúndios dedicados à pecuária, a produtividade não era satisfatória: ainda ―detendo 60% das pastagens, criava 36,6% do rebanho‖. Tal situação fez com que Ribeiro afirmasse: ―Estes são índices expressivos do seu caráter ‗latifundiário‘ como detenções de terras, não para explorar, mas para monopolizar‖.195 Tocando nesta questão da distribuição e produtividade da terra, o presidente João Goulart apontava que a manutenção da distribuição da terra ―unicamente como pura mercadoria que o mercado do dinheiro e o mero interesse do investidor proprietário‖ controlavam resultava em utilização que não obrigava o ―cultivo intenso‖ do solo, nem exigia ―a melhoria das técnicas do trabalho‖. Deste modo, ―os modos de apropriação‖ da terra impediam que ―populações muito mais numerosas‖ produzissem e alimentassem ―muito mais gente do que na verdade alimentam‖.196 Apontava que: Terra ocupada, entre nós, nem sempre quer dizer terra lavrada ou terra aproveitada no limite de suas possibilidades. /.../ A reforma agrária é reivindicação do desenvolvimento nacional. Reforma agrária quer dizer, sem dúvida, proibição de conservar terras inaproveitadas, que fiquem aguardando valorizações aleatórias, com finalidades especulativas ou distorsivas (sic), sem forma e sem figura de interesse social. 197 194 Ibidem, p. 85. Grifos nossos. RIBEIRO, D. As Américas e a Civilização: processo de formação e causa do desenvolvimento desigual dos povos americanos. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 252. 196 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 18-19. Discurso proferido em 25 de janeiro de 1962, no encerramento da VI Conferência Rural Brasileira, no Rio de Janeiro. ―A distribuição da terra, entre nós, continua até hoje a processar-se unicamente como pura mercadoria que o mercado do dinheiro e o mero interesse do investidor proprietário controlam sob qualquer ângulo. Resulta daí que o modo de apropriação da terra determina formas de uso que não obrigam seu cultivo intenso, e, portanto, não exige melhoria das técnicas do trabalho. Os modos de apropriação impedem, também, que populações muito mais numerosas se instalem em terras que poderiam alimentar muito mais gente do que na verdade alimentam‖. 197 Ibidem, pp. 19-21. 195 73 A baixa produtividade agrícola constituía um problema ainda mais grave se considerada a crise de abastecimento de gêneros alimentícios enfrentada pelo país nos primeiros anos da década de 1960 e o consequente aumento de seus preços, já avolumados pela inflação.198 Diante deste problema, que incrementava cada vez mais o custo de vida dos trabalhadores, o presidente João Goulart apontava a importância da reforma agrária como parte fundamental da solução. Falando aos trabalhadores portuários e às lideranças sindicais, Goulart destaca: O problema mais grave /.../ eu o quero abordar agora: é o do custo de vida, que constitui reflexo de outros tantos problemas também graves. /.../ não tenho poupado esforços e mesmo sacrifícios, em contato permanente com o Conselho de Ministros, a fim de que se tomem medidas drásticas e corajosas para atenuar as dificuldades impostas ao povo pela elevação de todos os preços, principalmente dos gêneros de primeira necessidade. /.../ Tenho feito apelos, e posso dizer à classe operária que esses apelos vêm encontrando compreensão por parte da maioria dos órgãos da administração federal. Mas, fiel que sou aos trabalhadores, devo dizer-lhes também, numa homenagem de franqueza e de sinceridade, que as medidas de contenção de preços, de importação de gêneros, de intervenção, consideradas tão necessárias, de nada adiantarão se, ao lado delas, não se estabelecerem planos objetivos para o aumento da produção, se não for promovido o livre acesso à terra àqueles que ainda não a têm para produzir, se não se proporcionar assistência técnica e financeira aos agricultores.199 A reforma agrária deve possibilitar, antes de tudo, o acesso imediato do trabalhador rural à terra, que ele trabalha com sacrifício. Não será no regime de exploração que conseguiremos tornar mais barata e mais acessível ao povo a produção de gêneros alimentícios. Não será no regime dos arrendamentos extorsivos, nem no do "cambão", que resolveremos o problema básico da alimentação e do abastecimento.200 Vê-se, portanto, que João Goulart enxergava no ―livre acesso à terra‖ para os agricultores que ainda não a tinham, juntamente com ―assistência técnica e financeira‖, uma saída para aumentar a produção de gêneros alimentícios e torná-la ―mais barata e acessível ao povo‖ – ou seja, eliminar o problema do abastecimento e da alimentação. Para Goulart, A estrutura agrária predominante no País constitui enorme entrave ao nosso progresso econômico e social. Em um país de terra tão abundante e grande excedente de mão-de-obra, não se compreende que continuemos a viver em permanente escassez de oferta de produtos agrícolas. Subutilizamos terra, 198 Embora pouco explorada pela bibliografia existente, o economista Cássio Silva Moreira aponta para a possibilidade de a crise de abastecimento de gêneros ter sido agravada por um boicote dos grandes proprietários e produtores rurais, descontentes ―frente à sinalização da criação do Estatuto da Terra e da reforma agrária, defendida pelo governo‖. Cf. MOREIRA, Cássio Silva. O projeto de nação do governo João Goulart: o Plano Trienal e as Reformas de Base (1961-1964). Tese (Doutorado em Economia) – Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011, pp. 111-112. 199 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 91. Discurso, já citado, proferido em 13 de maio de 1962. Grifos nossos. 200 Ibidem. p. 113. Discurso proferido em 26 de junho de 1962, ao receber líderes sindicais no Palácio do Planalto, Brasília. Grifos nossos. 74 mão-de-obra e às vezes também o capital, pela irracionalidade das formas de organização da produção. Grande parte da população do campo está submetida a precárias condições de vida sem que se lhe dê a oportunidade de usar a sua capacidade de trabalho em benefício próprio.201 Falando particularmente sobre a região Nordeste, Jango reforça esta ideia, ressaltando, desta vez, não a irracionalidade da estrutura agrária no Brasil, mas apontando-a como uma ―revivescência da sociedade colonial, organizada em bases feudais para atender às conveniências da metrópole longínqua‖. Para ele, A essa primitiva estrutura devemos, em grande parte, a escassez de alimentos de que tanto sofre o Nordeste e que sufoca o desenvolvimento da sua economia urbana. A menos que criemos aqui uma moderna agricultura ligada ao mercado regional, o desenvolvimento industrial tropeçará sempre em obstáculos intransponíveis. Para que exista esta agricultura moderna, em termos de desenvolvimento, ligada ao interesse do povo e da região, a primeira condição a exigir-se é a de que a população trabalhadora tenha maior acesso aos frutos do próprio trabalho. Tenho insistido, repetidas vezes, para que se promova a reforma da estrutura agrária do País, a fim de que a organização agrícola seja impregnada de um autêntico espírito de empresa e os frutos do trabalho repartidos de maneira mais justa.202 Sendo assim, constituiriam objetivos da reforma agrária: o aumento da produtividade agrícola; a diminuição dos preços dos gêneros alimentícios e a elevação dos padrões de vida do trabalhador rural – que teria facilitado seu acesso à terra e não estaria mais submetido às condições de trabalho e remuneração impostas pelos latifundiários – e também do trabalhador urbano – que teria seu custo de vida suavizado pelos preços mais baixos dos gêneros alimentícios. Tais objetivos, embora relevantes, não serão os únicos no projeto de reforma agrária propagado por Goulart. De acordo com Jango, os benefícios de uma reforma agrária no Brasil seriam também fundamentais para o desenvolvimento industrial. Falando aos industriais representantes da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Goulart defende que somente seria possível assegurar uma expansão sem precedentes na indústria nacional ―quando, através de uma reforma agrária justa, cristã e democrática, dezenas de milhões de brasileiros, cujo poder de compra é quase nulo‖, fossem ―incorporados à economia monetária do país, 201 GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1963, p. 10. 202 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 117. Grifo nosso. Discurso, já citado, proferido em 29 de julho de 1962, em João Pessoa (PB). 75 tornando-se verdadeiros compradores‖.203 E na Mensagem ao Congresso de 1962, Goulart apontava que: A reforma agrária, com o sentido de multiplicar o número de pessoas diretamente interessadas no maior rendimento da exploração agrícola, e de possibilitar a acumulação de poupanças por parte daquela categoria social que, no regime de terras ora vigente, vive abaixo do limite mínimo de subsistência, dará grande impulso à implantação de uma agricultura moderna, em bases racionais. Permitirá, como consequência, o oferecimento de maior quantidade de produtos da terra e maior consumo dos produtos das indústrias brasileiras.204 Também em evento promovido pela Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), destacou a necessidade de uma reforma agrária que garantisse substancialmente a ―elevação e melhor distribuição de rendas na agricultura, de modo a fornecer ao desenvolvimento industrial do País mercado de maior dimensão‖.205 Sendo assim, para além do conteúdo social da medida que elevaria o padrão de vida do trabalhador rural, é destacado também seu conteúdo econômico, fundamental para o desenvolvimento industrial. Será nesse sentido que Goulart reclamará a herança varguista, colocando-se como um continuador de Getúlio Vargas em seu projeto de desenvolvimento nacional. Em entrevista à Revista Manchete, em fins de 1963, Jango denomina a estruturação e o desenvolvimento da indústria no Brasil, empreendidos por Vargas, como a ―primeira reforma de base‖, ou ainda a ―reforma de base industrial‖. Esta reforma constituíra ―a maior vitória da civilização brasileira nos últimos anos‖. No entanto, Goulart alerta para o fato de que, ao assumir o governo, percebera que ―essa grande vitória estava ameaçada‖. Justifica sua preocupação nos seguintes termos: bastaria observar que a maioria da população rural não tem poder aquisitivo e cresce em ritmo mais veloz do que a população urbana. A produção industrial sofre o risco de parar, por insuficiência de uma estrutura agrícola. Não é outra a razão que me leva a pregar uma urgente reforma de base, no âmbito da agricultura, comparável à que Getúlio Vargas empreendeu no campo da indústria. Os benefícios do surto industrial estão sendo amesquinhados por uma estrutura agrícola que encarece os custos de nossa produção e não oferece a necessária expansão do mercado interno. Apesar de trabalhadora, a população rural está impedida de colaborar com os centros urbanos, em favor do progresso comum. Imensa massa de camponeses se 203 ―Goulart anuncia o ano da exportação‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 23 ago. 1963. Transcrição indireta de discurso em reportagem sobre banquete de comemoração do 25º aniversário da Confederação Nacional da Indústria, realizado no dia anterior à publicação. 204 GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1962, p. 24. Grifos nossos. 205 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 90. Discurso proferido no Rio de Janeiro, em 28 de novembro de 1961, ao paraninfar os economistas que concluíram o Curso de Capacitação em Problemas de Desenvolvimento, promovido pela Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), em cooperação com o Governo Brasileiro. 76 encontra marginalizada, sem existência econômica que lhe permita adquirir as manufaturas produzidas no país. Essa massa carece, ao mesmo tempo, de um sistema de defesa de seus direitos trabalhistas, segundo os preceitos da justiça social. A continuar esse panorama melancólico, a indústria nacional teria de conformar-se com níveis de produção abaixo de sua capacidade. /.../ Compreendi /.../ que só nos resta uma alternativa: a reforma de base no campo, nos mesmos moldes da reforma encetada por Getúlio Vargas nos centros urbanos. É imperativa a necessidade de reorganizar a economia agrícola, assim como se impõem, com urgência, aquelas medidas capazes de estender ao camponês os benefícios que a justiça social lhe pode e lhe deve assegurar. Este é o caminho para que cada camponês, cada fazendeiro, produtor ou trabalhador, possa transformar-se em consumidor dos produtos nacionais.206 Este mesmo raciocínio aparece, de forma mais completa e abrangente, em discurso proferido por Goulart na instalação da VII Conferência Regional da Food and Agriculture Organization (FAO)207 para a América Latina. Nesta ocasião, Goulart aponta que, até poucos anos antes, entre os países da América Latina, a agricultura, através da exportação de seus produtos, constituía ―o principal vínculo‖ de articulação entre os interesses nacionais e os mercados internacionais; possibilitando, inclusive, a importação de equipamentos e técnica fundamentais na construção das bases da industrialização e diversificação das estruturas econômicas desses países. No entanto, Jango aponta que na última década, ―o mercado mundial de produtos agrícolas‖ não acompanhava ―o crescimento da população das áreas exportadoras‖. Com o agravante de que os preços dos produtos agrícolas estavam ―sistematicamente declinando, em relação aos dos produtos manufaturados adquiridos nos países de elevado grau de industrialização‖ – fenômeno que a teoria cepalina do subdesenvolvimento denomina de deterioração dos termos de troca. Diante desta situação de entrave ao desenvolvimento econômico dos países periféricos, João Goulart aponta como saída a estruturação de um mercado interno que gerasse demanda à produção industrial: ―Explica-se, deste modo, que os países da América Latina, no esforço de levar adiante seus programas de desenvolvimento, tenham buscado a diferenciação de suas estruturas econômicas, apoiando-se, principalmente, em seus próprios mercados internos‖. 208 206 GOULART, J. Entrevista concedida à Revista Manchete, no mês de novembro de 1963. In: CASTELLO BRANCO, C. Op. cit., pp. 238-239. Grifos nossos. 207 Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação. 208 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 210. Discurso proferido em 17 de novembro de 1962, na instalação da VII Conferência Regional da FAO para a América Latina, no Rio de Janeiro. 77 Porém, o fortalecimento do mercado interno brasileiro não ocorreria suficientemente se estivesse baseado apenas nos efeitos da industrialização, sem alterações na economia agrária. Para Jango, A industrialização, provocando rápida urbanização e melhores níveis de vida, aumentou a demanda interna de produtos agrícolas, de alimentos e de matérias-primas industriais. O nosso desenvolvimento, se bem que tenha, agora, na industrialização, a sua força dinâmica, depende, diretamente, da presteza com que a agricultura responde às solicitações do mercado interno. As formas de organização da produção agrícola podem tornar-se socialmente inadequadas, sem que, por isso, tendam a transformar-se espontaneamente. Para evitar que a rigidez das estruturas agrárias, que compromete o desenvolvimento nacional, venha a criar tensões de elevado custo social, a política de desenvolvimento deve planejar modificações estruturais, isto é, deve fazer da reforma agrária um dos seus objetivos centrais. Dotar a economia agrícola de uma estrutura que permita, por um lado, o aproveitamento racional dos recursos produtivos e, pôr outro, possibilite o crescimento da produtividade com um mínimo de custo social, é a meta principal de uma política de desenvolvimento agrícola.209 Nesse sentido, a modificação da estrutura agrária, através de sua reforma, estaria intimamente vinculada ao desenvolvimento da economia industrial; uma vez que, além de melhor prover a demanda urbano-industrial pelos produtos agrícolas, possibilitaria também o aumento da demanda pelos produtos industrializados, na medida em que elevaria o padrão de consumo da população rural. Ou nas palavras de Goulart: de nada adianta uma grande indústria, em meio a um crescimento populacional explosivo, se os brasileiros, principalmente do interior, não puderem adquirir aquilo que os seus irmãos trabalhadores constroem e fabricam nas grandes cidades. De nada adiantaria uma poderosa indústria têxtil, por exemplo /.../, se os trabalhadores rurais não pudessem vestir-se, como não podem, pois apenas cobrem-se de trapos.210 Será, portanto, com esses argumentos que João Goulart defenderá, ao longo de todo o seu governo, a realização de uma reforma agrária no Brasil. Uma reforma agrária que, em suas palavras, removeria ―as causas do atraso‖ no desenvolvimento brasileiro, colocando-o numa ―posição favorável às transformações progressistas e emancipadoras‖;211 sendo, a seu ver, ―a mais justa e humana‖ dentre as reformas de base, pois, além de ―corrigir um 209 Ibidem, pp. 210-211. Grifos nossos. ―Goulart: seguirei a linha de Vargas‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 24 ago. 1963. Transcrição do discurso em reportagem sobre comício realizado em homenagem a Getúlio Vargas, no dia anterior à publicação. 211 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 101. Discurso proferido em 10 de dezembro de 1961, no Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 210 78 descompasso histórico‖, beneficiaria ―direta e indiretamente milhões de camponeses brasileiros‖.212 A reforma agrária em padrões brasileiros Vimos, até aqui, as razões apontadas pelo presidente Jango para a urgente realização de uma reforma agrária no Brasil. Resta-nos, agora, explicitar o modo como, de acordo com o discurso proferido pelo próprio presidente, esta reforma seria efetivada, quais características teria para atingir os objetivos por ele defendidos. Desde seus primeiros discursos sobre a reforma agrária no país, Goulart fazia questão de frisar que não poderia haver uma única ―fórmula salvadora‖ ou ―remédio milagroso‖ que atendesse a todas as regiões brasileiras, sendo estas tão diferentes entre si.213 Na Mensagem ao Congresso de 1962, nos mostra que a preocupação com a diversidade das regiões brasileiras não se limitaria às condições naturais da produção agrícola, mas também às questões sociais nas relações de trabalho no campo: O exame da questão agrária no Brasil revela a existência, no campo, de diferentes tipos de tensão social. Em algumas regiões prevalece tensão de um tipo; em outras regiões, de outro tipo. O remédio adequado difere, em consequência. Aquele propiciador de um alívio e de maior harmonia social no Nordeste certamente não provocará os mesmos resultados benéficos em São Paulo. Assim, a legislação da reforma que julgamos urgente deve ser bastante ampla e flexível, sob a forma de diretrizes e bases, para permitir ao executor federal da lei a oportunidade de aplicá-la com a eficiência desejada.214 Segundo Goulart, a reforma deveria ―possuir características de maleabilidade, para acomodá-la às variadas condições regionais e de modo a respeitar as unidades de produção bem organizadas, de bom rendimento, sem levar em conta a sua extensão‖.215 212 GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1964, p. LI. 213 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 84. ―A questão da terra no Brasil deve ser resolvida, evidentemente, de acordo com as características próprias de cada região. Não há, nem pode haver, fórmula salvadora, remédio milagroso, para realidade tão diversificada de um país que é um continente, pela sua extensão e pela multiplicidade dos seus reclamos de desenvolvimento. Não vejo razões para deixar de afirmar que a reforma agrária é uma das reformas que o País reclama, para dar plena expansão às suas forças produtivas adormecidas”. Discurso proferido em 17 de novembro de 1961, no encerramento do Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, na cidade de Belo Horizonte. 214 GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1962, p. XII. 215 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961), p. 85. O presidente repete essa fala, com conteúdo idêntico, em seu discurso aos ruralistas, no Congresso Rural Estadual, promovido pela Federação das Associações Rurais do Estado de São Paulo, em 19 de janeiro de 1962, na cidade de Araraquara (SP). Cf. GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 14. 79 Desse modo, a reforma agrária brasileira deveria levar em conta dois aspectos centrais: 1) as especificidades de cada região e 2) a produtividade das propriedades – muito mais do que seu tamanho. a reforma agrária tem de ser maleável, para se adaptar às nossas diferenças regionais, considerando-se sempre, e em primeiro plano, o rendimento da produção e a sua finalidade social. Onde se estiver produzindo bem, tudo o que há a fazer é melhorar essa produção através de ajuda técnica e financeira.216 Talvez numa tentativa de distender resistências a sua proposta reformista, o presidente Jango procurava explicitar o caráter ―não expropriativo‖ da reforma que defendia. Afirmava que: ―Reforma agrária não é, como pretendem alguns teóricos, tirar a terra de quem a possui e a faz produzir, para dar indiscriminadamente a quem não a possui e não tem condições de fazê-la produzir‖, mas sim ―criar condições para que se possa fazer uma exploração racional da agricultura e da pecuária‖. 217 Em outra oportunidade, reiterou: E a reforma que desejamos, /.../ não é a reforma expropriativa; não desejamos tirar arbitrariamente a terra de um para entregar a outro; não pretendemos jamais que aquelas terras que estão produzindo possam ser objeto de desapropriação. O que nós desejamos é fortalecer mais as terras que produzem, através da distribuição das terras que não produzem e que não prestam nenhum serviço ao povo, que não prestam serviço à nação.218 Sendo assim, João Goulart defendeu repetidas vezes a desapropriação de ―terras que não produziam‖ ou que ―produziam muito abaixo do nível econômico‖ da região a qual integravam. Em seus discursos, descartou totalmente a desapropriação de terras produtivas ou de pequenas propriedades, as chamadas ―unidades familiares‖, pois Ao contrário, pela reforma agrária, o que deve visar acima de tudo é prestigiar as pequenas propriedades e assisti-la para que ela possa produzir o máximo de seu rendimento. O mesmo pensamento, é claro, /.../ eu não poderia ter com relação aos grandes latifúndios improdutivos, e especialmente daqueles localizados nas grandes áreas de consumo da nossa pátria.219 E, em discurso já citado acima, o presidente Jango, falando na presença dos ruralistas, procurou expor o conteúdo de sua reforma agrária: desapropriação de terras improdutivas, bem como assistência técnica e financeira à produção agrícola e a seu acesso aos mercados, 216 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 18. Discurso proferido em 25 de janeiro de 1962, na solenidade de encerramento da VI Conferência Rural Brasileira, no Rio de Janeiro. 217 Ibidem, p. 19. Discurso proferido em 25 de janeiro de 1962, na solenidade de encerramento da VI Conferência Rural Brasileira, no Rio de Janeiro. 218 Transcrição de discurso proferido em 31 de maio de 1963, na sessão solene de entrega do título honorário de juiz forano, na Câmara Municipal de Juiz de Fora (MG). Arquivo de áudio em CD que acompanha: GOMES, A. C.; FERREIRA, J. Jango: as múltiplas faces. 219 Idem. 80 tornando-a mais racional. Contudo, mesmo dando destaque às medidas de ordem técnica que integrariam sua proposta, Goulart também aponta o objetivo ―cristão‖ de sua reforma: o de ―atender à pessoa humana‖ e propiciar a esperança ―num futuro melhor‖: A reforma agrária é reivindicação do desenvolvimento nacional. Reforma agrária quer dizer, sem dúvida, proibição de conservar terras inaproveitadas, que fiquem aguardando valorizações aleatórias, com finalidades especulativas ou distorsivas, sem forma e sem figura de interesse social. Reforma agrária deve ser, sobretudo, tranquilidade e segurança para o trabalhador e para o proprietário, para quem planta e para quem colhe; deve ser a racionalização do esforço da comunidade rural para melhores condições de exploração econômica da terra; deve ser a presença do poder público ou dos órgãos coletivos adequados, para a assistência imprescindível dos postos zootécnicos, dos campos de experimentação, das estações de máquinas, dos centros de armazenagem e ensilagem; deve ser o funcionamento, próprio e oportuno, do sistema de transportes e comunicações, que assegure o acesso aos mercados de consumo; deve ser a organização do crédito rural, não apenas como privilégio dos poderosos que, eventualmente, se dediquem às tarefas da produção agrícola e pecuária, mas em favor especialmente dos pequenos e médios produtores, sem as complicações burocráticas ou as exigências eternizantes que cercam o processo das garantias reais; deve ser o estímulo às organizações cooperativistas, com o incentivo às formas de associação e de esforço comum na luta pelo progresso; deve ser convocação da técnica levada ao campo pelo poder público ou pelos que mais o puderem — e tudo isso com o objetivo mais alto e mais cristão de atender à pessoa humana, cuja felicidade deve ser razão fundamental do Estado, proporcionando-lhe moradias mais higiênicas, ambulatórios, hospitais, escolas, ou, para resumir, ambiente que enseje esperanças e razões de crer num futuro melhor.220 Embora esta pesquisa tenha como foco os discursos do presidente João Goulart, e não os atos administrativos de seu governo, vale salientar que os aspectos defendidos publicamente por ele, e aqui mostrados, condizem com o texto do anteprojeto de lei, encaminhado ao Congresso em março de 1963, estabelecendo o regime jurídico da reforma agrária, e também com as Mensagens encaminhadas ao Congresso pela abertura do ano legislativo, sobretudo a do ano de 1964, mais extensa que as anteriores. Além disso, em maio de 1963, Goulart também anuncia a criação do Plano de Crédito Rural do triênio 1963-65. Outra medida do governo Goulart, bastante lembrada no que diz respeito à área agrícola, foi a sanção do Estatuto do Trabalhador Rural, estendendo a legislação trabalhista aos trabalhadores rurais. O historiador Caio Prado Jr., ainda que bastante crítico de João Goulart – a quem acusava de estar mais preocupado em retomar os poderes presidencialistas e abafar as contradições do desenvolvimento brasileiro do que em implementar efetivamente as 220 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 21. Grifos nossos. Discurso proferido em 25 de janeiro de 1962, na solenidade de encerramento da VI Conferência Rural Brasileira, no Rio de Janeiro. 81 reformas – valorizou o Estatuto, visto por ele ―como uma das mais significativas iniciativas de alcance nacional para o encaminhamento de resoluções da questão agrária no país‖, ainda que o considerasse insuficiente.221 O projeto de lei que fora apresentado pelo Deputado Fernando Ferrari – trabalhista dissidente, expulso do PTB comandado por Jango e fundador do partido Movimento Trabalhista Renovador (MTR) – apesar de sancionado por Goulart e afirmado como ―um dos mais importantes marcos da nossa história trabalhista‖,222 pouco foi abordado em seus discursos. Certa vez, o jornal carioca Correio da Manhã, após a aprovação do projeto pelo Legislativo, cobrou o presidente pela demora em sancioná-lo. Como resposta, Goulart teria escrito em bilhete a seu secretário de imprensa, Raul Ryff: Dar conhecimento ao Correio da Manhã: /.../ Quanto ao projeto Ferrari, preocupação tão afetiva do Correio da Manhã, ainda não chegou às minhas mãos. Não posso, portanto, sancioná-lo, sem ter os autógrafos. Devem estar ainda na secretaria da Câmara. Apesar de ser um projeto flor de laranja, estou disposto a sancioná-lo, convencido, porém, que somente através de uma reforma profunda, com modificações básicas nos textos constitucionais, poderá ser resolvido o problema agrário e social em termos de interesse nacional e de atendimento aos justos anseios de milhões de brasileiros sem terra e ainda sem oportunidade de obtê-la.223 O bilhete nos revela, portanto, que apesar de concordar com o Estatuto, João Goulart o colocava como uma prioridade menos urgente e de alcance muito mais limitado de que a reforma agrária. Como última medida de Goulart concernente à questão agrária, está a assinatura do chamado decreto da SUPRA – Superintendência de Política Agrária224 – realizada publicamente no comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964. Este decreto declarava ―de interesse social, para fins de desapropriação, uma faixa de dez quilômetros ao 221 SOUZA, Ângela Maria. O Brasil descortinado por Caio Prado Jr.: gênese e reiteração do ciclo vicioso.. Tese (doutorado em História. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2009, p. 244. Souza ressalta que a defesa que Caio Prado faz do Estatuto do Trabalhador Rural está relacionada a sua consideração, procurando respeitar as condições objetivas da realidade nacional, de ―que não era possível, naquele momento, a mudança do modo de produção capitalista para o socialista‖; sendo mais correta a implementação de medidas ainda no ―âmbito da propriedade privada‖. 222 GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1963, p. 139. 223 ―Goulart criticou projeto Ferrari e culpa Câmara‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 20 fev. 1963. 224 Em grande parte da bibliografia, a SUPRA aparece também identificada como Superintendência da Reforma Agrária. 82 longo das rodovias e ferrovias, bem como das áreas beneficiadas por obras federais, como os açudes‖.225 Justificando sua assinatura, João Goulart argumentou: Por este ato, áreas inexploradas e sob o domínio de latifundiários, que não as cultivam nem permitem que outros a cultivem, serão desapropriadas e divididas em lotes para entrega aos camponeses que as queiram cultivar. Esta é a primeira ampla porta que se abre para uma reforma agrária que se realizará pacificamente, regida pelos preceitos democráticos e com fidelidade às tradições cristãs do nosso povo.226 Enquanto o Congresso Nacional não oferece os instrumentos legais adequados para a realização da Reforma Agrária, o Poder Executivo vem adotando uma série de providências, por intermédio da Superintendência de Política Agrária (SUPRA), mediante a utilização do poder de desapropriação nos termos em que legalmente está investido. Dentro dessa limitação, foi concebida a providência de desapropriar terrenos rurais mal aproveitados, em torno de estradas, ferrovias e açudes públicos.227 Não obstante a repercussão da assinatura deste decreto, o próprio João Pinheiro Neto, na época presidente da SUPRA, afirma em seu livro ―Jango: um depoimento pessoal‖: O Decreto da SUPRA, como ficou conhecido, visava a uma solução bastante simples, e que nada tinha de subversiva: tornar de interesse público, para efeito de desapropriação, dez quilômetros de faixas de terra ao lado de estradas, açudes e outras obras públicas. O Decreto redigido por mim por determinação de Jango foi medida que visava apenas a conter a especulação em torno dessas terras, já que era impossível no momento desapropriação de vulto, com pagamento à vista e em dinheiro.228 O próprio Goulart, já em momento bastante dramático em que divulga um manifesto denunciando os golpistas – texto que acabou sendo sua última mensagem enquanto presidente – também afirma que o decreto, ―embora não consubstanciasse uma reforma agrária verdadeira, ou a reforma reclamada pelos princípios cristãos de justiça social‖, havia determinado o ―recrudescimento de ódios e paixões‖.229 O manifesto fora divulgado na noite de 31 de março. No dia seguinte, Goulart foi deposto pelo golpe militar e, consequentemente, o referido decreto é revogado. Sendo assim, não obstante o esforço do presidente João Goulart em divulgar sua proposta de reforma agrária, destacando a defesa de princípios cristãos e democráticos e inserindo-a num projeto de desenvolvimento econômico nacional, distanciando-as das 225 GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1964, p. XXXVII. 226 Idem. 227 Ibidem, p. 97. 228 PINHEIRO NETO, João. Jango: um depoimento pessoal. Rio de Janeiro: Record, 1993, p. 39. 229 GOULART, J. Não me intimidarão. In: BRAGA, K. et al. (coord.). Op. cit., p. 243. 83 reformas realizadas pelos países comunistas, não foi possível efetivar qualquer avanço que fosse além do amplo debate desenvolvido na época em torno desta questão. 84 2. RELAÇÕES EXTERIORES: política externa independente e a tentativa de formação de um bloco latino-americano O direcionamento dado à política externa do Brasil em todo período Jango foi marcado por um conjunto de princípios que formavam a chamada política externa independente. Iniciada ainda no governo Jânio Quadros e mantida por João Goulart e os vários ministros que ocuparam a pasta das Relações Exteriores em seu governo, 230 a política externa independente, segundo San Tiago Dantas − ministro das relações exteriores do primeiro gabinete do governo Jango: não foi concebida como doutrina ou projetada como plano antes de ser vertida para a realidade. /.../ As atitudes, depois de assumidas em face de situações concretas que se depararam à Chancelaria, patentearam uma coerência interna, que permitiu a sua unificação em torno de um pensamento central de governo. Não quer isso dizer que a sua elaboração tenha sido empírica ou casual. Na origem de cada atitude, na fixação de cada linha de conduta, estava presente uma constante: a consideração exclusiva do interesse do Brasil, visto como um país que aspira (I) ao desenvolvimento e à emancipação econômica e (II) à conciliação histórica entre o regime democrático representativo e uma reforma social capaz de suprimir a opressão da classe trabalhadora pela classe proprietária.231 Como se vê, Dantas aponta, como princípios norteadores das ações do Itamaraty naquele momento, ideias fortemente propagadas pelo próprio presidente Jango em seus discursos: ideias de orientação nacionalista – visando o ―desenvolvimento e à emancipação econômica‖ – e reformista – buscando conciliar ―o regime democrático representativo e uma reforma social‖. Também vale expor aqui os pontos em torno dos quais, de acordo com San Tiago Dantas, foi ordenado o posicionamento brasileiro em sua política externa independente. Creio que esse sistema /.../ ordenou-se em torno dos seguintes pontos: A) contribuição à preservação da paz, através da prática da coexistência e do apoio ao desarmamento geral e progressivo; B) reafirmação e fortalecimento dos princípios de não-intervenção e autodeterminação dos povos; 230 Ao todo, foram cinco os ministros que ocuparam esta pasta ao longo do governo Jango: Francisco San Tiago Dantas (durante o gabinete Tancredo Neves, de 08 de setembro de 1961 a 12 de julho de 1962); Afonso Arinos de Melo Franco (durante o breve gabinete Brochado da Rocha, de 12 de julho de 1962 a 18 de setembro do mesmo ano); Hermes Lima (acumulando o cargo de primeiro-ministro, de 18 de setembro de 1962 a 24 de janeiro de 1963, permanecendo na pasta no início da fase presidencialista, de 24 de janeiro de 1963 a 18 de junho do mesmo ano); Evandro Cavalcanti Lins e Silva (de 18 de junho a 22 de agosto de 1963) e João Augusto de Araújo Castro (de 22 de agosto até a deposição do governo pelo golpe, em 01 de abril de 1964). A rotatividade de ministros na pasta deveu-se às constantes reformas ministeriais efetivadas pelo governo. 231 DANTAS, San Tiago. Política Externa Independente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962, p. 5. 85 C) ampliação do mercado externo brasileiro mediante o desarmamento tarifário da América Latina e a intensificação das relações comerciais com todos os países, inclusive os socialistas; D) apoio à emancipação dos territórios não autônomos, seja qual for a forma jurídica utilizada para sua sujeição à metrópole.232 Embora esta sistematização feita por Dantas tenha sido publicada ainda em 1962, no mês seguinte à sua saída do ministério, veremos que essas ideias continuarão presentes nos discursos do presidente Goulart, sempre que toca nos assuntos de relações exteriores; concentrando-se os pontos A e B nas justificativas do posicionamento brasileiro diante da questão de Cuba e da crise dos mísseis – em que sofria enorme pressão dos Estados Unidos, como veremos a seguir – e o ponto C nas relações com a América Latina e países do Bloco Soviético. Ainda que a análise da política externa brasileira no período que ora estudamos constitua importante tema para um trabalho mais detalhado e aprofundado (sobretudo no tocante às relações Brasil e Estados Unidos) que não encontra condições de ser realizado aqui, procuraremos, neste capítulo, expor qual o papel que o presidente João Goulart atribuía ao Brasil nas relações internacionais, enfocando as relações com os Estados Unidos e com os países latino-americanos – aos quais foi dedicada maior atenção do Itamaraty e do próprio presidente, que, com exceção da viagem a Roma, em setembro de 1963, por ocasião da escolha do papa Paulo VI, visitou apenas os Estados Unidos e o México, em abril de 1962, além de Chile e Uruguai, em abril de 1963. 2.1. Relações entre Brasil e Estados Unidos As relações do Brasil com os Estados Unidos constituirão a questão mais delicada e importante do Itamaraty durante o governo de João Goulart. Constituía uma necessidade brasileira a manutenção de boas relações com o país que gozava da condição de grande potência mundial, no ápice da Guerra Fria, e de importante credor, investidor e comprador dos produtos brasileiros no mercado internacional. A tensão entre os dois governos não emergirá imediatamente após a posse de João Goulart na presidência da república. Como nos mostra Moniz Bandeira, citando documento produzido em dezembro de 1961, Os serviços de inteligência dos EUA avaliaram então que a crise constitucional, desencadeada pela renúncia de Quadros, restringira, pelo menos durante algum tempo, a expansão da influência internacional do Brasil, cuja ―aspiração ao status de grande potência sofrera um revés‖, mas 232 Ibidem, p. 6. 