MOVIMENTO NEGRO E POLÍTICAS EDUCACIONAIS NO BRASIL CONTEMPORÂNEO (1978-2010) Carla Adriana Batista da Silva Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC E-mail: [email protected] Rafael Petry Trapp Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC E-mail: [email protected] RESUMO Em um contexto no qual a organização moderna nacional já não dá mais conta da identidade cultural, em que a estratégia narrativa de pertença empregada pelo Estadonação já não é a única a produzir efeito enquanto fonte de significação cultural, torna-se necessário analisar, em meio a novas combinações de espaço-tempo, os arranjos pelos quais novas formas identitárias são construídas e legitimadas. Neste artigo será realizada uma discussão acerca da construção da identidade “negra” ou “afrodescendente” no Brasil, sobretudo a partir da criação do Movimento Negro Unificado (MNU) em 1978, baseada na historicização de conceitos, na observação do avanço significativo das lutas antirracistas no contexto internacional e no acompanhamento do debate brasileiro sobre a institucionalização de políticas redistributivas de caráter “racial”. A partir daí, procurar-se-á compreender de que forma essas construções identitárias se desdobram na educação. Os resultados parciais, a partir da análise das fontes citadas, apontam para a “racialização” da sociedade brasileira, numa perspectiva multiculturalista, tendo a educação um papel estratégico na construção das narrativas identitárias. Palavras-chave: Educação. Multiculturalismo. Etnicidade. Movimento Negro. Política. Historicidade do antirracismo contemporâneo: o Movimento Negro brasileiro O Movimento Negro tem se firmado como um ator político fundamental nas discussões em torno de algumas das questões contemporâneas mais prementes, como etnicidade, identidade negra e ações afirmativas. A ação política do Movimento tem tido desdobramentos vários, que vão desde a maneira como é pensada a identidade nacional até a forma como se pensam as estratégias educacionais antirracistas. Nesse sentido, a tarefa de análise do revival das discussões concernentes à chamada “questão racial” e do revigoramento de posições e lugares identitários passa pela compreensão da historicidade da luta e das estratégias políticas do Movimento Negro no Brasil. O marco histórico mais comumente mencionado por militantes e intelectuais situa-se no final dos anos 70, mais precisamente, no ano de 1978, quando da fundação do Movimento Negro Unificado (MNU). No final da década de 70, surge, em todo o Brasil, uma série de movimentos sociais. Organizados em torno da luta comum pela democracia, esses movimentos impõem-se como atores e forças sociais. Na esteira da chamada abertura democrática, a partir dos anos 70, emerge e se organiza também uma série de movimentos e organizações sociais de caráter antirracista. O MNU surgiu da aglutinação de outros movimentos sociais negros e/ou antirracismo e configura-se quiçá o mais importante e paradigmático movimento social antirracismo brasileiro. Mais tarde, denominado apenas por Movimento Negro Unificado (MNU), será referência para a luta antirracista em todo o Brasil. O MNU constituiu-se como um movimento de caráter popular e democrático, e tinha como principais fins o combate ao racismo, a luta contra a discriminação racial e o preconceito de cor. Entretanto, em que pese a importância histórica do MNU, o Movimento Negro Contemporâneo pode ser mais bem-compreendido como a pluralidade de diversos movimentos sociais negros/antirracismo. Nesse sentido, Silva enfatiza que A organização do Movimento Negro brasileiro, no entanto, deve ser entendida em suas particularidades e ambiguidades. Não se pode falar de um movimento unificado e combativo desde sua fase inicial de organização (2007, p. 76). O Movimento Negro, ao mesmo tempo em que se caracterizava como um movimento de reivindicação, protesto e denúncia das iniquidades sociais sofridas pelos negros no Brasil, procurou desconstruir o mito da chamada “democracia racial”. Esse processo de desmistificação tornou-se, a partir daí, uma das principais bandeiras de luta do movimento, pois, na interpretação dos militantes, a ideia de que as relações étnicoraciais se davam sem conflitualidade – não sendo a sociedade brasileira racista, portanto – e de que havia igualdade de oportunidades entre negros e brancos -, teria sido historicamente uma estratégia para encobrir as profundas desigualdades entre negros e brancos no Brasil. No bojo da desconstrução do mito da “democracia racial”, o Movimento Negro proporá uma rediscussão da identidade nacional. Se essa identidade era pensada, até esse