CADERNOS EAV ENCONTROS COM ARTISTAS BEATRIZ MILHAZES DANIEL SENISE EDUARDO COIMBRA ELIZABETH JOBIM VIK MUNIZ WALTERCIO CALDAS Governo do Rio de Janeiro Governador Sérgio Cabral Vice-Governador Comissão de Projetos Daniel Senise George Kornis Guilherme Bueno Luiz Fernando Pezão Coordenadora do Programa Aprofundamento 2012 Secretaria de Estado de Cultura Anna Bella Geiger Secretária de Estado COORDENADORA DO PROJETO DE PESQUISA 2012 Adriana Rattes Gloria Ferreira Subsecretária de Relações Institucionais Coordenadora do Núcleo Olga Campista Subsecretária de Ação Cultural Beatriz Caiado Subsecretário de Planejamento e Gestão Mario Cunha Superintendente de Artes Eva Doris Rosental escola de artes visuais parque lage Diretora Claudia Saldanha de Arte e Tecnologia Tina Velho Assistentes de Administração Carmen da Costa Souza Sergio Bastos Assistentes de Ensino Cristina de Pádula Lucas Leuzinger Estagiária Vanessa Rocha Assistente de Projetos Renan Lima Estagiários Vitor Zenezi Assessor Branca Zuma Vitor Coimbra Assessora editorial Assessoria de Imprensa Coordenador Administrativo Biblioteca Coordenadora de Ensino Maurício Azevedo Olga Alencar Coordenadora de Projetos Supervisão técnica das Oficinas de Imagem Gráfica Clarisse Rivera Roberto Tavares Comissão de Ensino Manutenção Joanna Fatorelli Herbert Hasselmann Tania Queiroz Glória Ferreira Luiz Ernesto Moraes Maria Tornaghi Bárbara Chataignier Gerson de Araújo Freitas Homero Gomes de Moraes Iraci Laurindo de Oliveira Associação de Amigos da Escola de Artes Visuais – AMEAV Presidente Paulo Albert Weyland Vieira 1º Vice-Presidente Márcio Botner 2º Vice-Presidente Guilherme Gonçalves Conselheiros Ernesto Neto Fábio Szwarcwald Captação e Gestão de Recursos Sandra Caleffi Auxiliar Contábil Luis Carlos Silva ASSISTENTES ADMINISTRATIVOS Guilherme Segal Hércules Souza SecretARIA Ana Carolina Santos Natália Soares Thais de Souza EAV Rua Jardim Botânico, 414 Jardim Botânico Rio de Janeiro | RJ 22461-000 Tel | Fax: 21 3257 1800 www.eavparquelage.rj.gov.br Créditos dos Cadernos Organização Joanna Fatorelli e Tania Queiroz Assistente Vanessa Rocha Projeto Gráfico, Tratamento de Imagem e Produção Gráfica Dupla Design IMpressão ENCONTROS COM ARTISTAS Ultraset agradecimentos especiais Carlos Minc, Cristina Bahiense, Guilherme Gonçalves, Henrique de Aragão, Iole de Freitas, José Luis Alqueres, Letícia dell’Orto, Leticia Verona, Marcos Arzua Barbosa, Tanit Galdeano DANIEL SENISE Fotografias Ambroise Tézenas, Ana Stewart, André Morin, Cesar Barreto, Eduardo Mattos, Fausto Fleury, Felipe Felizardo, Gabriela Toledo, João Mussolin, Sonia Parma, Lucia Helena Zaremba, Marco Terranova, Pat Kilgore, Pedro Oswaldo, Rubber Seabra, Sérgio Araújo, Vicente de Mello, Wilton Montenegro CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Revisão de texto Itamar Rigueira, Lilian Zaremba, Janaisa Viscardi, Julia Scamparini, Paulo Serran, Sophie Bernard, Vanessa Rocha, Rachel Valença Transcrição Louise D.D. Gravação Bruno Marcus - TOMBA Records PROJETO DE CAPTAÇÃO Coordenação: Lucas Leuzinger Vídeo: Simone Michelin Com participação de: Aline Besouro e Lucas Ferraço Gravura: Tina Velho Multidão | Catarse: Pedro Struchiner e Rodrigo Maia Divulgação: Monocromo BEATRIZ MILHAZES C129 Cadernos EAV 2010 : encontros com artistas / organização Escola de Artes Visuais do Parque Lage ; Beatriz Milhazes ... [et al.]. - [organização Joanna Fatorelli e Tania Queiroz]. - Rio de Janeiro : EAV, 2012. il. ISBN 978-85-64192-07-2 1. Arte brasileira - Século XXI. 2. Arte contemporânea - Brasil. 3. Instalações (Arte). 4. Videoarte. 