86 observaram que, conquanto houvesse restabelecido (em menos de três meses) as relações diplomáticas com a URSS, seus vínculos com os países do Bloco Socialista não iriam muito além daquela moldura. O governo de Goulart, segundo estimavam, continuaria o caráter ―independente‖ de sua política externa, porém a necessidade de obter financiamentos, bem como considerações de ordem interna, torná-la-iam ―menos truculenta‖, vis-à-vis dos EUA, do que fora na administração de Quadros.233 Sendo assim, se por um lado o documento mostra certa desconfiança em relação a Goulart – a quem chamam de oportunista, ligado a casos de corrupção e de quem já previam a manutenção de um posicionamento, a princípio, contrário à imposição de sanções a Cuba234 – por outro, exprime a expectativa de viabilidade nas negociações com o governo brasileiro. Um dos primeiros momentos de explícita divergência entre os EUA e o governo Jango ocorre em janeiro de 1962, na VIII Reunião de Consulta dos Chanceleres das Repúblicas Americanas, ocasião em que é votada expulsão de Cuba da Organização dos Estados Americanos (OEA). Além disso, duas semanas após este evento em Punta del Este, Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul, anunciará a desapropriação do bens da Companhia Telefônica Riograndense, subsidiária da empresa estadunidense International Telephone & Telegraph (ITT). E este era o segundo caso de encampação efetivado pelo governador gaúcho; o primeiro ocorrera em 1959, com a filial da empresa de distribuição de energia Bond & Share, pertencente à American & Foreign Power (AMFORP). Tais encampações realizadas por Brizola constituirão ponto marcante na crise das relações entre Brasil e Estados Unidos. Dessa forma, o início do ano de 1962 explicita dois dos problemas que, juntamente com as questões de dívida externa e de novos empréstimos ao Brasil, serão a pauta das conversações entre os dois países: a questão cubana e o problema das encampações. Estes assuntos − que, inclusive, envolvem outros de grande relevância, como o programa da Aliança para o Progresso e o planejamento econômico brasileiro − serão os principais pontos de pressão do governo estadunidense sobre a administração João Goulart. 233 MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964. Rio de Janeiro: Revan/ Brasília (DF): EdUnB, 2001, p. 67. 234 Ao caracterizar o president João Goulart, o documento afirma: ―A confirmed opportunist even by Brazilian standards, the wealthy Goulart has yet to reveal any strongly-held political or economic philosophy, and has been frequently linked with corruption‖. E quanto ao provável posicionamento na questão cubana: ―Nevertheless, Brazil will probably continue to emphasize the ‗independent‘ character of its foreign policy. For these reasons it will almost certainly continue to oppose sanctions against Castro, although it would probably agree to some kind limited action if it seemed certain that most the major Latin American states were disposed to take such steps‖. In: ―Special National Intelligenge Estimate n. 93-2-61 – Short Term Prospects for Brazil under Goulart‖, 7.12.1961, secret NKL-76-199 § 3, JFKL, p. 3 e 7-8. Disponível em: <http://www.foia.cia.gov/docs/DOC_0000008146/DOC_0000008146.pdf> Último acesso em: 17 de maio de 2012. 87 2.1.1. AMFORP e ITT: as encampações de Brizola e as negociações financeiras com os Estados Unidos Para compreender melhor o problema das encampações das empresas subsidiárias americanas atuantes nos serviços públicos brasileiros – particularmente no Rio Grande do Sul – e como elas irão afetar as relações entre Brasil e Estados Unidos, vale fazer um breve histórico de como elas foram realizadas por Leonel Brizola, então governador gaúcho e figura de destaque dentro do PTB. Brizola assumira o governo do Rio Grande do Sul em 1959 e, com o objetivo de estimular o desenvolvimento industrial, e obter um fortalecimento geral da economia gaúcha, lançou uma série de iniciativas visando à melhoria da infraestrutura de seu estado. Como parte importante deste conjunto de medidas, estava a necessidade de promover avanços nos setores de energia e comunicações, ambos sob controle de filiais de empresas estadunidenses. O primeiro enfrentamento ocorrerá ainda no primeiro ano do seu governo, na busca de um maior e melhor abastecimento de energia elétrica. A meta do governo de Brizola consistia de dotar o Rio Grande do Sul de 1 milhão de kW e de um moderno sistema de comunicações. Lá só existiam algumas termoelétricas, a carvão e óleo, e pequenas usinas hidrelétricas, de propriedade do Estado. Sua produção, já insuficiente para as necessidades locais, era fornecida em bruto à Companhia de Energia Elétrica Riograndense, filial da Bond & Share, proprietária da rede de distribuição na Grande Porto Alegre e cuja concessão estava vencida. As principais cidades do Rio Grande do Sul, particularmente Porto Alegre, viviam quase às escuras e suas indústrias sem energia. E a Companhia de Energia Elétrica Riograndense não se dispunha a realizar novos investimentos, a não ser que o Poder Público se submetesse às suas exigências, renovando-lhe a concessão por mais 35 anos e garantindo-lhe a cobrança de tarifas de acordo com os seus interesses.235 Diante desta situação, o governo efetuou, com autorização legal, o tombamento físico e contábil da empresa e iniciou negociações com a companhia, que, todavia, não levaram a um acordo entre as partes. Estabelecido o impasse, em 13 de maio de 1959, Brizola decreta a expropriação da filial da American & Foreign Power (AMFORP) no Rio Grande do Sul, com o depósito simbólico no valor de 1 cruzeiro, que fora estabelecido abatendo-se as contribuições populares espontâneas, na colocação de fios e postes, doações territoriais, indenização de pessoal, multas, remessa de lucros acima do legalmente permissível e a depreciação dos materiais. A soma dessas deduções suplantava o valor do acervo da companhia. O saldo resultara negativo. Era o Estado que tinha a cobrar, aplicado o critério do custo histórico, que a legislação brasileira, vigente na 235 61. MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Brizola e o trabalhismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 88 época, consagrava. Deu-se assim o valor de Cr$ 1,00 por mero simbolismo jurídico, fazendo o Estado o depósito do dinheiro num banco comercial, ao mesmo tempo que solicitava ao Poder Judiciário a imissão da posse. O Juiz Borges Fortes, da Fazenda Pública, concedeu-a, tão logo recebeu o pedido, argumentando que se limitava à estrita aplicação da lei.236 Tal expropriação gerou enorme repercussão interna e externamente. Segundo Moniz Bandeira, ―o Secretário do Tesouro Americano, Douglas Dillon, considerou o fato um mau exemplo para os demais países latino-americanos, pois, àquela época, nem mesmo Cuba, já sob o governo de Fidel Castro, havia adotado atitude semelhante‖.237 Brizola argumentava que, além das várias fraudes encontradas na contabilidade da empresa, todo o procedimento da encampação estava em conformidade com as regras legais e que, portanto, não constituía um ato arbitrário do governador. Sendo assim, seguiu com seu projeto de governo, passando então a enfrentar também a Companhia Telefônica Riograndense, filial da International Telephone & Telegraph (ITT). O caso era semelhante ao da Bond & Share: a empresa estava com a concessão estadual expirada e fora chamada por Brizola, ainda no início de seu mandato, para discutir a concessão e o desenvolvimento do setor. Além disso, o governador gaúcho enviara uma equipe de engenheiros à Europa, a fim de se especializarem em comunicações, e criara um fundo, alimentado por um novo tributo, a taxa de comunicações, que provia recursos para o desenvolvimento do setor. As negociações com a ITT se arrastaram por mais de dois anos até que se chegasse a um acordo. A solução ―consistia na criação de uma sociedade de economia mista, da qual o Estado participaria com 25%, a ITT, igualmente com 25% e o público usuário, com 50%‖.238 Para a definição do valor do acervo, Brizola e o vice-presidente da ITT concordaram que Cada uma das partes indicaria um árbitro e os designados escolheriam um terceiro, para desempatar, se necessário. Brizola convidou para representante do Estado um adversário político, membro da UDN, o Professor Luiz Lessegnieu de Farias, diretor da Faculdade de Engenharia. E a ITT, o Engenheiro Frederico Rangel, também professor universitário e colaborador da Companhia no Brasil. Os árbitros apresentaram o laudo e Brizola, embora considerasse alta a avaliação, não se manifestou, pois se sentia comprometido com a solução.239 236 Ibidem, p. 62. Idem. 238 Ibidem, p. 63. 239 Idem. 237 89 A questão parecia encerrada. No entanto, dois meses depois, ao ser interpelada pelo governo do Rio Grande do Sul, a ITT retrocede de sua posição: afasta seu vice-presidente, que até então encabeçara as negociações, e envia novos representantes para recomeçar o processo. A partir do recuo da ITT, entretanto, Brizola convenceu-se de que seus dirigentes buscavam simplesmente ganhar tempo até que ele terminasse seu mandato e decidiu, sem qualquer vacilação, tomar as medidas que o interesse público reclamava. Decretou a retomada dos serviços e expropriou o acervo da Companhia, com base no valor encontrado pelos árbitros.240 Destarte, em fevereiro de 1962, Leonel Brizola anuncia a desapropriação dos bens da filial da ITT no Rio Grande do Sul. Valendo-se de dados que teriam sido apurados ao longo de dois anos de fiscalização do Estado sobre as contas da Companhia, foram descontados do valor a ser pago à empresa as plantas doadas pelos municípios e pelo governo do estado, a indenização de pessoal, a reposição do material e os lucros irregularmente enviados para o exterior;241 sendo depositado o valor de 149,7 milhões de cruzeiros, considerados como ―justa, atual e prévia indenização‖ pelos bens desapropriados.242 E, mais uma vez, o procedimento foi ratificado pelo poder judiciário com a imissão de posse. Como se vê, e também como afirma Paulo Fagundes Vizentini, Essas encampações não eram ―revolucionárias‖ ou ―socializantes‖, /.../ pois só visavam dinamizar a economia capitalista. Certos serviços públicos da área de transportes, energia e comunicações eram providos por empresas estrangeiras que não os ampliavam nem modernizavam, criando pontos de estrangulamento na economia. Entretanto, o tom nacionalista de Brizola e a reação estrondosa dos grupos conservadores criavam um clima de insegurança para os investidores estrangeiros, o que afetava as já insatisfatórias relações com os EUA.243 De fato, as encampações das filiais de empresas norte-americanas terão grande repercussão no Congresso norte-americano, que chega a aprovar a chamada Emenda Hickenlooper,244 vedando a concessão de auxílio financeiro aos governos que confiscassem empresas estadunidenses, sem compensação considerada adequada.245 Vê-se, portanto, a 240 Ibidem, p. 64. Idem. 242 Ver MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 231, citando o jornal Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 17 fev. 1962. 243 VIZENTINI, Relações exteriores do Brasil (1945-1964): o nacionalismo e a política externa independente. Petrópolis (RJ): Vozes, 2004, p. 191. 244 Assim conhecida por ter sido apresentada pelo senador Bourke Hickenlooper. 245 Embora os Estados Unidos já tivessem enfrentado situações similares de encampações na Indonésia e no Ceilão, Roberto Campos, então embaixador brasileiro em Washington, considera que ―a emenda Hickenlooper foi essencialmente um subproduto dos confiscos (sic) de Brizola‖. In: CAMPOS, Roberto de Oliveira. A lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994, p. 471. 241 90 importância que o tema da nacionalização das empresas norte-americanas ganhará nas conversações entre Brasil e Estados Unidos durante o governo João Goulart. Sobre este assunto, o presidente João Goulart falará publicamente em discurso realizado em 23 de março de 1962, no Rio de Janeiro, na ocasião de um almoço oferecido pela Câmara Norte-Americana de Comércio, dias antes de sua viagem aos Estados Unidos. Nesta oportunidade, Goulart primeiramente destacará a importância da colaboração técnica, empresarial e do capital estrangeiros, recebidos no país para a execução dos serviços públicos: Águas e esgotos de grandes cidades, estradas de ferro, energia elétrica, bondes, portos, navegação, telefones, e tantos outros serviços públicos neste país, são o produto do pioneirismo de grandes empreendedores estrangeiros, que vieram radicar-se no Brasil e trouxeram técnica e capitais, para impulsionar o nosso progresso através do processo de concessões de serviços públicos. Não há negar-se que tal processo, em que a iniciativa privada e o Poder Público contratam colaborar para a melhor execução de serviços imprescindíveis às populações, assinala a primeira grande experiência da junção de esforços públicos e privados para a realização de grandes tarefas, e produziu fecundos resultados.246 No entanto, afirma que, por motivos diversos, ―o sistema‖ que congregava ―esforços públicos e privados‖ nesse setor se exaurira, deixando como consequência várias e largas áreas de atrito entre a opinião pública, o poder concedente e o concessionário, e, por um fenômeno muito natural de transposição, envenenando as próprias relações entre o nosso país e governos estrangeiros, especialmente o mais representativo deles neste setor, o dos Estados Unidos.247 Depois de lembrar – e defender – o abandono da ―cláusula-ouro‖ por Getúlio Vargas como uma ―imprescindível atitude de defesa de interesses nacionais legítimos‖,248 Goulart aponta entre os motivos da exaustão do modelo, o ―desajuste tarifário de uma economia inflacionária e em expansão e o incontestável desinteresse dos capitais e investidores na ampliação desses serviços‖ – o que acarretava a ―perda de sua capacidade de expandir-se e atender às exigências do desenvolvimento do País‖.249 E resume a situação da seguinte forma: De tudo resultou o quadro que aí está, comprovado por quantos examinam a realidade nacional. Empresas que desempenharam relevante papel na história econômica do País estão hoje enquistadas em setores fundamentais para o nosso desenvolvimento, sem possibilidade de atender aos reclamos de nossa 246 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 35-36. Ibidem, p. 36. 248 A cláusula-ouro consistia num mecanismo que garantia às empresas concessionárias de serviços de abastecimento de água e energia um reajuste sistemático de parte das tarifas pela cotação do ouro. Este mecanismo é revogado por Getúlio Vargas ainda em 1934, no Código de Águas. Sobre o tema, ver: BASTOS, Pedro Paulo Zahluth A construção do nacional-desenvolvimentismo de Getúlio Vargas e a dinâmica de interação entre Estado e mercado nos setores de base. Revista Economia, Brasília, v. 7, n. 4, dez. 2006, pp. 239-275. 249 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 36. 247 91 economia em expansão e de uma clientela crescente de serviços públicos. Entram, por isso, serviços e empresas, em deterioração, e se tornam cada vez mais deficientes.250 Além de afirmar que ―salvo raríssimas exceções, o fato é que essas concessões, em geral, no Brasil, funcionam mal, funcionam inadequada e insuficientemente‖, o presidente também aborda o problema das tarifas cobradas por esses serviços públicos. Segundo ele, ainda que se admitisse que as tarifas não fossem as mais favoráveis para as concessionárias, a população ―mal servida‖ se veria ―com o direito de proclamar que paga caro, em relação ao seu poder aquisitivo, por serviços ruins‖.251 Após expor o problema nestes termos, o presidente Goulart, chama para si a responsabilidade de Chefe de Estado – que seria ―um dos responsáveis pela tranqüilidade nacional‖ – e afirma a ―necessidade de uma solução que atenda, neste importante setor, aos justos reclamos populares‖ sem, no entanto, provocar aos empresários estrangeiros ―inquietação ou o pânico, o que só agravaria dificuldades recíprocas, no presente e no futuro‖.252 E finaliza: Desejo enfim, senhores, ser fiel ao meu passado e às minhas convicções. Desejo ir ao encontro do interesse do povo, sem trair jamais meus compromissos com ele livremente assumidos. Estou certo, porém, de que esses anseios populares podem ser atendidos sem provocar reações desaconselháveis aqui e no exterior, especialmente entre os países, os homens e os grupos que no Brasil tenham invertido ou venham a inverter seus capitais. Entendo que, também aqui, podemos e devemos encontrar um denominador comum que, atendendo em primeiro plano aos interesses do Brasil, não desatenda ao das empresas concessionárias. /.../ Se tais serviços públicos, por diversas razões, já não podem cumprir suas tarefas de bem servir o povo, se as próprias empresas sustentam que já não estão obtendo resultados satisfatórios, e como desejamos que esses capitais aqui permaneçam em setores onde não sejam inquietados e onde possam dar maior contribuição ao progresso nacional, não será difícil encontrarmos a solução do entendimento, que, atendendo aos altos interesses nacionais e populares, não crie embaraços ou provoque danos aos investidores de capitais, seja qual for a sua bandeira de origem. E, principalmente, meus senhores, quando tais questões envolvem interesses de dois países, que, por sua identificação com o ideal democrático, têm, nesta hora, mais que em qualquer outra, o dever de evitar incompreensões e choques em suas relações cotidianas, como é o caso do Brasil e dos Estados Unidos, o problema que se apresenta é uma convocação simultânea à capacidade de decidir dos governos e ao bom senso ou à capacidade de compreender dos interessados.253 250 Idem. Ibidem, p. 37. 252 Idem. 253 Ibidem, pp. 37-38. Grifo nosso. 251 92 Sendo assim, mais uma vez, Jango explicita a mesma atitude que procura manter ao longo do seu governo: a da busca de ―um denominador comum‖ entre as partes cujos interesses entram em contradição. Ainda que mostre ser legítima a insatisfação da população e dos governos estaduais com os serviços públicos prestados pelas empresas estrangeiras – a primeira, pela má qualidade dos serviços e pelo impacto das tarifas cobradas em seu poder aquisitivo, e os segundos por encontrarem na insuficiência dos serviços prestados um sério obstáculo para o desenvolvimento econômico de seus estados e municípios – Goulart não aponta as concessionárias estrangeiras como grandes vilãs a serem expurgadas do país. Pelo contrário, o presidente mostra preocupação em evitar a ―inquietação‖ ou os ―danos‖ entre os investidores e em manter o capital estrangeiro no país, mas em outros setores que não o dos serviços públicos – ―setores onde não sejam inquietados e onde possam dar maior contribuição ao progresso nacional‖. Dessa forma, uma vez que o capital estrangeiro, atuante num setor estratégico para o país, se encontrava, naquele momento, ―sem possibilidade de atender aos reclamos de uma economia em expansão‖, a solução seria negociar o retorno dos serviços públicos para as mãos do poder público, de forma a garantir que este mesmo capital estrangeiro permanecesse investido na economia brasileira, porém em setores que trouxessem melhor compensação para ambas as partes. Os mesmos argumentos explicitados por Jango na Câmara Norte-Americana de Comércio ele os apresentará, de maneira mais sucinta, em sua visita aos Estados Unidos. Discursando em Nova York, em banquete oferecido pelas associações americano-brasileiras, em 6 de abril de 1962, Goulart ratifica: Não concorreram os brasileiros, nem seus governos, para qualquer malentendido no que se refere a tais investimentos. Temos cumprido nossas leis com relação a esses bens e direitos e se, no campo das concessões de serviço público, as atuais transformações, de caráter social e econômico, tornam menos rendosas essas atividades, por certo que o Governo e as empresas concessionárias saberão encontrar a linha justa da conciliação que, atendendo aos interesses de ambas as partes, satisfaça também aos interesses do povo.254 Ao final da visita do presidente Jango aos Estados Unidos, também será publicado um comunicado conjunto dos presidentes de Goulart e Kennedy que, entre outros temas, documenta que: O Presidente do Brasil manifestou a intenção de seu Governo de manter condições de segurança, que permitirão ao capital privado desempenhar o seu papel vital no desenvolvimento da economia brasileira. O Presidente do Brasil declarou que nos entendimentos com as companhias para a 254 Ibidem, p. 60. 93 transferência das empresas de utilidade pública para a propriedade do Brasil será mantido o princípio de justa compensação com reinvestimento em outros setores importantes, para o desenvolvimento econômico do Brasil. O Presidente Kennedy manifestou grande interesse nessa orientação.255 Embora, como já afirmamos anteriormente, não seja objeto deste trabalho a análise de todos os atos administrativos do governo João Goulart, vale, neste momento, salientar que, pouco mais de um mês após sua visita de Jango aos Estados Unidos, o Conselho de Ministros publicava o Decreto 1.106, de 30 de maio de 1962, determinando: 1) a criação da Comissão para Nacionalização das Empresas de Serviço Público (CONESP), submetida ao PrimeiroMinistro, com os encargos de ―submeter à aprovação do Conselho de Ministros a relação dos serviços que devem passar ao regime de exploração direta, indicando a ordem de prioridade‖ e de ―negociar com os representantes das empresas concessionárias as condições e a forma de reembolso ou indenização aos acionistas, e submeter ao Conselho de Ministros o plano resultante de cada uma dessas negociações‖; e 2) que as indenizações acordadas com as empresas concessionárias fossem pagas em parcelas, sendo a primeira, à vista, de no máximo 10% da importância total e o restante em ―prestações compatíveis, sempre que possível com recursos acumulados pelo próprio serviço e com o mínimo de recursos públicos adicionais‖ e mediante o ―compromisso dos concessionários de reaplicar no País, em setores ou atividades definidos pela Comissão Nacional de Planejamento como prioritários para o desenvolvimento econômico e social,‖ no mínimo 75% do valor recebido como indenização.256 No entanto, a criação da CONESP não seria o suficiente para que as negociações com as empresas estrangeiras avançassem no ritmo que desejavam os Estados Unidos. E, em julho de 1962, o presidente John Kennedy– através de Lincoln Gordon, seu embaixador no Rio de Janeiro – envia um telegrama ao presidente Goulart lamentando que o problema das encampações não tenha ainda se resolvido dentro das linhas acordadas durante a visita de Jango e alertando que, sendo tal problema de considerável preocupação do governo dos Estados Unidos, o atraso na sua resolução certamente seria um empecilho nas relações de amizade entre os dois países.257 255 MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart aos Estados Unidos da América e ao México. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1962, p. 35. 256 Decreto do Conselho de Ministros nº 1.106, de 30 de Maio de 1962. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decmin/1960-1969/decretodoconselhodeministros-1106-30-maio-1962353086-publicacaooriginal-1-pe.html> Último acesso em: 29 de maio de 2012. 257 É a seguinte a íntegra do telegrama datado de 11 de julho de 1962: ―Dear Mr. President: You will recall that during our recent conversations we discussed the problems arising from the expropriation of the properties of the Compania Telefonica Nacional, a subsidiary of the International Telephone and Telegraph Company. I am sorry that a solution to this problem along the lines we discussed has not yet been reached. As you know this matter is one of considerable concern to the United States Government and delay in its settlement undoubtedly obscures 94 Ainda no ano de 1962, o presidente João Goulart receberá uma nova cobrança do governo estadunidense para a finalização de um acordo de compra das subsidiárias da AMFORP e ITT. Desta vez, o emissário será Robert Kennedy, irmão do presidente norteamericano e procurador-geral de seu governo, cuja reunião com Goulart ocorre em 17 de dezembro. Segundo Roberto Campos, um dos objetivos da viagem de Robert Kennedy ao Brasil era o de ―manifestar apreensão‖ diante do ―descaso na execução do entendimento KennedyGoulart, durante a visita deste último a Washington, sobre a nacionalização pacífica das empresas de serviços públicos encampadas por Brizola‖; uma vez que, segundo o representante do governo dos Estados Unidos, havia um ―crescente antagonismo do Congresso americano a programas de ajuda externa a países que tivessem confiscado propriedades americanas‖ e que a ―inércia‖ do governo brasileiro neste assunto ―encorajaria elementos negativistas no Congresso americano a amputar verbas de ajuda, não só para o Brasil, mas para toda a América Latina‖.258 Kennedy solicitava que as atividades empresariais fossem tratadas ―com justiça‖, particularmente no pagamento de uma ―indenização adequada‖ às empresas.259 Os outros pontos tratados por Robert Kennedy foram: a ―deterioração da situação econômica do Brasil, tanto interna quanto externamente‖; a necessidade de o governo brasileiro combater efetivamente a inflação; e a preocupação do governo americano com uma suposta ―‗infiltração comunista ou de nacionalistas de extrema-esquerda‘ no governo, nas Forças Armadas, na liderança dos sindicatos de trabalhadores‘ e na ‗liderança estudantil‘‖.260 Na análise de Moniz Bandeira, o significado da visita de Robert Kennedy ao presidente Goulart era o de que ―o governo de Washington, na verdade, estava a utilizar os empréstimos the warm friendly relations between the United States and Brazil. I would be most grateful for any immediate action on your part to settle this urgent and important problem in accordance with our personal discussions and agreement. I have asked Ambassador Gordon to discuss this matter with you in greater detail. May I take this occasion to renew my expression of respect and regard. With every best wish, John F. Kennedy‖. In: JOHN F. KENNEDY PRESIDENTIAL LYBRARY AND MUSEUM. Digital Archives. Folder: Brazil: Security, 1962; Digital Identifier: JFKPOF-112-014; p. 26. Disponível em: <http://www.jfklibrary.org/AssetViewer/Archives/JFKPOF-112-014.aspx> Último acesso em: 28 de maio de 2012. 258 CAMPOS, Op. cit., p. 501. 259 LOUREIRO, Felipe Pereira. O Plano Trienal no contexto das relações entre Brasil e Estados Unidos (19621963). In: XXXIX ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, 2011, Foz do Iguaçu (PR). Anais do XIXXX Encontro Nacional de Economia (ANPEC), 2011, p. 5; citando os seguintes documentos norte-americanos: Embtel A-710, 19.12.1962, JFKL, NSF, Box 13A, Folder Brazil, General, 12/16/62 - 12/31/62, p. 2; pp. 5-10. Artigo também disponível em: <http://anpec.org.br/encontro/2011/inscricao/arquivos/000dee84beca059ff4b73fb482757a9b9bc.pdf>. Último acesso em: 29 de maio de 2012. 260 Idem. 95 ao Brasil como instrumento de pressão econômica e política, aproveitando-se de suas dificuldades com o balanço de pagamentos‖.261 O déficit no balanço de pagamentos do Brasil em 1962 fora ―da ordem de 400 milhões de dólares‖262; além do que, mais da metade da dívida total do país, que em 1963 atingiria o valor de cerca de 3 bilhões e 800 milhões de dólares, venceria até 1965.263 O ano de 1963 se inicia com a retomada do presidencialismo no Brasil, referendado em plebiscito, e a retomada de negociações com os Estados Unidos. Em março, San Tiago Dantas, agora Ministro da Fazenda do gabinete presidencialista do governo Jango, é enviado em missão a Washington, com o objetivo de negociar a extensão de prazos para o pagamento dos compromissos brasileiros, cujo vencimento se aproximava, bem como obter novos auxílios financeiros. Junto com seu ministro, o presidente João Goulart remete uma carta ao presidente John Kennedy dizendo que, ainda que desejasse poder anunciar ―a conclusão das negociações para nacionalização, mediante compra, das empresas concessionárias de serviços públicos filiadas à American Foreign Power e à International Telephone and Telegraph‖, as ―sucessivas crises políticas‖ no Brasil teriam prejudicado as negociações com as empresas concessionárias. Contudo, Goulart comemora o fato de que, a partir de contatos entre o anterior Ministro da Fazenda, Miguel Calmon du Pin, e o Secretário do Tesouro americano, Douglas Dillon, se concluíra, ―de forma reputada satisfatória por ambas as partes‖, a encampação da subsidiária da ITT do Rio Grande do Sul. Quanto à AMFORP, o presidente destaca que, desde sua visita a Washington, as autoridades brasileiras mantiveram contato com as empresas, obtendo ―resultado positivo‖ quanto às ―cláusulas fundamentais‖ do acordo de compra. Com isso, haveria a expectativa de que, em breve, a negociação fosse concluída: Dentro de poucos dias, reabertos os trabalhos do Congresso Nacional e alcançado um esclarecimento mais amplo da opinião pública, espero que também o caso da American Foreign Power esteja resolvido na linha dos nossos entendimentos e de acordo com as bases estabelecidas na negociação entre os representantes dessa empresa e as autoridades brasileiras. Estou convencido de que desse modo, ficam eliminadas as áreas de atrito que vinham prejudicando o desenvolvimento de entendimentos de maior alcance, do interesse dos nossos países, e que os propósitos expressos no 261 MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 96. GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1963, p. 8. 263 Entrevista do Presidente João Goulart à Revista Manchete em novembro de 1963. In: CASTELLO BRANCO, C. Op. cit., pp. 234-245. 262 96 comunicado conjunto resultante de nossas conversações em Washington, sejam plenamente alcançados.264 Vale notar que, embora a carta constitua uma tentativa clara de tranquilizar o governo americano quanto à compra das empresas e facilitar as demais negociações das quais a comitiva brasileira estava incumbida – e cujos resultados seriam de enorme importância para a economia do país –, a mensagem aponta uma preocupação com o ―esclarecimento mais amplo da opinião pública‖ sobre as negociações de compra da American Foreign Power; mostrando a possibilidade de a medida ter uma repercussão negativa no Brasil. A incumbência de Santiago Dantas de obter empréstimos e refinanciamentos junto aos Estados Unidos e FMI encontrou grandes dificuldades. David Bell, administrador da United States Agency for International Development (USAID), insistia em condicionar a abertura dos fundos norte-americanos ―ao desempenho do governo Goulart em um conjunto de áreas (política monetária, cambial, fiscal)‖.265 Embora ―muitos dos critérios de desempenho recomendados pelas autoridades norte-americanas‖ tenham sido ―considerados inaceitáveis pelo Ministro da Fazenda, tais como o estabelecimento de prazos específicos para a liberação total do câmbio, ou a extinção dos subsídios federais às companhias ferroviárias e marítimas‖, San Tiago Dantas acabou cedendo seu consentimento para a ―publicação de uma carta de intenções em nome do governo brasileiro, além de se comprometer a concluir o processo de encampação das subsidiárias da American Foreign and Power (AMFORP)‖.266 Ao narrar o episódio que intitula de ―O insucesso de San Tiago Dantas‖, Celso Furtado aponta para o fato que tanto Dantas como os norte-americanos sabiam da importância do apoio externo ao governo Brasileiro − sem ele, ―o governo brasileiro seria forçado a adotar medidas drásticas, simplesmente para garantir o funcionamento da economia, medidas impopulares que dificilmente o presidente apoiaria‖. 267 Em seu aspecto técnico, o Plano Trienal, que era a base da negociação de San Tiago Dantas com os norte-americanos foi amplamente elogiado, já que Furtado afirma ter tomado o cuidado de ―embutir um conjunto de providências estabilizadoras que estavam longe de ferir a sensibilidade ortodoxa dos técnicos do FMI‖. O que, segundo o próprio Dantas, funcionou, 264 Carta do presidente João Goulart ao presidente John F. Kennedy, datada de 08 de março de 1963. In: JOHN F. KENNEDY PRESIDENTIAL LYBRARY AND MUSEUM. Digital Archives; Folder: Brazil: General, 1963: January-April; Digital Identifier: JFKPOF-112-011, pp. 6-7. Disponível em: <http://www.jfklibrary.org/AssetViewer/Archives/JFKPOF-112-011.aspx> Último acesso em: 28 de maio de 2012. Grifo nosso. 265 LOUREIRO, F. P. Op. cit., p. 10. 266 Ibidem, p. 11. 267 FURTADO, C. Op. cit., pp. 249-255. 97 sendo o ―primeiro plano gradualista da inflação contra o qual os técnicos do Fundo [Monetário Internacional] nada têm a dizer‖.268 Mas como aponta Furtado, ―os problemas importantes não estavam na alçada dos técnicos‖. Como se não bastasse o fato das negociações com os ―banqueiros de New York‖ não terem avançado, San Tiago Dantas ainda teria sido chamado ao telefone por David Rockefeller, do Chase Manhattan Bank, e ouvido uma ―espinafração‖, por estar, naquele momento, tramitando no Congresso brasileiro um projeto de reforma bancária: ―Ou vocês retiram de imediato esse projeto de lei ou eu mando cortar todas a linhas de crédito de que hoje se beneficia o Brasil‖. Ele sabia mais do que ninguém, que o Brasil estava no limite do sufoco no que respeita ao financiamento a curto prazo em suas transações comerciais com o exterior.269 É neste contexto, segundo Furtado, que se explica o fato de San Tiago Dantas ter subscrito a proposta de entendimento com o grupo American Foreign Power (Bond and Share), a ser assinada por Roberto Campos e pelo vice-presidente da AMFORP. Os valores dessa proposta seriam posteriormente, no Brasil, considerados excessivos, gerando um grande desgaste político para San Tiago Dantas e para o governo de João Goulart. Assim, como resultado das negociações, que se mostraram insatisfatórias para o governo brasileiro, o governo Kennedy consentiu na liberação imediata apenas de US$ 84 milhões – e, mesmo assim, sob a condição secreta de a administração Goulart concluir a compra das subsidiárias da AMFORP. Os recursos restantes (US$ 314,5 milhões) seriam distribuídos ao longo de um ano, e dependentes do desempenho brasileiro nos compromissos assumidos por Dantas. O Ministro da Fazenda também foi informado de que o governo Kennedy poderia rever os termos de seu auxílio econômico caso o governo Goulart não firmasse um standby com o FMI até junho de 1963.270 Dessa forma, o governo brasileiro, além de não obter o auxílio financeiro de que necessitava, viu-se também pressionado a concluir a compra das subsidiárias das empresas norte-americanas – medida que certamente encontraria resistência entre os setores nacionalistas que formavam sua base de apoio. Menos de um mês após as negociações de Dantas em Washington, o embaixador americano Lincoln Gordon teria ameaçado o presidente Goulart ―com o congelamento da 268 Ibidem, p. 251. Ibidem, p. 253. 270 LOUREIRO, F. P. Op. cit., p. 13. 269 98 primeira parcela do acordo caso a situação não fosse resolvida‖. E, em resposta, Jango teria prometido ―que o ‗caso AMFORP‘ seria solucionado até o dia 19 de abril‖.271 Em 8 de abril de 1963, Goulart publica o Decreto nº51.892, que extingue a CONESP (criada em maio de 1962 e que, até então era a responsável pelos casos de nacionalização de empresas de serviços públicos) e cria uma Comissão Interministerial (composta pelos ministros da Fazenda, de Minas e Energia, de Viação e Obras Públicas, da Indústria e Comércio e da Guerra) com a função de ―decidir sobre a nacionalização das empresas concessionárias que exploram o serviço público de energia elétrica ou telecomunicações‖.272 Seguindo-se a este decreto, No dia 20 de abril, em reunião extraordinária no gabinete do Ministério da Guerra, a Comissão Interministerial aprovou por unanimidade os termos de negociação /.../. Dois dias depois, Roberto Campos assinaria o memorando de entendimento com os representantes da empresa em Washington.273 A assinatura deste ―memorando de entendimento‖ gerará enorme polêmica no Brasil. Afinal, a Comissão Interministerial teria concordado com o pagamento de 166,6 bilhões de cruzeiros, enquanto a CONESP/Eletrobrás calculara 57 bilhões de cruzeiros.274 No dia 28 de maio de 1963, Brizola denuncia em cadeia de rádio e televisão os ―entendimentos promovidos pelo ministro San Tiago Dantas em Washington como ‗crime de lesa-pátria‘, dizendo que se o governo de Goulart os efetivasse criaria com ele uma situação de ‗discordância insanável‘‖.275 A partir de então, detonou-se uma série de manifestações contrárias ao acordo. Duas Comissões Parlamentares de Inquérito foram montadas no Congresso para investigar o assunto. Em maio de 1963, o deputado Leonel Brizola (PTB-GB) distribuiu um relatório em Brasília denunciando o acordo como ―lesivo aos interesses da nação‖. Dias depois, o deputado Simão da Cunha (UDN-MG), falando em nome da ―bossa nova‖ undenista, e com apoio do ―grupo compacto‖ do PTB, afirmou que a Câmara seria obrigada a votar o ―impeachment‖ de Goulart caso o presidente continuasse insistindo em manter o acordo com a companhia norte-americana. As constantes e abertas defesas do negócio feitas por Dantas e Campos não foram suficientes para conter a avalanche de críticas. Como a embaixada norte-americana informou a Washington, a campanha das esquerdas contra a AMFORP estaria ―ofuscando todas as demais questões políticas‖.276 De acordo com Moniz Bandeira, 271 Idem, citando o documento: Embtel 1927, 05.04.1963, NARA, RG 84, Box 136, Folder 501; Embtel 7298, Section II, 09.04.1963, JFKL,NSF, Box 14, Folder Brazil, General, 4/63. 272 Decreto nº 51.892, de 8 de abril de 1963. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/19601969/decreto-51892-8-abril-1963-391705-publicacaooriginal-1-pe.html> Último acesso em: 29 de maio de 2012. 273 LOUREIRO, F. P. Op. cit., p. 13. 274 MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, pp. 109-110. 275 Ibidem, p. 107. 276 LOUREIRO, F. P. Op. cit., p. 14. 99 o memorandum, fixando o preço [de compra da AMFORP], foi assinado pelo embaixador Roberto Campos à revelia de Goulart, que, nos entendimentos com Kennedy, jamais assumira qualquer compromisso a respeito do quantum ou da forma pela qual o governo do Brasil compraria as concessionárias dos serviços públicos. Tanto assim que, tão logo se inteirou dos detalhes do negócio, Goulart incumbiu o líder do governo na Câmara Federal, Deputado Antônio Ferreira de Oliveira Brito, de denunciar o documento assegurando que só concluiria a transação depois de avaliado o patrimônio das empresas por técnicos brasileiros e preservados os interesses do país. Concomitantemente, determinou ao presidente da Eletrobrás, Paulo Richet, que constituísse uma comissão para fazer o tombamento patrimonial e contábil da Bond & Share. 277 Em defesa do presidente João Goulart, o deputado Oliveira Brito, então líder do governo na Câmara dos Deputados, desmentiu ―que o Governo tivesse marcado um prazo, a esgotar-se no dia 1 de julho, para a conclusão das negociações, como anunciou o Embaixador Roberto Campos em Washington‖. Afirmou ainda que o presidente não teria aprovado ―qualquer acerto, limitando-se unicamente a autorizar que se realizassem as negociações diretas através da Comissão Interministerial‖ e que o documento apresentado como ata da última reunião da Comissão, na verdade seria apenas ―um rascunho apresentado por um dos assessores da CONESP presentes àquela reunião‖ e que fora ―recusado por todos os ministros presentes, sem exceção‖.278 Além do pronunciamento de Oliveira Brito, o Gabinete Civil da Presidência da República distribuíra uma nota em que afirma que: A aquisição pela União do acervo da Companhia Telefônica Brasileira foi recomendada em relatório do Secretário Geral do Conselho de Segurança Nacional de 5 de dezembro de 1961, em parecer de 12 do mesmo mês do Sr. Consultor Geral da República, e em ato da Comissão Interministerial criada pelo decreto 51.892, de 8/4/62, conforme nota oficial de 20 de abril último.279 Contudo, garante que, naquele momento, nenhuma operação estaria concluída, existindo apenas negociação – que, no caso das empresas de telecomunicações, estava sendo conduzida pelo presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) – e que, ―antes de qualquer conclusão‖, seria concedido o ―amplo e prévio conhecimento ao Congresso e ao povo brasileiros‖, para que, ―através do debate franco‖, fossem ―resguardados os interesses nacionais‖.280 A nota reafirma, ainda a urgente necessidade de nacionalização 277 MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 110. ―Líder defende posição do Governo na compra das concessionárias‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 04 jun. 1963. 