momento, de maneira a conformar uma “democracia racial”, a desconstrução deste mito, apoiada em novos paradigmas interpretativos e consistentes pesquisas acadêmicas ( FERNANDES, 1965; HASENBALG, 1979), levará a uma problematização identitária, posto que a realidade de desigualdade entre negros e brancos tornava a ideia de “democracia racial” insustentável. A atuação do Movimento Negro, na figura de militantes como Abdias do Nascimento e Lélia González, levou a uma problematização e rediscussão da identidade brasileira, agora pautada por um viés “racial”. Em contrapartida, essa articulação levou a um processo de ressignificação identitária, através da reivindicação de uma identidade e de uma consciência “racial” negras. A questão da consciência negra é de suma importância, no sentido de que permitiu constituir mecanismos de fortalecimento do movimento e articular o processo de ressignificação identitária entre os militantes e a população negra no Brasil, conformando uma ideia de povo unificado e coeso, que teria como meio de expressão o próprio Movimento Negro. Assim, para Costa (2006, p. 144), Os conceitos ‘consciência’ e ‘conscientização’ passam a ocupar, desde a fundação do MNU, lugar decisivo na formulação das estratégias do movimento. Trata-se da tentativa de esclarecer à população negra sobre sua posição desvantajosa na sociedade, para, assim, constituir o sujeito político da luta antirracista. De uma identidade nacional ancorada na noção da não-conflitualidade étnicoracial passa-se à reivindicação de uma identidade negra, com olhos voltados para a África e para os negros da diáspora decorrente do tráfico de escravos nas Américas. A consciência e o sentimento de pertencimento à chamada negritude e a cultura negra constitui-se em um contexto transnacional de lutas e experiências da população negra, intermediado e perpassado pelo potencial político e conceitual do Atlântico Negro, que, de acordo com a conceituação de Paul Gilroy (2001), conforma também as ideias do antirracismo, agindo na rearticulação constante do sentido político da identidade e da cultura negra nos diversos contextos locais. A ligação com a África torna-se central para o movimento negro no sentido de ressignificar a identidade. A designação afro, por exemplo, tornou-se adjetivo para práticas e adscrições identitárias. Na década de 80, o discurso de ligação com a África se popularizou, trazendo consigo uma nova concepção estética e outros referenciais políticos em conjunto com práticas centradas na musicalidade, na corporalidade e na performaticidade cultural, através de um “corpo de linguagens e procedimentos próprios a partir das matrizes africanas, com a contribuição também dos referenciais históricos e o acúmulo de experiências 'afro-brasileiras'.” (PEREIRA, 2008, p. 66). A influência do Movimento Negro norte-americano, por sua vez, é fundamental. Além dos referenciais estético-culturais, com o Black is Beautiful e a música negra norte-americana, a adoção, pelo Movimento Negro brasileiro, do padrão das “relações raciais” norteamericanas como modelo, e as práticas de ação política comungam de princípios comuns. Esses princípios estão em parte ancorados em algumas experiências adotadas nos Estados Unidos, quais sejam, as políticas de ação afirmativa e o paradigma multiculturalista, mobilizado para pensar as relações étnico-raciais no Brasil. Nesse sentido, Silva considera que O estreitamento dos laços entre os vários Movimentos [...] com o Movimento Negro norte-americano foi, sem dúvida, um importante passo para a definição conceitual das bases unificadoras das lutas contra o racismo no mundo ocidental. (2010, pp. 12-13). O nível e o teor da influência política desses movimentos internacionais – sobretudo o norteamericano – para o contexto brasileiro é motivo de dissensos, pois se argumenta que a consciência racial proposta pelo Movimento Negro é estabelecida de acordo com o padrão das relações raciais norte-americanas, do one-drop rule e do multiculturalismo, deslocada das especificidades da formação histórica nacional, cujas relações sociais são em grande parte mediadas pelo hibridismo e pela classificação étnico-racial baseada no cromatismo e nos usos e “abusos” sociais da cor. Esse deslocamento de perspectiva traduzir-se-ia na racialização do “ser negro” e na polarização das identidades sociais entre brancos e negros, tal qual é pensada para o contexto dos Estados Unidos. Desta forma, o discurso identitário do Movimento Negro acabou por negar valor ao hibridismo/mestiçagem na constituição histórico-social brasileira, e, além disso, relacionar, de maneira automática e irrefletida, a