5. Artistas - Brasil. I. Milhazes, Beatriz, 1960-. II. Fatorelli, Joanna. III. Queiroz, Tania. IV. Escola de Artes Visuais do Parque Lage. 12-6799. CDD: 709.81 CDU: 7.038.6(81) 18.09.12 24.09.12 038949 EDUARDO COIMBRA ELIZABETH JOBIM VIK MUNIZ WALTERCIO CALDAS AP RESENTAÇÃO A Escola de Artes Visuais do Parque Lage, vinculada à Secretaria de Estado de Cultura, lança os dois primeiros volumes da série Cadernos EAV: Encontros com Artistas, visando registrar e preservar o resultado dos encontros que vem promovendo, desde 2009, entre artistas consagrados e os alunos do seu Programa Fundamentação. Gratuito e semestral, o Programa é etapa inicial de formação do jovem artista, curador, crítico ou mesmo daqueles que pretendem trabalhar no campo das artes, combinando aulas de prática artística a cursos de história da arte. Uma vez por mês, nos finais de semana, a Escola promove os Encontros, exclusivos para os alunos do Programa. O resultado destes encontros vem gerando um precioso acervo, único em seu conteúdo e inovador em sua forma, que leva diretamente a palavra do artista ao público de jovens estudantes, criando um diálogo que enriquece todos os que dele participam. Ao reunir essas conversas nos Cadernos EAV, optou-se por oferecer uma leitura ágil e dinâmica, capaz de levar o leitor a partilhar da qualidade viva e espontânea que marcou aqueles momentos de troca e de experiência. Organizados em volumes anuais, os Cadernos EAV tiveram o apoio de diversos colaboradores através do crowd funding viabilizado pela plataforma virtual Multidão | Catarse. Essa nova forma de captação e a ideia de disponibilizar o conteúdo desses encontros se alinham ao perfil da Escola de Artes Visuais do Parque Lage – democrática, livre e transdisciplinar, estabelecendo um importante elo com a sociedade civil e possibilitando um espaço rico em trocas e diálogos. Agradecemos a valiosa colaboração de todos os artistas e professores que participaram dos Encontros, debatendo sobre a sua obra e seus processos de criação. CLAUDIA SALDANHA - Diretora da EAV Parque Lage BEAT RI Z M ILHA ZE S DAN IEL SENISE EDUARDO COIMBR A EL IZ ABETH J OBIM V IK M UNIZ WALT ERCIO CA LDA S 10 70 122 164 200 316 10 BEATRIZ MILHA Z E S Texto extraído de conversa entre o estilista Christian Lacroix e a artista Beatriz Milhazes, realizada em Paris em setembro de 2003. Conteúdo gentilmente cedido pela artista. Christian Lacroix: Quando olho teu trabalho, me pergunto por onde você começa. Imagino que você faça um primeiro desenho preparatório, de formato menor, antes de mergulhar nele. Penso também na questão do acaso: teu processo de preparação é fundamentado, planificado, organizado, ou você deixa lugar para a inspiração de último minuto? Você escolhe antes as dimensões, ou começa para depois deixar o motivo aumentar? Meu trabalho passa por várias etapas. Pinto diretamente na tela, sem preparação. Posso começar de maneiras diferentes. Em geral, escolho uma dimensão e depois espalho uma cor muito diluída sobre a tela, mas posso também começar por um motivo muito pequeno ou pequenos pontos, que desenvolvo. Maresias, 2002/2003 Acrílica sobre tela 300 x 267 cm Foto: Fausto Fleury Christian Lacroix: 12 13 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES Como células que se separam e crescem. Exatamente. Tenho em mente uma imagem borrada que me guia. Comecei uma série na qual eu queria incluir um quadro branco, algo que nunca consegui fazer. No entanto, continuei com a ideia até chegar a uma atmosfera branca. Sirvo-me também de imagens mais comuns, uma paisagem ou uma natureza morta, ou até mesmo mais óbvias, como uma árvore. Christian Lacroix: Há frequentemente uma linha que evoca o mar ou o horizonte no meio do quadro e que, quando a descobrimos, parece uma explosão – mesmo que seja uma explosão muito pensada. Tenho a impressão de que as horizontais te ajudam bastante a fixar tudo. Já falamos do primeiro motivo que cresce cada vez mais para, em seguida, invadir o