Anais do VII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216 LETRAMENTO E POLÍTICAS EDUCACIONAIS Giliane Mireile Ferreira Evangelista (G – CLCH - UEL) Regina Maria Gregório (Orientadora - UEL) Introdução A escolha do foco sobre a temática desta pesquisa foi decidida após os oito meses de estágio realizado em 2009, no Núcleo de Aprendizagem para o Futuro – NAF, em Cambé/PR. A opção então, foi elaborar o trabalho final da disciplina de Linguística Aplicada I, sobre o aspecto social da colaboração da LA na promoção do letramento, principalmente no que diz respeito à formulação de uma política educacional consistente. Sobretudo, analisando o grau desse letramento, apresentado (ou não) pelos alunos. A ótica social desta abordagem foi privilegiada porque a instituição, mantida pela prefeitura, atende a comunidade carente da cidade e a maioria dos alunos vem da periferia de Cambé, com históricos de dificuldades e problemas familiares de variados tipos. As aulas são oferecidas em período contrário ao que os alunos estão matriculados na rede estadual. No NAF, os alunos são preparados para entrar no mercado de trabalho. Além das aulas de Língua Portuguesa, são ministradas aulas de informática, marketing pessoal, culinária, corte-e-costura, entre outras, o que caracteriza o perfil inclusionista-social da escola. A intenção de trabalho foi sendo alterada com o decorrer do ano; tornou-se perceptível que tão importante quanto passar lições de Gramática, Literatura e Produção de texto, era preciso ensinar àqueles alunos como empregar com competência e autonomia os conteúdos aprendidos em sala de aula e que tal atividade lhes condicionasse uma intervenção cidadã na sociedade em que vivem. Para tanto, foi utilizado um diário – o que caracteriza a pesquisa como sendo do tipo etnográfica - no qual foram registradas todas as atividades realizadas, tanto as de êxito, quanto às de pouco sucesso. Em anexo, estão alguns exemplos. 855 Anais do VII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216 A análise e a interpretação das anotações foram apoiadas pelas leituras dos textos disponibilizados pela professora Regina Maria Gregório, orientadora deste trabalho e coordenadora do Projeto de Extensão “Linguagem: ponte para a cidadania”. Dos textos lidos para esta pesquisa, privilegiou-se o de Maria Antonieta Alba Celani (2000): A relevância da Linguística Aplicada na formulação de uma política educacional brasileira, com o intuito de articular o conteúdo recebido na graduação com a realidade encontrada nas escolas, local dos estágios, ou seja, na tentativa de propor uma reflexão sobre como os futuros educadores poderão contribuir para a confirmação de uma política educacional consistente por meio do ensino da Língua Portuguesa. Colocando a mão na massa... “A melhor maneira de se identificar a Lingüística Aplicada (no sentido de estabelecê-la como área de investigação) é através do desenvolvimento de pesquisa”. (MOITA LOPES, (1990, p.17), Há em LA duas tendências principais de pesquisa de cunho interpretativista: a pesquisa etnográfica e a pesquisa introspectiva. Neste trabalho a pesquisa desenvolvida foi a do tipo etnográfica, o que equivale a dizer que buscou reconhecer a importância da aproximação com o campo no qual está inserida, ao mesmo tempo em que procura preservar as particularidades da abordagem do campo educacional como um todo. A etnografia é um processo guiado preponderantemente pelo senso questionador do etnógrafo. Deste modo, a utilização de técnicas e procedimentos etnográficos, não segue padrões rígidos ou pré-determinados, mas sim, o senso que o etnógrafo desenvolve a partir do trabalho de campo no contexto social da pesquisa. (MATTOS, 2001, p. 43) A pesquisa etnográfica é caracterizada por colocar o foco na percepção que os participantes têm da interação linguística e do contexto social em que estão envolvidos, por meio da utilização de determinados instrumentos, neste caso, o diário. “A etnografia na sala de aula é uma descrição narrativa dos padrões característicos da vida diária dos participantes sociais (professores e alunos) na sala de aula de línguas na tentativa de compreender os processos de ensinar/aprender línguas”. (MOITA LOPES, 2000, p. 88), 856 Anais do VII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216 Para fazer esse tipo de pesquisa é necessário participar na sala de aula como observador participante, escrever diários, entrevistar alunos e professores etc, para então descobrir o que está acontecendo nesse contexto; entender como esses