sua existência e dinâmica à política do branqueamento e ao discurso da “democracia racial”. A estratégia estatística – via IBGE – perseguida pelo movimento nos anos 80 de classificar pretos e pardos sob a categoria negros pode ser entendida, nesse sentido, como um dispositivo que permite exercer o controle estatístico e o governamento da diferença, o governamento da população negra/afrodescendente no Brasil, a partir do multiculturalismo e da bipolarização das relações étnico-raciais. Essa estratégia recebe contornos oficiais e institucionais a partir da metade da década de 90, como veremos em seguida. Movimento Negro e Estado: transformações no discurso antirracista (1995-2010) Os anos 90 serão sumamente importantes para o Movimento Negro, pois é a partir desse período que o Movimento passará a estabelecer um diálogo intenso com o governo brasileiro, ou seja, os movimentos sociais antirracismo começam a se cercar do aparelho estatal e de suas instâncias institucionais e de poder. É neste contexto que o Movimento Negro tem sua agenda alçada à esfera pública, galgando espaços institucionais e granjeando apoio internacional para a luta antirracista. Em 1995, (o governo federal) em âmbito federal – cujo presidente, Fernando Henrique Cardoso, foi o primeiro na história do Brasil a reconhecer publicamente e em caráter oficial a existência das iniquidades raciais em relação aos negros no Brasil – propõe, em resposta às demandas do Movimento Negro apresentadas na Marcha Zumbi dos Palmares (1995), a criação do Grupo Interministerial para a Valorização da População Negra (GTI), no âmbito da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos (SNDH). Apesar deste momento não ser frequentemente lembrado pelos militantes, este é um ponto-chave na história do antirracismo contemporâneo, pois é a partir daí que começa a se conformar um novo contexto de relações de poder entre Estado/Movimento Negro, sendo pavimentado por via institucional o caminho para a aceitação da “raça” como conceito marcador da diferença racial e de políticas públicas de caráter afirmativo (GRIN, 2010). No âmbito da SNDH é criado, em 2000, o Comitê Nacional de preparação para a Conferência de Durban. A Conferência de Durban é significativa no sentido de que, a partir da participação da delegação brasileira na Conferência, houve a redefinição das estratégias de ação política para antirracismo e os movimentos antirracistas nacionais [passam a se articular] a partir de estratégias comuns. Convocada pela ONU em 1997, a Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Correlata, foi realizada em Durban, na África do Sul, em 2001. No país de Nelson Mandela, que havia enfrentado décadas de segregação oficial, o apartheid, a ONU, governos nacionais, ONGs e movimentos sociais de todo o planeta se reuniram para discutir as questões do racismo, da intolerância e da xenofobia na contemporaneidade. Vários são os pontos de inflexão e mudança que podem ser observados na constituição contemporânea do Movimento Negro no contexto pós-Durban. O exemplo mais sintomático nesse processo é a adoção de políticas de ações afirmativas, a partir da Conferência, como a principal bandeira do Movimento Negro. Observe-se também uma marcada diferenciação interna no Movimento Negro. Com o surgimento e a visibilização de várias ONGs antirracistas e o fortalecimento dos movimentos de mulheres negras – aliás, a presença brasileira mais importante na Conferência de Durban, cuja relatora foi a militante do Movimento Negro brasileiro, Edna Roland –, amplia-se a discussão da política da diferença no interior do próprio Movimento, que se torna mais heterogêneo (SANTOS, 2005). Além disso, se um dos principais objetivos do Movimento Negro nos anos 70 e 80 era a luta contra a discriminação racial e a valorização da cultura negra, no contexto pós-Durban enfatiza-se a promoção da igualdade racial, mudança de foco que põe em debate noções importantes, tais como universalismo, particularismo e pluralidade, além das discussões em torno das teorias da democracia. O reconhecimento do legado do diálogo entre Movimento Negro/Estado pode ser observado na avaliação de Amauri Mendes Pereira, militante histórico do Movimento Negro: Não resta dúvida, que é a partir da Conferência Mundial Contra o Racismo e da adoção de cotas e ações afirmativas – e aí o sociólogo/estudioso das relações raciais/presidente, Fernando Henrique Cardoso, cumpriu seu papel – e na eleição de Lula e no governo do Partido dos trabalhadores e de um 'arco de esquerda', que finalmente alguns segmentos mais articulados do Movimento Negro assumiram espaços mais consistentes