espaço. Mas você disse que escolhe as dimensões antes, portanto, define esse espaço. Normalmente, sim. Tenho uma ideia, como se fosse uma paisagem, mas só decido onde colocar a linha do horizonte depois. Sirvo-me de coisas bem simples e, mesmo que faça parte de um processo, o acaso entra também em jogo, mas todos os elementos presentes na tela têm uma lógica. Posso trabalhar durante uma semana, duas semanas, e até mais, para tomar uma decisão. Às vezes, demoro um mês para terminar um quadro, e já aconteceu de eu ficar um ano sobre o mesmo trabalho. Christian Lacroix: Você trabalha vários quadros ao mesmo tempo? Sim, porque as minhas telas são compostas por uma infinidade de elementos que me tomam um tempo louco de reflexão. A técnica também absorve uma grande parte do meu tempo, mas não se trata só de técnica. Começo vários quadros ao mesmo tempo porque preciso manter um diálogo com cada um, escutá-los, olhar para eles com recuo. Mas às vezes não funciona. Muitas vezes, jogo tudo fora e recomeço. Christian Lacroix: Essa é uma pergunta que eu queria te fazer. Acontece muito de você ter que recomeçar, voltar para os quadros? Ou acrescentar novas colagens? Há muitos estratos, como nas escavações arqueológicas? A técnica que utilizo em pintura se apoia no princípio da colagem. Pinto motivos sobre uma folha de plástico e colo a imagem pronta na tela. Em seguida tiro o plástico, como um decalque. Minha pintura é 14 15 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES feita do ajuste desses pequenos pedaços que pintei separadamente. Há, portanto, uma infinidade de camadas. Além do mais, uso as mesmas folhas de plástico há uns dez anos. Essas folhas são impregnadas de memória, e seu desgaste pode provocar irregularidades. esconder o primeiro. Mas nem sempre funciona, acontecem muitos acidentes. Contudo, o plástico é transparente e posso ver exatamente onde vou colocá-lo. Isso me ajuda bastante. Você nunca teve vontade de sair do quadro e pintar diretamente na parede? Teu trabalho é tão generoso que parece que a pintura poderia pular para a parede e que as células poderiam invadir as janelas, as luzes, ou brincar com a transparência. O wallpainting nunca te atraiu? Christian Lacroix: Christian Lacroix: A espessura te interessa? Sim, me interessa, mas prefiro evitá-la. Gosto muito da pintura em geral, mas não ao ponto de deixar aparecer pinceladas. Se você passa o dedo sobre uma das minhas telas, vê que é completamente plana. Gosto dessa relação com a pintura homogênea. Dá para ver o traço da mão, mas não a espessura da tinta. Toda a tinta pegou a espessura do plástico. O tocar é macio. Comecei também a brincar cada vez mais com os brilhos e os contrastes e a trabalhar mais as superfícies opacas e foscas, o que me permite obter texturas diferentes. Christian Lacroix: Você pode tirar um elemento e colocá-lo num outro lugar ou, uma vez colado, é obrigada a trabalhar por cima dele? Não posso tirar nada. Uma vez que o elemento é colado, se eu não gostar, a única solução é colar outro elemento por cima para Eu nunca pensei nisso. Pessoalmente, prefiro os espaços brancos, lisos, quadrados. É claro que consigo me imaginar trabalhando um dia com o tridimensional. Mas, para mim, uma forma recortada é estranha, não pertence realmente à composição. Creio que perdemos profundidade com o recorte. Por outro lado, me parece mais difícil e interessante resolver certas questões e utilizar essa atmosfera com a tela como suporte. O uso de elementos indissociavelmente ligados às artes decorativas ou à arte popular introduziu uma polêmica entre os artistas. Se eu fosse para o espaço arquitetural, seria obrigada a inverter os conceitos. Christian Lacroix: Você brinca muito com as transparências? 