acontecimentos estão organizados e o que significam para alunos e professores. É importante investigar também, como essas organizações se comparam com organizações em outros contextos de aprendizagem. Portanto, esse tipo de pesquisa não se pauta em categorias preestabelecidas antes da entrada no campo de investigação - neste caso, a sala de aula - mas sim, a partir de uma pesquisa, a qual norteará o estudo. Sobre Linguística Aplicada Alguns estudiosos de Língua Portuguesa discutem a demarcação dos limites entre Linguística Aplicada e Linguística. Essa discussão da relação entre as duas disciplinas é imprescindível para o estudo do estatuto teórico ou disciplinar da LA. Segundo Kleiman (1998, p. 52), essa questão é histórica, porque a LA surgiu quando os linguistas já ocupavam espaços de atuação aplicada em relação aos problemas de ensino de língua materna no país. Entretanto, continua atual porque as mudanças paradigmáticas nos estudos nessa área têm ampliado o objeto da Linguística, o que implica pensar nas práticas de uso da linguagem em relações antes consideradas extralinguísticas. Essa questão resulta na divisão de dois gêneros normativos: de um lado os linguistas julgando a adequação descritiva das produções pelo parâmetro da descrição ou modelo linguístico utilizado; e do outro, os linguistas aplicados justificando a multi, a inter ou a transdisciplinariedade de suas abordagens pelo fato de que aquilo que as pessoas ouvem, falam, leem e escrevem em diferentes situações e contextos. Sobre o estatuto disciplinar da LA, os debates deveriam estar voltados para a comunidade interna, dos linguistas aplicados que contribuem para a análise do desenvolvimento de uma área em um momento em que o acréscimo e a diversificação das questões investigadas na LA isolam cada vez mais os linguistas aplicados que trabalham em diferentes problemas da vida social. A LA caracteriza-se pela expansão dos dados que estuda e pelas metodologias utilizadas em função da necessidade de entendimento dos inúmeros problemas sociais de 857 Anais do VII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216 comunicação em contextos específicos que procura resolver. Essa heterogeneidade não é consequência de uma indefinição de objeto, mas da quantidade de subdisciplinas distintas quanto aos seus interesses e objetos de conhecimento, métodos e grau de desenvolvimento que hoje fazem parte da Linguística Aplicada. Essa expansão de horizontes é importante para o desenvolvimento de uma área que se ocupa de questões tão complexas. O desenvolvimento da LA tem se dado em uma época de multiplicação dos problemas sociais, o que acarreta um grande aumento da atividade de pesquisa. Teoria específica sobre o objeto de estudo “O objetivo fundamental da educação é preparar os indivíduos para o exercício da cidadania, integrando-os no mundo do trabalho em possibilidades de progresso pessoal”, (CELANI, 2000, p. 17). A atividade humana envolve o uso da linguagem e a Linguística Aplicada é articuladora de múltiplos domínios do saber que têm preocupação com a linguagem. Portanto, a LA deve ter papel relevante na formulação de uma política educacional consistente. O processo de elaboração de uma política educacional eficaz consiste na fixação de uma série de objetivos, enunciados em termos concretos e práticos, que devem servir de guia para a ação imediata contendo mecanismos de avaliação. Os objetivos devem ter relevância para os sujeitos envolvidos e devem ser colocados em escala de prioridades. O trabalho realizado com a linguagem nas escolas é de extrema importância, uma vez que se preparam os alunos para atuar como cidadãos com capacidade plena de atualizar seu potencial intelectual e afetivo no mercado de trabalho e na vida social como indivíduos esclarecidos e eficientes. Nesse sentido A LA passou a articular suas preocupações mais claramente, seguindo sua vocação de disciplina eminentemente inserida no contexto social e acima de tudo, preocupada com o papel da linguagem nos mais variados contextos, escolares, institucionais, sociais e econômicos, privilegiando, talvez, o contexto escolar. (CELANI, 2000, p. 21). A Linguística Aplicada, portanto, não está preocupada somente em ensinar a língua, mas sim, e acima de tudo, em desenvolver um senso linguístico que faça com que o aluno veja, sinta e interprete a linguagem não como uma disciplina escolar que dita normas do “bem 858 Anais do VII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216 falar e escrever”, mas como algo que está intimamente inserido na sua