de poder. E, nesse momento, já não é a luta contra o racismo, mas a promoção da igualdade racial! (2008, p. 120. Grifo nosso) É no contexto pós-Durban, que o processo de transnacionalização do discurso do Movimento Negro torna-se mais intenso, deslocando-se de maneira definitiva a ênfase de uma identidade nacional para uma identidade étnico-racial negra. Esse processo se dá – além, obviamente, dos desdobramentos históricos da luta antirracista no plano nacional – em função do relacionamento constante estabelecido entre o Movimento Negro brasileiro com outras organizações e movimentos sociais antirracismo internacionais, sobretudo latinoamericanos e norteamericanos, além do surgimento de redes de cooperação binacionais e transnacionais. Importa, sobretudo, considerar os processos de subjetivação “racial” em curso no Brasil, no âmbito das dinâmicas e tensões entre o nacional e o transnacional. A categoria do Atlântico Negro, nesse sentido, merece uma análise mais detida das significações que o conceito pode ter quando se pensa no quadro contemporâneo das relações étnico-raciais. A Conferência de Durban, entendida como um “contexto transnacional de ação” (COSTA, 2006), desponta como um evento paradigmático, pois seus desdobramentos – políticos, culturais, jurídicos, econômicos – no Brasil colocam em discussão, ao nível do debate público, os âmbitos do global/local, nacional/transnacional, universal/particular. Entendido dessa maneira, o processo em torno de Durban funciona como um lócus de articulação de diferenças e de negociação política e cultural. Esta série de transformações no campo político do antirracismo teve, no primeiro decênio dos anos 2000 – portanto, no contexto do governo Lula –, uma gama desdobramentos institucionais, políticos e educacionais. É nesse contexto que, paralelamente a uma maior visibilidade pública da chamada “questão racial”, se observa a institucionalização das políticas antirracistas, como as ações afirmativas nas universidades públicas e a criação da Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial (SEPPIR/2003). Esse órgão constitui-se como importante instância de poder e veículo institucional para a criação e promoção de políticas de corte racial orientadas à população negra, como, por exemplo, o Plano Nacional de Igualdade Racial (PLANAPIR). No que se refere às políticas educacionais, o movimento obteve importantes conquistas, como as “cotas” no ensino superior e, principalmente, a implementação da Lei 10.639/2003, referente à disciplina de História e Cultura Afrobrasileira. É interessante observar como essas políticas encontram respaldo e chancela da ONU, pois muitos dos conceitos e temáticas tais como Educação e Ação Afirmativa encontram-se na Declaração Final de Durban (ONU, 2002). Desdobramentos das ações do Movimento Negro Contemporâneo e Educação Como procuramos demonstrar, há nas últimas décadas no Brasil uma alteração na forma como os enunciados antirracistas vêm sendo articulados. O Movimento Negro contemporâneo passou a proferir um discurso que prega a racialização do negro brasileiro, colocando em discussão a identidade nacional pautada na não-conflitualidade e na valorização da mestiçagem. A categoria “raça”, que desde a Segunda Guerra Mundial havia sido suprimida do debate político, é ressignificada. “Desprovida” de seu caráter biológico, passa a ser compreendida como constructo social, como um conceito aglutinador do qual os movimentos sociais antirracismo lançam mão. Através dela é reivindicada uma pretensa origem comum, a africana. Por meio de um “retorno às origens”, procura-se mobilizar uma série de enunciados acerca da identidade negra. Chamamos a atenção, nesse sentido, para a ideia de origem, de ponto de partida comum, homogêneo, puro, como lastro genealógico a partir do qual o negro, no caso, o negro brasileiro, precisa se identificar. Segundo Munanga (2004, p. 14, grifo nosso), influente teórico do Movimento Negro, No que diz respeito aos movimentos negros contemporâneos, eles tentam construir uma identidade a partir das peculiaridades do seu grupo: seu passado histórico como herdeiros dos escravizados africanos, sua situação como membros de grupo estigmatizado, racializado e excluído das posições de comando na sociedade cuja construção contou com seu trabalho gratuito, como membros de grupo étnico-racial que teve sua humanidade negada e a cultura inferiorizada. Essa identidade passa por sua cor, ou seja, pela recuperação de sua negritude, física e culturalmente. É justamente essa construção identitária que reivindica uma origem comum que problematizamos. Como alerta Bauman (2003), nos