279 ―Jango responde carta de Lacerda sem dizer como são encampações‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 29 mai. 1963. 280 Idem. 278 100 das empresas concessionárias dos serviços de energia e telecomunicações para o desenvolvimento do país, defendendo a solução da compra como a mais adequada. A solução da compra através de negociações, tem em seu favor a possibilidade de alcançar, em prazo curto, a nacionalização dos serviços concedidos a estrangeiros, tornando a operação economicamente viável, por poder convecionar-se o pagamento a longo prazo, com a cláusula de sua aplicação facultativa para o Brasil em outras atividades econômicas selecionadas pelo governo federal. É desnecessário acentuar que a desapropriação por via judicial impediria o pagamento a longo prazo, dado que o art. 141, parágrafo 16, da Constituição exige a prévia e justa indenização em dinheiro, isto é, à vista.281 Como movimento seguinte à tamanha repercussão, o governo brasileiro determinou o cumprimento de uma avaliação dos ativos das subsidiárias antes da assinatura de qualquer contrato, a fim de ajustar o valor da compra de acordo com o avaliado. A AMFORP teria concordado com a realização prévia do inventário, desde que o governo ―se comprometesse a pagar o preço previamente estabelecido (US$ 142,7 milhões)‖.282 A condição da empresa não foi acatada pelo governo brasileiro e as negociações foram interrompidas. Contudo, ―o escândalo enfraqueceu Goulart‖.283 O governo Goulart, ao mesmo tempo em que tentava lidar com a enorme repercussão negativa dos acordos com a AMFORP, também tentava apresentar resultados a uma missão do FMI − chegada ao país em meados de maio −, procurando, mais uma vez, obter recursos financeiros. Contudo, o resultado da missão também não se mostrou satisfatório para o governo brasileiro. Foram concedidos US$ 60 milhões como empréstimo compensatório pela queda no valor das exportações do país e com a ressalva de que tal concessão ―não representaria um sinal de apoio da instituição à política econômica do governo Goulart, ou, muito menos, de que um acordo standby estaria a caminho‖.284 Para os membros do FMI, a administração Goulart não possuiria ―condições políticas‖ para implementar um ―adequado programa de estabilização‖. Propôs-se, diferentemente, o estabelecimento de uma ―moratória negociada‖ entre o Brasil e os credores, até que uma ―mudança de orientação política‖ do governo brasileiro permitisse a aplicação das ―medidas econômicas necessárias‖.285 281 Idem. LOUREIRO, F. P. Op. cit., p. 16. 283 MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 110. 284 Ibidem, p. 16, citando o documento: Report, IMF British Director, 09.06.1963, pp. 6-7. 285 Idem, citando o documento: Embtel 2320, 30.05.1963, NARA, RG 84, Box 136, Folder 501. 282 101 Sendo assim, Goulart, além de ver a imagem de seu governo prejudicada pela divulgação dos possíveis acordos com a AMFORP, recebera, pela segunda vez, um retorno frustrante quanto à tão necessária obtenção de recursos financeiros. O bloqueio aos créditos externos impôs um dilema a Goulart: ou ceder a Washington e, além de comprar a AMFORP, adotar o programa de estabilização do FMI, ou recorrer a medidas de caráter nacionalista, entre as quais a aplicação da lei que limitava as remessas de lucros para o exterior. /.../ Assim, as vacilações de Goulart, naquela conjuntura, decorriam menos do seu estilo de conduta do que de sua condição no poder.286 Ainda em junho de 1963, o presidente João Goulart executa uma reforma ministerial e, na pasta da Fazenda, substitui San Tiago Dantas – sobre quem pesavam a péssima repercussão do caso das nacionalizações e sua saúde já comprometida pelo câncer, que causaria sua morte no ano seguinte287 – por Carvalho Pinto, ex-governador de São Paulo, com boa aproximação junto ao empresariado. Mesmo indicando um reconhecido conservador para o Ministério da Fazenda, o governo Goulart não encontraria, a partir de então, melhores condições para negociar com os Estados Unidos: ―O fracasso na obtenção de um standby com o FMI, o relaxamento das metas do programa de estabilização de Furtado, e a quebra de compromisso no caso AMFORP levaram o governo Kennedy a congelar os recursos do acordo Bell-Dantas‖,288 condicionando o reescalonamento da dívida externa brasileira à concretização das medidas fixadas naquele acordo, ainda que houvesse resistência interna a elas.289 Em 1º de julho, os presidentes Kennedy e Goulart se encontram em Roma, por ocasião da coroação do Papa Paulo VI. Nesta oportunidade, Kennedy teria, mais uma vez abordado a questão da compra das concessionárias de serviços públicos, alegando que ―sofria fortes pressões para resolvê-la o quanto antes‖, uma vez que a corporação que controlava da AMFORP tinha ―largas ramificações‖ nos EUA.290 Goulart, além de tentar explicar dificuldades existentes para concluir as negociações nos termos em que as empresas pretendiam, teria também solicitado uma prorrogação do débito de US$ 25 milhões, que vencera em meio à crise cambial.291 Kennedy concorda em prorrogar o prazo de liquidação do débito; mas, envia uma carta em 10 de julho, que deixava o presidente João Goulart ―numa 286 MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, pp. 113-114. CAMPOS, R. Op. cit., p. 515 e p. 538. 288 LOUREIRO, F. P. Op. cit., p. 17. 289 MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 113. 290 Idem, pp. 121-122, citando entrevista de Evandro Lins e Silva, então recém-nomeado Ministro do Gabinete Civil, ao autor. 291 Idem. Ver também CAMPOS, R. Op. cit., p. 505. 287 102 posição bastante desagradável e comprometedora, sobretudo no que se referia aos entendimentos para a compra da AMFORP‖.292 Na carta, Kennedy assinala que, no encontro em Roma, Goulart havia solicitado um prazo de 60 a 90 dias para implementar o acordo entre o governo brasileiro e a AMFORP para a compra das propriedades desta empresa. E, afirmando ter entendido que seriam mantidos os termos acordados com a empresa no memorando assinado por Roberto Campos, propõe a negociação de uma emenda ao ―memorando de entendimento‖, que confirmaria os termos da compra e esclareceria as etapas a serem seguidas até a assinatura de um contrato definitivo.293 Dessa forma, a carta dava a entender que Goulart mantinha o ―compromisso‖ previsto no memorando firmado por Roberto Campos, mesmo depois de o presidente ter negado a aprovação de um acerto de compra da AMFORP. Procurando desfazer o ―mal-entendido‖, Goulart responde com carta do dia 23 de julho de 1963, em que, reafirmando a importância da colaboração e amizade entre Brasil e Estados Unidos, ressalta que os termos da carta de Kennedy nos pontos em que abordava seu pedido de adiamento da conclusão do acordo com a AMFORP não corresponderiam a suas intenções.294 Julgo, assim, indispensável prosseguirmos, através de nossos representantes, o diálogo que encetamos em Roma, com o objetivo de dirimir dúvidas que nele surgiram e pequenas discrepâncias que ainda parecem subsistir. Essa tarefa é tanto mais necessária quanto é certo que, em países democráticos como os nosso, nenhuma política mais ampla de cooperação é possível sem o apoio de uma opinião pública perfeitamente consciente e informada sobre fatos e operações que nela se inserem. Foi nesse contexto, que, em Roma, tive a oportunidade de referir-me ao esclarecimento de múltiplos setores da vida brasileira sobre alguns aspectos do problema da compra do acervo da ―American Foreign Power Company‖. 292 MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 122. Telegrama do Departamento de Estado dos Estados Unidos à sua embaixada no Rio de Janeiro, com transcrição da carta a ser entregue ao presidente João Goulart, datado de 10 de julho de 1963. O referido trecho é o seguinte: ―In connection with the purchase of the American and Foreign Power Company properties, I understood, from our conversation in Rome, that there Will be no departure from the terms agreed with the company and embodied in the memorandum of understanding signed by your Ambassador last April 22. However, you wished to arrange a 60 to 90 day deferment of the date. The best approach to this problem would be to negotiate with the company an amendment to the memorandum of understanding. Such an amendment would confirm the terms of purchase and make clear what steps will be taken during the additional time period to the signature of a definitive contract‖. In: JOHN F. KENNEDY PRESIDENTIAL LYBRARY AND MUSEUM. Digital Archives; Folder: Brazil: Security, 1963; Digital Identifier: JFKPOF-112-015, pp. 78-81. Disponível em: < http://www.jfklibrary.org/Asset-Viewer/Archives/JFKPOF-112-015.aspx> Último acesso em: 28 de maio de 2012. 294 Carta do presidente João Goulart ao Presidente John F. Kennedy, datada de 23 de julho de 1963. In: JOHN F. KENNEDY PRESIDENTIAL LYBRARY AND MUSEUM. Digital Archives; Folder: Brazil: General, 1963: May-November; Digital Identifier: JFKPOF-112-012, pp. 16-19. Disponível em: < http://www.jfklibrary.org/Asset-Viewer/Archives/JFKPOF-112-012.aspx> Último acesso em: 28 de maio de 2012. 293 103 Baseado nas palavras de Vossa Excelência e no seu amistoso espírito de colaboração, entreguei aos meus Ministros da Fazenda e de Minas e Energia a tarefa de discutir com as autoridades americanas e com a AMFORP os nossos problemas financeiros, bem como o das concessionárias, os quais não podem ser encarados isoladamente, mas como parte de todo um complexo de questões que recaem no Âmbito de uma ampla colaboração entre Brasil e os Estados Unidos da América. No tocante ao problema das concessionárias, minha intenção, Senhor Presidente, é, como lhe disse em Roma, evitar que o mesmo, se mal conduzido por nossos Governos, venha ampliar áreas de atrito, ao invés de eliminá-las, como era o propósito que nos inspirava ao expedirmos o comunicado conjunto de abril de 1962.295 Daí em diante, as negociações com as empresas estrangeiras concessionárias dos serviços públicos no Brasil não mais avançarão durante o governo Goulart. No caso da ITT, apesar de haver referências à conclusão de um acordo, o mesmo não será confirmado pelo governo Jango. Na carta enviada por Goulart a Kennedy, de 8 de março de 1963 – aqui já citada – o presidente afirma ter verificado ―com prazer, que o episódio da encampação da subsidiária da International Telephone and Telegraph do Rio Grande do Sul ficou concluída de forma reputada satisfatória por ambas as partes‖.296 Nos meses de janeiro e março daquele ano, especulou-se que um empréstimo do Banco do Brasil à Standard Electric, subsidiária da ITT, no valor de 7,3 milhões de dólares, constituíra, na verdade, uma ―indenização indireta‖.297 O presidente João Goulart, no entanto, negou tal procedimento, afirmando, em entrevista coletiva, que a questão com a ITT permanecia na Justiça e que a decisão resultante seria respeitada pelo Governo Federal.298 E, em discurso pronunciado durante entrevista concedida aos representantes do Comando Geral dos Trabalhadores, Jango procurou esclarecer: Ainda há pouco, /.../ tive a oportunidade de afirmar que esse empréstimo vinha sendo examinado já há algum tempo e que fora estudado pelo estabelecimento de crédito oficial do Brasil. Afirmei, também, aos jornalistas que o Governo, e especialmente eu, não tínhamos nenhum 295 Idem. Carta do presidente João Goulart ao presidente John F. Kennedy, datada de 08 de março de 1963. In: JOHN F. KENNEDY PRESIDENTIAL LYBRARY AND MUSEUM. Digital Archives; Folder: Brazil: General, 1963: January-April; Digital Identifier: JFKPOF-112-011, pp. 6-7. Disponível em: <http://www.jfklibrary.org/AssetViewer/Archives/JFKPOF-112-011.aspx> Último acesso em: 28 de maio de 2012. 297 Roberto Campos afirma, em suas memórias que ―a longa controvérsia‖ entre o governo brasileiro e a ITT teria mesmo sido regularizada mediante este empréstimo de ―US$ 7,3 milhões em termos concessionais‖. In: CAMPOS, R. Op. cit., p. 473. Também o artigo de Felipe Loureiro, utilizando documentos americanos como fonte, afirma que: ―Em janeiro de 1963, o governo brasileiro concluiu acordo com a International Telephone and Telegraph (ITT), pagando compensação pela expropriação de uma das subsidiárias da empresa no Rio Grande do Sul‖. Ver: LOUREIRO, F. P. Op. cit., p. 6, citando o documento Emprep A-941, 18.02.1963, Idem, Folder 2/6. 298 ―Para J. Goulart documentos cubanos não são importantes‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 31 jan. 1963. Transcrição de declarações dadas pelo presidente Goulart em entrevista coletiva, em Brasília. 296 104 conhecimento de que se fizesse qualquer pagamento a título de indenização, àquela empresa estrangeira. Se a operação pode ser objeto de críticas (e a crítica, no regime democrático, conduz ao esclarecimento), sobre o aspecto de indenização, ela não pode ser examinada, porque na realidade não houve nenhum pagamento de indenização. Embora tenha sido uma determinação do governo anterior, sinto-me perfeitamente à vontade para afirmar que não houve nenhum pagamento de indenização. O processo de desapropriação da IT&T encontrase na justiça brasileira. Caberá ao governo do país e ao presidente da República aceitar e aplicar a decisão da justiça. Dirão os trabalhadores: houve uma indenização indireta, porque houve um empréstimo. Não se trata, então, propriamente, da IT&T. Trata-se de uma subsidiária. É outra empresa, ligada a um grupo que opera na indústria de material elétrico. Realmente, o empréstimo foi feito à Standard Electric, e acredito que não seja o único feito no Brasil a companhias que operam em nosso território. O que fez a diretoria do Banco foi um empréstimo de natureza industrial, aprovado pelo Conselho de Ministros.299 De qualquer maneira, não haverá nenhuma conclusão formalizada pelo governo João Goulart. Há informações de que, além do referido empréstimo de janeiro de 1963, a empresa receberá um pagamento de 12,2 milhões de dólares em 1967 – portanto já durante a ditadura militar.300 Também a negociação com a AMFORP somente seria concluída no governo Castello Branco, através do ex-embaixador Roberto Campos, agora nomeado ministro do planejamento. Uma das primeiras medidas do Marechal Castello Branco, executada pelo Ministro do Planejamento, foi efetivar o acordo, pagando a indenização, acrescida de multa de 10 milhões de dólares pelo atraso. O Brasil pagou, parceladamente, à American & Foreign Powers cerca de 470 milhões de dólares, soma esta que englobava outras empresas do mesmo grupo.301 Vimos, portanto, o quanto as negociações com as empresas estadunidenses geraram controvérsias e pressões externas e internas para o governo João Goulart. Se por um lado a nacionalização das empresas concessionárias dos serviços públicos mostrava-se uma urgente necessidade do desenvolvimento econômico do país e da própria população, por outro, o governo brasileiro via-se em meio a uma crise cambial e inflacionária, com um grande déficit no balanço de pagamentos e com compromissos externos de grande vulto a serem pagos no biênio 1963-65 – o que o fragilizava enormemente nas negociações com o governo dos 299 ―Jango apela para que Plano Trienal seja debatido em todas entidades sindicais‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 06 fev. 1963. Grifos nossos. Transcrição de discurso pronunciado durante entrevista concedida pelo presidente João Goulart aos representantes do Comando Geral dos Trabalhadores. 300 KUCINSKI, Bernardo. O Estado da ITT. Opinião, Rio de Janeiro, n. 43, 3 a 10 de setembro de 1973, pp. 8-9. 301 MONIZ BANDEIRA, L. A. Brizola e o trabalhismo, p. 67. Já, Roberto Campos descreverá a mesma transação da seguinte forma: ―A transação foi finalmente concluída, em condições aliás melhoradas, já no governo Castello Branco, incorporando-se importante acervo ao patrimônio nacional, contra pagamento a longo prazo, em parte reinvestido em participações minoritárias em outras empresas no país, sem dano para o clima de investimentos‖. In: CAMPOS, R. Op. cit., p. 472. 105 Estados Unidos. Na correspondência entre João Goulart e John Kennedy, percebe-se a pressão exercida pelo governo norte-americano sobre o brasileiro, bem como as tentativas de Jango em evitar rupturas, uma vez que o auxílio financeiro externo era uma necessidade para a economia brasileira. Mesmo em discurso aos trabalhadores, Goulart afirmava: ―Não é do interesse do país assumir atitudes que possam criar reflexos imediatos e insustentáveis. Portanto, a minha posição, aqui, tem de ser de absoluto equilíbrio no sentido de salvaguardar, acima de tudo, o interesse do país‖.302 Os efeitos do modelo de industrialização brasileiro, implementado por Juscelino Kubitschek pesava agora sobre Goulart. Ainda que enaltecesse o nível de industrialização atingido pelo Brasil como uma ―autêntica reforma de base‖, o presidente Jango percebia que: Não podíamos, porém, por outro lado, pagar o financiamento que levantamos para custear essa autêntica reforma de base a que submetemos a estrutura nacional. As amortizações e os juros daquele financiamento vieram a pesar de maneira insuportável sobre a nossa economia. A capacidade demonstrada e provada pelo Brasil deveria dar-nos, porém, o inalienável direito ao crédito de que necessitamos. O mérito de nossas realizações não mais poderia ser omitido ou escamoteado. A situação brasileira era ainda mais grave pelo fato de que os preços dos gêneros exportados pelo Brasil caíam continuadamente. Basta dizer que o café e o cacau — e este, o cacau, foi até 1960 o segundo produto em nossa pauta de exportação — sofreram quedas superiores a 50%, no período de 1954 a 1963! Para dar uma idéia do que isto significa e nos custa, é suficiente observar que, se prevalecessem os preços vigentes em 1956, nossa receita cambial estaria proporcionando ao país, hoje, nada menos de 2,5 bilhões de dólares. Em 1954 exportamos 4,3 milhões de toneladas de mercadorias e obtivemos uma receita de um bilhão e 562 milhões de dólares. Em 1962, exportamos 12,4 milhões de toneladas de mercadorias e a receita alcançou apenas a ordem de um bilhão e 214 milhões de dólares. Exportamos três vezes mais, e baixou, todavia, a nossa receita cambial!303 Sendo assim, o Brasil não conseguia obter, através das exportações, divisas suficientes para cobrir o valor das importações necessárias para manter ou acelerar o ritmo do desenvolvimento econômico do país – já que grande parte das importações brasileiras 302 ―Jango apela para que Plano Trienal seja debatido em todas entidades sindicais‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 06 fev. 1963. 303 Entrevista do Presidente João Goulart à Revista Manchete em novembro de 1963. In: CASTELLO BRANCO, Carlos. Introdução a Revolução de 1964. Tomo 2. A queda de João Goulart. Rio de Janeiro: Artenova, 1975, pp. 234-245. 106 atendiam à necessidades industriais304 – e, ao mesmo tempo, cumprir com as obrigações da dívida externa. Como aponta, Cássio Silva Moreira, Nessas circunstâncias, estabelece-se um verdadeiro círculo vicioso, em que a assistência financeira servia principalmente para evitar um colapso total e imediato da nossa capacidade de pagar as importações e satisfazer os compromissos externos, sem todavia, impedir o caráter quase crônico dessa deficiência de divisas.305 Assim sendo, o caso das encampações ganhou maior importância na medida em que sua resolução, em termos favoráveis às empresas, se tornou uma das condições para que o governo brasileiro obtivesse auxílio financeiro externo – uma vez que se tratava de corporações de enorme influência internacional.306 Portanto, as decisões de maior significado foram tomadas num plano distinto daquele em que atuava San Tiago Dantas, o que explica a ineficácia de seus belos argumentos. À medida que ele perdia terreno, e se agravavam os desequilíbrios financeiros, uma situação nova se configurava.307 No entanto, um governo como o de João Goulart, que tomava para si o ideário nacionalista legado por Getúlio Vargas, não poderia se mostrar submisso aos interesses estrangeiros em detrimento dos interesses nacionais. A posição de assumir uma proposta de governo nacionalista, de busca da emancipação econômica do país, estando ao mesmo tempo premido por desequilíbrios financeiros e econômicos cujas soluções exigiam negociações internacionais, coloca João Goulart numa situação muito difícil de ser contornada – ainda mais porque o presidente se mantém firme na linha das negociações, descartando as possibilidades de ruptura unilateral. Sem auxílio financeiro externo, restará a Goulart se fixar na conquista de apoio interno para a execução das reformas que pudessem diminuir os desequilíbrios econômicos e sociais do país. No entanto, as dificuldades enfrentadas no âmbito da economia, para as quais não havia solução em curto prazo, acabavam utilizadas como importante artilharia por seus opositores poolíticos. 2.1.2. A questão de Cuba e a Aliança para o Progresso A vitória da Revolução Cubana contra a ditadura de Fulgêncio Batista, em janeiro de 1959, mesmo não constituindo, ainda em seu início, uma revolução comunista, transformou304 Em 1961, 39,8% das importações do Brasil se referiam a bens de capital; 18,8% a combustíveis, lubrificantes e derivados de carvão e petróleo; e 26,3% a outras matérias-primas. Ver: MOREIRA, C. S. Op. cit., p. 129. 305 Idem, p. 133. 306 Vale lembrar a fala atribuída ao presidente Kennedy de que ―a corporação que detinha o controle da AMFORP tinha ‗largas ramificações‘ nos EUA‖ e de que a ITT será apontada como financiadora do golpe contra o presidente Salvador Allende, do Chile, em 1973. 307 FURTADO, C. Op. cit., p. 255. 107 se numa enorme preocupação para os Estados Unidos. A possibilidade de o caso cubano tornar-se um exemplo para outros países da América Latina, abrindo maiores espaços para a penetração soviética no continente americano, era razão suficiente para que o governo estadunidense se mobilizasse para sustar esse processo revolucionário. Porém, para que sua atuação fosse bem sucedida, os Estados Unidos necessitariam do apoio dos demais países latino-americanos. Será nesse contexto que o representante do partido democrata americano, John F. Kennedy, assume a presidência do país, em 1961, e lança o programa da Aliança para o Progresso – um projeto que teria como objetivo auxiliar e estimular o desenvolvimento dos países latino-americanos. Como afirma Moniz Bandeira, Kennedy herdou de Eisenhower um continente com vários focos de contestação. Assumiu a Presidência dos Estados Unidos convencido de que sua grande luta seria impedir que a influência de Fidel Castro se difundisse a outros países da América. Mas sabia (e a política de Eisenhower-Dulles o demonstrara) que somente o uso de força não bastava para deter a diátese. Era preciso que Washington ajudasse os outros povos a melhorar suas condições de vida, abrindo-lhes perspectivas de mudança, dentro do Capitalismo. Em outras palavras, o imperialismo norte-americano teria que aceitar senão promover algumas reformas, se quisesse impedir a Revolução Social e salvar a essência do seu domínio. Esse, o sentido da Aliança para o Progresso.308 Kennedy, em seu discurso de lançamento do programa, afirma que a Aliança para o Progresso constituiria um ―vasto plano novo de dez anos para as Américas, um plano destinado a transformar a década de 1960 em uma década de progresso democrático‖. 309 O modo como Kennedy anuncia o programa da Aliança chega à aproximá-la ao plano Marshall, que auxiliou a reconstrução da Europa após a Segunda Grande Guerra. Contando com ―decididos esforços das próprias nações americanas‖, Kennedy promete: se os países da América Latina estão preparados para desempenhar sua parte – e estou certo de que estão – os Estados Unidos, acredito, contribuirão por sua vez para dar recursos de alcance e magnitude suficientes para garantir o êxito deste audacioso programa de desenvolvimento, do mesmo modo por que contribuímos para dar recursos necessários à reconstrução das economias da Europa Ocidental.310 A ideia de um plano de auxílio dos Estados Unidos aos países latino-americanos, à primeira vista, causa simpatias. No entanto, com o tempo, as verbas da Aliança para o 308 MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Presença dos Estados Unidos no Brasil (dois séculos de história). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 404. 309 ―Kennedy propõe um programa de dez anos para as Américas‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 mar. 1961. 310 Idem. 108 Progresso, passam a representar um fator de barganha para a obtenção de apoio aos interesses estadunidenses. A primeira ocasião em que esse tipo de negociação se torna flagrante será na VIII Reunião de Consulta dos Chanceleres das Repúblicas Americanas. A VIII Reunião de Consulta dos Chanceleres das Repúblicas Americanas Após o fracasso da tentativa de invasão do território cubano no conhecido episódio da Baía dos Porcos e a primeira declaração pública de Fidel Castro de que a Revolução Cubana era uma revolução socialista – ambos os fatos ocorridos em abril de 1961 −,311 os Estados Unidos passam a articular, com o auxílio de seus embaixadores nos países latino-americanos, a possibilidade de convocação de uma Reunião de Consulta dos Chanceleres Americanos. E, nos meses de outubro e novembro daquele mesmo ano Peru e Colômbia solicitam uma reunião de consulta da OEA, para que fosse examinada a questão de Cuba. Ao longo do período entre o início das articulações e a efetiva convocação da reunião de consulta, o Brasil se encontrava em meio à turbulência da renúncia de Jânio Quadros e da tumultuada posse de João Goulart sob a emenda parlamentarista. No entanto, a mudança de governo não significou uma mudança de postura do país em suas relações exteriores. O Itamaraty, sob o comando de San Tiago Dantas (naquele momento como Ministro das Relações Exteriores), mantinha a postura de não intervenção e de defesa da autodeterminação. Assumindo esta posição, San Tiago Dantas leva para a VII Reunião de Consulta dos Chanceleres Americanos – que ocorre entre 22 e 31 de janeiro de 1962, na cidade uruguaia de Punta del Este – uma proposta, não de intervenção, mas de neutralização de Cuba, levando como diretrizes básicas para o posicionamento brasileiro na Reunião ―votar contra medidas contrárias ao princípio de não intervenção, inclusive sanções militares, econômicas e diplomáticas‖, apoiando a ―constituição de uma Comissão Especial destinada a definir as obrigações e limites que Cuba deveria respeitar, a fim de que a presença de um governo socialista no Hemisfério não se tornasse ‗permanente ameaça às instituições e governos de outros Estados‖‘.312 Em outras palavras, a neutralização de Cuba requeria que ela assumisse, conforme a definição de San Tiago Dantas, as seguintes ―obrigações negativas‖: 1) compromisso de não contrair alianças militares com quaisquer potências ou grupo de potências; 2) limitação de armamentos, mediante o estabelecimento de certas garantias, como o compromisso de não intervenção pelos Estados Unidos; 3) abstenção de propaganda política e 311 Ver MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. 312 Ibidem, p. 387. 109 ideológica e de qualquer atividade no exterior que pudesse ser considerada subversiva ou contrária às instituições e governos dos outros Estados.313 O posicionamento brasileiro contrário a qualquer forma de intervenção foi apresentado com fundamentação jurídica. De acordo com San Tiago Dantas, enquanto a democracia representativa, com eleições livres e periódicas, seria uma aspiração para os países, os princípios de não intervenção e autodeterminação constituíam compromissos, inclusive pertencentes ao direito público internacional.314 Contudo, a fundamentação jurídica apresentada pelo Brasil não foi admitida pelas autoridades do Departamento de Estado dos Estados Unidos, para quem o comunismo de Cuba constituía uma ideologia ―expansionista e subversiva‖, incompatível com um estatuto jurídico. Sob este argumento, os Estados Unidos se opunham a qualquer solução de coexistência com um regime comunista no continente.315 Além de não aceitar a proposta, o Secretário de Estado americano, Dean Rusk, chegou mesmo a insinuar que ―a vitória dos Estados Unidos na VIII Reunião de Consulta era condição sine qua non da Aliança para o Progresso‖.316 Ameaças e promessas não faltaram e, como instrumento de pressão sobre os chamados ―países relutantes‖ da América Latina, Rusk informou que Kennedy estava a pedir maior apoio do Congresso para a OEA, o que incluía mais recursos da Aliança para o Progresso, acordo para redução de tarifas e exportação de commodities, mercado comum etc.317 Apesar de toda essa pressão prévia, ao discursar perante a Comissão Plenária da Reunião, Dean Rusk abriu mão de defender sanções contra Cuba ou o rompimento de relações diplomáticas; no entanto, sugeriu a interrupção do comércio com Cuba (principalmente de armamentos), bem como sua exclusão da OEA e da Junta Interamericana de Defesa.318 O texto por ele submetido ao plenário era formado por quatro itens, a saber: 1) declaração de incompatibilidade do marxismo-leninismo com os princípios do sistema interamericano; 2) declaração da incompatibilidade do governo revolucionário cubano, por ser marxista-leninista, com esse sistema; 3) proclamação de que tal incompatibilidade excluía o governo cubano do referido sistema; 4) recomendação ao conselho da OEA e aos seus órgãos e agências das providências necessárias ao cumprimento da Resolução.319 313 Idem. Ibidem, p. 382. 315 Ibidem, p. 385. 316 Ibidem, p. 388. 317 Idem. 318 Ibidem, p. 390. 319 Ibidem, p. 392. 314 110 Deste texto, o Brasil aprovou os dois primeiros itens, mas, assim como México, Argentina, Chile, Equador e Bolívia, se absteve nos dois últimos, alegando que, nos acordos e estatutos jurídicos da Organização, ―não continha qualquer disposição que autorizasse aquela medida. Além do mais, julgava que o isolamento conduziria Cuba a maior integração no Bloco Soviético‖.320 Não obstante a abstenção desse grupo de países importantes do continente, os Estados Unidos, que precisavam apenas de dois terços dos votos, obtiveram a aprovação de sua proposta por 14 votos, havendo 6 abstenções (Brasil, México, Argentina, Chile, Bolívia e Equador) e o voto contrário de Cuba. Dessa maneira, Cuba foi expulsa da Junta Interamericana de Defesa e teve seu governo revolucionário expulso da Organização dos Estados Americanos.321 Contudo, a Reunião que resultou numa vitória dos interesses estadunidenses − aprovando da expulsão de Cuba da Organização dos Estados Americanos (OEA) e condenando a adoção cubana ao marxismo-leninismo − gerou também um certo ―mal-estar‖ nas relações entre Brasil e Estados Unidos. A indisposição diplomática deveu-se a resposta do Secretário de Estado norteamericano, Dean Rusk à argumentação do então Ministro das Relações Exteriores brasileiro, San Tiago Dantas. Diante da defesa do ministro brasileiro de uma ―neutralização‖ de Cuba, e não de sua expulsão da OEA, Rusk teria declarado que não entendia o significado da não-intervenção. Argumentou que uma potência, como os Estados Unidos, sempre intervinha nos negócios internos de outras nações, mesmo quando deixava de fazê-lo. E citou que o Departamento de Estado recebeu solicitações para intervir no Brasil, quando ocorreu a renúncia de Quadros, e decidiu não atendê-las, o que, segundo ele, foi também uma forma de intervenção.322 Tal atitude do secretário americano levou o Itamaraty a pedir explicações ao embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon, que se desculpou pelo ―malentendido‖. Ainda assim, a imprensa brasileira criticou o tom de ameaça expresso por Dean Rusk,323 e, no geral, apoiou a postura do governo brasileiro na ocasião – diferentemente do 320 Ibidem, p. 391. Como destaca Moniz Bandeira, que a Resolução aprovada ―determinava a exclusão do governo revolucionário cubano da OEA, não de Cuba, sutileza capciosa para justificar a aplicação da medida‖. Ibidem, p. 393. 322 MONIZ BANDEIRA, L. A. Presença dos Estados Unidos no Brasil (dois séculos de história), p. 420. O autor aponta como fontes dessas informações os depoimentos de Renato Archer, chanceler interino naquela ocasião, e de delegados brasileiros presentes na Conferência de Punta del Este. 323 Idem, pp. 421-422. 321 111 que ocorreu no próprio Congresso brasileiro, onde houve duras críticas dos opositores do governo.324 O presidente João Goulart defenderá publicamente o posicionamento brasileiro em Punta del Este em sua visita aos Estados Unidos, no início de abril de 1962. Em discurso perante o Conselho da Organização dos Estados Americanos, Goulart defende o princípio de não intervenção, afirmando que seria justamente este o princípio que possibilitaria a associação dos países numa organização como a OEA. Só o respeito de todos à soberania de cada um pode associar dignamente Estados livres e independentes. /.../A criação da Organização dos Estados Americanos representa, portanto, o reconhecimento formal, por todos os Governos que a integram, de que a cooperação entre Estados soberanos, por mais íntima que seja, não dá direito a nenhum deles, nem mesmo à Organização que compõem, de atuar em terreno reservado exclusivamente à soberania interna das nações.325 Jango ressalta ainda a dificuldade do momento vivido, devido à polarização de posições e ressalta a importância da preservação da norma jurídica – ratificando, portanto, os argumentos apresentados por San Tiago Dantas na Reunião de Consulta: Não há como disfarçar que esta Organização atravessa um período difícil de sua história. Num mundo em que forças poderosas tendem à polarização e à tomada de posições extremas, mais árdua se torna a tarefa daqueles que têm o dever de não sacrificar o direito ao expediente político e de sobrepor a interesses de momento o primado permanente da norma jurídica. /.../ Não há de ser neste momento, quando as possibilidades de maior cooperação no campo econômico e social se alargam em novas perspectivas para os povos deste Hemisfério, que iremos permitir a abertura de uma fenda na solidez das bases jurídicas em que assenta a Organização dos Estados Americanos. Cumpre, portanto, agora mais do que nunca, à Organização e a cada um de seus membros, o dever de manter com firmeza tudo o que já foi obtido no terreno político e jurídico, como ponto de partida para as conquistas a serem ainda feitas no campo econômico e social.326 E ainda nessa mesma viagem, João Goulart defenderá, diante do Congresso americano, a coexistência com os países socialistas, afirmando que: a convivência entre o mundo democrático e o mundo socialista poderá ser benéfica ao conhecimento e à integração das experiências comuns e temos a esperança de que esses contatos evidenciem que a democracia representativa 324 Ver DANTAS, S. T. Op. cit. pp. 132-170. Em discurso pronunciado na Câmara dos Deputados, em 7 de fevereiro de 1962, o ministro San Tiago Dantas teve que responder à oposição de deputados como Abel Rafael, Arruda Câmara, Padre Vidigal, Hebert Levy e Tenório Cavalcanti. 325 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 47-48. Discurso proferido em Washington, no dia 3 de abril de 1962, perante o Conselho da Organização dos Estados Americanos. 326 Ibidem, pp. 48-49. 112 é a mais perfeita das formas de governo e a mais compatível à proteção do homem e à manutenção da sua liberdade.327 Os mesmos temas voltarão a ser abordados num momento de ainda maior tensão – durante o episódio da ―crise dos mísseis‖. A Crise dos Mísseis Em meados de outubro de 1962, o governo dos Estados Unidos, através de um vôo de reconhecimento realizado pela sua Força Aérea, obtém a informação da existência de três bases para mísseis balísticos de médio alcance, considerados ofensivos, em construção no território cubano. O presidente John Kennedy, que já ordenara o desenvolvimento de um plano para uma possível invasão a Cuba – a Operation Mongoose328 – e advertira que ―não toleraria a instalação de armamentos ofensivos em Cuba‖, via-se, agora, impelido a agir.329 No entanto, a confirmação da existência de mísseis de quantidade exata desconhecida e a possibilidade de conflito direto com os soviéticos estabelecidos na ilha, tornavam necessária uma avaliação bastante cuidadosa das providências a serem adotadas pelos Estados Unidos. Um ataque armado poderia resultar em custos políticos e militares incalculáveis naquele momento de acirramento da Guerra Fria. Kennedy e seus assessores não podiam ignorar o problema em todas as suas dimensões éticas e os custos políticos, mas foram, sobretudo, as considerações militares que afastaram a hipótese do ataque total e permitiram a formação de um consenso em torno de uma ―resposta graduada‖, ou seja, decretação do bloqueio naval, juntamente com o qual os Estados Unidos intimariam a União Soviética para que desmantelasse e retirasse os armamentos de Cuba antes de qualquer ataque armado contra as instalações militares naquela ilha, como prelúdio da invasão.330 Contudo, para que a decretação do bloqueio naval a Cuba estivesse dentro dos parâmetros legais do direito internacional, os Estados Unidos tinham duas opções: a declaração de guerra ou a aprovação do bloqueio pela Organização dos Estados Americanos. 327 Ibidem, p. 55. Discurso proferido em 4 de abril de 1962, ao ser recebido pelo Congresso dos Estados Unidos da América, em Washington. 328 De acordo com Moniz Bandeira, esta operação previa em seu cronograma a invasão de Cuba ainda para o mês de outubro, tendo as Forças Armadas norte-americanas recebido, no dia 2 deste mês, ordens para iniciar os preparativos da ação. No entanto, o autor aponta que Robert McNamara, Secretário de Defesa de Kennedy, informava aos seus chefes de Estado-Maior que o presidente ―não queria a ação armada dentro dos próximos três meses, se bem que não estivesse seguro de como poderia controlar os acontecimentos‖. Ver MONIZ BANDEIRA, L. A. De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina, pp. 464-466. 329 Idem. 330 Ibidem, p. 475. 