vida de cidadão, o que está diretamente ligado ao conceito de letramento. O letramento é a capacidade de ir além da alfabetização, de ter condições de identificar, por exemplo, as metáforas e as ironias das campanhas publicitárias. Admitir a dimensão política do letramento obriga reconhecer que, por meio dele, pode-se reproduzir a ideologia dominante, que permita ao sujeito a crítica da própria sociedade em que está inserido. “A competência lingüística, com autonomia e intervenção cidadã, objetivo maior das aulas de língua portuguesa, está diretamente ligada a algo bem mais amplo e complexo do que simplesmente a alfabetização do discente” (SOARES, 2000, p. 63). Durante a realização do estágio, na intenção de promover uma inserção participativa, consciente e crítica, a preocupação maior era com o aprimoramento do nível de letramento dos alunos, objetivando o domínio das práticas sociais de leitura e escrita com as quais eles convivem. Como já citado, o NAF prepara seus alunos para a entrada e, sobretudo para a permanência no mercado de trabalho. Sabe-se, porém, que com as mudanças decorrentes dos avanços tecnológicos, o número de empregos não qualificados está diminuindo a cada dia. Para as vagas que permanecem em determinados setores, como o da agricultura, por exemplo, estão aumentando as exigências e a necessidade de habilidades mais especializadas, o que traz como consequência a urgência de habilidades linguísticas mais específicas para lidar com empregos múltiplos e tarefas múltiplas. “A necessidade de uma educação lingüística para o trabalho já se faz sentir. Linguagem e trabalho é a área em franco desenvolvimento nas pesquisas de LA” (CELANI, 2000, p. 23). As pesquisas nessas áreas são expressivas, o que reflete a vocação da LA para com a preocupação social. No momento atual da sociedade brasileira, no que se refere à educação, é de extrema importância que as políticas educacionais estejam com a atenção voltada às questões referentes à alfabetização e ao letramento, uma vez que têm repercussão vital no desenvolvimento da educação em outras disciplinas do currículo. Conclusão Escolher trabalhar com a docência não é fácil, principalmente diante do cenário educacional precário com o qual se convive no Brasil. Porém é importante e de extrema urgência 859 Anais do VII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216 que, aqueles que fizeram essa escolha conscientizem-se da necessidade de mudanças relacionadas aos métodos tradicionais de ensino. A oportunidade de estágio encontrada nos cursos de graduação em Letras deve ser encarada como atividade reflexiva quanto ao ensino de Língua Portuguesa. No preparo das aulas é interessante abordar conteúdos e temas que possam ensinar aos alunos mais do que regras de Gramática. É preciso ajudá-los a desenvolver um senso crítico e questionador por meio do letramento e, principalmente, contribuir com a formação cidadã de cada um. Justificam-se portanto, as tentativas de aproximação a cada aluno, na busca de saber o que trazem de casa, quais as experiências, os medos, as insatisfações e principalmente: quais os sonhos de cada um, para assim adequar a aula com dinamismo à realidade deles, fazendo-os compreender a importância e o objetivo das aulas de Português, impedindo desse modo a monotonia e o desinteresse . As atividades de estágio relatadas neste trabalho foram desenvolvidas por meio das reflexões propostas pela Linguística Aplicada, com o objetivo de preparar os alunos para o exercício lúcido da cidadania. A intenção era integrá-los no mundo do trabalho com condições de progresso pessoal. Por ser articuladora dos múltiplos domínios do saber que se preocupam com a linguagem, a Linguística Aplicada, portanto, tem papel fundamental na formulação de uma política educacional consistente e eficaz. Referências CELANI, Maria Antonieta Alba. A relevância da lingüística aplicada na formulação de uma política educacional brasileira. In: FORTKAMP, M. B. M.; TOMITCH, L. M. B. (Org.). Aspectos da Lingüística Aplicada: Estudos em Homenagem ao professor Hilário Inácio Bohn. Florianópolis: Insular, 2000. KLEIMAN, Ângela. B. In: Linguística Aplicada e transdiciplinariedade. Signorini, I; Cavalcanti, M. (orgs). Campinas: Mercado das Letras, 1998. MATTOS, Carmen Lúcia Guimarães de. A abordagem etnográfica na investigação científica. Rio de Janeiro: Espaço, n. 16, p. 42-59, dez. 2001. Disponível em: http://www.ines.org.br/paginas/revista/A%20bordag%20_etnogr_para%20Monica.htm 860 Anais do VII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216 MOITA LOPES, Luiz Paulo. Oficina de Linguística Aplicada. São Paulo: Mercado das Letras, 1990. ______. Oficina de Linguística Aplicada: a natureza social e educacional dos processos de ensino-aprendizagem de línguas. Campinas: Mercado das Letras, 2000. SOARES, Magda Becker. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. ANEXO 31/03/2009 - Primeiro dia de aula! Eu estava muito ansiosa. A coordenadora da escola me acompanhou e me apresentou aos alunos. E as carinhas?! Umas com um olhar de curiosidade, outras de carinho e alguns com um olhar de “não estou nem aí!”. A lista de chamada conta com 16 nomes, mas nem todos estavam presentes. Pedi para formarem um círculo, falei sobre a minha vida e eles sobre as deles. Tiraram muito sarro uns dos outros, o que já era esperado. As idades vão de 13 a 15, alguns repetentes... Deu para perceber que não será fácil. Distribuí algumas perguntas sobre comportamento para que eles respondessem para o grupo. Alguns me chamaram a atenção: o Felipe monta em touros e cavalos; o Gyan quis se fazer de “bad boy”, mas na verdade foi uma graça, participou bastante, até demais para dizer a verdade. O que mais me preocupou foi o Igor; estava quieto desde o início, de repente se manifestou, respondendo uma pergunta que era de um outro colega: “Um amigo seu pediu que fizesse um jogo de loteria, inclusive lhe deu o dinheiro e os números para jogar, porém o jogo foi premiado em 500 mil reais, o que você faria? O Igor disse com uma cara nada boa que não daria o dinheiro para o amigo, que pegaria tudo só para ele. Então expliquei que a vida sempre nos oferece dois caminhos, que temos o livre arbítrio, porém também temos que ter consciência das possíveis consequências. Em seguida, pedi a todos que produzissem um texto contando sobre a sua vida, para que eu pudesse conhecê-los um pouco melhor, quem sabe no papel se abririam mais intimamente. Eu me emocionei muito na correção dos textos, algumas histórias familiares muito tristes e de muita dificuldade. Essa é a realidade da maioria dos alunos dessa instituição. 861 Anais do VII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216 Estou muito feliz, darei o melhor de mim, se Deus quiser. A coordenadora me convidou para almoçar na escola, almoçarei lá o ano todo. Texto produzido pelo aluno Igor Vinícius: A história da minha vida Quando eu nasci a minha mãe tinha 15 anos morava no tupi eu vivi lá até os 3 anos, depois mudei pra Santa Adelaide e voltei pro tupi com 13 anos, a minha infância foi uma porcaria e hoje tento uma vida melhor pra mim e tentarei do jeito mais rápido não importa as consequências mas sempre pensando no melhor pra mim e pra minha família. (Igor Vinícius) Com o texto produzindo pelo Igor, deu para perceber o tom de revolta, porém identifiquei também que ele tem “está tentando uma vida melhor”, então será nesse ponto que irei tocar, quero conscientizá-lo de que por meio do desenvolvimento das habilidades linguísticas, entre outras, ele poderá arrumar um bom emprego. [...] 06/10/2009 – Hoje os alunos estavam bastante apáticos, mas até que participaram da aula, do jeito deles, mas participaram. A Cristyele estava bastante triste, sentou sozinha lá no fundo da sala. Trabalhei Crônica, conceituei, li os exemplos do material de apoio e no final, cada um deles produziu sua própria crônica. O Gyan produziu um texto muito bom sobre crianças sem condições financeiras e familiares. Eles estão ansiosos porque vão desfilar na Fanfarra de comemoração ao aniversário de Cambé, no próximo final de semana. CRÔNICA Crianças que passam fome Em meu café da manhã, eu gostaria de que estivessem todas as crianças que passam forme por aí. Enquanto estou comendo, penso comigo mesmo: será que essas crianças que passam fome terão um futuro melhor? Em vez de ficar pedindo dinheiro em sinaleiros, pedindo alimento em casas, mercados. Também pensei: será que eles não têm pai nem mãe? Pois eles têm sim, mas os seus pais que os mandam pedir essas coisas. É isso aí que eu iria pedir para o meu café da manhã. (Por Gyanfranchesko Ferreira Morelato) 862 Anais do VII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216 Para citar este artigo: EVANGELISTA, Giliane Mireile Ferreira. Letramento e políticas educacionais. In: VII SEMINÁRIO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA SÓLETRAS - Estudos Linguísticos e Literários. 2010. Anais... UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná – Centro de Letras, Comunicação e Artes. Jacarezinho, 2010. ISSN – 18089216. p. 855 – 863. 863