processos de (re) criação e (re) atribuição de novas identidades pode ser evocado um caráter conservador (volta às raízes) e exclusivista (“eles”, coletivamente, constituindo uma ameaça para “nós” coletivamente) para que a comunidade imaginária gere a rede de dependências que a tornará real. O que está em discussão, portanto, é que ao recorrer ao passado em busca de uma essência, na tentativa de realizar um “resgate” identitário, presume-se que há uma identidade autêntica, coerente, permanente, o que, a partir de uma análise pósestruturalista, se mostra inconcebível, pois “identidade” nessa perspectiva só pode ser entendida como instável, fragmentada, inconsistente, inacabada, atrelada a negociações sociais, a jogos de poder. A identidade, nessa postura, é entendida como um ato performativo, um processo em produção. Segundo Silva (2000, p. 92), o conceito de performatividade “desloca a ênfase na identidade como descrição, como aquilo que é – uma ênfase que é, de certa forma, mantida pelo conceito de representação – para a idéia de ‘tornar-se’, para uma concepção da identidade como movimento e transformação”. Já as políticas multiculturalistas estão apoiadas na noção de identidade profunda e autêntica, anterior à política e às negociações sociais (COSTA, 2009). Feitas essas considerações, passamos a perscrutar como essas construções identitárias de cunho racialista se desdobram no contexto educacional brasileiro, analisando, para tanto, a Lei 10.639/2003, as diretrizes que a amparam e as publicações do Ministério da Educação que se propõem a orientar docentes em relação às questões étnico-raciais. Dentro do contexto do multiculturalismo, entendendo a educação como um veículo de emancipação dos sujeitos, e, como ambiente propício à promoção de políticas da diferença, o governo federal promulgou em 2003 a Lei 10.639 que institui a obrigatoriedade da disciplina de “História e Cultura Afrobrasileira e Africana” no currículo da Educação Básica brasileira. Tal fato caracteriza-se como uma grande conquista do Movimento Negro, visto que a inserção de tais temáticas nas escolas era uma reivindicação de longa data. Além disso, aponta para a educação como estratégia política na construção de uma nova narrativa identitária no Brasil. Em seguida, em 2004, são publicadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana (2004), que regulamentam a alteração da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) pela Lei 10.639/2003. Analisando o conteúdo das diretrizes, note-se que o discurso da valorização da diversidade está bastante presente, como podemos observar nos seguintes trechos: Reconhecimento implica justiça e iguais direitos sociais, civis, culturais e econômicos, bem como valorização da diversidade daquilo que distingue os negros dos outros grupos que compõem a população brasileira. (DCN, 2004, p.11, grifo nosso) Reconhecimento requer a adoção de políticas educacionais e de estratégias pedagógicas de valorização da diversidade, a fim de superar a desigualdade étnico-racial presente na educação escolar brasileira, nos diferentes níveis de ensino. (DCN, 2004, p.12, grifo nosso) É importante destacar que não se trata de mudar um foco etnocêntrico marcadamente de raiz européia por um africano, mas de ampliar o foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira. (DCN, 2004, p.17, grifo nosso). Duschatzky e Skliar (2001) problematizam a retórica da diversidade e a noção de tolerância que essa traz implicada. Para eles (2001, p. 121) no mundo pós-moderno a diversidade entende o outro “como alguém a tolerar”, constituindo, assim, uma versão discursiva sobre a alteridade. A tolerância, nessa perspectiva, fica muito próxima da indiferença. “Tolero, mas não dialogo!”. Correndo-se o risco de fixar os sujeitos em determinadas identidades, materializando “a morte de todo o diálogo e, portanto, a morte do vínculo social sempre conflitivo” (DUSCHATZKY; SKLIAR, 2001, p. 136). Para Fleury (2000, p. 3), o multiculturalismo “permite pensar alternativas para as minorias. Mas também pode justificar a fragmentação ou a criação de guetos culturais, que reproduzem desigualdades e discriminações sociais”. O entendimento dos processos de constituição de “identidades” também fica prejudicado, se no âmbito da educação trabalhar-se com a ideia de “identidades” existentes a priori e não discutir as relações de saber/poder que constituem historicamente tais construções, isto é, entende-las como processos de produção social. Nesse sentido, como diz Tomas Tadeu da Silva (2000, p. 100), “antes de tolerar, respeitar e admitir a diferença é preciso explicar como ela é ativamente produzida”. Já no livro “Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica”, publicado pelo MEC/INEP, é realizada uma discussão a respeito de ações afirmativas como estratégia política; nela Silva Júnior (2003, p. 106, grifo nosso) afirma que na esfera dos instrumentos promotores da igualdade “a norma jurídica faz mais do reprimir a discriminação; ela ocupa-se da educação para a tolerância, do condicionamento de comportamentos [...]”