113 Sendo assim, o governo norte-americano optou por convocar o órgão de consulta da OEA, com objetivo de sancionar tanto o bloqueio naval, quanto um possível uso da força.331 No dia 21 de outubro, o secretário do Departamento de Estado, Dean Rusk, comunica aos embaixadores latino-americanos a decisão dos Estados Unidos de convocar o órgão de consulta da OEA. Buscando a aprovação por unanimidade, Rusk chega a solicitar ao embaixador brasileiro, Roberto Campos, que ―interviesse diretamente junto ao presidente Goulart para recomendar-lhe que o Brasil desse o consentimento necessário para um voto unânime na OEA‖.332 Segundo Campos, a informação foi por ele transmitida ao presidente Goulart, enfatizando que Kennedy ―dissera tratar-se de uma ‗questão vital‘ para os Estados Unidos e que, se as posições fossem reversas, os Estados Unidos jamais falhariam ao Brasil numa questão plausivelmente definida como ‗vital‘‖.333 Além da intermediação do embaixador brasileiro em Washington, o presidente estadunidense também enviou ao presidente João Goulart, assim como aos demais chefes latino-americanos, uma carta, datada de 22 de outubro, solicitando apoio à convocação urgente do Órgão Consultivo do Sistema Interamericano e à aprovação das medidas contra Cuba. Nesta carta, o presidente Kennedy revela o tom dramático da situação e trata a questão como um problema a ser enfrentado não apenas pelos Estados Unidos, mas por todo o continente. Afirmando que estariam enfrentando, no Ocidente, ―a necessidade e a oportunidade de determinar, /.../ quiçá todo o futuro do homem na Terra‖,334 Kennedy procura destacar a gravidade da ameaça que o regime cubano teria permitido à União Soviética instalar no hemisfério ocidental. Para o presidente norte-americano, tal ameaça configurava claramente um ―desafio audaz e belicoso‖ lançado pelos soviéticos ―a todos os povos livres‖.335 E convoca: Temos de responder a esse gesto temerário com uma decisão conjunta. Do contrário, a União Soviética passará a violações cada vez mais flagrantes dos requisitos para a paz e liberdade internacionais, até que não nos restarão outras opções senão a capitulação completa ou a deflagração de um holocausto nuclear. /.../ Questões acerca das quais nós, deste hemisfério, talvez tenhamos pequenas discordâncias, bem como divergências políticas entre nossos povos, tornam-se insignificantes diante dessa ameaça à paz. 331 Ibidem, p. 476. CAMPOS, R. Op. cit., p. 494. 333 Ibidem, p. 495. 334 KENNEDY, John. F. Carta dirigida ao Presidente João Goulart em 22 de outubro de 1962. In: MARCELINO, Wanielle Brito (org.). Discursos selecionados do presidente João Goulart. Brasília: FUNAG, 2009, p. 93. 335 Idem. 332 114 Espero, diante desse contexto, que o Senhor sinta que seu país deseja juntarse ao meu para expressar sua indignação contra este comportamento, cubano e soviético, e conto com que o Senhor deseje expressar publicamente o sentimento de seu povo. Espero também que o Senhor concorde comigo quanto à necessidade urgente de se convocar uma reunião imediata do Órgão Consultivo do Sistema Interamericano, sob o Pacto do Rio. /.../ Desejo também formular um convite ao Senhor no sentido de que seus assessores militares discutam com os meus a possibilidade de participar, em condições apropriadas e juntamente com os Estados Unidos e outras forças do hemisfério, de qualquer ação militar que a situação que se desenvolve em Cuba possa requerer.336 Goulart autoriza Roberto Campos a prometer o voto do Brasil, 337 e instrui o embaixador do Brasil na OEA, Ilmar Penna Marinho, no sentido de aprovar o bloqueio, ―admitindo a inspeção de navios apenas para verificar o transporte de armamentos com poder ofensivo‖. Mas assinalou que qualquer outra ação de caráter militar fosse subordinada à investigação preliminar de uma comissão da ONU, ―de modo que as provas apresentadas não pudessem sofrer qualquer contestação. Qualquer outra resolução, fora daquelas linhas básicas, deveria ser-lhe previamente submetida‖.338 A cautela de Goulart acerca de medidas que extrapolassem o bloqueio naval não era sem motivo. Afinal, na carta a ele dirigida, o presidente dos Estados Unidos convidava o Brasil para participar de possíveis ações militares. E, de fato, reunido o Órgão de Consulta, logo no dia 23, os Estados Unidos apresentaram um Anteprojeto de Resolução em cujo texto, no primeiro parágrafo, pedia ―o desmantelamento e a retirada imediata de Cuba de todos os mísseis e de qualquer outra arma com capacidade ofensiva‖ e, no segundo, recomendava que os Estados-membros da OEA /.../ adotassem, ―individualmente e coletivamente, inclusive o emprego da força armada‖ que pudessem julgar necessária para que Cuba não continuasse a receber das ―potências sino-soviéticas material militar e os abastecimentos correspondentes‖.339 Na prática, a aprovação do texto concederia carta branca para a realização de qualquer intervenção militar em Cuba – o que contrariava a orientação passada pelo presidente Goulart ao representante brasileiro. Destarte, assim como ocorrera na Reunião de Consulta de janeiro, o Brasil votou favoravelmente a primeira parte do texto – referente ao bloqueio naval – mas 336 Ibidem, pp. 93-94. CAMPOS, R. Op. cit., p. 496. 338 MONIZ BANDEIRA, L. A. De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina, p. 490. 339 Ibidem, pp. 490-491. 337 115 absteve-se quanto à segunda – referente ao emprego da força armada. México e Bolívia acompanharam o posicionamento brasileiro. O embaixador Penna Marinho explicou que o Brasil subordinava qualquer outra medida a ―prévia comprovação, por observadores da ONU, do arsenal soviético na ilha‖, mas aprovou o conjunto da Resolução, endossada unanimemente pelo Órgão de Consulta. Com esta decisão, alcançada às 15:00 de 23 de outubro, Kennedy assinou, quatro horas depois, a ―proclamation of interdiction‖, que cerceava a liberdade dos mares e violava vários artigos da Carta da ONU.340 A vitória dos Estados Unidos com a aprovação da resolução não engendrou, entretanto, uma invasão norte-americana a Cuba. Isso porque, logo nos dias que se seguiram à assinatura da ―proclamation of interdiction‖, Kennedy e Kruschev encetaram negociações que culminaram com a retirada dos mísseis soviéticos do território cubano e a revogação das medidas da quarentena. Dessa forma, antes mesmo do fim do mês de outubro, foi resolvida a chamada ―crise dos mísseis‖, afastando a possibilidade de eclosão de um conflito nuclear, que, naquele momento, se mostrou mais próxima do que em qualquer outro ao longo da Guerra Fria. O fim da crise, contudo, não encerrou o debate entre os presidentes Kennedy e Goulart quanto à posição a ser tomada pelos países americanos no que se referia a Cuba comunista. A carta enviada pelo presidente dos Estados Unidos a Goulart, no dia 22 de outubro, deu origem a uma sequência de cartas, nas quais cada um dos presidentes procurava argumentar suas posições divergentes. Em resposta à convocação de Kennedy para uma ―decisão conjunta‖ dos Estados Americanos em responder, inclusive com o uso da força, à ameaça que, segundo ele, Cuba representava para o Ocidente, o presidente João Goulart lhe remeteu uma carta em que faz, ―com franqueza e sinceridade‖, algumas importantes considerações, ―tanto sobre a posição brasileira em face do caso de Cuba‖, como sobre os rumos que vinham prevalecendo nas decisões da Organização dos Estados Americanos.341 Relembrando o discurso que realizara perante o Congresso norte-americano em abril daquele ano, o presidente Jango reafirma o posicionamento pacifista do Brasil e sua defesa da coexistência entre ―o mundo democrático e o mundo socialista‖. O Brasil entende que a convivência entre o mundo democrático e o mundo socialista poderá ser benéfica ao conhecimento e à integração das experiências comuns, e temos a esperança de que esses contatos evidenciem 340 Ibidem, p. 491. GOULART, João. Carta dirigida ao Presidente John F. Kennedy, em outubro de 1962. In: MARCELINO, W. B. Op. cit., p. 95. 341 116 que a democracia representativa é a mais perfeita das formas de governo e a mais compatível com a proteção ao homem e à preservação de sua liberdade.342 De fato, Goulart já defendera a convivência com Cuba, tanto em sua viagem aos Estados Unidos, como em entrevista concedida na visita ao México, em que afirmou que a manutenção das relações com Cuba poderia contribuir para que aquela nação voltasse ao ―sistema democrático‖.343 E, procurando justificar, em sua carta, o posicionamento brasileiro, tanto na VIII Consulta de Chanceleres Americanos como na última reunião do Órgão de Consulta da OEA, João Goulart aponta que a defesa do princípio de autodeterminação se tornara ―o ponto crucial da política externa do Brasil‖, por considerá-lo ―o requisito indispensável à preservação da independência e das condições próprias sob as quais se processa a evolução de cada povo‖. É, pois, compreensível que desagrade profundamente à consciência do povo brasileiro qualquer forma de intervenção num Estado americano, inspirada na alegação de incompatibilidade com o seu regime político, para lhe impor a prática do sistema representativo por meios coercitivos externos, que lhe tiram o cunho democrático e a validade.344 Em seguida, Jango passa a explicitar suas contrariedades com a resolução aprovada pela OEA e uma possível ação militar contra Cuba. Ainda agora, entretanto, Senhor Presidente, não escondo a Vossa Excelência a minha apreensão e a insatisfação do povo brasileiro pelo modo por que foi pleiteada e alcançada a decisão do Conselho da OEA, sem que tivesse preliminarmente realizado, ou pelo menos deliberado, uma investigação in loco, e sem que se tivesse tentado através de uma negociação, como a que propusemos em fevereiro do corrente ano, o desarmamento de Cuba com a garantia recíproca de não invasão. Receio que nos tenhamos abeirado sem, antes, esgotar todos os recursos para evitá-lo, de um risco que o povo brasileiro teme tanto como o norteamericano: o da guerra nuclear. E é na atuação de Vossa Excelência, no seu espírito declaradamente pacifista, que depositamos a esperança de que não sejam usadas contra Cuba medidas militares capazes de agravar o risco já desmedido da presente situação.345 O trecho de crítica mais contundente, presente na carta de Goulart a Kennedy, referiase à atuação da OEA naqueles episódios – e que, na verdade, representava a atuação dos próprios Estados Unidos. Para Goulart, aquela organização vinha se afastando de suas regras estatutárias, tendendo a se transformar ―num bloco ideológico‖ que, ao mesmo tempo em que 342 Ibidem, p. 96. Este trecho corresponde à citação do discurso realizado pelo presidente João Goulart em Washington, ao ser recebido pelo Congresso dos Estados Unidos da América, em 4 de abril de 1962. 343 MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Op. cit., p. 168. 344 GOULART, J. Carta do Presidente João Goulart dirigida ao Presidente John F. Kennedy, em outubro de 1962. In: MARCELINO, W. B. Op. Cit., p. 96. 345 Ibidem, pp. 96-97. Grifos nossos. 117 se mostrava intransigente com o regime cubano, concedia ―tratamento mais benigno‖ a ditaduras reacionárias: Não quero encerrar, porém, esta carta, Senhor Presidente, sem acrescentar às considerações nela feitas a expressão de meus receios sobre o futuro imediato da OEA. Nos últimos tempos, observo que as suas decisões vêm perdendo autoridade à medida que se afastam da correta aplicação das suas próprias normas estatutárias, e que são tomadas por maioria numérica com injustificável precipitação. A isso cabe acrescentar a tendência para transformar a Organização num bloco ideológico intransigente, em que, entretanto, encontram o tratamento mais benigno os regimes de exceção de caráter reacionário.346 Segundo o próprio Goulart, sua preocupação encontrava fundamento no fato de que, no Brasil e possivelmente em outros países latino-americanos, ―pressões reacionárias‖, disfarçadas de anticomunismo, mostravam-se ainda perigosas à evolução do processo democrático. Dessa forma, Goulart não esconde que sua postura diante do caso cubano está vinculada a suas preocupações com o futuro brasileiro. Estou certo de que Vossa Excelência compreenderá as razões de minha apreensão. O Brasil é um país democrático, em que o povo e governo condenam e repelem o comunismo internacional, mas onde se fazem sentir ainda perigosas pressões reacionárias, que procuram, sob o disfarce do anticomunismo, defender posições sociais e privilégios econômicos, contrariando, desse modo, o próprio processo democrático de nossa evolução. Acredito que o mesmo se passa em outros países latinoamericanos. E nada seria mais perigoso ver-se a OEA ser transformada em sua índole e no papel que até aqui desempenhou, para passar a servir a fins ao mesmo tempo anticomunistas e antidemocráticos, divorciando-se da opinião pública latino-americana.347 Em resposta à carta de Goulart, Kennedy envia, por meio da embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, um telegrama – com solicitação de não publicá-lo – em que rebate os argumentos do presidente brasileiro de defesa dos princípios de não intervenção e de autodeterminação dos povos, afirmando que a franqueza expressa por Goulart o levara a respondê-lo com igual sinceridade.348 Kennedy defendeu a atuação da OEA, reafirmando que a presença dos mísseis no território cubano constituíra uma intervenção soviética no hemisfério ocidental, o que justificaria a urgente aprovação daquela resolução. Quanto à exclusão de Cuba da OEA, o 346 Ibidem, p. 97. Ibidem, pp. 97-98. Grifos nossos. 348 Telegrama do presidente John F. Kennedy ao presidente João Goulart, datado de 02 de novembro de 1962. In: JOHN F. KENNEDY PRESIDENTIAL LYBRARY AND MUSEUM. Digital Archives; Folder: Brazil: Security, 1962; Digital Identifier: JFKPOF-112-014, pp. 37-42. Disponível em: <http://www.jfklibrary.org/Asset-Viewer/Archives/JFKPOF-112-014.aspx> Último acesso em: 28 de maio de 2012. 347 118 presidente norte-americano afirma que a incompatibilidade do regime de Castro com o sistema interamericano devia-se ao fato de que, segundo ele, Cuba estaria engajada no intervencionismo soviético, colocando-se como instrumento de intervenção de poderes extracontinentais.349 Quanto à defesa do princípio de autodeterminação dos povos, Kennedy afirma que o mesmo não estaria sendo respeitado por Fidel Castro nem pela União Soviética em suas relações com Cuba. E que, quando o povo cubano pudesse se expressar quanto aos seus líderes e políticas, o país voltaria à ―família das nações americanas‖. With due regard to non-intervention, the Inter-American system seeks to encourage a wider understanding and practice of the principle of selfdetermination. I agree with you on the relevance of this principle to Cuba because of both its non-observance by the Castro regime and the failure of the Soviet Union to respect it in its relations with Cuba. We all look forward to the time when the Cuban people are permitted to express their opinion as to the leaders they wish to have and the policies they want followed. I am confident that when this happens, conditions in Cuba will change and we shall be in position to welcome her back to the American family of nations.350 Como último ponto de sua carta, Kennedy nega a possibilidade de coexistência com o socialismo de Cuba, pois afirma que o problema do regime cubano não seria sua organização econômica, mas sim seu sistema político intervencionista. E quanto à postura reacionária disfarçada de anticomunismo, citada por Goulart, o presidente americano responde que o fato de os que se oponham às reformas sociais também se oponham à ―ameaça comunista‖ não tornaria a oposição ao comunismo menos justa. Assim sendo, Kennedy sinaliza claramente que a luta contra o comunismo preponderava sobre a luta pelas reformas sociais, ainda que estas fossem as reformas compreendidas pelo programa da Aliança para o Progresso: The Organization of the Cuban economy is not the issue which has caused the rejection of Cuba by the Inter-American community. And we should not confuse economic arrangements with a political system which practices intervention, which submits itself to the policies and will of a foreign power and which rejects and destroys self-determination. That those opposed to those essential reforms to which we had pledged ourselves in the Alliance for Progress should also oppose the communist threat to our own right of 349 Idem. ―The political system imposed on the Cuban people by the Castro regime is a matter of common concern to the other American Republics only because Cuba, under a system which continuously engages in interventionist activities against other countries, has placed itself militarily at the disposition of extra-continental powers, made itself an instrument of extra-continental intervention, and has manifestly failed to abide by the principles and obligations of our community of nations. It was on this basis that all of the American Governments agreed at Punta del Este that the Castro regime is incompatible with the inter-American system. /…/ What should be done about this incompatibility when it manifests itself in interventionist activities in other American countries is a matter for the American community to decide‖. 350 Idem. 119 self-determination dos not make our own opposition to world communism less just or vital.351 A resposta de Kennedy à problemática levantada por Goulart, revela a diferença entre as posturas de Brasil e Estados Unidos nos anos da Guerra Fria: ―Se para os EUA era uma questão de defesa do hemisfério, para o Brasil uma invasão soviética era impensável. Estávamos buscando, isto sim e principalmente, acelerar o processo de industrialização e expansão econômica‖.352 Dessa forma, todas as colocações apresentadas pelo presidente Jango contrárias às medidas de intervenção em Cuba foram rebatidas por Kennedy com o mesmo argumento – o de que o governo cubano representaria o intervencionismo soviético no continente, ameaçando a autodeterminação de todos os países americanos. Recebida a resposta de Kennedy, João Goulart remete ainda outra carta ao presidente dos Estados Unidos, datada de 7 de dezembro de 1962. Nela, Goulart não rebate os argumentos de Kennedy contrários ao seu posicionamento nas questões de Cuba; mas reafirma sua apreensão quanto aos rumos da OEA e o posicionamento do Brasil na última reunião de consulta daquela organização: Devo registrar com pesar que, em uma das últimas reuniões do Conselho, se tomaram deliberações a respeito das atividades da Comissão Consultiva Especial de Segurança, criada pela Resolução nº 2 da VIII Reunião de Consulta que, a nosso ver, exorbitam dos termos precisos da referida resolução e criam precedente perigoso capaz de dificultar a boa marcha dos trabalhos de que está encarregada a Comissão criada em Punta del Este. Por esse motivo, não pudemos emprestar o apoio de nosso voto à citada Resolução.353 Além disso, o presidente Jango expressa a preocupação brasileira com a possibilidade de conflitos militares, manifestando o apoio do país ao projeto de criação e uma área desnuclearizada, abrangendo toda a América Latina, debatido, à época, na Assembleia Geral das Nações Unidas, e demonstra certo esforço em tornar clara sua posição de reformista. Após alertar para o fato de que a opinião pública do Brasil e dos Estados Unidos estariam expostas a noticiários que nem sempre refletiam as verdadeiras posições dos respectivos governos, tendendo a ―apresentar um quadro pouco exato das realidades nacionais‖,354 João Goulart manifesta sua aspiração de que os problemas militares pudessem 351 Idem. TOTA, Antonio Pedro. Cultura e dominação: relações culturais entre o Brasil e os Estados Unidos durante a Guerra Fria. In: Perspectivas, n. 27, São Paulo, 2005, p. 115. 353 Carta do presidente João Goulart ao presidente John F. Kennedy datada de 7 de dezembro de 1962, Arquivo Marcílio Marques Moreira, CPDOC-FGV, Pasta. MMM ew 1986/1991.00.00/2. Doc. 11. 354 Idem. 352 120 ser brevemente resolvidos para que pudessem, então, se dedicar à resolução dos ―problemas da paz, do bem-estar e do progresso social‖ das populações. E afirma: Estou convencido de que quando tivermos libertado o nosso Hemisfério da pobreza, da ignorância e da doença, o movimento internacional comunista há de definhar por falta de terreno fértil onde mergulhar suas raízes.355 A partir daí, Goulart passa a destacar a pouca influência das ―atividades subversivas‖ no Brasil, bem como o posicionamento do governo brasileiro em defesa dos princípios da democracia representativa. Procurou deixar claro que seu governo, juntamente com os que o antecederam, ―lograram limitar a um mínimo, quase negligenciável, o tipo de atividades subversivas a que se consagram os agentes de ideologias exóticas e de âmbito internacional‖. E continua: Ainda recentemente, quando demos o nosso apoio decidido às medidas de bloqueio sugeridas pelo governo de Vossa Excelência como meio de prevenir novos ingressos de armamentos ofensivos em Cuba, nem uma só voz se levantou em todo o território nacional para criticar nossa atitude, nem foi preciso recorrer a medidas repressivas de qualquer natureza para impor nossa decisão. Nas recentes eleições levadas a efeito no Brasil, em clima de absoluto respeito às liberdades públicas e na mais perfeita observância dos processos que caracterizam a democracia representativa, foi diminuto o número de candidatos eleitos que se filiam, de uma forma ou de outra, a ideologias totalitárias. /.../ Desejo terminar esta carta reafirmando-lhe, Senhor Presidente, a decisão de meu Governo de contribuir, dentro dos limites traçados pelos Acordos Internacionais de que somos parte, e da observância dos princípios que fundamentam o sistema interamericano, para que o exercício do direito de autodeterminação se aperfeiçoe e se estenda a todos os povos do Continente, traduzindo-se pela forma que consideramos mais legítima, que é a da consulta popular por meio de eleições, livres da coação interna e de pressões externas, a fim de que a democracia representativa possa ser o caminho e também a força que há de levar os nossos povos a um futuro de paz e de progresso social.356 A postura de Goulart em procurar esclarecer a inexistência de vínculos entre seu governo e grupos ―subversivos‖ ou filiados a ―ideologias totalitárias‖, não era sem razão. A preocupação dos Estados Unidos com uma possível infiltração comunista no governo de João Goulart será manifesta em diferentes ocasiões: em conversas do presidente Kennedy e de seu irmão, Robert Kennedy, com o próprio Jango – na visita de Goulart a Washington em abril de 1962, na visita de Robert Kennedy ao Brasil, em dezembro do mesmo ano, e no encontro entre os dois presidentes em Roma, em junho de 1963 – que, em todas as oportunidades, 355 356 Idem. Idem. 121 negou qualquer influência comunista; e em documentos produzidos pelo governo americano sobre o governo brasileiro. E, não bastando essas conversas privadas e documentos de acesso restrito ao governo norte-americano, o presidente John Kennedy chegou a manifestar-se publicamente, em entrevista à imprensa de seu país dizendo que os Estados Unidos não deviam considerar a ameaça comunista baseada principalmente em Cuba, pois um ―comunismo local‖, não relacionado com aquela ilha, existia e aproveitava-se das dificuldades do povo, como no Nordeste brasileiro. Acrescentou que, mesmo se os Estados Unidos conseguissem acabar com a infiltração, através de Cuba, ainda teriam de defrontar-se (deal with) com os movimentos comunistas locais.357 As desconfianças do governo estadunidense sobre o governo Jango também serão comunicadas ao governo brasileiro, através de telegrama enviado por George Álvares Maciel, Ministro-Conselheiro junto à Embaixada do Brasil em Washington. Nesse documento, Maciel traça um quadro das relações Brasil-Estados Unidos, segundo suas apurações, afirmando ser ainda ―predominante o problema político, diante do qual tem muito menor importância relativa às questões financeiras e técnicas‖. O problema político, segundo o governo norteamericano, decorreria das seguintes circunstâncias: a) o atual Governo brasileiro não apresenta unidade suficiente; b) há diversos comunistas (SIC) em postos chave, inclusive nas Forças Armadas; c) ainda não há certeza cabal de que o governo brasileiro, assim qualificado, deseje realmente administrar o país segundo as diretrizes declaradas; d) ainda não há certeza cabal de que está realmente disposto a colaborar plenamente com os EUA na Aliança para o Progresso; e) ainda não há certeza cabal de que o Governo brasileiro não venha a orientar-se definitivamente para a esquerda, com especial referência à política internacional.358 O documento afirma ainda que a imagem do governo Goulart era considerada ―pelo menos imprecisa‖.359 Sendo assim, as discussões relativas à postura brasileira diante do regime cubano foram encerradas após os episódios e correspondências aqui assinalados; mas as relações entre Brasil e Estados Unidos durante o governo João Goulart seguem em meio a divergências e desconfianças que, como vimos, afetaram possíveis acordos e negociações financeiras, aumentando as dificuldades enfrentadas pelo governo brasileiro. 357 MONIZ BANDEIRA, L. A. De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina, p. 534. O autor cita documento da embaixada brasileira em Washington, datado de 15 de fevereiro de 1963. 358 Telegrama da Embaixada Brasileira em Washington à Secretaria de Estado das Relações Exteriores, datado de 13/14 de fevereiro de 1963, Arquivo Marcílio Marques Moreira, CPDOC-FGV, Pasta. MMM ew 1986/1991.00.00/2. Doc. 18. Grifos nossos e observação ―(SIC)‖ do autor. 359 Idem. 122 João Goulart e a Aliança para o Progresso Já apontamos as circunstâncias e o objetivo geral do lançamento do programa da Aliança para o Progresso pelos Estados Unidos. Procuraremos, agora, destacar o posicionamento do presidente João Goulart diante desse programa, ainda que suas manifestações sobre o assunto não tenham sido abundantes, ocorrendo na grande maioria das vezes em suas viagens internacionais. Em sua visita aos Estados Unidos, o presidente Goulart tratou a Aliança para o Progresso ―como uma grande contribuição‖ para que as nações da América Latina alcançassem o seu ―pleno desenvolvimento‖.360 Segundo ele, o presidente John Kennedy teria sentido ―agudamente os anseios‖ das populações dos países subdesenvolvidos ao estabelecer esse ―plano financeiro‖, que, sendo executado, constituiria ―uma contribuição capaz de promover a integração de grandes massas nos benefícios da civilização continental‖.361 E, em comunicado-conjunto, publicado ao fim da visita do presidente brasileiro, Goulart e Kennedy afirmavam a concordância de que se fazia preciso ―uma rápida execução das medidas necessárias para tornar efetiva a Aliança para o Progresso‖. Tais medidas eram: Planejamento nacional para a concentração de recursos em objetivos altamente prioritários de progresso econômico e social; reformas institucionais, inclusive reformas da estrutura agrária, a reforma tributária e outras mudanças exigidas para assegurar uma ampla distribuição dos frutos do desenvolvimento por todos os setores da comunidade, e assistência internacional financeira e técnica para acelerar a realização de programas nacionais de desenvolvimento.362 Vemos, portanto, que o programa da Aliança para o Progresso, enquanto projeto de auxílio técnico e financeiro para estimular o desenvolvimento dos países latino-americanos, encontrou, pelo menos de início, uma boa recepção no presidente João Goulart, convergindo, inclusive com sua proposta reformista. Contudo, em seu discurso perante o Congresso dos Estados Unidos, Jango não demonstrou apenas entusiasmo pelo programa de auxílio, mas também preocupações com possíveis embaraços a sua efetiva execução. Vemos na Aliança para o Progresso a formulação de um plano de cooperação global que a América Latina espera desde o fim da Segunda Guerra Mundial e que deverá ter para o nosso Hemisfério, uma vez executado, as proporções e a significação do Plano Marshall para os países da Europa Ocidental. A falta de uma iniciativa desse porte tornou extremamente difícil aos países do Hemisfério a estabilização de suas economias. 360 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 46. Discurso proferido em Washington, no dia 3 de abril de 1962, em almoço oferecido na Casa Branca pelo Presidente Kennedy. 361 Ibidem, p. 59. 362 MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Op. cit., p. 34. 123 Tem ainda a Aliança para o Progresso o mérito de conceituar o problema da América Latina em seus aspectos econômicos, mas também, e especialmente, nos seus aspectos sociais, o que lhe dá excepcional dimensão, dela fazendo um programa de fortalecimento da democracia, como acentuou o vosso eminente Chefe de Estado, nestas palavras altamente significativas: ―Aqueles que tornarem impossível a revolução pacífica farão inevitável a revolução violenta‖. Não escondo por eles os meus receios quanto às dificuldades de execução. Se a Aliança para o Progresso depender do esforço dos países latinos para alcançarem, com rigor técnico absoluto, um planejamento global no campo econômico e no social, e para eliminarem previamente certos fatores de instabilidade, podemos admitir embaraços capazes de prejudicar a urgência de soluções inadiáveis. Tais dificuldades recrudescerão se a Aliança não refletir, principalmente, o espírito de confiança e respeito recíproco entre os governos dos países que a integram, na linha de fidelidade aos propósitos manifestados pelo vosso eminente Presidente Kennedy.363 Desse modo, Goulart manifestava a esperança de que os resultados da Aliança representassem para a América Latina o que significou o Plano Marshall para Europa no pós Guerra – comparação que o próprio presidente Kennedy já fizera em seu discurso de lançamento do programa364 – ao mesmo tempo em que cobrava a falta, até então, de uma iniciativa como aquela, que possibilitasse a estabilização das economias latino-americanas. E, embora exaltasse no programa a compreensão dos aspectos sociais, previa dificuldades de execução, caso fosse cobrada dos países latinos a eliminação prévia dos fatores de instabilidade como condição para o recebimento do auxílio. De fato, os possíveis obstáculos apontados pelo presidente João Goulart à execução da Aliança para o Progresso se concretizaram nas negociações do Brasil com os Estados Unidos ao longo do ano de 1963, quando foi cobrada, em troca da liberação de verbas de auxílio, uma pronta execução de medidas de controle inflacionário, ainda que tais medidas acarretassem queda do crescimento econômico do país e perdas salariais para a população. Diante desta situação, Jango chegou a afirmar, em entrevista coletiva concedida à imprensa chilena por ocasião de sua visita, em abril de 1963, que a Aliança para o Progresso deveria ser reformulada para que alcançasse seus objetivos, pois ―num exame sereno‖, até então a Aliança não teria atendido ―às esperanças e expectativas‖ que em torno dela teriam se formado.365 363 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 54. Discurso proferido em Washington, no dia 4 de abril de 1962. 364 Ver: ―Kennedy propõe um programa de dez anos para as Américas‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 mar. 1961. 365 MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart ao Chile e Uruguai. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1963, p. 53. 124 A frustração de João Goulart com o programa não era sem razão. Além da não liberação das verbas – justificada pela falta de medidas de estabilização monetária e pela não conclusão da compra das empresas subsidiárias norte-americanas – a Embaixada Americana passou a firmar acordos diretamente com governadores e prefeitos brasileiros (geralmente opositores de Goulart), sem a intermediação do governo federal. Os norte-americanos chamavam os governos estaduais e municípios que recebiam suas verbas de ―ilhas de sanidade‖ (islands of administrative sanity).366 Segundo Roberto Campos, a preferência dos Estados Unidos em conceder empréstimos diretos aos estados e municípios, em lugar da União, devia-se aos ―receios de infiltração comunista no governo central‖ e ao descumprimento dos programas de estabilização.367 Descrevendo seu posicionamento diante de tal iniciativa do governo dos Estados Unidos, Campos afirma: Protestei informalmente junto ao Departamento de Estado contra essa ―ação centrífuga‖, que não me parecia politicamente imprópria, e mesmo perigosa. Mas meus protestos não tinham intensidade passional. Afinal de contas era melhor ter alguns projetos estaduais financiados do que privarmo-nos dos fundos da Aliança para o Progresso...368 O financiamento das ―ilhas de sanidade‖ continuará a ocorrer após a morte de Kennedy, durante o governo de Lyndon Johnson – cujo Secretário de Estado Assistente para os Assuntos Interamericanos, Thomas Mann, chega a confessar que seu objetivo com tal ação era o de ―financiar a democracia, não permitindo, porém, que qualquer recurso beneficiasse o balanço de pagamentos do Brasil ou o orçamento federal‖.369 Um último momento de divergência explícita entre João Goulart e o governo estadunidense ocorrerá ainda em novembro de 1963, na reunião do Conselho Interamericano Econômico e Social (CIES), também chamado de ―Segunda Revisão Anual da Aliança para o Progresso‖. Nesta ocasião, o Brasil se opôs à criação do Comitê Interamericano da Aliança para o Progresso (CIAP). O novo órgão seria ―um comitê especial e permanente com o propósito de representar multilateralmente a Aliança para o Progresso, coordená-la e promover sua implementação‖; cujas funções práticas seriam as de ―estudar o progresso dos 366 Ver: MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 113. CAMPOS, R. Op. cit., p. 481. 368 Ibidem, p. 508. 369 MONIZ BANDEIRA, L. A. Presença dos Estados Unidos no Brasil (dois séculos de história), p. 467. Carlos Fico também aponta que a defesa das ―ilhas de sanidade‖, ―não como uma forma de minar o governo Goulart, mas como a única maneira de os Estados Unidos persistirem ajudando o Brasil apesar da incapacidade do governo federal de fazer a estabilização econômica e o saneamento financeiro desejados‖, aparece como uma ―desculpa bastante inconvincente à luz das evidências hoje disponíveis‖. Ver: FICO, Carlos. O grande irmão: da Operação Brother Sam aos anos de chumbo. O governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008, p. 79. 367 125 planos nacionais e regionais, apresentar estimativas anuais a respeito da somas e espécies de recursos necessários a cada país e propor meios de consignar fundos‖.370 Aprovada, em plenário a criação do CIAP, o Brasil, então, apresentou um projeto de resolução no qual solicitava ao órgão recém-criado a elaboração de um estudo sobre as possibilidades de instituição de um Fundo Interamericano de Desenvolvimento para a América Latina.371 Segundo o próprio Jango, em sua Mensagem ao Congresso Nacional, no início do ano legislativo de 1964: Ao Brasil deve-se, igualmente, a idéia da criação de um Fundo Interamericano da Aliança para o Progresso. Não satisfeito com o mandato atribuído ao novo órgão criado para promover a consecução dos objetivos da Carta de Punta del Este − o Comitê Interamericano da Aliança para o Progresso (CIAP) −, propôs a inclusão, entre as atribuições do CIAP, de uma destinada a ―promover um crescente aperfeiçoamento do processo de multilateralização da Aliança para o Progresso‖ e, com base nesse dispositivo, logrou, com apoio unânime, fazer passar a Resolução 23-M/63, que em sua parte resolutiva reza: ―que o Comitê Interamericano da Aliança para o Progresso, dentro de seis meses de sua constituição, deverá apresentar aos Governos dos Estados-membros um estudo sobre um fundo interamericano de desenvolvimento da Aliança para o Progresso e, de acordo com suas conclusões, elaborar um projeto para a criação do mesmo‖. Considera o Governo brasileiro que esta foi realmente uma contribuição positiva à concretização dos ideais proclamados em Punta del Este. Com efeito, sem dispor de fundos regulares e permanentes de financiamento, e na ausência de uma responsabilidade conjunta, multilateral, tanto no que diz respeito à obtenção quanto à aplicação de recursos financeiros, o programa da Aliança para o Progresso não compreenderá senão fontes rotineiras de auxílio externo.372 Descontente com a criação de um órgão com o poder de avaliar os planos nacionais dos países latino-americanos, Goulart teria evitado se pronunciar sobre a Aliança para o Progresso, direcionando sua fala para a mobilização e criação de um bloco de países subdesenvolvidos para participação na Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (United Nations Conference on Trade and Development – UNCTAD), a ser realizada em março de 1964 – um Comitê Latino-americano com o objetivo de avançar no tratamento das questões comerciais do hemisfério.373 As reações dos delegados contrários ao posicionamento do presidente brasileiro foram fortes. Para Gordon, o discurso foi uma proposta de liderança do Brasil, na América Latina, contra os EUA. Roberto Campos 370 RIBEIRO, Ricardo Alaggio. A Aliança para o Progresso e as relações Brasil-Estados Unidos. Tese (Doutorado em Ciência Política). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2006, p. 214. 371 Ibidem, pp. 213-214. 372 GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1964, p. 226. 373 RIBEIRO, R. A. Op. cit., p. 213. 126 analisa que este foi o momento culminante dos desentendimentos, quando o Brasil ―assumiu atitude totalmente negativa em relação à aliança para o Progresso com tal falta de objetividade e fúria passional que conseguiu alienar a um tempo os EUA e os demais países da América Latina, isolandose numa postura incompetente e ressentida‖. Harriman seguiu a linha de Gordon, caracterizando o discurso como ―essencialmente, uma aposta na liderança brasileira do continente, a qual iria, por implicação, excluir um maior papel norte-americano‖. O ponto preocupante era a oposição ativa brasileira à pauta da reunião, que sinalizava quão longe tinha ido o desgaste das relações. Fica claro que naquele momento o Brasil era a maior preocupação dos EUA no hemisfério, ―maior mesmo do que Cuba‖ como tinha dito Kennedy a Juscelino, dez meses antes. Deve-se pensar que os eventos de São Paulo marcam o momento a partir do qual as trajetórias se descolam e a queda de Goulart passa a ser admitida e mesmo desejada.374 Este episódio é marcante, tanto do distanciamento entre João Goulart e o governo dos Estados Unidos, quanto da postura assumida pelo presidente brasileiro nas relações com os demais países latino-americanos. A proposta de relações comerciais mais próximas dentro da própria América Latina será defendida por Jango em diversas ocasiões e será o tema do próximo item. 2.2. Relações entre Brasil e América Latina Em suas manifestações sobre a relação do Brasil com os demais países da América Latina, João Goulart, além das usuais declarações de amizade e das afirmações conjuntas em defesa da democracia, abordará, de maneira recorrente, o tema do comércio exterior. Na condição de primeiro presidente brasileiro a visitar o México e o Chile, Jango tornará explicito seu estímulo à intensificação das relações comerciais entre as economias latinoamericanas, defendendo a efetivação de uma zona de livre comércio na região – naquele momento, vislumbrada na Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC).375 Além disso, também estimulará a formação de um bloco de países latino-americanos para articulação de medidas que alterassem a estrutura do comércio internacional, em benefício dos países subdesenvolvidos. João Goulart considerava o comércio internacional como um elemento gerador de progresso econômico e social para os países subdesenvolvidos. Segundo ele, os países subdesenvolvidos não poderiam permanecer na dependência do auxílio financeiro externo como forma de obtenção de recursos para financiar seus processos de desenvolvimento 374 Idem. A Associação tinha como países membros, originalmente, Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Peru, Bolívia, sendo posteriormente inseridos Colômbia, Equador, México e Venezuela. 375 127 econômico – até porque, tal auxílio vinha se mostrando insuficiente. Para ele, embora ―comércio e assistência‖ não constituíssem ―proposições excludentes‖, ―a verdadeira superação do subdesenvolvimento‖ não se poderia fazer ―por meio da assistência externa, e sim pela expansão do comércio exterior‖.376 O aumento das exportações constituiria ―a melhor e mais aconselhável forma de financiamento‖ do desenvolvimento. E será nesse sentido que o presidente Goulart, defenderá a expansão do mercado brasileiro no exterior, articulando, inclusive a concretização da ALALC − que embora criada no ano de 1960, com objetivo de criar uma zona de livre-comércio em um prazo de 12 anos, não apresentava atuação prática até aquele momento. Em Mensagem ao Congresso Nacional, Goulart afirma: Todo o esforço deve ser empregado a fim de se conseguir o aumento contínuo das exportações, já que a receita cambial delas decorrente representa a melhor e mais aconselhável forma de financiamento para aquisição, no exterior, do instrumental necessário ao progresso do País. No particular, registre-se a participação do Brasil na Associação LatinoAmericana de Livre Comércio como fato positivo, pelas possibilidades que abriu ao desenvolvimento do intercâmbio comercial da América Latina e à colocação, em mercados deste continente, dentro de um esquema de favores tarifários recíprocos, de numerosos produtos exportáveis do País.377 Quando esteve no México, em 1962, o presidente Jango afirmou a zona livre de comércio latino-americano como ―ponto de partida de uma política de integração econômica continental‖.378 Já em visita ao Uruguai, no ano seguinte, João Goulart exalta a ALALC como a ―mais legítima expressão‖ do ―espírito de renovação latino-americana‖379 e propõe a utilização da Associação como um instrumento de coordenação de propósitos entre os países latino-americanos, promovendo a integração econômica no plano regional além de, no plano internacional mais amplo, evitar a concorrência entre países latino-americanos e constituir um bloco em defesa dos interesses comuns da América Latina. Disse: às vezes chegamos, por falta de diretrizes básicas de orientação em torno das nossas economias e dos nossos interesses, ao cúmulo de nos atropelarmos entre nós mesmos, no interesse dos nossos países, competindo deslealmente entre os países latino-americanos no que se refere aos nossos interesses com 376 GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1963, p. 155. 377 GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1962, p. 2. 378 MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart aos Estados Unidos e México, p. 41. Discurso proferido na Cidade do México, no dia 9 de abril de 1962, em almoço oferecido pelo Presidente Lopez Mateos. 379 MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart ao Chile e Uruguai, p. 165. Discurso proferido na Associação Latino-Americana de Livre Comércio, em Montevidéu, no dia 26 de Abril de 1963. 128 o mercado internacional. Realmente, isso não pode continuar. Para uma coordenação de esforços destinados à integração dos nossos propósitos, já contamos com o instrumento indispensável, bastando apenas que lhe demos a vida e o dinamismo que lhe estão faltando, para que ele cumpra os seus objetivos. /.../ Estou convencido de que, dentro desta orientação, procurando imprimir um ritmo de trabalho permanente a esse órgão, poderemos atingir os nossos maiores objetivos, isto é, integrarmos as nossas economias e nos defendermos no plano interno, procurando melhorar as condições de vida de nossos povos e de, unidos num só bloco, defendermos também externamente os nossos interesses e os interesses da América Latina.380 Aliás, será justamente em defesa da constituição deste possível bloco em defesa dos interesses comuns dos países latino-americanos que estarão grande parte dos argumentos de Goulart em torno da ALALC. Embora a expansão dos mercados e a intensificação das trocas entre os países da América Latina sejam sempre apontadas como fatores de grande importância para o desenvolvimento da região, Goulart acaba enfatizando com maior vigor a necessidade de articulação entre os latino-americanos em defesa de uma reestruturação do comércio internacional que, segundo avalia, vinha mantendo os países subdesenvolvidos em situação prejudicial. Se, por um lado, Goulart enxergava na expansão do comércio exterior uma forma indispensável de obtenção de divisas que financiariam o desenvolvimento econômico – para a qual o auxílio financeiro internacional não constituía uma alternativa –, por outro, apontava a necessidade de adoção de medidas internacionais que pudessem corrigir o desequilíbrio no intercâmbio entre as economias desenvolvidas e subdesenvolvidas. As condições políticas e econômicas do mundo em que vivemos vêm demonstrando, Senhores Congressistas, de forma inequívoca a insuficiência do auxílio financeiro internacional para, por si só, propiciar aos países subdesenvolvidos os meios necessários aos seus vultosos investimentos básicos requeridos pelo processo de desenvolvimento. Por outro lado, as condições notoriamente adversas que vimos enfrentando no comércio internacional têm resultado no lento crescimento ou até mesmo na estagnação de nossas economias. Somos obrigados, Senhores Senadores e Senhores Deputados, a exportar cada vez mais, a preços cada vez menores, para conseguirmos os recursos necessários à aquisição dos bens de produção e manufaturas cada vez mais caras ao nosso desenvolvimento e ao nosso progresso.381 É com este raciocínio que o presidente Jango, conquanto ratificasse a direção da política exterior do Brasil, voltada para a ampliação do mercado externo e para a 380 Ibidem, p. 149. Discurso proferido em Montevidéu, no dia 25 de abril de 1963, por ocasião de um banquete oferecido pelo Conselho do Governo do Uruguai. 381 Ibidem, p. 136-137. Discurso proferido em Montevidéu, no dia 25 de abril 1963, na Assembléia Geral do Uruguai. 129 intensificação das relações comerciais com todos os países possíveis (inclusive com os integrantes do chamado Bloco Socialista), afirmava também: Não basta, porém, que o Brasil procure expandir seus mercados tradicionais e conquistar outros. Esses objetivos, conquanto válidos, não nos devem fazer esquecer a necessidade de que se modifique a própria estrutura do comércio internacional, de modo a que se alterem nossos termos de intercâmbio com os países industrializados e se corrijam as tendências que, por tão longo tempo e de maneira tão profunda, vêm agindo em prejuízo dos nossos interesses. Assim compreendida, a política externa deverá visar à modificação do presente mecanismo em que se desenrolam as trocas internacionais, com vistas à criação de uma nova estrutura institucional que realmente atente para as peculiaridades do comércio entre países em diferentes estágios de desenvolvimento econômico e contribua para a remoção dos obstáculos ao comércio e ao consumo dos produtos primários.382 A situação do comércio exterior brasileiro será frequentemente analisada por Jango em concordância com a teoria, produzida pelos economistas da CEPAL, sobre a deterioração dos termos de troca. Em diversas ocasiões, Goulart ressalta o fato de que os preços dos produtos primários exportados pelo Brasil encontravam-se em permanente declínio, ao mesmo tempo em que os equipamentos e manufaturas importados apresentavam preços em constante elevação. Dessa forma, o balanço de pagamentos permanecia em contínuo desequilíbrio. Discursando ao Congresso dos Estados Unidos, por ocasião de sua visita a Washington, o presidente João Goulart destacava a situação dos países latino-americanos no comércio internacional, sobretudo no período pós-guerra – em que, segundo ele, os países diretamente envolvidos no conflito obtiveram auxílio norte-americano para retomar o comércio internacional em situação vantajosa, enquanto os países latino-americanos teriam ficado somente com o ônus da inflação e com a desvalorização dos preços dos produtos primários que exportavam: Durante os anos da conflagração os preços dos nossos produtos de exportação permaneceram congelados em níveis muito inferiores ao seu valor real. Restabelecidas as condições normais de comércio, foi possível aos países europeus e a outros, cujas economias haviam sido destruídas pela guerra, eliminar a inflação e restaurar a sua prosperidade. Tiveram para isto, de 1948 a 1952, o auxílio maciço da economia norte-americana, que amparou, através de empréstimos, não só os antigos aliados, como também os antigos adversários, permitindo-lhes restabelecer em curto prazo, ou mesmo ultrapassar, os seus níveis anteriores de produção agrícola e industrial. Refeitas as suas indústrias, passaram esses países a comerciar nas condições particularmente vantajosas em que operam os exportadores de manufaturas. 382 GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1963, p. 14. Grifo nosso. 130 Os países latino-americanos, com uma inflação vinda da guerra, ficaram sem qualquer plano de cooperação internacional para recuperação de sua agricultura e desenvolvimento de sua indústria, dispondo apenas, para restauração do seu comércio, da exportação de produtos primários. A história da deterioração crescente dos termos de troca entre os produtos primários e as manufaturas é bem conhecida de todos: de ano para ano, o mesmo número de sacas de café, cacau e algodão, contra menos quantidade do mesmo tipo de equipamento e produtos manufaturados.383 João Goulart reconhecia na ―queda permanente dos preços dos produtos primários, fixados pelos países consumidores‖, e na ―elevação paralela dos preços dos equipamentos e manufaturas‖ uma causa do ―empobrecimento contínuo das economias mais débeis, em proveito das economias mais fortes, anulando em larga escala os benefícios da cooperação financeira internacional‖.384 Em visita ao Chile, o presidente expõe o problema da deterioração dos termos de intercâmbio, aproveitando para destacar, ao final, a proporção diminuta da assistência financeira externa recebida pelo Brasil naquela década. Conheceis, Senhores Parlamentares, o processo implacável de deterioração dos termos de intercâmbio com os países industrializados, com o conseqüente esvaziamento de nossa substância econômica e a perda relativa de posição, frente aos países mais desenvolvidos. Nos dias de hoje, até mesmo o povo já apreendeu o sentido de que seja vender mais para receber menos. Não nos escapam, ademais, os efeitos negativos adicionais decorrentes de obstáculos opostos ao comércio e ao consumo de produtos primários, seja pelo emprego de medidas tarifárias e tributárias, seja pela manutenção de sistemas preferenciais e de tratamento discriminatórios contra os produtos latino-americanos. Os efeitos de todas estas distorções, os reflexos de todos estes desajustamentos, são matéria de inquietação para os países latino-americanos. Aí estão, como males crônicos das economias subdesenvolvidas, os déficits de balanço de pagamentos: aí está a necessidade de recorrermos seguidamente às instituições internacionais de crédito e a Governos de países desenvolvidos, a fim de cobrir estes déficits; aí está a ameaça sempre presente de termos de sacrificar nossos esforços de desenvolvimento pela maior redução das importações. A um país que, como o Brasil, recebeu, na última década, fundos de assistência externa bastante inferiores às perdas de receita decorrentes da deterioração de suas relações de trocas, não poderia faltar uma consciência aguda da necessidade de transformação da estrutura do comércio internacional. A assistência externa não pode continuar sendo uma alternativa à expansão de nosso comércio exterior.385 383 MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart aos Estados Unidos da América e ao México, pp. 18-19. Grifo nosso. Discurso proferido em Washington, no dia 4 de abril de 1962, ao ser recebido pelo Congresso dos Estados Unidos da América. 384 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 197. Discurso proferido em Brasília, no dia 24 de outubro de 1962, por ocasião da sessão de instalação da LI Conferência Interparlamentar, contando com a presença de parlamentares de 46 países. 385 MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Viagem do Presidente João Goulart ao Chile e Uruguai, p. 45. Discurso proferido em Santiago, no dia 23 de abril de 1963, perante o Congresso Nacional chileno. 131 E, em entrevista coletiva concedida à imprensa chilena, Jango voltou a ressaltar a desvalorização dos produtos de exportação da América Latina como um dos mais sérios problemas a serem enfrentados e reafirmou que a situação deveria ―ser enfrentada pelas nações latino-americanas em conjunto‖, uma vez que estavam ―cada vez exportando mais e recebendo menos pelas exportações‖.386 Na análise de Jango, a América Latina teria esgotado ―suas possibilidades de desenvolvimento, dentro das linhas clássicas de comércio internacional, há já alguns decênios‖, cabendo aos países dessa região, ―que se haviam beneficiado de participação crescente no comércio mundial e em período anterior‖, agora ―reorientar o seu desenvolvimento, para enfrentar as dificuldades crescentes criadas pela relativa estagnação de suas exportações‖, num ―esforço de transição de uma economia exportadora de produtos primários para outra apoiada no mercado interno‖.387 Além disso, também seriam tarefas dos países latino-americanos: os esforços de integração econômica da região; a adoção de políticas de desenvolvimento planificado; e o esforço conjunto para a transformação na estrutura do comércio internacional. Enxergando na deterioração dos termos de troca um fator de desequilíbrio constante na balança de pagamentos e um obstáculo ao impulso necessário para que os países latinoamericanos superassem a condição de subdesenvolvimento, João Goulart propõe: torna-se imperioso que todos empreendamos uma enérgica ação corretiva desse processo, cujas conseqüências têm sido agravadas pelas barreiras e pelas distorções, artificiais criadas por sistemas preferenciais e discriminatórios de comércio. A meta principal, Senhores Congressistas, que nos propomos atingir consiste numa revisão dos princípios e instituições que regulam o comércio internacional, e que até agora se têm mostrado inadequados ou insensíveis às necessidades dos países exportadores de matérias-primas.388 Não nos basta, no entanto, conhecer estes problemas que nos são comuns ao Chile, ao Brasil, à América Latina como um todo, ao mundo subdesenvolvido em geral. Este conhecimento só terá valor se concretizado em ações no sentido de serem corrigidas as tendências históricas que nos são prejudiciais. Aqui surge, em toda a sua plenitude, o significado de uma política externa consciente, que possa servir como instrumento efetivo em nossa luta pela emancipação econômica e social. É óbvio que a reformulação em profundidade da estrutura do comércio internacional — reivindicação premente de todos os países subdesenvolvidos — requer um esforço conjunto de todos os interessados, capaz de superar resistências que sempre 386 Ibidem, p. 55. Ibidem, pp. 165-166. Discurso proferido em Montevidéu, no dia 26 de abril de 1963, na sede da Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC). 388 Ibidem, p. 137. Discurso proferido em Montevidéu, no dia 25 de abril 1963, na Assembléia Geral do Uruguai. Grifos nossos. 387 132 temos encontrado. A procedência e a justiça de nossas teses devem conduzir a uma transformação estrutural para colocar em bases sólidas e realistas os esforços de cooperação entre países em diferentes estágios de desenvolvimento.389 Como pudemos observar, João Goulart, primeiramente aponta o comércio exterior como fonte prioritária de divisas indispensáveis ao desenvolvimento econômico dos países subdesenvolvidos. Contudo, logo em seguida, corrobora a análise dos economistas cepalinos, alertando para a situação da deterioração dos termos de intercâmbio, comum aos países latinoamericanos. Diante desta situação, Goulart vê como possibilidade a integração da América Latina, não apenas no que diz respeito a um mercado regional – que naquele contexto encontraria dificuldades de concretização, desde no que diz respeito à logística até mesmo ao nível de desenvolvimento e diversificação das economias latino-americanas –, mas, principalmente para a formação de um bloco de países com interesses comuns para atuação na esfera internacional, visando a reestruturação do comércio entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Embora elementar, esta atuação de Goulart no nível internacional, representa uma inovação da posição brasileira nas relações exteriores. Na medida em que, defendendo seu projeto de desenvolvimento e emancipação econômica, convoca os países subdesenvolvidos para uma luta conjunta nos órgãos internacionais de comércio, Goulart lança o Brasil a uma posição destacada na política continental. No entanto, com o golpe de 1964, esta posição brasileira no continente, ainda que mantenha o destaque, terá seu caráter profundamente modificado, passando a servir a interesses completamente distintos. 389 Ibidem, pp. 45-46. Discurso proferido em Santiago, no dia 23 de abril de 1963, perante o Congresso Nacional chileno. 133 3. JOÃO GOULART E A INSTABILIDADE DA ORDEM LEGAL Embora o objetivo deste capítulo seja explicitar a posição de João Goulart diante dos episódios de suposta ou efetiva ameaça à ordem legal ao longo de seu governo, é importante lembrar que o clima golpista era uma presença constante na política brasileira desde a década anterior. O período que se segue ao Estado Novo, chamado pelos historiadores Jorge Ferreira e Lucilia de Almeida Neves Delgado de ―o tempo da experiência democrática‖, 390 não transcorreu livre de tentativas de golpe de estado – como nos mostra o próprio Ferreira, em seu artigo Crises da República.391 Todas essas tentativas foram lideradas pela UDN com o apoio de setores das Forças Armadas. No entanto, é importante ressaltar que estes episódios não constituem apenas momentos de disputa partidária; a UDN congregava os representantes dos interesses de um grupo econômico formado por banqueiros e industriais ―associados‖ ao capital internacional. Ou, como na caracterização de Basbaun: Esses grupos representam a alta burguesia financeira, banqueiros, grandes industriais associados de uma forma ou de outra ao capital norte-americano, os que alienaram suas indústrias e suas consciências ao capital e ao capitalismo da grande república do Norte da América, os testas-de-ferro brasileiros que dirigem essas indústrias, os advogados, os public-relations dessas mesmas empresas encarregados de defender seus interesses junto ao governo brasileiro e infiltrados nos partidos políticos nacionais e na alta administração do País, os que tinham o poder econômico mas ainda não o poder político. Em suma, a UDN, a famosa União Democrática Nacional.392 Com a vitória de Getúlio Vargas nas eleições de 1950, houve uma tentativa de impedir sua posse sob a alegação de não haver a ―maioria absoluta‖ – elemento não previsto na Constituição de 1946. Não o tendo conseguido, [a UDN] iniciou uma tremenda campanha pela imprensa e no Congresso contra Getúlio, apelando novamente para as Forças Armadas, aproveitando todos os erros do Presidente Vargas até conseguir derrubá-lo e atingir o poder, com Café Filho, pelo menos por um certo período, um ano, o suficiente para preparar as eleições de 1955 e alcançar o poder pela via legal, uma vez que o golpe branco tentado em 1954 resultara contra-producente em virtude do heróico suicídio de Getúlio.393 390 Jorge Ferreira afirma o período como ―o tempo da experiência democrática‖ em oposição à historiografia que o trata como ―período populista‖. 391 FERREIRA, J. Crises da República: 1954, 1955 e 1961. In: _____________; DELGADO, Lucília de A. N. (orgs.). O tempo da experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008 (O Brasil Republicano; v. 3), pp. 301-342. 392 BASBAUN, Leôncio. História Sincera da República: de 1961 à 1967. São Paulo: Fulgor, 1968, v. 4, p.12. 393 Ibidem, pp. 75-76. 134 Assim, se por um lado o suicídio de Vargas representou um duro golpe dos ―liberais conservadores‖ contra o projeto nacionalista e de intervenção estatal, por outro, a comoção popular por ele deflagrada impediu que a UDN e os militares a ela ligados instalassem, naquele momento, uma ditadura no país. Café Filho permaneceu no cargo até as eleições de 1955, vencidas pela chapa PSD-PTB, com Kubistchek na presidência e João Goulart como vice − após ser derrotada a iniciativa udenista de adiamento das eleições e de sua campanha difamatória, principalmente direcionada a Goulart. Como lembra Thomas Skidmore, ―oficiais das Forças Armadas, que apenas um ano antes comandavam a campanha para forçar Vargas a demitir Goulart, viam agora seu inimigo aspirar [e se eleger] a um cargo ainda mais elevado‖.394 Após a derrota eleitoral da UDN, houve nova movimentação, com participação de militares, tentando impedir a posse de JK; desta vez, repelida pela ação do Marechal Lott e dos setores legalistas: Novamente seus arautos [da UDN] iniciam uma campanha pela imprensa e no Congresso, mais uma vez exigindo a ―maioria absoluta‖, e para isso mais uma vez tentando sensibilizar as forças armadas contra o ―retorno‖. E quase conseguiram, não fora o contra-golpe executado pelo Marechal Lott, logo após as eleições de outubro daquele ano, demitindo o presidente provisório e licenciado por enfermidade, Café Filho, e empossando o Presidente da Câmara, Nereu Ramos, até à posse do Presidente eleito, Juscelino Kubistchek.395 Passado o governo JK, nova e mais intensa articulação golpista ocorrerá com a renúncia de Jânio Quadros – eleito com o apoio da UDN –, em 1961; dando início à chamada ―crise da legalidade‖, já abordada no início deste trabalho, que tentou impedir a posse de João Goulart, então vice-presidente eleito, pela segunda vez consecutiva. Como se vê, o governo de João Goulart está inscrito num período de constante ameaça da ordem legal; em que grupos contrários à implementação de um projeto nacionalista e de ampliação da participação popular estarão se articulando para alcançar o poder político, inclusive por meios golpistas, caso os considerem necessários. Nas palavras de Caio Navarro de Toledo, o governo Jango ―nasceu, conviveu e morreu sob o espectro do golpe de Estado‖.396 394 SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976, p. 184. BASBAUN, L. Op. cit., p. 76. 396 TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. In: REIS, D. A.; RIDENTI, M; MOTTA, R. P. Op. cit., p. 68. 395 135 3.1. Posse na presidência, emenda parlamentarista e plebiscito A grave crise política que antecedeu sua posse foi tema recorrente nos discursos de João Goulart ao longo dos seus primeiros meses de governo. Desde o discurso de posse e continuando nos pronunciamentos realizados em diversas situações, João Goulart agradece as mobilizações e manifestações de apoio recebidas durante a crise, salientando sua força e consciência democrática. No seu discurso de posse, procura respaldar sua investidura na vontade popular manifestada nas mobilizações pela legalidade e se coloca como ―guardião da união nacional‖: Assumo a Presidência da República consciente dos graves deveres que me incumbem perante a Nação. A minha investidura, embora sob a égide de um novo sistema, consagra respeitoso acatamento à ordem constitucional. Subo ao poder ungido pela vontade popular, que me elegeu duas vezes VicePresidente da República e que, agora, em impressionante manifestação de respeito pela legalidade e pela defesa das liberdades públicas, uniu-se, através de todas as suas forças, para impedir que a decisão soberana fosse desrespeitada. Considero-me guardião dessa unidade nacional, e a mim cabe o dever de preservá-la, no patriótico objetivo de orientá-la para a realização dos altos e gloriosos destinos da Pátria brasileira.397 João Goulart manifesta grande valorização do movimento pela legalidade e do que considera como amadurecimento político da população brasileira na defesa do regime democrático, salientando a união dos diversos setores da sociedade num mesmo sentido: Muitos terão descrido do regime democrático; alguns terão desesperado de defendê-lo; outros terão pretendido golpeá-lo; mas o povo ensinou-nos como sustentá-lo, na resistência admirável daqueles dias de incerteza e de angústia que, juntos, vencemos, todos nós – autoridades, trabalhadores, estudantes, intelectuais, forças armadas, clero, classes produtoras e, na expressão da síntese mais legítima, o Congresso Nacional.398 Ao longo dos primeiros meses de seu governo, nas diversas ocasiões em que discursou, Jango agradeceu e reconheceu a participação dos estudantes no que considerou um ―extraordinário movimento de opinião pública em defesa das instituições democráticas da nossa pátria‖.399 Também ressaltou o apoio da Assembleia Legislativa paulista à legalidade, afirmando que ―A consciência política do povo paulista encontrou nos seus representantes nesta Assembléia intérpretes verdadeiros dos seus sentimentos de fidelidade ao regime de 397 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência: discursos 1 (1961), p. 9. Ibidem, p. 17. Discurso por ocasião da comemoração do 15º aniversário da Constituição Brasileira, em 18 de outubro de 1961. Este discurso foi classificado pelo Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, como ―apelo reformista‖. Ver: CARVALHO, Aloysio Castelo de. A Rede da Democracia: O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil na queda do governo Goulart (1961-64). Niterói (RJ): UFF/NitPress, 2010, p. 82. 399 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência: discursos 1 (1961), p. 21. Discurso na sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), no Rio de Janeiro, em 24 de setembro de 1961. 398 136 liberdade e de responsabilidade, sob a égide da Constituição‖400 – identidade entre opinião pública e representantes que também elogia na Câmara Municipal de São Paulo, ao receber o título de ―Cidadão Paulistano‖, em 29 de setembro de 1961, afirmando: Essa identidade é hoje mais do que nunca essencial à solução dos nossos problemas. Ela deve ser mantida em todos os planos da vida pública nacional. Só ela nos oferecerá as condições necessárias para enfrentarmos a luta pelo nosso progresso, pela superação das nossas deficiências e do nosso atraso.401 Ainda agradece a defesa da legalidade em discursos proferidos em Belém, 402 em Porto Alegre403 e em Minas Gerais.404 Quanto à imprensa e às Forças Armadas, apesar destas constituírem setores que se mostraram divididos entre a defesa ou o combate de sua posse,405 Goulart buscou minimizar a existência dos setores contrários, reforçando a ideia de união e apoio desses setores à causa legalista. Esta posição pode ser constatada nos seus discursos realizados em Curitiba, na solenidade de conclusão dos cursos da Escola de Oficiais Especialistas e de Infantaria e Guarda, e no Rio de Janeiro, na sede da revista O Cruzeiro. O País está seguro da posição legalista das suas Forças Armadas, leal aos ideais da democracia representativa, leal aos princípios cristãos formadores da nacionalidade, leal ao dever de servir a esta nação, que ela sempre defenderam com intrepidez.406 A contribuição da nossa imprensa na mobilização da opinião pública pela defesa dos postulados constitucionais tem sido uma lição constante de patriotismo, uma página de honra das nossas melhores tradições democráticas.407 No entanto, vimos que a posse de João Goulart na Presidência da República ocorreu sob a emenda parlamentarista, que reduzia suas atribuições executivas. De acordo com tal emenda, embora o poder executivo fosse exercido conjuntamente pelo Presidente da República e pelo Presidente do Conselho de Ministros (Primeiro-Ministro), caberia a este último a direção do governo federal. Ao presidente da república caberia a indicação do 400 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência: discursos 1 (1961), p. 24. Discurso ao ser homenageado pela Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, em 28 de setembro de 1961. 401 Ibidem, p. 28. 402 Ibidem, p. 47; pp. 49-50. Discurso proferido em Belém, em 25 de outubro de 1961. 403 Ibidem, pp.57-59. Discurso proferido em Porto Alegre, no dia 30 de outubro de 1961. 404 Ibidem, p. 77. Discurso na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, em Belo Horizonte, no dia 17 de novembro de 1961. 405 Além do jornal A Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda, jornais como O Globo, do Rio de Janeiro, e O Estado de São Paulo manifestaram-se claramente de acordo com o veto dos ministros militares. 406 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência: discursos 1 (1961), p. 114. 407 Ibidem, p. 33. 137 Presidente do Conselho de Ministros, que somente seria nomeado após aprovação da Câmara dos Deputados. A aceitação da emenda parlamentarista como condição para sua posse foi precedida de polêmica e seguida de um constante debate sob o funcionamento dessa forma de governo.408 Nessas circunstâncias, inúmeras vezes Goulart procurou justificar sua posição de consentir a diminuição de seus poderes como forma de apaziguar os conflitos em torno de sua posse e evitar ―a luta entre irmãos‖, procurando transmitir a imagem de alguém preocupado em unir esforços num projeto de emancipação econômica do país e progresso social. Desde logo pude avaliar a extensão e o sentido exato da mobilização de consciências e vontades em que se irmanaram os brasileiros, para a defesa das liberdades públicas. Solidário com as vivas manifestações das nossas consciências democráticas, de mim não se afastou, um momento sequer, o pensamento de evitar, enquanto com dignidade pudesse fazê-lo, a luta entre irmãos. Tudo fiz para não marcar com o sangue generoso do povo brasileiro o caminho que me trouxe à nova Capital, o caminho que me trouxe a Brasília. /.../ Reclamamos a união do povo brasileiro e por ela lutaremos com toda a energia, para, sob a inspiração da lei e dos direitos democráticos, mobilizar todo o País para a única luta interna em que nos devemos empenhar, que é a luta pela nossa emancipação econômica, que é a luta contra o pauperismo, a luta contra o subdesenvolvimento.409 Os discursos mais significativos do presidente João Goulart sobre sua postura de acatar a chamada solução parlamentarista são os proferidos na sede da revista O Cruzeiro, no Rio de Janeiro, em 7 de outubro de 1961, e nas cidades gaúchas de Porto Alegre e São Borja, respectivamente, em 30 de outubro e 4 de novembro do mesmo ano. Na sede da revista O Cruzeiro, ao ser homenageado pelos Diários Associados de Assis Chateaubriand, um grande crítico da política nacionalista, João Goulart ratifica sua postura pacífica de busca de uma ―harmonia nacional‖ e, pela primeira vez, alude à possibilidade de que, durante a crise de agosto, o país tivera sua soberania ameaçada. De minha parte, tudo tenho feito para cumprir o meu dever. Desde o primeiro instante da recente crise político-militar, sempre constituiu minha principal preocupação empreender todos os esforços em benefício da pacificação geral da família brasileira, mesmo que isto acarretasse até o sacrifício de um mandato que por duas vezes o povo diretamente me conferiu, inclusive no último pleito. 408 No dia 05 de setembro de 1961, o jornal Última Hora, apoiador de João Goulart, publica matéria na qual os juristas Hermes Lima e Lineu Albuquerque Mello apontam problemas na forma repentina de instituição da emenda e as dificuldades da prática parlamentarista com partidos políticos numerosos. Apenas o jurista Pontes de Miranda se manifesta favorável à emenda e à diminuição dos poderes do Presidente da República. Cf. ―Juristas: ‗Novo regime é fonte de crises‘‖, Última Hora, Rio de Janeiro, 05 set. 1961. 409 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência: discursos 1 (1961), p. 10. Discurso de posse, em Brasília, no dia 7 de setembro de 1961. Grifos nossos. 138 Assim, depois de seis anos de pleno exercício da Vice-Presidência da República, sem nenhuma contestação legal, não vacilei em aceitar uma fórmula que me foi apresentada sob a inspiração dos que nela desejavam encontrar, na fase aguda da crise, o denominador capaz de evitar que o País afundasse, ou corresse o risco de afundar-se, em uma guerra entre irmãos, suscetível até mesmo de constituir ameaça à nossa soberania, em meio às grandes dificuldades internacionais em que vivemos. /.../ Tudo esteve em minhas mãos para deflagrar um movimento de resistência legalista, em defesa da letra expressa e insofismável da Constituição. Qual foi, porém, a minha decisão? O Brasil inteiro é testemunha do meu procedimento. Contrariando manifestações de amplas camadas populares, contrariando a exaltação cívica de poderosos contingentes, civis e militares, marchei em busca da harmonia nacional.410 Uma explicação sobre o acatamento da emenda parlamentarista talvez se fizesse ainda mais necessária nos discursos realizados pelo presidente nas cidades gaúchas. Embora Goulart estivesse em ambiente distinto do que se encontrava na sede da revista de Chateubriand – ao invés de estar em ―território‖ de opositores, estava agora no berço do movimento legalista pela sua posse –, o Estado gaúcho, reduto da resistência ao golpe dos ministros militares, com uma intensa mobilização popular, teria manifestado certo descontentamento com a posição assumida por João Goulart no desfecho da crise. O historiador Jorge Ferreira faz a seguinte narração do desfecho da crise da legalidade em Porto Alegre e da insatisfação popular: A chegada de Goulart em Porto Alegre comprovou que a resistência democrática e os perigos enfrentados não foram inúteis. No entanto, rapidamente o sentimento popular se transformou: da alegria inicial pela vitória, dúvidas e incertezas se apoderaram da população. /.../Era preciso que Goulart se pronunciasse – o que não acontecia. /.../ Ao amanhecer, a multidão rumou para o Palácio Piratini e, lá, encontrou milhares de outras pessoas, entre impacientes e indignadas. Por mais que o chamassem, mesmo com insistência, Jango não aparecia na sacada do Palácio. O silêncio, aos poucos, transformou a indignação em revolta. Com impaciência, alguém da multidão gritou: ‗arranquem as faixas‘. Rapidamente, todas as faixas e cartazes foram amontoados e, como ato de rebeldia, queimados. Algumas vozes o acusaram de ‗covarde‘ e ‗traidor‘. Durante uma hora oradores falaram, de maneira contundente, contra o parlamentarismo e a moderação do presidente. Todos, na verdade, ainda esperavam que Goulart se aproximasse das janelas do Piratini. Cansados, abandonaram a Praça da Matriz e foram para as suas casas. Uma chuva torrencial, como poucas ocorrem, caiu sobre a cidade, expulsando os poucos esperançosos. Nada mais havia a fazer. Goulart acatara a fórmula parlamentarista. 411 Sendo assim, João Goulart, que não discursara para a população a sua espera na ocasião do desfecho da crise – tendo apenas declarado à imprensa que se manteria fiel aos princípios que tornaram possível aquela impressionante mobilização, sem, contudo, ―marcar 410 411 Ibidem, p. 34. Grifos nossos. FERREIRA, J. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular 1945-1964, pp. 310-311. 139 com o sangue generoso dos brasileiros as estradas que conduzem à Brasília‖412 – em seus primeiros pronunciamentos públicos em visita à região após sua posse, aludiu novamente ao risco do país ter sua soberania ameaçada, caso fosse prolongada a crise, e se exprimiu nos seguintes termos: Permitam-me aproveitar este momento e esta tribuna para dizer ao valoroso povo de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul, que soube compreender, passados os primeiros momentos de quase incontrolável exaltação cívica, o meu gesto de desapego a um direito líquido e certo que me conferiu a Constituição, que nem o seu sacrifício nem a minha transigência foram em vão. Eis-nos a menos de três meses da mais grave crise político-militar que o País viveu, e, ao invés de ódios, de dissensões, de conflitos insanáveis, assistimos neste Congresso a uma autêntica assembléia da vida brasileira. /.../ Libertos da guerra, civil, que — na situação nacional em que vivíamos e na atual conjuntura internacional — nos poderia arrastar às mais graves conseqüências e até mesmo propiciar atentados à nossa soberania, conseguimos que o País, tendo chegado a viver o clima irrespirável dos prenuncies da ditadura, emergisse à tranqüilidade da ordem legal. Na verdade, mais importante do que a aferição dos novos podêres presidenciais, ou a análise do novo sistema, é a certeza de que estamos hoje sob o império da lei, da ordem e do respeito integral às liberdades públicas, caminho único para uma ordem social mais justa e mais consentânea com a realidade contemporânea. Militante de um partido democrático, enraizado nas aspirações de justiça social das camadas mais desprotegidas de nossas populações, reservou-me o destino a tarefa onerosa de assumir a chefia da Nação, depois de uma reformulação constitucional em que ela passou a representar uma parte, apenas, da chefia do Governo do País. Acedi, entretanto, a estas condições novas, tão diversas daquelas com que tinha o legítimo direito originário de contar, sem qualquer prevenção, pois as circunstâncias invocadas como seu fundamento exigiam de mim esta transigência, pelo bem do Brasil e pelo dever indeclinável de preservar a paz interna. Este objetivo, apesar da insistência antipatriótica de inexpressivos focos de golpismo, foi plenamente alcançado.413 Em São Borja, sua cidade natal, João Goulart repete seus argumentos, desta vez, referenciando a Getúlio Vargas como uma inspiração para suas decisões. Sem qualquer ressentimento, dei ao País a contribuição que de mim se exigia, em nome da ordem e do entendimento geral. Serenamente, com o pensamento voltado para Deus e para os sentimentos pacifistas e cristãos da nossa gente, transigi, porque não me julguei com o direito de manchar com o sangue generoso de nossos irmãos a estrada que me conduziria à Presidência da República. No instante da grande decisão, sob a direta influência de um povo vibrante de exaltação cívica, como o do Rio Grande do Sul, onde me encontrava, procurei, no recolhimento da meditação, inspirar-me nos ensinamentos de um conterrâneo, cujo nome está vivo no coração de todos os brasileiros, e 412 ―Jango: Mensagem de Paz Aos Brasileiros‖. Última Hora. Rio de Janeiro, 05 set. 1961. GOULART, J. Desenvolvimento e Independência: discursos 1 (1961), pp. 62-63. Discurso na solenidade de encerramento do II Congresso das Assembléias Legislativas do Brasil. 