. A questão que se coloca aqui é a seguinte: não é essa uma estratégia de governamento da diferença? Segundo Ramos do Ó (2009, p.102), quando Foucault se referia às “tecnologias de governo destinadas a ‘conduzir a conduta’ e isso em domínios tão diferentes como a escola, o exército e o atelier [...] tinha em mente aqueles meios a que, em determinada época, autoridades de tipo diverso deitam mão para moldar, instrumentalizar e normalizar a conduta de alguém”. As tecnologias de governo vão ganhando corpo sempre a partir dessa consciência aflita que consiste em verificar que um mar de realidades lhes escapa, que existem sempre novos domínios a dever atrair a sua atenção, que a ordem e a administração não se exercem nunca capazmente. (RAMOS DO Ó, 2009, p. 104) Em função desse deslize, daquilo que foge à regra, daquilo que é necessário normatizar, que é desbloqueada a arte de governar. Dessa forma, a Lei 10.639/03, que institui a obrigatoriedade do ensino da disciplina de “História e Cultura Afrobrasileira e Africana” na Educação Básica, não poderia ser vista como uma estratégia de governamento? Além disso, ao imputar a população negra uma identidade racial, não se corre o risco de essencializá-la? Ou, anterior a essa questão, existem identidades ou deveríamos pensar em posições de sujeito? Reconhecer a diversidade e educar para a tolerância é de fato a melhor opção? Como promover um processo educacional intercultural? Como fazer com que os diferentes dialoguem e não, apenas, co-existam? Essas questões, no nosso entender, vêm ao encontro das discussões que compõem a temática: Que docência? Que educação? Para qual sociedade? balizadas pela III Jornada Acadêmica do Mestrado em Educação da UNISC, que são prementes no contexto atual da educação brasileira. Considerações finais No decorrer desse trabalho, tensionamos a postura “racialista” adotada pelo Movimento Negro contemporâneo em diferentes dimensões. Questionamos a (re) interpretação feita pelo Movimento acerca do hibridismo e da mestiçagem na História do Brasil. Aludimos a estratégia estatística reivindicada pelo Movimento, no sentido de agrupar na categoria negros indivíduos pretos e pardos, como constituinte de um dispositivo de governamento. Criticamos, a partir da perspectiva pós-estruturalista, a noção de “identidade” adotada pelo Movimento Negro, bem como o conceito de diversidade racial e seu pressuposto correlato de tolerância. Enfim, colocamos sob suspeita as políticas antirracistas que se dispõe(m) a condicionar comportamentos e nomear a alteridade, investigando a forma como essas construções identitárias se desdobram no educação, na legislação de 2003 (Lei 10.639), nas “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana” de 2004, bem como nas referências bibliográficas indicadas pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) que se referem a essa temática Cabe ressaltar, no entanto, que o exercício ao qual nos propomos nesse texto se baseou na tentativa de “pensar de outros modos”, como sugeria Foucault e que foi definido por Veiga-Neto e Lopes (2010, p. 163) como “uma prática de liberdade intelectual que, se conduzida com cuidado e seriedade, é capaz de sustentar a ação política com uma racionalidade conseqüente e de tornar mais respirável o ar que se respira”. Não se trata, portanto, de um “ir contra”; pelo contrário, acreditamos na pertinência dos movimentos sociais antirracismo, mas propomos que haja discussão e reflexão e que novas formas de ação possam ser pensadas e construídas. Referências BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2003. BRASIL. Diretrizes curriculares nacional para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Brasília: Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e Ministério da Educação, 2004. COSTA, Sérgio. Dois Atlânticos: teoria social, anti-racismo, cosmopolitismo. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006. ______. Diferença e identidade: a crítica pós-estruturalista ao multiculturalismo. IN: VIEIRA, Listz (Org). Identidade e globalização. Rio de Janeiro: Record, 2009. GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. 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