413 140 que sempre nos advertia de que ―a violência gera a violência‖ e ―só o amor constrói para a eternidade‖.414 Contudo, uma vez aceita a emenda parlamentarista, tratava-se, agora, de como se daria a atuação política do presidente João Goulart neste novo regime. Qual seria sua influência sobre o Gabinete Ministerial e o Congresso Nacional? Como seria sua relação com estas esferas decisivas do poder federal e que congregavam tanto aliados e partidários de suas posições reformistas como figuras não tão afeitas às propostas trabalhistas? Nos primeiros momentos após sua posse, ao anunciar Tancredo Neves, do PSD, como seu Primeiro-Ministro, Goulart expressa confiança no trabalho conjunto com os vários ministérios e com os parlamentares, se comprometendo com a nova forma governamental, afirmando: ―Sem embargo dos pronunciamentos presidencialistas de setores diversos da opinião pública, estou cumprindo e continuarei a cumprir, com rigoroso acatamento ao Congresso Nacional, as normas do sistema por ele instituído‖. Também afirma a disposição em formar um ―governo de coalizão‖, com a necessidade fundamental, ―pela própria sistemática do parlamentarismo‖, da colaboração do Congresso Nacional. 415 No entanto, a prática governamental logo apresentaria obstáculos ao desenvolvimento deste governo de ―união nacional‖. Menos de duas semanas após sua posse, João Goulart já se coloca à favor de implementação de reformas e manifesta sua expectativa de que o Congresso se disponha, quando necessário, a efetivar regulamentações constitucionais que equacionem, de maneira prudente, porém segura, problemas como o da reforma agrária, o dos abusos do poder econômico, o da reforma bancária, o das novas diretrizes educacionais, o da disciplina do capital estrangeiro, distinguindo e apoiando o que representa estímulo ao nosso desenvolvimento e combatendo o que espolia nossas riquezas.416 Mas, como já foi dito, no regime parlamentarista, cabia ao Conselho de Ministros enviar ao Congresso os planos de governo. E, segundo Cibilis da Rocha Viana, não havia convergência entre as assessorias econômicas do Presidente da República e do Presidente do Conselho de Ministros; ―por isso mesmo, os assuntos de Estado em matéria de política econômica eram conduzidos com muita lentidão, em época de crise que estava a exigir atuação decidida do poder público‖.417 414 Ibidem, pp. 68-69. Discurso proferido na sede do Clube Municipal de São Borja, ao ser homenageado com um banquete pela sociedade local. 415 Ibidem, p. 14. 416 Ibidem, p. 18. Discurso proferido em Brasília, pelo 15º aniversário da Constituição brasileira, em 18 de setembro de 1961. 417 VIANA, C. R. Op. cit., p. 110. 141 A necessidade da atuação governamental e o impasse gerado pela dificuldade de consenso entre os gabinetes do Presidente da República e do Conselho de Ministros provocavam discussões sobre a viabilidade do regime parlamentarista, tal qual vigorava, e sobre a conduta de João Goulart frente ao governo. Quanto aos problemas administrativos e à estranheza gerada pelo novo sistema de governo em parte da população, Goulart afirmou: As possíveis deficiências na elaboração de uma emenda constitucional, votada com a urgência requerida por uma crise político-militar, num país que há 70 anos vivia sob o regime presidencialista, não podem ser a mim debitadas. Conheci a nova emenda quando cheguei a Brasília. No exterior, não tive oportunidade de examiná-la; se porventura contém contradições, se possui lacunas, se precisa ser melhorada, se é necessário ajustá-la à nossa realidade social, vamos, então, tratar de realizar essa tarefa. Não é de admirar também que o povo não se mostre ainda familiarizado com o atual sistema, que veio a conhecer na madrugada do dia 3 de setembro último. Estarei sempre pronto a cooperar para que o sistema instituído se ajuste cada vez mais e melhor à realidade do País, e para que possa ser aplicado como instrumento eficiente na conquista das reivindicações populares.418 Dessa forma, ao mesmo tempo em que João Goulart reafirmava a disposição em cooperar com o sistema parlamentarista e possibilitar a aproximação com possíveis opositores, também associava o bom funcionamento desta forma de governo à conquista de reivindicações populares. O discurso que realiza em 17 de novembro, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, elucida esta postura assumida por João Goulart nesses primeiros meses de governo. Sou um homem de coração aberto e sem ressentimentos. Quero dar o braço, como sempre o tenho feito, a todos que desejem lutar pelo desenvolvimento da nossa pátria e pela solução dos seus problemas econômicos e sociais. Nunca recusei a colaboração de ninguém, mesmo dos meus mais rancorosos adversários, quando se trata de atender às reivindicações do progresso e da propriedade nacionais. Podemos todos marchar juntos para a realização de um governo de paz e, acima de tudo, de um governo de justiça social, único caminho, Senhores Deputados, seguro para a consolidação e o fortalecimento do regime, desse regime democrático que o povo brasileiro já defendeu e mostrou estar disposto a defender em qualquer circunstância e, se necessário, até com armas nas mãos.419 Neste mesmo discurso, Goulart exprime ainda confiança na colaboração das ―elites econômicas‖ para o atendimento das reformas sociais, como parte de uma ―luta cristã‖ e ―patriótica‖ pela ―harmonia social‖ e ―desenvolvimento nacional‖: ―Ninguém pode desejar o 418 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência: discursos 1 (1961), p. 35. Discurso, já citado, proferido no Rio de Janeiro, na sede da revista O Cruzeiro, em 7 de outubro de 1961. 419 Ibidem, pp. 77-78. 142 agravamento dos problemas sociais e muito menos a intranquilidade do povo, que conduzem à angústia, que conduzem ao desespero e que levam quase sempre à revolta e imprevisão‖.420 Nesse sentido, Goulart busca persuadir os ouvintes da necessidade do atendimento das reivindicações populares, mas sem assumir, ele próprio, uma postura ameaçadora. Isto, contudo, não significa o esvaziamento de seu discurso reformista, como podemos ver um pouco mais adiante no mesmo discurso: Sou um homem cujo temperamento tende à conciliação, e toda a minha ação política sempre se orientou no sentido da compreensão e da harmonia social. Não transijo, porém, e jamais transigirei, quando se trata do interesse nacional e da soberania do Brasil. Adversário de todos os extremismos, isso não me impede de apoiar, e apoiar com lealdade, reformas que constituem aperfeiçoamento das instituições democráticas e que venham em benefício do povo.421 Ao final do ano de 1961, as dificuldades de execução das propostas reformistas no novo sistema de governo instituído com a emenda parlamentarista aparecerão na sua mensagem veiculada pela rede de radiodifusão A Voz do Brasil, pelo ensejo da passagem de ano. Nesta mensagem, Goulart aproveita para ressaltar a importância das eleições parlamentares que ocorreriam em 1962, lembrando o peso determinante do Congresso Nacional naquela forma de governo, devendo expressar as aspirações de seus representados no governo. Posso proclamar que tudo tenho feito no sentido de não criar quaisquer dificuldades ao novo sistema instalado no País. Com a modificação introduzida pelos acontecimentos de agosto, não foram, entretanto, solucionados os verdadeiros problemas nacionais. Antes, evidenciou-se a necessidade de empreender, com lucidez e coragem, as reformas de que carecemos, para ajustar o Estado e o processo administrativo às exigências das necessidades nacionais. /.../ O clamor público pelas reformas de base indica-nos que atingimos um grau de compreensão da nossa realidade que nos fará criar, com os próprios recursos de inteligência e trabalho, os meios indispensáveis à construção do progresso do nosso País. /.../ Vejo, por isso, com o mais saudável otimismo, o alvorecer deste Ano Novo, que há de trazer-nos a solução de alguns dos problemas que agora nos afligem, pois nele o povo será convocado a escolher os seus representantes no Parlamento, o que equivale à reaproximação com a única fonte de onde deve emanar o poder. Temos problemas árduos a resolver, mas são precisamente aqueles que decorrem da marcha da nossa evolução econômica e social. 422 420 Ibidem, p. 80. Ibidem, pp. 80-81. 422 Ibidem, pp. 123-124. Discurso veiculado em 31 de dezembro de 1961. 421 143 Não obstante o otimismo que manifesta, na citação acima, em relação ao ano que se inicia, Goulart não deixa de apontar as dificuldades a serem enfrentadas pelo governo e pela ―atual máquina administrativa‖ parlamentarista: ―O ano que se inaugura será, sem dúvida, difícil para o Governo, que se vê a braços com situações graves que lhe foram legadas, acrescidas de outras, resultantes de erros acumulados ou causados pela imperfeição da atual máquina administrativa‖.423 Ao longo do ano de 1962, o presidente João Goulart passará, com freqüência, a se posicionar favoravelmente à consulta popular para a volta do regime presidencialista. No discurso que realizou em 1º de maio, Goulart, pela primeira vez, se posicionará publicamente apontando os limites do regime parlamentarista. Embora o presidente Jango reconheça certo mérito na instituição do novo regime, no sentido de ―propiciar melhor entendimento e mais estreitas relações entre as diversas correntes políticas, com reflexos positivos no desarmamento geral dos espíritos‖, avalia que a população, devido a não solução de problemas prementes, não estaria ―desfrutando da mesma tranquilidade e segurança‖ obtidas na esfera das relações políticas. Para Goulart, uma vez atingida a ―pacificação política‖, se fazia necessária a implantação de medidas efetivas em defesa dos interesses populares, ou então a emenda parlamentarista se limitaria a um ―entendimento de cúpula‖: Agora é chegado o momento de perguntar se o povo brasileiro, as classes médias e populares, os trabalhadores em geral e especialmente os que vivem no campo, estão também desfrutando da mesma tranqüilidade e segurança. Minha impressão sincera é de que não. A cada hora que passa, o povo brasileiro tem motivos para novas preocupações sobre o dia de amanhã. Para ele, para o povo, ainda não foram asseguradas perspectivas animadoras de tranqüilidade e bem-estar. /.../O clima de pacificação política, necessário ao País, e que conquistamos com tenaz esforço, precisa abrir espaço a medidas eficazes do Governo e do Parlamento, sob pena de vir a ser interpretado como um entendimento de cúpula, feito sem levar em conta os interesses populares.424 João Goulart ainda explicitou um ―apelo ao Congresso Nacional‖, para que concedesse ao ―futuro Congresso‖, a ser eleito naquele ano, ―o poder de reexaminar, à luz da experiência destes oito meses, e da experiência bem mais vasta dos últimos quinze anos, as bases e condições do nosso regime de governo‖. O presidente propõe, então, uma reforma da Constituição – o que, ao mesmo tempo em que definiria o regime mais adequado, também abriria maiores possibilidades de realização das reformas de base: 423 Ibidem, p. 126. GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 76-77. Grifo nosso. Discurso proferido em Volta Redonda (RJ), nas comemorações do Dia do Trabalho. 424 144 O presidencialismo teve defeitos e vantagens, e o pouco que temos vivido no parlamentarismo também mostra que este tem uns e outros. O tempo de hoje não é mais talvez de soluções constitucionais extremadas, mas de fórmulas sabiamente combinadas, em que se corrigem os excessos e se procura robustecer a autoridade, dando-lhe, ao mesmo tempo, limites precisos e responsabilidades definidas. O que queremos para o Brasil é um regime que assegure eficiência administrativa, responsabilidade, tranqüilidade nas horas de transmissão do mando, e segurança de que a vontade do povo será sempre respeitada. Uma reforma da Constituição permitiria a criação de condições indispensáveis à adoção das reformas de estrutura, e resolveria de maneira adequada, sem perturbação da vida nacional, questões que estão gerando uma intranqüilidade desnecessária, como, por exemplo, a da extensão do parlamentarismo aos Estados e a da possibilidade de fazerem parte do Ministério congressistas que são novamente candidatos ao Congresso Nacional.425 É desnecessário dizer que a possibilidade de uma reforma constitucional não encontrou apoio no poder legislativo e, portanto, não foi levada à frente. Ainda assim, as eleições parlamentares de 1962 mexiam com a organização do gabinete parlamentarista, uma vez que os ministros que almejassem concorrer aos cargos legislativos teriam que ser licenciados, sendo, portanto, exigida uma reforma ministerial. A mudança do ministério realizada em julho daquele ano, ocasião da saída de Tancredo Neves da presidência do Conselho de Ministros para disputar das eleições parlamentares, acentuará a tensão entre o Gabinete da Presidência da República e o Congresso Nacional na escolha do novo Primeiro-Ministro e dos demais ministérios. Para a sucessão de Tancredo Neves, de acordo com Darcy Ribeiro, ―Jango tenta /.../ fazer de San Tiago Dantas seu primeiro-ministro. O Congresso não apóia. Aprova e impõe é o nome de Auro de Moura Andrade, reacionaríssimo, que não consegue compor um ministério que Jango aceitasse‖.426 O conflito por qual passava o presidente João Goulart para escolha do novo PrimeiroMinistro e composição dos ministérios aparece com bastante clareza em uma carta manuscrita pelo próprio presidente e endereçada a Evandro Lins e Silva, na época, Procurador-Geral da República. Nesse documento, Jango solicita uma análise da ―emenda Denys‖, no que diz respeito a suas atribuições como Presidente da República, explicitando a dificuldade de articular um gabinete que, sem contrariar o projeto defendido por Goulart, pudesse ser aprovado pelo Congresso. Escreve João Goulart: Com um abraço peço ao amigo que examine, com o maior cuidado e rigor, as atribuições que me confere a emenda ―Denys‖, especificamente no seu artigo 9, ou seja na parte referente à nomeação dos ministros. Depois do 425 426 Ibidem, p. 80. Grifo nosso. RIBEIRO, Darcy. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 288. 145 discurso do nosso Auro,427 tão enfático e corajoso na parte das suas atribuições e tão tímido, tão pálido nas suas afirmações inclusive plebiscitárias, sobre as quais, espontaneamente, na sua e outras presenças havia falado com tanto entusiasmo e tanto calor; depois das agressões que sofri por parte de alguns parlamentaristas [outros] que talvez não precisassem ser tão valentes para defender o indicado para primeiro ministro. Depois do discurso do líder da UDN e do grande PILA,428 palavra que fico receoso que me apresentem, para ser nomeado como ministro e posteriormente submetido à Câmara, um Cordeiro429 para Guerra, um Moss para a Aeronáutica, um Heek430 para Marinha e, ainda quem sabe juntos com um [ilegível] para o Exterior ou algum Pedrozo431 para a Fazenda. Você me conhece e sabe que este crime eu não cometeria com o meu país, mesmo que para tanto fosse obrigado a abandonar as atribuições para fixarme nos deveres. Peço-lhe, pois, que me prepare uma ou duas folhas de papel com razões sobre esse assunto, pois você é uma das testemunhas da luta tremenda que venho realizando para manter o nosso país nos quadros legais e da pressão que sofro em sentido contrário, a tudo resistindo e a tudo disposto a resistir, [ilegível] embora, e com o desgaste de um ofício que nada fez, e nada pôde fazer em defesa do nosso desgraçado povo. /.../ Estude, pois, com toda a atenção a emenda e as minhas atribuições porque se o avanço for além das possibilidades de resistência do país, ou ameaçar, através da escolha de golpistas fantasiados de democratas, a legalidade que sempre defendi, eles terão que pedir novamente as baionetas do Gen. Denys, para completar o impedimento que só não concluíram em Agosto de 61 porque o povo brasileiro falou mais alto que o manifesto golpista lançado ao país e do que o ―patriotismo‖ de muitos dos colegas representantes do povo brasileiro, povo que eles hoje têm medo de ouvir, apesar de em seu nome terem decidido. Um abraço amigo do João Goulart.432 O impasse se mantém e Moura Andrade acaba por ver ―publicada a carta prévia de renúncia que entregara ao presidente. A sua saída é forçada também por uma greve geral, a 427 Auro de Moura Andrade, senador. Raul Pilla, deputado do Partido Libertador (PL), antigo defensor da instituição do parlamentarismo no Brasil. 429 General Cordeiro de Farias, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas no governo Jânio Quadros, atuou na conspiração contra a posse de João Goulart. 430 Gabriel Grün Moss e Sylvio Heek, respectivamente, ministros da Aeronáutica e da Marinha do governo Jânio Quadros que, juntamente com Odílio Denys, ministro da Guerra, compuseram a junta militar que vetou a posse de João Goulart após a renúncia de Quadros. 431 Provavelmente, Oscar Pedroso Horta, ministro da Justiça do governo Jânio Quadros, envolvido num episódio polêmico com Carlos Lacerda, segundo o qual Pedroso propusera a articulação de um golpe a favor de Quadros, dias antes de sua efetiva renúncia. 432 Carta de João Goulart enviada a Evandro Lins e Silva, expressando sua preocupação com relação ao regime parlamentarista (documento manuscrito). Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br/nav_jgoulart/documentos/janela.asp?Path=../documentos/Modulo6/&Img=ELS_carta _&Pag=3&Tt=4&Htm=&Lgn1=Carta de João Goulart enviada a Evandro Lins e Silva, expressando sua preocupação com relação ao regime parlamentarista. [1961].&Lgn2=(CPDOC/FGV/arquivo Evandro Lins e Silva ELS carta)>. Acesso em: 16 de dezembro de 2009. 428 146 primeira do Brasil [sic], de apoio ao presidente Goulart‖.433 Este episódio é assim explicado pelo jornalista Flávio Tavares: tanta foi a ansiedade de Auro ao ser convidado, que deixou com Jango uma carta-renúncia, sem data, a ser usada no futuro, em caso de eventual fricção insanável entre ambos e o Presidente decidiu divulgá-la muito antes do previsto. Jango não tinha sido consultado sobre o ministério e, suspeitando da lealdade do novo Primeiro-Ministro, resolveu antecipar o futuro e difundir a ―renúncia‖ sem o avisar. Auro foi saber que havia ―renunciado‖ por um discurso do líder trabalhista na Câmara dos Deputados, Almino Affonso.434 Com a ―renúncia‖ de Moura Andrade dois dias após a aprovação de seu nome, será indicado e aprovado o nome de Francisco Brochado da Rocha, cujo gabinete dura somente dois meses. Brochado da Rocha solicitara ao Congresso a delegação de poderes para que pudesse legislar sobre temas como o monopólio da importação de petróleo e derivados e a regulamentação do estatuto do trabalhador rural. A recusa do Legislativo a sua solicitação teria levado à sua renúncia do cargo;435 sendo substituído por Hermes Lima na presidência do Conselho de Ministros até o retorno ao presidencialismo.436 Com toda esta tensão, ameaça e efetivação de greves, além da grande dificuldade de obtenção de um consenso entre o gabinete presidencial e o Congresso Nacional na escolha dos Primeiros-Ministros, em setembro de 1962 − período em que Hermes Lima assume como primeiro-ministro − o Legislativo acaba por aprovar o adiantamento do plebiscito que votaria a volta do regime presidencialista para janeiro do ano seguinte. Em meio à crise da renovação do gabinete ministerial, João Goulart será acusado de ―alimentar propósitos de quebrar a ordem democrática‖. Como nos mostra Aloysio Castelo de Carvalho, um editorial do Jornal do Brasil afirmava que o presidente ―resolveu forçar a mão, ameaçando provocar uma nova crise política se o Congresso não abrir quanto antes o caminho para que ele volte a ser chefe de Estado em regime presidencial‖.437 Contra afirmações e 433 RIBEIRO, D. Confissões, p. 288. TAVARES, Flávio. O dia em que Getulio matou Allende e outras novelas do poder. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 225. 435 BROCHADO DA ROCHA. In: ABREU, Alzira Alves de; BELOCH, Israel; LATTMAN-WELTMAN, Fernando (Coord.). Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/biografias/brochado_da_rocha> Acesso em: 13 jun. 2012. 436 Ver também: AFFONSO, Almino. Raízes do Golpe: da crise da legalidade ao parlamentarismo. São Paulo: Marco Zero, 1988. 437 CARVALHO, Aloysio Castelo de. A rede da democracia: O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil na queda do governo Goulart (1961-64). Niterói (RJ): Editora da UFF/ Nitpress, 2010, p. 88. O autor cita o editorial ―Os termos da trégua‖ do Jornal do Brasil de 28 de julho de 1962. 434 147 acusações semelhantes, Jango, em discurso a generais do Exército, se defende nos seguintes termos: Ainda ontem, comentava eu com o Presidente do Conselho de Ministros, com o nosso Ministro da Guerra e com o Chefe da Casa Militar da Presidência ser com surpresa que recebia certas críticas e até mesmo acusações de que o Governo estaria alimentando propósitos de quebrar a ordem democrática. Quero reafirmar, com a responsabilidade da posição que exerço e que me foi confiada democraticamente pelo povo, que, quando defendo determinadas teses e princípios, quando defendo, por exemplo, a participação do povo nas grandes decisões do nosso país, quando discordo de que o povo fique alheio às modificações estruturais do nosso regime político, quando defendo reformas de estrutura, na ordem social e econômica, é exatamente, Senhores Generais, para preservar e fortalecer a confiança do povo na democracia e, conseqüentemente, nas instituições que livremente escolhemos. /.../ Sinto-me, às vezes, perplexo diante de certas críticas e, mesmo, de certas pressões, pois chegam até a acusar-me de desejar a quebra da legalidade, dessa legalidade cuja defesa tem sido a característica principal de minha vida e de minha luta. Verifico que algumas dessas críticas partem exatamente de setores e de pessoas que se caracterizaram, no passado, por liderar grupos de pressão e forças isoladas que pretendem golpear nossas instituições. Antigos profissionais do golpe, defensores contumazes de regimes de exceção, hoje acusam, com a mesma irresponsabilidade, o Governo e o Ministro da Guerra de pretenderem golpear o regime democrático. Chegam ao absurdo tais acusações. Elas partem de setores e homens públicos que se opõem à realização daquelas reformas que todos desejamos, as reformas de estrutura que alcançaremos dentro da lei e das tradições cristãs do País. Jamais admitiremos — quero fazer esta afirmação categórica, nesta oportunidade em que homenageio generais em visita ao Presidente da República — qualquer quebra da ordem legal. Jamais, também, aceitaremos qualquer regime contrário aos sentimentos e às aspirações do nosso povo. O que desejo, quero deixar bem claro, é prosseguir na luta pelas reformas que se destinam, acima de tudo, a atender aos justos anseios das classes populares e a proporcionar melhor distribuição da riqueza em nosso país, fazendo com que participem dos benefícios do enriquecimento nacional todos os brasileiros e não apenas uma minoria privilegiada.438 Sendo assim, tanto em um documento de acesso restrito, como a carta a Evandro Lins e Silva, quanto em um discurso público, como o proferido aos militares, fica explícita a preocupação de João Goulart em manter a legalidade, sem, para tanto, abrir mão do seu projeto reformista de desenvolvimento com progresso social. Além disso, em ambas as manifestações, também aparece o incômodo de Goulart com a pressão exercida por grupos que ele considera como ―golpistas fantasiados de democratas‖ ou ―antigos profissionais do 438 GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), pp. 136-137. Grifos nossos. Discurso proferido em 10 de agosto de 1962, no Palácio da Alvorada, Brasília, em almoço, por ocasião da visita de apresentação de novos generais do Exército. 148 golpe‖, que, naquele momento, acusavam o presidente de pretender ―golpear o regime democrático‖. A vitória de Goulart com o adiantamento do plebiscito receberá desde críticas da imprensa, negando qualquer identificação da opinião pública com as mobilizações próplebiscito,439 até manifestações contrárias ao comparecimento dos eleitores às urnas. Como resposta, João Goulart iniciará uma ―jornada cívica pelo plebiscito‖, defendendo uma participação maciça dos eleitores na consulta popular. Alguns, justamente os que sempre se colocam em posição antagônica aos interesses do País, andam por aí afora a pregar em favor da abstenção. Entendo, e comigo estão os homens de bem da Nação, que negar a necessidade desse comparecimento, lutar por essa abstenção equivale a lutar pela negação do próprio regime democrático representativo. Não compreendemos por que qualquer cidadão, vivendo num país como o nosso, em que são plenas as franquias democráticas, se sente no dever de negar à democracia o direito sagrado de o povo exercitá-la livremente. Não será demais dizer que somente através da vontade do povo é que se constroem e se fortalecem os regimes. E também através dela que poderemos consolidar em nossa pátria o regime de representação em que vivemos e haveremos de viver pela vontade do Brasil. Tenho certeza de que, a 6 de janeiro, São Paulo há de estar presente à convocação cívica que lhe faz o País e que até mesmo aqueles que desejam responsabilizar-me por atos administrativos, bem como os que desejam um regime de unidade e de responsabilidade para poder criticar as autoridades constituídas, estarão presentes às urnas.440 Segundo João Goulart, o plebiscito representaria ―uma nova afirmação da democracia‖, portanto, ―pregar a abstenção‖ equivaleria a ―aconselhar um não à democracia‖. Além disso, não se trataria de ―uma competição entre homens ou entre partidos, mas de um ato cívico‖, em que o povo brasileiro manifestaria sua preferência pelo regime sob o qual seria governado.441 Não venho aqui /.../ para pedir um voto a favor do sim ou a favor do não. Venho, apenas, cumprir o dever de falar com franqueza ao povo brasileiro. Quer se manifeste pelo sim ou pelo não, o povo deve comparecer para reafirmar suas convicções democráticas e sua fé no regime representativo. Aqueles que vêem fantasmas por toda a parte, os que acusam, às vezes, ingenuamente, o Governo de tendências extremadas, esses, mais do que quaisquer outros, têm a obrigação de pedir ao povo que reafirme sua convicção democrática nas urnas. Uma democracia só se afirma pela vontade do povo.442 439 CARVALHO, A. C. Op. cit., p. 88. GOULART, J. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962), p. 238. Grifo nosso. Discurso proferido em 9 de dezembro de 1962, na sede do Automóvel Clube de São José do Rio Preto (SP), ao iniciar a jornada cívica pelo plebiscito de 6 de janeiro de 1963. 441 Ibidem, pp. 245-247. 442 Ibidem, pp. 256-257. 440 149 E, em sua mensagem de final de ano, o presidente Goulart reafirma que o ano de 1963, com a realização do plebiscito, ―manifestação soberana do povo nas urnas‖, marcaria ―o fim da crise institucional desencadeada pelos acontecimentos de agosto de 1961‖.443 A consulta popular é efetuada sem maiores transtornos em 6 de janeiro de 1963 e restabelece o presidencialismo como regime de governo. Como destaca Jorge Ferreira, A vitória de Goulart foi avassaladora: dos 11 milhões e quinhentos mil eleitores, 9 milhões e quinhentos mil, ou cinco em cada seis, aprovaram o retorno ao regime presidencialista. Goulart assumiu seus poderes com aprovação maciça da população. O plebiscito, na verdade, era a sua eleição para a presidência da República.444 Meses mais tarde, o presidente João Goulart relembrará sua trajetória desde a posse, aceitando a emenda parlamentarista, até o plebiscito, como uma comprovação de que suas ações mantinham como princípio a defesa das instituições democráticas: Em 1961, recusamos o caminho da guerra civil iminente, aceitando até a mutilação de um mandato que nos fora outorgado pela vontade do povo brasileiro, em pleito livre e honesto. O essencial para nós era, entretanto, garantir a devolução ao povo brasileiro, da fé nas instituições democráticas ameaçadas e do seu inalienável direito de decidir as questões básicas que lhe dizem respeito. Foi possível assim, evitar a guerra civil diante da qual não se comovem as minorias golpistas que sempre tramaram contra as instituições democráticas. Foi possível, assim, a presença do povo nas urnas do ―referendum‖. Os resultados das urnas demonstraram quem, efetivamente, perturbava e agitava a vida do País: não era o povo, que exigia a restauração do seu direito de decidir democraticamente e realizar a livre escolha do presidente da República, mas, sim, pequenas minorias que as urnas demonstraram estarem divorciadas dos verdadeiros anseios nacionais.445 A contínua preocupação de Goulart em expor sua defesa da chamada ―ordem democrática‖ evidencia que o fim do parlamentarismo não significou o fim dos conflitos na conjuntura política brasileira daquele período. Pelo contrário, a tensão se tornaria cada vez mais aguda e as acusações de conspiração e intenções golpistas o acompanhariam até sua deposição – esta sim resultado da concretização de um golpe. 3.2. Democracia e mobilização popular Discurso emblemático deste período é o realizado por Jango na cidade paulista de Marília. Premido pelas acusações de golpismo e, até mesmo, comunismo, o presidente, segundo o jornal carioca Correio da Manhã, teria se definido como ―integralmente de centro, 443 Ibidem, p. 265. FERREIRA, J. ―O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964‖. In: _____________; DELGADO, L. A. N. Op. cit., p. 362. 445 ―Discurso do Presidente no 7 de setembro‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 09 set. 1963. 444 150 repudiando a esquerda comunista e anticristã e a direita reacionária‖. Jango afirma levar a mensagem dos que ―desejam trabalhar pelo Brasil‖, permanecendo ―indiferente a setores extremados‖ que tentavam ―criar crises artificiais‖ no país. E, defendendo-se de acusações de pretender romper com a ordem constitucional, retoma sua trajetória e os eventos recentes, afirmando: ninguém tem mais autoridade para falar em respeito à Constituição do que aquele que, sob pontas de baionetas, manteve a Constituição nesta Pátria. Ninguém tem mais autoridade para falar em respeito à Constituição do que um presidente que durante quase dois anos só lutou, só trabalhou, para que não houvesse a ruptura do regime democrático. Sinto-me à vontade para dizer a São Paulo e, acima de tudo, perguntar a São Paulo onde estavam aqueles que hoje estão sendo tão sensíveis à Lei e à Constituição, aqueles que hoje, no propósito exclusivo de agitar, lançam acusações ao governo federal, eu pergunto: onde estavam eles em agosto de 61? Eu pergunto a São Paulo: eles estavam na rua defendendo a Constituição, ou estavam nos porões da conspiração, pretendendo rasgar a Carta Magna, pisotear as leis votadas pelo povo, em respeito à vontade do povo brasileiro? São Paulo, se não me faltou coragem naquela hora, se não me faltaram paciência e resignação para manter a Constituição, não será agora, jamais será agora que o Governo Federal não há de fazer com que se respeite as nossas leis, a Constituição e, acima de tudo, a vontade do povo brasileiro.446 Goulart se esforça para deixar clara sua negativa à afirmação de que o governo estaria ―interessado em instalar uma República incompatível com os sentimentos cristãos e democráticos‖ da população brasileira. E procura salientar que sua posição é de rechaço, tanto ao comunismo, quanto à qualquer forma de subordinação externa: Não aceitamos subordinação, parta de onde partir. Nenhuma República se instalará nesta Pátria a não ser a República da nossa vontade, da vontade livre do povo brasileiro. Repudiamos qualquer doutrina contrária aos nossos sentimentos de povo católico. Esteja certo São Paulo de que não admitimos esse tipo de exercício. Essas doutrinas não vingarão dentro do Brasil e muito menos no seio daqueles que tem sobre os seus ombros, como eu, a responsabilidade de dirigir os destinos deste País. Aqui não aceitamos o extremismo comunista, como não aceitamos subordinação, parta de onde partir. Não aceitamos essa subordinação porque queremos um Brasil e uma democracia que pertençam a todos os brasileiros. Jamais permitirei que se instale um regime comunista. Também devo dizer a São Paulo, de coração aberto: eu jamais permitiria que se instalasse também, sob o pretexto de combate aos extremismos, uma democracia apenas a favor das minorias privilegiadas da nossa Pátria. A democracia que nós queremos é a democracia para todos os brasileiros, para os que lutam e para os que trabalham, e para os que acreditam nos destinos da nossa Pátria.447 446 ―Não há mais lugar para agitadores no Brasil, diz Goulart em São Paulo‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 05 abr. 1963. Grifos nossos. 447 Idem. Grifos nossos. 151 Encerrando seu discurso, Jango assegura que a população poderia contar com a ―sobrevivência do regime democrático‖, ainda que para tanto fosse necessário o sacrifício do próprio presidente: ―com os meus agradecimentos a certeza da minha amizade /.../. Mas, mais do que a minha amizade, a certeza, /.../ de que pode contar, até com o meu sacrifício, com a sobrevivência do regime democrático pela paz e tranquilidade da família brasileira‖.448 Serão constantes as declarações de Goulart nesse sentido. Em diversas ocasiões, ele reafirmará sua postura em favor da ―ordem democrática‖, defendendo-se de acusações de golpismo ou comunismo, além de apontar para seus acusadores a real intenção de quebra da ordem legal. Além disso, por vezes, João Goulart relaciona seus acusadores com a oposição ao seu projeto reformista, que ele identifica a uma ampliação da democracia, pois proporcionaria uma maior participação da população na vida econômica e política do país. Não obstante as reiteradas manifestações de Goulart em defesa da ―ordem democrática‖, a imprensa conservadora, continuava a acusá-lo de não zelar pela democracia − que estaria sendo ameaçada pela mobilização de ―multidões envenenadas‖ − como fez o jornal O Globo: Tudo indica que o Brasil caminha para um novo sistema de governo, uma curiosa espécie de democracia direta, em que a vontade do povo já não mais se exprime pela voz de seus representantes livremente eleitos, mas pelo berreiro vociferante das multidões envenenadas e preparadas para as pressões sobre o Congresso. /.../ Os detentores do mandato popular são os únicos que podem falar e decidir em nome do povo brasileiro. É o princípio da representação, pedra angular da democracia. A vontade do povo se exprime pelas manifestações de seus mandatários e não pela discurseira derramada dos comícios e dos ajuntamentos de praça pública. Essa é a verdade da vida democrática. Ao Poder Executivo cabe velar, para que o Congresso possa deliberar no sereno exercício de sua soberania, coibindo e punindo tentativas de tumultuar os seus trabalhos com arruaças de multidões ululantes.449 Rebatendo críticas como esta, bem como as acusações feitas por Carlos Lacerda – afirmando que as greves e mobilizações populares eram organizadas pelo Governo Federal –, Jango alertava que seus opositores, ainda que falassem em nome da defesa da democracia, na verdade pretendiam que o governo sufocasse ―os anseios populares pela força, pela violência e pela pressão‖. E acrescentava: Sabem eles [os opositores das reformas] que enquanto eu estiver à frente dos destinos do país, jamais um agente federal irá sufocar pela violência os 448 Idem. Grifo nosso. ―Se não for detida a onda subversiva, pode o Congresso se reunir longe de Brasília e da pressão dos agitadores‖. O Globo. Apud: CARVALHO, A. C. Op. cit., p. 85. 449 152 anseios legítimos de um operário ou de estudante. Eles se apresentam como democratas, mas realizam suas ideias de opressão à frente dos Estados que dirigem.450 Na mensagem de João Goulart em comemoração ao Dia da Independência, o presidente responde de forma mais completa àquelas críticas e expõe a sua concepção de democracia, em objeção à posição defendida por seus antagonistas – a quem considera ―partidários da estagnação‖, por não defenderem a efetivação das reformas: Esses pequenos grupos, já definitivamente identificados como partidários da estagnação, continuam a insistir, no entanto, nos mesmos propósitos antinacionais e a oporem-se às manifestações populares que clamam por substanciais mudanças na estrutura da sociedade brasileira. Consideram pressões ilegítimas, as democráticas expressões de um clamor popular que se ergue e se avoluma, reivindicando urgentes transformações sócioeconômicas que asseguram pacificamente, a conquista de novas etapas do nosso desenvolvimento. Quem não tem motivos para temer o povo, não se amedronta quando este comparece às praças para reivindicar o atendimento dos seus direitos e a pacífica transformação da sociedade brasileira. Esse comparecimento há de ser visto em verdade como expressão do diálogo necessário entre governantes e governados. Não podemos aceitar que em uma Nação democrática a opinião pública só tenha meios de se expressar nos dias marcados dos prélios eleitorais, pois a democracia exige, ao contrário, a realização viva cotidiana daquele diálogo. O perigo maior que ameaça uma nação em crise de crescimento está, precisamente, em que os órgãos representativos do povo deixem de sê-lo, determinando aberta contradição entre as instituições e a própria sociedade. A consequência inevitável de situação semelhante será o rompimento do equilíbrio em que repousam a convivência democrática e a segurança do progresso econômico. Para evitar a ocorrência desse divórcio é que urgem agora as reformas de base tão indispensáveis e tão urgentes ao desenvolvimento do nosso país.451 Sendo assim, ficava clara a divergência de posições entre Jango e seus opositores no que se refere às mobilizações populares. Enquanto Goulart as considerava como ―a realização cotidiana‖ do ―diálogo necessário entre governantes e governados‖, a oposição as tratava como uma ameaça à prerrogativa exclusiva do poder legislativo de exercer o direito soberano de decisão, através dos representantes eleitos. Sem considerar o fato de que, os ―representantes‖, enquanto tais, deveriam agir em consonância com os interesses da população, o discurso oposicionista ressaltava apenas que a manifestação da vontade popular tinha o seu momento nos períodos eleitorais; e que caberia ao governo coibir as ―arruaças de multidões‖ que tentavam tumultuar os trabalhos do Congresso. Além disso, pairava sobre 450 ―Goulart fala contra os anti-reformistas‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 22 ago. 1963. A parte final do trecho citado constitui uma clara referência à Lacerda. 451 ―Discurso do Presidente no 7 de setembro‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 09 set. 1963. Grifos nosso. 153 João Goulart a suspeita de ―organizar‖ as manifestações populares, de forma manipulatória – uma vez que manifestações em favor das reformas eram identificadas como manifestações de apoio ao próprio Goulart. Esse clima de suspeitas continuará e se intensificará até o momento do golpe, ganhando ainda mais corpo quando, além das mobilizações sindicais e populares, ocorrerem as rebeliões dos sargentos e marinheiros – ocasiões em que o presidente também será acusado de permitir a quebra da hierarquia militar. A primeira insurreição dos sargentos ocorreu em Brasília, em setembro de 1963, iniciada como um ―protesto armado‖ contra a decisão do Superior Tribunal Federal em julgar inelegíveis os sargentos eleitos em 1962 e suspender seus mandatos. O protesto se desdobrou em uma tentativa de desencadear uma insurreição nacional. Apesar de conseguir tomar pontos vitais da capital federal, invadir o Congresso Nacional e tomar o Superior Tribunal Federal, a rebelião dos sargentos foi rapidamente reprimida,452 resultando em dois mortos (um civil e um sargento) e alguns feridos.453 Segundo Jorge Ferreira, ―o movimento enfraqueceu politicamente o governo, desgastando-o profundamente‖, e deixando inconformado o presidente João Goulart. Logo após a prisão de todos os rebelados, ele convocou Batista de Paula, na época jornalista especializado na vida militar, ao Palácio da Alvorada. Visivelmente contrariado, queria saber as razões para a revolta, já que ele sempre fora um defensor das conquistas sociais e políticas dos sargentos. ―Confesso, tchê, que não entendi o objetivo dessa reação. Por que a manifestação não foi contra a Justiça Eleitoral, que votou contra a eleição dos sargentos?‖, lamentou-se. 454 Publicamente, Goulart afirmou que o governo seria ―inflexível na manutenção da ordem e na preservação das instituições, respeitando e fazendo respeitar as decisões dos poderes da República‖. Nesse propósito, [o governo] não tolera a indisciplina ou a insubordinação, venham de onde vierem e qualquer que seja o pretexto em que se inspirem. Somente em um clima de segurança e normalidade democrática pode o povo brasileiro concretizar as reformas estruturais que correspondam às suas aspirações de progresso e justiça social.455 452 FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, pp. 360-362. ―Revolta esmagada: Ministros militares exigem do Presidente punição rigorosa‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 set. 1963. 454 FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, pp. 363-364. 455 ―JG afirma que será inflexível‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 13 set. 1963. 453 154 A instabilidade gerada pela ocorrência da revolta dos sargentos 456 se avolumará por ocasião do pedido de estado de sítio, enviado pelo governo ao Congresso Nacional, em outubro. As acusações de fraqueza cederão lugar às desconfianças sobre o comprometimento do presidente com a garantia das liberdades públicas. E com um elemento novo: dessa vez a desconfiança não partiria apenas da direita. 3.3. Pedido de decretação de estado de sítio Entre os meses de setembro e outubro de 1963, eclodiam pelo país greves de diferentes categorias – bancários, portuários, gráficos, entre outros. Organizações sindicais, como o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), lançavam manifestos em defesa dos sargentos rebelados, entrando em controvérsia com as autoridades militares que exigiam punição rigorosa aos insurgentes. Todo o clima de mobilização gerava apreensões em alguns setores das Forças Armadas, fazendo com que os ministros militares passassem a cogitar a solicitação do decreto de estado de sítio no país.457 Contudo, o governo procurava amenizar a tensão, negando a iminência do decreto.458 A situação se complicou ainda mais com a publicação, em 1º de outubro, de uma entrevista concedida por Carlos Lacerda ao correspondente no Brasil dos Los Angeles Times. Nela, o governador da Guanabara critica a ―agitação trabalhista‖ e a ação de comunistas no CGT, trata Goulart como ―totalitário à moda sul-americana‖ e afirma que os governantes ―pretendiam paralisar o país, cortar as alianças com o mundo livre, parar os transportes, tornando o trabalho difícil, irritar os trabalhadores e degenerar a economia‖. Além de todos esses impropérios, Lacerda ainda chama os Estados Unidos a intervirem no Brasil e afirma que os militares brasileiros estariam debatendo a possível deposição de Jango. Os Estados Unidos, assim, deveriam ter um papel decisivo naquele momento: ―Há uma atitude que os Estados Unidos poderão tomar em relação à crise aqui‖. O Departamento de Estado, depois de tantos anos, deveria mudar sua atitude e procurar saber ―quem é que está governando o Brasil‖. Para Lacerda, ―não interferir é uma coisa, mas outra é ignorar o que está se passando‖. A situação do país era tão grave que os militares ainda não tinham intervindo no processo político para evitar uma confusão ainda maior, o que ―só depõe a favor deles‖. Contudo, alegou, tinha informações 456 De acordo com Moniz Bandeira ―É possível que provocadores, infiltrados (como de fato havia) entre os sargentos, tivessem encorajado a sedição, para abortá-la e polarizar a oficialidade contra o governo. Alguns sargentos, que participaram da rebelião, revelar-se-iam, depois da queda de Goulart, agentes dos serviços secretos das Forças Armadas‖. Ver: MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, pp. 124-125. 457 Cf. ―Ministros militares exigem estado de sítio‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18 set. 1963. 458 Cf. ―Governo abranda tensão negando estado de sítio iminente‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 19 set. 1963. 155 seguras de que os militares debatiam se, com relação a Goulart, ―era melhor tutelá-lo, patrociná-lo, pô-lo sob controle até o fim de seu mandato ou alijálo imediatamente‖.459 Os ministros militares Jair Dantas Ribeiro (Guerra), Silvio Borges de Souza Mota (Marinha) e Anísio Botelho (Aeronáutica), considerando a entrevista ofensiva e injuriosa às Forças Armadas e ao país, divulgaram nota em que afirmam que as declarações de Lacerda integravam uma ―vastíssima campanha de agitação‖, conduzida ―para levar o país à desorientação e à desordem, inclusive com ameaças de lock out, com a paralisação de setores da vida econômica do país, /.../ que o Governo já vem denunciando à opinião pública‖. 460 A nota também aludia a provocações feitas pelo governador de São Paulo, Adhemar de Barros. O próprio presidente João Goulart também se pronunciou, dizendo: Falsos defensores da ordem e agitadores ostensivos e agentes dessimilados [sic] de interesses antinacionais, a pretexto de reclamarem a afirmação e o exercício da autoridade, por parte dos poderes constituídos da República, conspiram contra a própria Nação, no que ela tem de mais sagrado: a sua integridade, a sua emancipação, a paz interna, o direito mesmo de comandar seu destino. A Nação exige que se ponha termo a esta permanente e intolerável provocação contra a nossa organização democrática, que tem compromissos inarredáveis com o bem-estar do povo e com as justas aspirações do progresso social.461 Além da divulgação da nota, os ministros, então, pediram ao presidente a decretação do estado de sítio, com o intuito de prender Lacerda e julgá-lo pelas suas declarações. Diante disso, Goulart se reúne com o ministério e decide enviar o pedido de estado de sítio ao Congresso, pedindo a Abelardo Jurema, ministro da Justiça, que preparasse uma exposição de motivos para o estado de sítio. O ministro concordou com o envio do pedido ao Congresso. Contudo, alegou que o decreto somente seria aceito como um fato consumado. /.../ Darcy Ribeiro, que redigiu o texto, foi da mesma opinião, declarando que ―estado de sítio não se pede. Se toma‖. Por fim, pesou a decisão do presidente. Pouco tempo depois, o pedido de estado de sítio chegaria ao Congresso.462 A mensagem enviada ao Congresso pelo presidente acompanhava ofícios dos ministros da Justiça e militares, descrevendo a situação que, para eles, justificaria a necessidade do estado de sítio. Os ofícios destacavam uma série de circunstâncias variadas, 459 FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, p. 365. ―Ministros militares condenam Lacerda por ofensas ao País‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 01 out. 1963. 461 ―Pronunciamento de Goulart sobre a situação política nacional‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 03 out. 1963. A reportagem transcreve pronunciamento de Jango feito através de uma cadeia de rádio e televisão, na noite de 02 de outubro de 1963. 462 FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, pp. 366-367. 460 156 consideradas como ―gravíssimos acontecimentos‖ que ―inquietavam a vida nacional‖, ―ameaçando romper-lhe a paz em perspectiva de iminente comoção intestina‖. Tais circunstâncias incluíam: 1) ―manifestações coletiva de indisciplina‖ por parte de graduados, soldados, cabos, marinheiros e policiais militares em alguns estados do país; 2) os impasses gerados pela intransigência das partes em dissídio nas diversas negociações salariais, que estariam servindo ―de pretexto para as forças da reação conspirarem contra a legalidade democrática‖; 3) a conspiração de ―maus brasileiros, até mesmo investidos das responsabilidades de governantes de Estado‖, contra o governo, explorando ―o respeito que consagra aos princípio democráticos e à ordem legal, como se fora demonstração de excessiva tolerância do governo federal na preservação da estabilidade político-social‖; e 4) a existência de ―minorias inconformadas, dominadas por excessiva radicalização político-ideológica‖ pregando a ―violência como solução de problemas que afligem o povo brasileiro‖.463 Diante deste panorama, os ministros solicitavam a declaração do estado de sítio, pelo prazo de 30 dias, para que a situação fosse controlada, impedindo a quebra da legalidade. João Goulart repassou a solicitação ao Congresso. A repercussão do pedido de sítio foi desastrosa para Goulart. Dirigentes sindicais, inclusive do CGT, recearam que a medida acabasse permitindo a repressão às greves e às mobilizações populares; o governador de Pernambuco, Miguel Arraes, temeu uma intervenção em seu estado; a Associação Comercial de São Paulo comparou a iniciativa do presidente à implementação da ditadura varguista do Estado-Novo; estudantes, intelectuais e a grande imprensa também negaram apoio à medida.464 O pedido não encontrou apoio nem mesmo entre as bases partidárias do governo. Sendo assim, a solicitação do estado de sítio ―chegou ao Congresso na crista de uma onda de repulsa, agitada por todas as correntes políticas, tanto de esquerda como de direita‖.465 Ao perceber a rejeição generalizada ao pedido, no dia 07 de outubro, o presidente retira a mensagem do Congresso. Logo depois, João Goulart procurou esclarecer sua posição em retroceder, declarando que ―a medida de exceção, pleiteada para defender o regime e os interesses populares‖, teria sido ―desvirtuada por uma mobilização da opinião pública, em que grupos das extremas procuravam fazer crer que o estado de sítio seria um instrumento de opressão‖. Goulart reitera que, ―pela sua formação democrática e pelas suas vinculações à luta dos trabalhadores‖, jamais utilizaria tal instrumento; e prosseguiu: 463 ―Mensagens do Presidente e de Ministros pedindo sítio‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 05 out. 1963. FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, p. 367. 465 MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, 2001, p. 132. 464 157 Portanto, a medida que pedimos era pra tudo, menos para sufocar o povo. Era para tudo, menos para oprimir e para fuzilar o povo nas ruas. Era necessária para ficarmos em melhores condições para defender o Brasil contra maus brasileiros e contra os interesses internacionais, mas nunca para sufocar as liberdades democráticas ou para transformá-lo num instrumento de suplício do povo brasileiro.466 O presidente justifica a retirada do pedido, afirmando que ―quem recua para ficar com o povo, não se humilha, se engrandece‖.467 Além disso, o ministro da Guerra, Jair Dantas Ribeiro, declarara que, a simples divulgação do pedido de estado de sítio teria provocado o abrandamento da tensão que envolvia o país; a iniciativa da medida acabara, assim, esvaziada, ―perdendo sua oportunidade depois que a Câmara deixou passar 48 horas para então decidir sobre o assunto‖.468 Apesar das justificativas de Goulart e de seus ministros militares, o episódio tornou patente a desconfiança que pairava sobre o presidente – e, desta vez, não somente por parte de seus opositores, mas também por parte de setores que compunham sua base de apoio. Segundo Moniz Bandeira, toda essa desconfiança não correspondia à realidade das intenções de Jango; uma vez que Goulart não pretendia desfechar um golpe, mas Apenas se inclinara, em face da evolução da crise, a tomar uma atitude de força, sem transpor o espaço constitucional, embora considerasse que suas balizas tolhiam a ação e inibiam a agilidade do governo, não só para a adoção de medidas de defesa como para a realização das reformas de base. Goulart sabia que, se mantivesse o mesmo comportamento dos meses anteriores, o assédio da oposição cresceria, e ele não teria condições de permanecer no poder.469 Contudo, a derrota em decretar o estado de sítio pelas vias legais e a negativa de Goulart em tomar qualquer atitude de força sem a aprovação do Congresso, forçou-o a ―continuar convivendo com o governador de São Paulo, que o desafiava abertamente, declarando que dispunha de 60 mil homens armados para enfrentar seu governo, bem como Lacerda que, via de regra, utilizava a televisão para insultá-lo‖.470 João Goulart teria se queixado a Abelardo Jurema da ―incompreensão e da injustiça que sofrera das esquerdas e do PSD com a falta de apoio ao pedido de estado de sítio. Em sua avaliação, fora uma burrice de seus amigos e companheiros negar-lhe o apoio naquela hora 466 ―Presidente anuncia esforço redobrado pelas reformas‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 09 out. 1963. Idem. 468 ―Amaral não foi à reunião do Ministério porque sua missão já está concluída‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 09 out. 1963. 469 MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, pp. 130-131. Grifo nosso. 470 FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, p. 370. 467 158 difícil‖.471 Seja por ―burrice‖ dos que negaram apoio à medida, seja por um enorme erro de cálculo do presidente ao solicitar o estado de sítio, a verdade é que o episódio enfraqueceu muito o governo de Goulart, provocando um desgaste considerável na sua relação com os setores de esquerda – principal base de apoio do governo. 3.4. Últimos meses do governo Goulart Se é verdade, como dissemos na introdução deste trabalho, que são poucos os estudos voltados à análise do governo João Goulart, também é verdade que existe uma grande variedade de publicações que têm como foco os acontecimentos e possíveis motivações para o golpe de abril de 1964 – compõem esse conjunto pesquisas de historiadores, análises políticas, até relatos de cunho jornalísticos ou biográficos, referentes a Goulart ou a figuras ligadas à vida política daquele momento. Contudo, não é nosso intuito abordar, aqui, esta vasta gama de informações e interpretações sobre os últimos meses do governo Jango; mas sim, em consonância com o eixo deste trabalho, explicitar a posição do presidente Goulart naquela conjuntura. Aludiremos, assim, apenas a alguns fatos relevantes para a compreensão do discurso e do posicionamento de Jango, bem como problematizaremos algumas das análises que abordam justamente a postura de Goulart naquele momento. O período entre os anos de 1963 e 1964 é apontado por vários autores como um momento de radicalização crescente no panorama político brasileiro. Por parte das ações da direita, além da oposição política que Goulart enfrentava no Congresso e na relação com alguns governadores de estado, intensificou-se na imprensa uma forte campanha contra seu governo com a criação da Rede da Democracia. Idealizada por João Calmon, (deputado pessedista e vice-presidente dos Diários Associados, de Assis Chateubriand), a Rede da Democracia, criada no Rio de Janeiro, em outubro de 1963, envolvia não apenas jornais, mas também emissoras de rádio. a Rede da Democracia era um programa radiofônico comandado pelas rádios Tupi, Globo e Jornal do Brasil. Ia ao ar quase todos os dias e repercutia pelo país através de outras centenas de emissoras afiliadas. Os pronunciamentos difundidos pelas emissoras eram posteriormente publicados nos respectivos jornais: O Globo, Jornal do Brasil e, sobretudo, O Jornal.472 Com programas diários, a rede articulava as emissoras e jornais do Rio de Janeiro com partidos e grupos de oposição ao governo, principalmente a UDN, o Instituto de Pesquisas e 471 472 Ibidem, p. 371. CARVALHO, A. C. de. Op. cit., p. 15. 159 Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) – os dois últimos em ação desde 1962 na organização da oposição e desestabilização do governo, inclusive através do financiamento de campanhas dos opositores políticos de Goulart.473 De acordo com Aloysio Castelo de Carvalho, os programas, de tom fortemente anticomunista, criticavam ―as concepções nacionalistas e reformistas, bem como as decisões do governo Goulart‖, além de reagir ―às forças que incentivavam a maior participação popular na vida política‖.474 No lançamento da Rede da Democracia, Nascimento Brito, diretor do Jornal do Brasil, afirmava que ―vozes verdadeiramente antinacionais‖, guiadas por interesses estrangeiros, estariam travando o progresso do país com o único interesse de criar dificuldades suficientes para que os brasileiros passassem a desacreditar no regime democrático.475 Assim, ainda que não citasse nomes, acusava o governo federal de comunismo e atribuía os problemas de desenvolvimento enfrentados pelo país a uma estratégia governamental deliberada de enfraquecimento da democracia. Já João Calmon, citando o uso do rádio para as mensagens de Jango a favor do plebiscito e das reformas, assim com para as mensagens de Brizola durante a ―cadeia da legalidade‖, na crise de agosto de 1961, perguntava: Por que haveria de continuar o rádio, no plano político, a ser manejado em cadeia apenas por inimigos mortais da democracia? /.../ Chegou a hora de dizer: Basta! Nossa Rede da Democracia, aqui está para impedir que, nos céus do Brasil, continue o monólogo liberticida e subversivo.476 Dessa forma, as acusações de que Goulart era subversivo e antidemocrático passaram a ter sua divulgação ampliada. Por outro lado, setores de esquerda também demonstravam forte descontentamento com a atuação de Goulart, exigindo uma política de confronto com a direita. Brizola foi a maior expressão dessa corrente, aglutinando na Frente de Mobilização Popular (FMP) os estudantes, por meio da UNE; os operários urbanos, com o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT); a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI); o Pacto de Unidade e Ação (PUA) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Empresas de Crédito 473 A composição e a atuação desses órgãos foi largamente documentada no trabalho de René Dreifuss: DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis (RJ): Vozes, 1981. 474 CARVALHO, A. C. de. Op. cit., p. 16. Vale lembrar que apesar das acusações feitas pela Rede da Democracia ao governo Jango, sua criação foi saudada pelo deputado Tancredo Neves, que fazia parte da coligação PSD-PTB. Para Tancredo o programa seria ―um verdadeiro instrumento de esclarecimento da consciência brasileira‖. Ver: MORAES, D. Op. cit., p. 147. 475 ―Uso da liberdade‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 out. 1963. 476 ―Fim do monólogo‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 out. 1963. Grifo nosso. 160 (CONTEC); os subalternos das Forças Armadas, como sargentos, marinheiros e fuzileiros navais com suas associações; facções das Ligas Camponesas; grupos de esquerda revolucionária como a Ação Popular (AP), o Partido Operário Revolucionário (trotskista) (POR-T) e segmentos de extrema-esquerda do PCB; políticos do Grupo Compacto do PTB e da Frente Parlamentar Nacionalista; militantes nacional-revolucionários que, dentro do PTB, seguiam a liderança de Leonel Brizola; por fim, setores mais à esquerda do Partido Socialista Brasileiro e o grupo político de Miguel Arraes.477 Falando através do jornal Panfleto, Brizola acusava o presidente João Goulart de não exercer o poder e de ter se afastado das ―aspirações populares‖ em nome de uma ―política de conciliação com minorias e grupos conservadores‖. Embora afirmasse que ainda era cedo para avaliar os rumos que Goulart e seu governo tomariam, Brizola afirmava ser quase certo que: ―o desgaste, a frustração, as perplexidades, as vacilações, a indefinição, a inoperância, o enfraquecimento enfim, os levem a facilitar e talvez negociar a entrega do governo àquelas minorias, e, com isto, a elas passe a hegemonia do poder‖.478 Tal afirmação de Brizola parte de seu posicionamento absolutamente contrário à postura conciliadora assumida por João Goulart. Enquanto as organizações e os movimentos políticos agrupados na Frente de Mobilização Popular estavam entre os grupos de esquerda que consideravam as palavras ―conciliar, acovardar e trair‖ como ―expressões sinônimas‖,479 Goulart entendia conciliação como a obtenção de ―bases mínimas de entendimento e de cooperação, de modo a dar-se a arregimentação de todos quantos estejam dispostos a combater na mesma trincheira‖. Para ele, A conciliação não é um fim em si. É instrumento válido de ação política, na medida em que se preservam a firmeza de propósitos e o ânimo da luta, para que se alcancem objetivos que a Nação se decidiu a conquistar, em defesa da Independência, que hoje se comemora, tanto quanto do seu direito de progredir e emancipar-se economicamente.480 Sendo assim, Goulart via-se atacado tanto pela direita como por setores da esquerda; tendo sua base de apoio, cujo respaldo seria fundamental na luta pela efetivação de reformas, ameaçada de desintegração. Contudo, em face deste cenário político de radicalização, é importante ressaltar que o posicionamento de João Goulart não sofreu alterações consideráveis, muito menos ―guinadas‖ drásticas. Apesar de implementar, nesse período, uma 477 FERREIRA, J. Brizola em Panfleto: as ideias de Leonel Brizola nos últimos dias do governo João Goulart. In: Projeto História, revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo n. 36. jun. 2008, p. 104. 478 Ibidem, pp. 108-109. Grifo nosso. 479 FERREIRA, J. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: _________; DELGADO, Lucilia de A. N. Op. cit., p. 376. 480 ―Discurso do Presidente no 7 de setembro‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 09 set. 1963. Grifos nosso. 161 série de medidas populares,481 estas medidas eram totalmente compatíveis com o projeto trabalhista e nacionalista que defendia desde o início de sua carreira política. Além disso, Goulart procurou manter sua postura de tentar superar divergências em torno de um programa reformista comum, incumbindo San Tiago Dantas de articular, entre os diferentes grupos políticos, uma Frente Ampla, ou Frente Progressista de Apoio às Reformas de Base, com o objetivo de aprovar reformas e fortalecer politicamente o governo. No entanto, a união das esquerdas mostrou-se impossível: O Partido Comunista, embora inicialmente apoiasse a Frente Progressista, mais adiante a abandonou. O grupo de sindicalistas comunistas não aceitava qualquer moderação em termos políticos. O PSD, alegaram, deveria ser excluído da Frente /.../. Brizola e a Frente de Mobilização Popular, além de igualmente repudiarem alianças com os pessedistas, também não acreditavam em mudanças que dependessem de aprovação do Congresso. /.../ O PTB, sobretudo a ala radical, bem como o conjunto das esquerdas, apostava na política do confronto. O PSD, temeroso com a mobilização de operários e camponeses, aproximava-se cada vez mais da UDN. Todas as iniciativas de Goulart para reaproximá-los politicamente, buscando manter a coligação que sustentou o regime democrático desde 1945, mostraram-se infrutíferas.482 Em seus discursos, Goulart também apresentou uma continuidade em sua posição. Seguiu alertando sobre a urgência na aprovação das reformas como pressuposto para o desenvolvimento econômico, o progresso social e, consequentemente, a tranquilidade da ―ordem democrática‖; defendendo as medidas de caráter nacionalista, que permitissem ao país um maior controle sobre sua economia, sem romper com o investimento estrangeiro; e reafirmando seus ―princípios democráticos‖, ao mesmo tempo em que apontava para seus acusadores os reais interesses golpistas. Mesmo em seu discurso de 13 de março de 1964, no marcante comício da Central do Brasil – muitas vezes apontado como expressão de uma ―guinada para a esquerda‖ do 481 As medidas implementadas por Goulart entre fins de 1963 e início de 1964 são assim destacadas por Jorge Ferreira: ―estendeu benefícios da Previdência Social aos trabalhadores rurais; determinou a obrigatoriedade de que as empresas, com mais de 100 empregados, oferecessem o ensino elementar gratuito aos funcionários; enviou mensagem a Congresso concedendo o 13º salário ao funcionalismo público, além de instituir a escala móvel de seus vencimentos. E mais: determinou a revisão das concessões de exploração das jazidas minerais e cancelou aquelas que não foram exploradas, contrariando assim, os interesses da São João Del Rei Mining Co. de propriedade da Hanna Co. /.../ em 24 de dezembro, véspera de Natal, assinou uma medida que fazia parte das reivindicações das esquerdas, decretando o monopólio da Petrobrás na importação de petróleo e derivados. O decreto impedia sangria considerável de divisas, o que contrariou poderosos investidores norte-americanos. Em 17 de janeiro, assinou uma outra medida igualmente reclamada pelas esquerdas: a regulamentação da Lei da Remessa de Lucros para o Exterior. Rumores havia de que outro decreto, estabelecendo o monopólio do câmbio, seria assinado em breve, apavorando o empresariado‖. In: FERREIRA, J. O governo Goulart e o golpe civilmilitar de 1964. In: _________; DELGADO, Lucilia de A. N. Op. cit., pp. 376-377. 482 FERREIRA, J. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: _________; DELGADO, Lucilia de A. N. Op. cit., pp. 378-380. 162 presidente Jango –, Goulart não aponta para uma ruptura. Os momentos mais incisivos de sua fala fazem parte de sua defesa de uma democracia que dialogasse com as mobilizações populares: Proclamar que esta concentração seria um ato atentatório do Governo ao regime democrático é como se no Brasil ainda fosse possível governar sem o povo. Desgraçada a democracia se tiver que ser defendida por esses democratas. Para eles, trabalhadores, a democracia não é regime de liberdade de reunião com o povo, mas a de um povo emudecido e abafado nas suas reivindicações. A democracia, trabalhadores, que eles desejam impingir-nos, é a democracia de antipovo, da anti-reforma, do anti-sindicato, aquela que favorece os interesses dos grupos que representam. A democracia que eles pretendem é a dos privilégios, da intolerância, do ódio, para liquidar com a Petrobras. A democracia dos monopólios nacionais e internacionais, a democracia que levou Getúlio Vargas ao extremo sacrifício. /.../ A ameaça à democracia não é vir ao encontro do povo na rua, é enganar o povo brasileiro, é explorar seus sentimentos cristãos na mistificação de anticomunismos, insurgindo o povo até contra as mais expressivas figuras do quadro nacional, dos grandes pronunciamentos do Santo Papa.483 No mais, além de anunciar os decretos da SUPRA, dos aluguéis e da encampação das refinarias (todos dentro da ordem legal e coerente com as propostas já defendidas por Jango desde o início de seu governo), Goulart faz as já conhecidas argumentações em favor das reformas, em especial à reforma agrária, colocando como seu dever transmitir ―em nome do povo brasileiro‖, seu ―caloroso apoio ao Congresso Nacional‖, para que este fosse ―ao encontro das reivindicações populares‖; para que ―seu patriotismo‖ atendesse ―aos anseios da Nação‖, cuja vontade era de ―dias mais pacíficos‖.484 Dessa forma, embora coloque sobre o Congresso a responsabilidade de aprovar as emendas constitucionais necessárias à execução das reformas, Goulart não se expressa em tom de ameaça. É verdade que, dentro daquele contexto de radicalização entre direita e esquerda, a iniciativa de anunciar decretos em um comício com grande manifestação popular e no qual, além do presidente, governadores e deputados favoráveis às reformas, também discursaram representantes de organizações sociais e estudantis, foi encarada como uma ―opção‖ de Goulart pelo confronto. Mas, a realidade é que, naquele momento, o presidente não dispunha de um leque de opções: somente os setores de esquerda ainda se dispunham a defender o 483 GOULART, J. Discurso de 13 de março. In: MUNTEAL, O.; VENTAPANE, J.; FREIXO, A. Op. cit., pp. 37-38. A parte final da citação faz referência a fatos como os assinalados por Jorge Ferreira: ―No dia 12 de março, véspera do comício, na Praça Sete, centro de Belo Horizonte, partidários do IBAD conclamavam as pessoas a assinar um documento ofensivo contra o arcebispo Dom João Resende da Costa, outro contra a Ação Católica e outro ainda contra o clero progressista, repudiando o apoio que eles deram às reformas de base‖. In: FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, p.416. 484 GOULART, J. Discurso de 13 de março. In: MUNTEAL, O.; VENTAPANE, J.; FREIXO, A. Op. cit., p. 43. 163 projeto reformista de Jango. Como assinala Jorge Ferreira, naquela conjuntura de radicalização política e de crise econômica – agravada pela decisão dos Estados Unidos em ―continuar a apertar o torniquete financeiro sobre o país‖ −, as alternativas de Goulart eram restritas: Uma opção seria a de nada fazer até o final de seu governo, deixando o país afundar no total descontrole monetário e financeiro, desmoralizando o projeto reformista e a si mesmo; uma outra implicaria em aliar-se ao PSD e à UDN, aceitar as condições do FMI e implementar uma política conservadora à custa de repressão ao movimento operário e do rebaixamento dos salários dos trabalhadores; uma terceira incluiria apoiar incondicionalmente a Frente Progressista de San Tiago Dantas, subordinando-se aos limites impostos às reformas pelo PSD e afastando-se, definitivamente, dos grupos mais a esquerda de seu próprio partido; por fim, aliar-se às esquerdas, acreditar nas forças que elas diziam dispor e, embora contrariando seu estilo, partir para a radicalização e o embate. Essa última foi sua opção. Aderiu, desse modo, à Frente Única de Esquerda, abortando a Frente Progressista proposta por San Tiago Dantas.485 Complementando a análise de Ferreira, vale, no entanto, destacar que a terceira opção, a de apoiar incondicionalmente a Frente Progressista de Dantas, não se mostrou viável – como apontamos acima, com citação ao próprio Jorge Ferreira – devido a não adesão da esquerda e da crescente aproximação do PSD à UDN. Além disso, a subordinação do projeto reformista aos limites impostos pelo PSD implicaria o esvaziamento de seu conteúdo de reforma estrutural e, portanto, não atingiria os fins necessários. Dessa forma, a aproximação de Goulart com as esquerdas para a realização do comício não tinha o objetivo de uma ―guinada à esquerda‖, mas foi a saída encontrada por Jango para obter força política na tentativa de encaminhar as reformas. Os movimentos de esquerda e, sobretudo, a mobilização popular eram os únicos que ainda reivindicavam a urgência na execução das reformas de base. Por isso, apesar de toda a efervescência em torno do comício – inclusive com Brizola defendendo a chamada de um plebiscito para decidir sobre a convocação de uma Assembléia Constituinte, uma vez que os poderes da república ―não decidiam‖ –, o discurso de João Goulart não revelou nenhuma contradição com o que vinha defendendo desde o início de seu mandato, nem qualquer tendência a um rompimento com a ordem legal estabelecida. Ainda sobre o comício da Central do Brasil, é interessante apontar o resultado de uma pesquisa encomendada por Carlos Lacerda sobre a posição política das cerca de 200 mil pessoas que compareceram ao evento: 485 FERREIRA, J. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: _________; DELGADO, Lucilia de A. N. Op. cit., p. 376 e p. 381. 164 Utilizando as modernas técnicas de pesquisa de opinião, ele infiltrou na multidão uma grande e experiente equipe de pesquisadores profissionais, utilizando a metodologia do flagrante. O resultado estarreceu os próprios patrocinadores da pesquisa. Ali não estavam, como se supunha, uma maioria de janguistas e comunistas atando como claque. Esses, na verdade, compunham apenas 5% do público. O restante, os 95%, demonstrava um pensamento legalista, reformista e portador de um alto grau de politização: queria eleições presidenciais em 1965, bem como as reformas de base, mas não admitia o fechamento do Congresso nem a reeleição de Goulart.486 Deste modo, assim como Goulart, a maioria das pessoas presentes no comício também manifestava uma posição legalista. Contudo, o comício será taxado pelos opositores de João Goulart como ―parte de um plano nacional de agitação em marcha‖, como disse o governador de São Paulo, Adhemar de Barros;487 uma ―pregação escandalosa da revolução‖, nas palavras do deputado udenista Pedro Aleixo (líder da oposição na Câmara);488 ou ainda como uma ―humilhação à democracia‖, em que ―dois políticos inelegíveis‖ se destinavam a ―atirar o povo contra a Constituição‖ e a ―compor um movimento de frente única contra a sucessão normal‖, segundo editorial do Jornal do Brasil. 489 Aliás, as acusações de golpismo e continuísmo, que já vinham ocorrendo – e procuravam se justificar pelo fato de o presidente apontar para a necessidade de uma reforma constitucional −, foram intensificadas após o evento na Central do Brasil; fazendo com que Jango se defendesse nos seguintes termos: ―Enganam-se redondamente os que estão falando em golpismo, em continuísmo e personalismo. Se alguém neste País não aceitará nunca ser ditador, sou eu‖.490 A postura de Jango é confirmada pelos testemunhos de Abelardo Jurema – para quem Goulart teria confidenciado não saber como Juscelino Kubitschek ainda teria vontade de voltar à presidência491 – e de Darcy Ribeiro, que diz: Muitos diziam e dizem que Jango queria dar o golpe do continuísmo para permanecer na Presidência. Outros diziam e dizem que ele era candidatíssimo à reeleição. Meu testemunho é que nunca percebi nenhum desses pendores nele. Seu dispositivo militar, tratado aliás muito displicentemente, não prestava para um golpe. Os militares que poderiam conduzir a isso, como Kruel, eram vistos com suspeita por Jango. O que ele tinha como paixão política era criar um PTB invencível, capaz de impor, pela democracia e pelo voto, as grandes reformas que o Brasil exige.492 486 FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, p.421. ―Ademar vê plano de agitação com o comício e compra novo travesseiro para dormir bem‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 mar. 1964. 488 ―Pedro Aleixo acusa Goulart de endossar a subversão‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16 mar. 1964. 489 ―Os inelegíveis‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 mar. 1964. 490 ―Jango afirma que não será ditador‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 19 mar. 1964. 491 JUREMA, Abelardo. Apud FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia, p. 371. 492 RIBEIRO, D. Confissões, p. 307. 487 165 Afirmar a posição legalista de Goulart não significa, contudo, que a ideia de um golpe não tivesse sido cogitada, ou até mesmo sugerida por figuras próximas a Jango. Em obra autobiográfica, Celso Furtado lembra que em fins de setembro de 1962 – portanto antes de assumir o ministério do Planejamento –, teria preparado uma espécie de manifesto das forças progressistas, posteriormente utilizado como base para elaboração do Plano Trienal, tentando compor forças parlamentares junto aos líderes progressistas para o desenvolvimento legal das reformas. Meses mais tarde, Furtado teria ouvido de Goulart que o manifesto vinha sendo ―apreciado por várias pessoas‖ e que o general Osvino Alves, então no comando do I Exército, o teria achado ―ótimo para ser utilizado num golpe‖, causando embaraço ao economista que tinha objetivos totalmente distintos do sugerido pelo general.493 No entanto, é necessário apontar que a cogitação de um golpe por pessoas ligadas ao presidente, ou mesmo pelo próprio presidente, não possui relevância, uma vez que não encontra eco em nenhuma das ações ou discursos de Goulart. Toda a trajetória de Jango confirma uma atitude legalista, pois, em todos os momentos críticos e decisivos − como na crise da legalidade, que culminou com a emenda parlamentarista; nas crises de formação de gabinete ministerial; na aprovação do plebiscito para a volta do presidencialismo; ou mesmo no pedido de decretação do estado de sítio −, o presidente, ainda que fosse criticado por setores de sua base de apoio que exigiam uma postura mais radical, seguiu respeitando as definições do poder legislativo. Porém, a atitude de João Goulart em seguir defendendo a ordem legal, não evitava que seus problemas na presidência continuassem se avolumando e o clima golpista tornava-se cada vez mais explícito, fosse na imprensa, fosse na atitude de seus opositores políticos. Entre os militares, como o próprio Goulart já dispunha de informações, há tempos existia uma certa articulação que, nos últimos meses, vinha ganhando suporte norte-americano, com a mediação do coronel Vernon Walters – adido militar da Embaixada dos Estados Unidos, agente do serviço secreto do exército estadunidense, a Defense Intelligence Agency (DIA),494 e grande amigo do general Castelo Branco, com quem servira ―nos campos de batalha italianos‖.495 493 FURTADO, C. Op. cit., p. 236. MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 128. 495 FICO, C. O grande irmão: da Operação Brother Sam aos anos de chumbo. P governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 20. Fico, baseado em documentos norte-americanos, aponta a atuação de Lincoln Gordon e Vernon Walters na mediação do suporte aos golpistas, revelando a existência de um ―plano de contingência‖ americano para a possibilidade de um golpe no Brasil, desde pelo menos dezembro de 1963. Tal plano estabelecia ―linhas de ação estratégica que afinal se implementariam à risca três meses depois‖ (pp. 92-93). 494 166 Também havia um número considerável de legalistas nas Forças Armadas. Contudo, a adesão ao golpe entre os militares vinha ganhando espaço; e aumentou, sobretudo, após o episódio da revolta dos sargentos da marinha, no Rio de Janeiro, no final de março de 1964. Entre os dias 25 e 27 de março, sargentos da marinha, que se preparavam para comemorar o aniversário da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais, se rebelaram após o ministro da Marinha, Sílvio Mota, decretar ordem de prisão a 52 marinheiros – 12 por participarem de reunião no Sindicato dos Bancários, e 40 por organizarem a festa de aniversário da associação. Amotinados na sede do Sindicato dos Metalúrgicos e liderados por José Anselmo dos Santos – que embora posteriormente conhecido como Cabo Anselmo, era, na verdade, marinheiro de 1ª classe –,496 cerca de 2 mil marinheiros reivindicavam: a não punição dos manifestantes, o reconhecimento ao direito de associação e reunião, libertação dos presos, direito de se casarem, tratamento humano na Marinha e melhoria na alimentação. Vale lembrar que tais acontecimentos se deram durante os feriados da ―semana santa‖, em que Jango viajara para São Borja, com a família. O ministro Sílvio Mota não havia consultado Goulart sobre a decretação das prisões e o presidente não havia manifestado nenhuma objeção à realização da festa dos marinheiros que teria desencadeado a crise. Na tentativa de solucionar a crise e diante da exoneração de Sílvio Mota, Goulart nomeou um novo ministro da Marinha, o almirante Paulo Mário da Cunha. O novo ministro prendeu os revoltosos, mas os liberou poucas horas depois, gerando forte rejeição entre os militares, que consideravam a anistia como um desrespeito ao princípio fundamental da hierarquia nas Forças Armadas. Muito embora, na história brasileira, tenham sido anistiados todos os oficiais rebelados em todas as rebeliões militares ao longo da República,497 a anistia aos marinheiros, naquele momento, foi tratada pelo militares como inadmissível. Almirantes e oficiais da Marinha lançaram um manifesto em que ―alertavam o povo para o golpe aplicado contra a disciplina a admitir-se que minoria insignificante de subalternos imponha demissão de ministros e autoridades navais‖ e se diziam ―unidos e dispostos a resistir por todos os meios ao seu alcance às tentativas de comunização do 496 Como posteriormente se soube e o próprio Anselmo assumiu, durante o período ditatorial, ele atuou, como agente infiltrado nos movimentos de resistência à ditadura militar, contribuindo para a prisão e morte de vários militantes de esquerda. Além disso, de acordo com Moniz Bandeira, já na época da revolta dos marinheiros, havia informações, oriundas da própria Marinha, de que Anselmo agia como elemento provocador, trabalhando para a Central Intelligence Agency (CIA). Ver: MONIZ BANDEIRA, L. A. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, p. 168. 497 FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, p. 450. 167 país‖.498 Assim, as articulações para um golpe contra Goulart ganharam força entre os militares, temerosos pela quebra da hierarquia. A rejeição de Goulart entre os militares aumentou ainda mais com o seu comparecimento, no dia 30 de março, à festa da posse da nova diretoria da Associação dos Sargentos, no Automóvel Clube do Rio de Janeiro. De acordo com Jorge Ferreira, ―o presidente da República comparecer a uma festa de subalternos das Forças Armadas ainda sob as cinzas de um motim de marinheiros, com a oficialidade da Marinha em rebelião passiva, era, no mínimo, imprudente‖.499 Embora a alguns pareça incompreensível a atitude de João Goulart de participar da cerimônia dos sargentos, é importante considerar que o presidente estava consciente da crescente articulação golpista entre os militares e civis conservadores; e os sargentos tinham uma aproximação histórica com o trabalhismo, constituindo, portanto, um grupo de apoio que poderia ser importante naquele momento em que o governo Jango se via fortemente ameaçado. Segundo Darcy Ribeiro, Goulart ―sabia bem que estava condenado a fazer frente às forças da reação, dispostas a sublevar-se. Mas confiava em que, coordenando seu dispositivo militar, poderia dissuadi-las de dar o golpe‖.500 O discurso de João Goulart no Automóvel Clube reafirmou sua defesa das reformas de base dentro da ordem legal. E explicitou sua posição diante da revolta dos marinheiros dizendo que sua primeira recomendação foi a de não permitir jamais ―que se praticasse qualquer violência contra aqueles brasileiros que se encontravam desarmados na sede de um sindicato‖. Confiando o problema ao novo ministro da Marinha, Goulart disse não ter interferido, a não ser dando ―autoridade ao novo ministro que assumia naquela hora o comando da nossa Marinha de Guerra‖.501 Mas a rejeição de qualquer repressão violenta aos marinheiros, não poderia significar o desprezo pela disciplina. Ao contrário disso, Jango apelou para que os sargentos brasileiros continuassem ―cada vez mais disciplinados naquela disciplina consciente, fundada no respeito recíproco entre comandantes e comandados‖. Pedia: Que respeitem a hierarquia legal, que se mantenham cada vez mais coesos dentro das suas unidades e fiéis aos princípios básicos da disciplina. Que continuem prestigiando as nossas instituições, porque em nome dessas instituições, em nome dessa disciplina, os sargentos jamais aceitarão 498 ―Almirantes denunciam comunização do país‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30 mar. 1964. Grifo nosso. FERREIRA, J. João Goulart: uma biografia, p. 455. 500 RIBEIRO, D. Confissões, pp. 351-352. 501 ―Goulart pede aos sargentos que respeitem a hierarquia‖. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 31 mar. 1964. 499 168 sectarismos, partam de onde partirem, porque o caminho que lhes está traçado é o caminho que me foi traçado também.502 Importante indicativo desse momento vivido por Goulart será o espaço que dedicou em seu discurso ao alerta de golpe. Afirmando que ―em nome da disciplina‖ se estariam ―praticando as maiores indisciplinas‖, João Goulart assevera: não admitirei que a desordem seja promovida em nome da ordem; não admitirei que o conflito entre irmãos seja pregado e que, em nome de um anti-reformismo impatriótico, se chegue a conclamar as forças da reação para se armarem contra o povo e contra os trabalhadores; não permitirei que a religião de meus pais, a minha religião e a de meus filhos, seja usada como instrumento político de ocasião, por aqueles que ignoram o seu sentido verdadeiro e pisoteiam o segundo mandamento de Deus. O meu mandato, conferido pelo povo e reafirmado pelo povo numa segunda vez, será exercido em toda a sua plenitude, em nome do povo e na defesa dos interesses populares. Enganam-se redondamente aqueles que imaginam que as forças da reação serão capazes de destruir o mandato que é do povo brasileiro.503 Finalizando seu discurso, Goulart passa a apontar quem seriam os financiadores da poderosa campanha de desestabilização de seu governo: o ―dinheiro graúdo‖ viria dos ―profissionais da remessa ilícita de lucros‖, recentemente regulamentada, e do ―interesse enorme do petróleo internacional e de companhias‖, contrários à lei do monopólio da importação de petróleo da Petrobrás e ao ato de encampação das refinarias particulares. Já o ―dinheiro miúdo, mas também muito poderoso‖, viria dos ―proprietários profissionais de apartamentos em todo o Brasil‖, afetados pelo recente ―decreto dos aluguéis‖; de ―comerciantes desonestos que estavam explorando e roubando o povo brasileiro‖; além dos ―grandes laboratórios estrangeiros de medicamentos‖.504 Sendo assim, se por um lado Goulart mantém a linha dos discursos anteriores, defendendo as reformas dentro da legalidade, é notável no seu discurso no Automóvel Clube que os rumores de uma conspiração golpista já havia tomado corpo. Em nenhum momento anterior, sua denúncia de atitudes golpistas havia tomado mais espaço em seu discurso do que o dedicado à defesa das reformas. E, de fato, no dia seguinte, as tropas golpistas iniciavam a movimentação que culminou com o golpe que o depôs. Numa última tentativa de aglutinar forças para uma possível resistência, que não se consumou, Goulart encaminhou uma mensagem, na noite de 31 de março − que não obteve 502 Idem. Idem. 504 Idem. 503 169 divulgação ampla − denunciando o golpe contra seu projeto reformista e contra as medidas de cunho nacionalistas implementadas por seu governo: A tais medidas, e tudo o mais consubstanciado na política autenticamente popular, decorrente da minha fidelidade ao ideário de Vargas e aos compromissos do meu passado, em lutas nacionalistas, opuseram-se forças políticas e econômicas desavindas entre si, mas que se uniam, entretanto, na impatriótica tentativa de impedir que ao povo brasileiro fossem assegurados melhores padrões de cultura, de segurança econômica e de bem-estar social. Meu Governo foi daqueles, na história da República, que mais se empenharam em cercar de prestígio, de conciliação e de respeito os dignitários do Episcopado, do Clero da Igreja Católica e dos demais credos religiosos. Mistificam com a supervalorização do perigo comunista, como se não fôssemos uma democracia plantada irremovivelmente no coração do povo. Do povo em que acredito e em quem deposito a certeza da vitória da nossa causa. Não recuarei, não me intimidarão. Reagirei aos golpes dos reacionários contando com a lealdade, a bravura e a honra das forças militares, e com a sustentação das forças populares do nosso país.505 Dessa forma, nos parece correto afirmar que o processo de radicalização política que antecedeu o golpe de 1º de abril de 1964 não fez com que João Goulart abandonasse a postura legalista que defendia ao longo de toda a sua trajetória política. Portanto, não encontra fundamento a tese de que o golpe de abril teria sido um ―contragolpe preventivo‖ – tese baseada nas afirmações ou suposições ―de que Goulart pretendia perpetuar-se no poder para além do prazo constitucional e que, por isso, precavidamente, foi deposto antes que ele mesmo desse um golpe (a tese também é utilizada em relação aos comunistas)‖.506 Tal tese foi utilizada pelo embaixador Lincoln Gordon para justificar a necessidade de suporte norteamericano para ação dos golpistas507 e reafirmada por militares brasileiros.508 Embora as afirmações de que Goulart pretendia estabelecer um governo comunista, como também afirmaram os golpistas, tenham sido recusadas pela maior parte das análises políticas e historiográficas do período – com exceção das que retratam a posição dos militares que participaram do golpe –, o ―desapego à democracia‖ por parte das esquerdas brasileiras, 505 GOULART, J. Não me intimidarão. In: BRAGA, K. et al. Op. cit., pp. 243-244. FICO, C. Op. cit., p. 73. 507 ―Em um telegrama que enviou ao Departamento de Estado, classificado como ‗ultra-secreto‘, em 28 de março de 1964, Gordon reafirmou suas teses de que Goulart estava empenhado em um golpe para obter poderes ditatoriais, com a colaboração do PCB e de outros membros da ‗esquerda revolucionária radical‘, repetindo sua avaliação de que o presidente operaria por uma ditadura de tipo peronista que acabaria por levar o Brasil ao comunismo‖. In: FICO, C. Op. cit., pp. 93-94. 508 O marechal Odylio Denys, que já acusava Goulart de aproximação com o comunismo desde a crise que antecedeu sua posse, no já citado manifesto dos coronéis, afirma que a ação militar estava ―defendendo a legalidade‖ e ―manter o regime democrático‖, com o qual o governo de Goulart estaria em desacordo, uma vez que ―com um golpe de Estado ia implantar nele a revolução marxista, instituindo o regime sindicalista‖. DENYS, O. Apud: RAGO FILHO, Antonio. Sob este Signo Vencerás! A ideologia da autocracia burguesa bonapartista. Cadernos AEL (Arquivo Edgard Leuenroth - IFCH/UNICAMP), Campinas, v. 14/15, 2001, p. 173. 506 170 naquele momento, ainda é apontado por alguns autores como um dos fatores que teriam engendrado o golpe. Argelina Figueiredo, analisando prioritariamente os momentos críticos do governo Goulart, afirma que possibilidades de reformas mais moderadas dentro da ordem democrática teriam sido desprezadas pelos setores de esquerda, a favor de uma escolha deliberada pela radicalização e ampliação das reformas e em detrimento da democracia. Desse modo, acaba por responsabilizar os reformistas pelo golpe; uma vez que, segundo a autora, tanto os grupos de direita como os de esquerda ―subscreviam a noção de governo democrático apenas no que servisse às suas conveniências. Nenhum deles aceitava a incerteza inerente às regras democráticas‖.509 O historiador Jorge Ferreira se aproxima de algumas das conclusões de Argelina Figueiredo, ao afirmar que, nos conflitos do período imediatamente anterior ao golpe militar entre esquerdas e direitas, revelava-se um desprendimento aos valores democráticos por ambas as partes. Segundo Ferreira, naquele momento, ―de uma posição defensiva e legalista em 1961, as esquerdas adotaram a estratégia ofensiva e de rompimento institucional‖.510 Para ele, ―não se tratava mais de medir forças com o objetivo de executar, limitar ou impedir as mudanças, mas sim, da tomada do poder e da imposição de projetos. /.../ Os grupos de esquerda exigiam as reformas, mas também sem valorizar a democracia‖.511 Diante de análises como as de Ferreira e Figueiredo, que afirmam que os setores progressistas e de esquerda também devem ser responsabilizados pelo golpe, devido à intransigência de suas demandas e posições, vale lembrar, como fez Caio Navarro de Toledo, que ―quem arquitetou e desencadeou o golpe contra a democracia foram as classes dominantes através de suas forças políticas e entidades de classe‖,512 não sendo encontrada ―pela dura repressão que se abateu sobre os ‗subversivos‘‖ nenhuma comprovação de algum plano golpista entre principais movimentos de esquerda. Militares progressistas e democratas (alguns deles vinculados ao alardeado ―dispositivo militar‖ de Jango), quadros civis ligados diretamente à Presidência da República, setores de esquerda, entidades (CGT, UNE, ISEB etc.) tiveram seus arquivos apreendidos; freqüentes inquéritos políticos militares (IPMs) vasculharam as atividades de lideranças políticas e organizações nacionalistas e de esquerda. No entanto, nenhum documento 509 FIGUEIREDO, Argelina C. Democracia ou reformas? Alternativas democráticas à crise política: 1961-1964. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, p. 202. 510 FERREIRA, J. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In: _________; DELGADO, L A. N. Op. cit., p. 381. 511 Idem. 512 TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. In: In: REIS, D. A.; RIDENTI, M; MOTTA, R. P (orgs.). Op. cit., p. 76. 171 (mesmo na forma de um simples esboço ou rascunho) – revelando os supostos planos golpistas ou continuístas de Goulart – foi descoberto pela inteligência repressiva. Nem mesmo os serviços de segurança norteamericanos (CIA, Departamento de Estado) – que colaboravam intensamente com as autoridades brasileiras – apresentaram, passados 40 anos, quaisquer indícios da decantada trama golpista de Goulart.513 Afirmar uma tendência golpista entre as esquerdas, ainda que sem contribuições factuais, permite reforçar a tese do ―contragolpe preventivo‖, ou, ―na melhor das hipóteses‖, atenuar ―as responsabilidades dos militares e da direita civil pela supressão da democracia política em 1964‖.514 Assim, um golpe que, como assinala Antonio Rago Filho, ―em sua objetividade histórica, foi uma ruptura ao processo democrático que estava em marcha‖, um ―combate ao social-progressismo inerente à política dos trabalhistas, identificada erroneamente com a república sindical, o nacionalismo exacerbado e a algaravia populista‖,515 valendo-se de análises com as de Figueiredo e Ferreira, pode ser apresentado simplesmente como a vitória de um dos lados, igualmente antidemocráticos, em confronto. Outro aspecto importante, destacado por Toledo, é a incorreção de se criticar as esquerdas atuantes no pré-64 por não estarem limitadas ao discurso da democracia liberal – o que, na objetividade histórica brasileira, constituía não um defeito, mas um mérito.516 Ao afirmar que a falta de moderação ou radicalismo na luta pelas reformas teriam resultado no golpe de Estado e propor que o projeto reformista deveria manter-se dentro dos limites da ―ordem instituída‖, esses autores desconsideram o fato de que reformas moderadas são incapazes de ―transcender as dimensões formalistas que caracterizam, em profundidade, os regimes democráticos no capitalismo dependente e periférico‖. Assim, questionar as reformas ―radicais‖ em nome da preservação das ―instituições democráticas‖ implica, objetivamente, justificar as democracias realmente existentes; numa palavra, significa legitimar as democracias liberais excludentes em que as liberdades e os direitos políticos têm reduzida eficácia no sentido de atenuar as profundas desigualdades sociais e as distintas opressões extra-econômicas (de gênero, raça, sexuais etc.) existentes na sociedade.517 Embora Ferreira seja um duro crítico da categoria ―populismo‖, compartilha com ela o mesmo referencial ou ―arquétipo‖ da democracia liberal.518 Sendo assim, não obstante a 513 TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: Golpismo e democracia. As falácias do revisionismo. In: Revista Crítica Marxista n. 19, out. 2004, p. 37. 514 Ibidem, pp. 44-45. 515 RAGO FILHO, A. Op. cit., p. 160. 516 Ibidem, p. 48. 517 Ibidem, p.47. Grifo do autor. 518 Abordamos o referencial liberal da teoria do populismo na introdução deste trabalho. 172 enorme contribuição de Jorge Ferreira para a compreensão do período pré-64 – com pesquisas que investigaram e explicitaram importantes elementos que compunham aquele momento histórico brasileiro –, a análise que faz sobre as esquerdas e o golpe, ao tomar o paradigma liberal como modelo de democracia a ser preservado, desconsidera a possibilidade de construção de uma democracia popular, com ampla participação das massas e que promovesse, de fato, uma ampliação das conquistas sociais. Essa era justamente a possibilidade que grande parte dos setores de esquerda almejava concretizar. 173 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme verificado ao longo do trabalho, é possível resgatar do conjunto de discursos proferidos por João Goulart, desde sua ascensão imprevista ao governo até sua deposição pelo golpe, as principais teses e proposições que o político defendeu em relação ao país. Baseado no ideário varguista e num trabalhismo cristão – permeado pela doutrina social da Igreja519 – Goulart apresentou propostas que, aglutinadas, se estruturavam claramente como um projeto de governo, ou melhor, um projeto de Brasil, buscando um desenvolvimento autônomo com justiça social. Tão importante quanto a demarcação ideológica que pontua o projeto de Jango será o contexto histórico em que está inserido, que tem como pano de fundo um mundo partido em uma confrontação ideológica entre Estados Unidos, liderando o conjunto dos países capitalistas, e a União Soviética, comandando o ―bloco socialista‖. Com os confrontos na Coreia, iniciados em 1950, a Guerra Fria se consolida e, progressivamente, se aprofunda. O governo norte-americano adota como estratégia a contenção ou barragem da irradiação internacional dos soviéticos, pois partiam da tese de que, internamente, o regime russo era frágil. Contida a expansão internacional, o passo seguinte seria o de ―empurrar‖ os soviéticos para trás (roll back).520 Contudo, neste primeiro momento, a América Latina não é a principal preocupação norte-americana. Concomitante a esse processo − ou seja, a partir da década de 1950, em especial na sua segunda metade −, no Brasil, a industrialização apresenta um surto de crescimento, pautado no aporte financeiro e tecnológico de empresas transnacionais. Os ―cinquenta anos em cinco‖ de Kubitschek demarcaram o terreno econômico sobre o qual os governos seguintes se estruturariam (ou se desestruturariam): A crise do fim do período, que por sua vez vai dar lugar à recessão que se lhe segue até o ano de 1967, é uma crise extremamente complexa. Em primeiro lugar, deve-se dizer que as presidências Quadros e Goulart na verdade foram prisioneiras da crise que começou a detonar no último ano da Presidência Kubitschek.521 519 Vale lembrar que o castilhismo anticlerical e positivista, presente na formação do ideário de Vargas, não é apropriado de forma direta por João Goulart. Embora alguns princípios castilhistas – como a preponderância do bem público sobre os interesses materiais individuais – cheguem até ele, através de Vargas e do trabalhismo, Jango afirmará reiteradamente, em seus discursos, sua concordância com a doutrina social da Igreja, bem como as encíclicas e mensagens do papa João XXIII. 520 FURTADO, C. Obra Autobiográfica de Celso Furtado. Tomo I. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 264. 521 OLIVEIRA, Francisco de. A economia da dependência imperfeita. Rio de Janeiro: Graal, 1977, p. 90. 174 O uso indiscriminado de uma ―política monetária e financeira irresponsável‖, iniciada no governo JK, reduziu ―drasticamente o poder aquisitivo dos salários, dando origem, /.../ a uma intensa mobilização política‖.522 Cabe lembrar ainda que, mesmo que a industrialização se acelerasse em concomitância com a urbanização, o Brasil dos anos 1960 ainda possuía 54,92% de sua população ativa no campo.523 E, além disso, ao contrário do que alguns críticos de uma possível reforma agrária afirmavam, ―de um total de 232 milhões de hectares no Brasil, a União e os Estados só possuem 11.907.000 hectares, ou seja 5,1%, reduzidos a 2,8% de área habitável e arável‖.524 Neste contexto, ganhavam dimensões alarmantes reivindicações rurais como as realizadas pelas Ligas Camponesas, iniciadas em 1955. De acordo com Celso Furtado, o projeto da SUDENE fora acolhido no Governo de Kubitschek justamente como uma resposta à crescente problemática social: O nordeste seria o maior ―problema nacional‖, e a construção de Brasília em nada contribuía para minorá-lo. O ―abandono‖ da região estaria gestando tensões que terminariam por ameaçar a unidade nacional. Assim ele [Kubitschek] via o projeto grandioso de governo que traçara atacado pelo flanco vulnerável que descuidara.525 Com o agravamento da situação do campo e a impossibilidade legal da organização sindical entre os trabalhadores rurais – mantida até 1962 −, surgiam as Ligas Camponesas, atuando como um proto-sindicalismo, sendo defendidas pelo advogado Francisco Julião, que se tornaria um dos principais líderes do movimento. A eclosão da revolução cubana em 1959 e sua adesão ao bloco soviético no início dos anos 1960 faz com que a América Latina entre no foco das principais preocupações do governo norte-americano: Em 1959, quando os guerrilheiros de Fidel Castro desceram a Sierra Maestra e entraram em La Havana, os EUA não sabiam ainda exatamente os rumos que a Revolução tomaria. Quando o governo revolucionário cubano demonstrou suas tendências anti-imperialistas, a América Latina deixou de ser teatro secundário e ganhou centralidade na Guerra Fria travada entre as duas potências.526 Assim, os Estados Unidos, tomados pela ―síndrome de Cuba‖, passam a identificar no movimento dos trabalhadores rurais do nordeste brasileiro a possibilidade de uma nova Cuba e em Francisco Julião, um novo Fidel Castro. 522 Idem. RODRIGUES, J. H. Op. cit., p. 225. 524 Ibidem, p. 231. 525 FURTADO, C. Obra Autobiográfica de Celso Furtado. Tomo II, p. 66. 526 TOTA, A. P. Op. cit., p. 119. 523 175 Outro efeito desta ―síndrome‖ foi o desenvolvimento de um discurso que entendia qualquer oposição aos ditames da hegemonia norte-americana – fosse uma oposição nacionalista ou apenas com tendências mais nacionalistas − como posições comunistas. Perspectiva e discurso plenamente internalizados por boa parte de setores nacionais representativos − em especial pela imprensa conservadora e por parte das Forças Armadas. Portanto, não seria por acaso que Jânio Quadros esperara seu vice-presidente João Goulart, profundamente vinculado ao trabalhismo e aos sindicatos, estar em viagem oficial a China comunista para executar sua manobra de renunciar, na expectativa de voltar ―nos braços do povo‖. No entanto, a história tomou outro rumo e, como vimos, Goulart assume a presidência, em meio a uma grande crise – sendo primeiro tutelado por um regime parlamentarista, para somente mais tarde retornar ao regime presidencial, via plebiscito. Eis, em esboço, o contexto a partir do qual João Goulart tenta dar vida concreta a um projeto político que terá como carro chefe as reformas de base − uma tentativa de criar um elo entre crescimento econômico e desenvolvimento social, alavancado por um capitalismo que, embora associado, tivesse autonomia e estivesse em concordância com uma democracia trabalhista. Com as chamadas reformas de base, Goulart propunha formas de aumentar a presença do Estado nas esferas econômica e administrativa do país (através das reformas tributária, bancária, cambial e administrativa, além de outras importantes medidas de caráter nacionalista, como o controle da remessa de lucros para o exterior); melhorar as condições materiais de vida da população (através das reformas agrária, urbana e universitária); bem como estender o direito de participação eleitoral (através da reforma eleitoral). Todo esse conjunto de reformas mantinha, ainda, o objetivo de fortalecer o mercado interno, promovendo o desenvolvimento econômico com autonomia nacional, ou seja, a tão almejada ―emancipação econômica‖. Portanto, não se justificam as afirmações do historiador paulista Marco Antonio Villa de que Jango teria representado um ―vazio de realizações e de ideias‖, sendo marcado ―pela absoluta falta de plano de governo, de um rumo coerente a ser seguido‖.527 Como vimos, ainda que frustrada a maior parte das realizações, João Goulart apresentou um projeto coerente com sua trajetória política. Também é importante lembrar a posição de Goulart em relação à mobilização popular. A participação das massas trabalhadoras na vida política do país, através das organizações 527 Cf. VILLA, Marco Antonio. Jango: um perfil (1945-1964). Rio de Janeiro: Globo, 2004, pp. 237-238. 176 sindicais, populares e de esquerda nunca foi repudiada ou reprimida por Jango. E essa postura não se limitou aos momentos em que recebia apoio dos movimentos populares; foi mantida, também, quando deles recebia críticas e cobranças, ou ainda quando seus opositores o acusavam de nada fazer diante da ―ameaça‖ que tais movimentos representariam à democracia representativa. No plano das relações exteriores, não obstante a pressão política e financeira exercida pelos Estados Unidos, João Goulart manteve-se fiel à política externa independente e à posição de não-intervenção − notadamente no caso de Cuba. Além disso, buscou opções de atuação internacional que extrapolassem as iniciativas tuteladas pelos países desenvolvidos, buscando articular um bloco para a defesa dos interesses dos países latino-americanos. Apesar dos enormes problemas e pressões com as quais seu governo foi obrigado a lidar, Jango, em seu discurso e governo, seguiu, com coerência, o nacionalismo varguista, no qual se apoiou ao longo de toda a sua carreira. Ainda que tenha chegado a transigir em algumas situações – almejando negociar soluções entre partes divergentes528 −, nos momentos decisivos, Goulart marcou posição em defesa dos interesses nacionais e das demandas populares; descartando soluções que, em troca de estabilização econômica e mesmo política, implicassem na subordinação do país aos interesses externos e/ou no achatamento de salários e direitos dos trabalhadores brasileiros. Tal postura rechaça as afirmações de que seu discurso nacionalista e de direitos sociais seria ―mera‖ demagogia. Conforme apontamos em nossa Introdução, a ―teoria do populismo‖, ao enquadrar o presidente Jango como demagogo, descarta toda sua tradição política, ou melhor, toda a base ideológica sobre a qual Goulart sustenta suas ações.529 Fixando-se em um ideal de trabalhador e em um ideal de democracia burguesa, essa teoria acaba por descartar os trabalhadores reais, bem como a possibilidade de uma ―democracia trabalhista‖ – o que, nos marcos históricos do Brasil, seria provavelmente um avanço. Em sua tarefa inglória de superar uma série de deficiências econômicas herdadas e promover desenvolvimento econômico com progresso social, João Goulart acreditou na possibilidade de estabelecer uma economia capitalista, que embora associada, garantisse autonomia ao país, além de conquistas sociais aos trabalhadores. No entanto, viu suas expectativas de obter suporte financeiro externo para estimular um desenvolvimento nacional 528 São exemplos dessas transigências: a aceitação da ―solução parlamentarista‖, a incorporação de demandas que atendessem o FMI no Plano Trienal, a possibilidade de pagamento de valor acima do avaliado na compra da AMFORP e o retardamento da regulamentação da Lei da Remessa de Lucros. 529 Nos referimos, aqui, à ideologia conforme a posição de Georg Lukács (ver definição na introdução deste trabalho). 177 ―associado‖ – mas não subordinado – ao capital internacional frustradas por negativas intransigentes, tanto por parte do FMI, como por parte de governo norte-americano e do capital internacional em geral.530 Àquela altura, a conciliação de interesses mostrou-se impossível. Como aponta Antonio Rago Filho, Assim como o peronismo na Argentina e, mais tarde, o allendismo no Chile, os portadores de uma plataforma econômica de estatuto popular e nacional converteram-se, em nosso país, numa ameaça à reorganização da estrutura econômica atrelada aos desígnios do grande capital internacional e seus parceiros nativos.531 E, de fato, a possibilidade de questionamento e reorganização da estrutura produtiva brasileira, assim como o alargamento da participação popular na vida política, constituíam, sim, uma ameaça aos interesses ―do grande capital internacional‖ e da burguesia nativa a ele vinculada. Isso devido à forma particular através da qual o capitalismo se objetivou no Brasil: de forma hipertardia; com industrialização subordinada ao capital externo e priorizando a produção de bens de consumo duráveis (inacessíveis à maior parte da população); com manutenção da estrutura agrária latifundiária, da superexploração da força de trabalho e da exclusão das massas das decisões políticas.532 A burguesia brasileira, portanto, não sustenta um projeto de reformas estruturais e de democracia popular como o proposto por Goulart; uma vez que, por sua debilidade econômica, mostra-se ―incapaz de dominar sob forma efetivamente democrática – porque incapaz de lutar ou sequer perspectivar sua autonomia econômica, e, assim, de se por à frente de um projeto de cunho nacional, apto a incluir, embora nos limites do capitalismo, as classes a ela subordinadas‖.533 Sendo assim, garante o exercício do seu poder político de forma autocrática.534 530 Iniciativas como a ajuda dos Estados Unidos à Europa no pós-guerra, com o plano Marshall, e a Aliança para o Progresso, anunciada em 1961, davam margem para essa expectativa. No entanto, tais iniciativas se mostraram absolutamente distintas em suas práticas e objetivos. 531 RAGO FILHO, Antonio. Sob este Signo Vencerás! A ideologia da autocracia burguesa bonapartista. Cadernos AEL (Arquivo Edgard Leuenroth - IFCH/UNICAMP), Campinas, v. 14/15, 2001, p. 182. Grifo nosso. 532 José Chasin, analisando a forma e a particularidade da objetivação histórica do capitalismo no Brasil, a denomina de via colonial – caracterizada pela conciliação entre atraso e o progresso sociais. Ainda que este caráter conciliatório se aproxime do exemplo alemão (via prussiana), o Brasil se estruturara dentro do capitalismo de forma bastante diversa: a origem da propriedade agrária brasileira se dá através da colonização do país, o que já a coloca em situação totalmente distinta da propriedade agrária feudal alemã. Além disso, a industrialização brasileira se dá de forma hipertardia, no período que vai dos anos 30 aos anos 60 do século XX. 533 COTRIM, Lívia. O capital atrófico: da via colonial à mundialização (Apresentação). In: CHASIN, J. A Miséria Brasileira: 1964-1994 – do golpe militar à crise social. Santo André (SP): Ad Hominen, 2000, p. VII. 534 Sobre a burguesia brasileira e sua impossibilidade de uma postura democrática como produtos históricos da via colonial de objetivação do capitalismo no Brasil, questiona José Chasin: ―Como poderiam coabitar com a ‗soberania do povo‘, na inintegralidade de sua soberania enquanto classe do capital‘? Ou seja, como 178 Dessa forma, o que estava em jogo naquele momento, cujo governo João Goulart representa o ponto de inflexão, era justamente a capacidade de o país lutar e sustentar um capitalismo autônomo. Na verdade, muitos pensaram que esta autonomia já estava garantida, inclusive autores de grande representatividade para a academia e para política econômica da época, como o economista e ministro de Goulart Celso Furtado, que, em 1962, afirmava: a economia de nosso país alcançou um grau de diferenciação /.../que permitiu transferir para o país os principais centro de decisão de sua vida econômica. /.../ O Brasil está repetindo, até certo ponto, a experiência do Japão em decênios anteriores: a conquista da autodeterminação no plano econômico ainda em fase caracterizada por um nível de renda per capita típico de país subdesenvolvido.535 No entanto, a busca pela autonomia econômica foi interrompida pelo golpe que depôs João Goulart; dando início a uma ditadura militar que reafirmou a via colonial como plataforma do desenvolvimento capitalista brasileiro, ou seja, reafirmou a subordinação (ainda que com ―inovações‖) ao invés de autonomia. O período da ditadura militar expressou, por si, a continuidade da trajetória histórica do Brasil desde a colônia: ―toda a história brasileira é ‗rica‘ em ditaduras e ‗milagres‘, e pobre em soluções democráticas efetivas‖.536 O esquema produtivo do milagre − apoiado ideologicamente no engodo do crescimento do bolo − teve como fundamento o rebaixamento salarial e a consequente a miséria da população como base da própria forma de desenvolvimento;537 demonstrando, com seu duplo fracasso (como projeto social e econômico)538 a estreiteza de suas bases. Destarte, retomando o processo de efetivação do capitalismo brasileiro no período anterior ao governo Goulart e naquele que o sucede, vale questionarmos a possibilidade dominariam materialmente, sob a soberania política do povo, se a sua própria dominação é vassala de sua própria estreiteza orgânica e de um outro capital soberano? Portanto, se o limite de sua soberania é seu capital limitado, o segredo de seu monopólio do poder é a atrofia de sua potência política. Isto é, a verdade do deslimite de seu mando autárquico é a limitação de sua soberania atrófica‖. In: CHASIN, J. A esquerda e a Nova República. In:____________. A Miséria Brasileira: 1964-1994 – do golpe militar à crise social, p. 162. 535 FURTADO, Celso. A pré-revolução brasileira. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1962, p. 9. 536 COTRIM, Lívia. O capital atrófico: da via colonial à mundialização (Apresentação). In: CHASIN, J. A miséria brasileira, 1964-1994: do golpe militar à crise social, p. V. 537 ―Em termos rigorosos a estrutura de produção em que se baseia o ‗milagre‘ produz necessariamente uma distribuição negativa para as classes subalternas. Para se realizar, o ‗milagre‘ obrigatoriamente tem de gerar a miséria de amplas camadas da populacionais; o aviltamento da maior parte da força de trabalho empregada é a condição de seu funcionamento‖. CHASIN, J. Conquistar a democracia pela base. In: _________. A miséria brasileira,1964-1994: do golpe militar à crise social, p. 62. 538 ―Sintetizando as duas formas de fracasso do ‗milagre‘: do ponto de vista das necessidades gerais da nação, ele é um fracasso como projeto de organização da produção, consideradas as necessidades das classes subalternas, numa palavra, do conjunto do povo brasileiro; é também um fracasso, ao cabo de poucos anos, quando se consideram, a partir de 73, as exigências naturais do próprio capital: a acumulação deste é entravada pela própria estrutura de produção que durante um certo tempo beneficiou larga e exclusivamente‖. Ibidem, p. 63. 179 histórica efetiva de sustentação de um governo como o proposto por Jango nos marcos do capitalismo no Brasil de então. Com a impossibilidade de apoio da burguesia a um projeto nacional-reformista e de ampliação da democracia, um projeto nacional-reformista com participação popular somente se concretizaria através de rupturas – rupturas que João Goulart, em nenhum momento, se mostrara disposto a intentar e que as esquerdas brasileiras não se mostraram suficientemente preparadas e organizadas para defender. 180 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: Discursos de João Goulart em publicações oficiais: GOULART, João. Desenvolvimento e Independência. Discursos 1 (1961). Brasília: IBGE, 1962. GOULART, João. Desenvolvimento e Independência. Discursos 2 (1962). Brasília: IBGE, 1963. GOULART, João. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1962. Brasília: Congresso Nacional, 1962. GOULART, J. Mensagem ao Congresso Nacional: remetida pelo presidente da república na abertura da sessão legislativa de 1963. Brasília: Congresso Nacional, 1963. GOULART, J. 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Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 20 fev. 1963. ―Estrutura agrária do Brasil é um enorme entrave ao progresso‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 23 mar. 1963. ―Enviado ao Congresso anteprojeto de reforma bancária‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 24 mar. 1963. ―Não há mais lugar para agitadores no Brasil, diz Goulart em São Paulo‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 05 abr. 1963. 181 ―Justiça social exige reforma agrária em moldes brasileiros‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 06 abr. 1963. ―Goulart admite reforma ministerial e diz ser normal situação militar‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 14 mai. 1963. ―Jango responde carta de Lacerda sem dizer como são encampações‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 29 mai. 1963. ―Goulart fala contra os anti-reformistas‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 22 ago. 1963. ―Goulart anuncia o ano da exportação‖. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 23 ago. 1963. ―Goulart: seguirei a linha de Vargas‖. 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