16 17 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES Sim, uso cores transparentes, sobretudo nas minhas estampas. Elas me ajudam a dar mais qualidade, mistério e vida às cores. Christian Lacroix: Você se considera pintora, gosta de pintura, reivindica a pintura, e por isso fica dentro da sua área, mas será que, se trabalhasse diretamente sobre a parede, você teria a impressão de não estar mais fazendo pintura? É possível. Para mim, a pintura é feita sobre uma tela e um chassi, limitados por um espaço quadrado ou retangular. Quando saímos dessa estrutura, as questões da pintura abstrata ou da arte decorativa são então transpostas para o espaço arquitetural. Uma tela redonda desviaria o olhar do espectador em direção a essa forma para fazê-lo esquecer dos acontecimentos internos do quadro. Mas, além da pintura, me interesso por cenários. Esta relação com o decorativo, que você assume muito bem, é uma questão muito importante no teu trabalho. Estamos longe do decorativo, mas você o explora até torná-lo abstrato, conceitual.Não é mínimo, mas acho que por ser tão máximo, torna-se mínimo. Isso também me faz pensar em como os universos são conectados, Christian Lacroix: assim como os planetas, entre si. Você mencionou a ideia de população, e tive a impressão de que cada desenho era habitado por uma vida própria, uma história própria, conectada ao planeta vizinho. Há também a história que você se conta. Mesmo que seja um pouco vaga, ela te guia. Não está decidida na tua cabeça, mas você avança.Mas será que a história tem tanta importância? Não é uma história literária. Se quiséssemos fazer uma correspondência com teu trabalho, você parece mais próxima à música que à literatura. Ou é o contrário? Tenho problemas com a literatura. Mesmo quando a literatura é muito abstrata, ela define coisas antes; é próxima do real. Penso que a pintura e a arte em geral são mais livres. É uma tendência do ser humano querer explicar tudo. Todos procuram estabelecer conexões quando não necessariamente existem. Tenho histórias na minha cabeça, e creio que elas são os sentimentos, os sons, os odores que me guiam. No que me diz respeito, isso passa pelos meus quadros e os títulos que lhes dou, mas o título vem depois. Christian Lacroix: Como uma última palavra, o ponto final... Exatamente. É outro motivo, outro trabalho. 18 19 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES “Faço esforços para evitar as séries. Quando se trabalha em diferentes telas ao mesmo tempo, é mais fácil recorrer à mesma paleta. Mas não é o que procuro. Preciso passar de uma atmosfera para outra, de uma paleta para outra, e sobretudo trocar constantemente os dados do problema.” A tua pintura não é conectada diretamente à tradição musical brasileira, a música é só algo que te faz avançar, um pouco como um trampolim, um impulso. Lembra-me a Pítia de Delfos, que tomava uma substância que a fazia viajar para outras visões e outros universos. Christian Lacroix: Para este quadro, intitulado Urubu1, comecei a pensar na música, nas pautas, como algo organizado. Sou profundamente ligada a alguns movimentos musicais brasileiros, como a Bossa Nova e a Tropicália. Mas, nessa tela, foi algo que me veio espontaneamente à mente. Comecei a trabalhar com listras um ou dois anos atrás, porque os quadrados e as linhas retas me traziam um problema sério. Essas formas têm um aspecto acabado, enquanto o círculo nunca para. Christian Lacroix: Você não consegue desviar, no canto. Exatamente. É uma questão de ótica. Sinto vontade de elementos visuais intensos. Não sinto vontade de dar um centro ao espectador. Comecei a introduzir listras porque oferecem um esquema, podem criar um efeito ótico que eu só obtinha com círculos. É uma coisa no limite do ridículo, mas isso surgiu depois de dez anos de trabalho... As listras me permitem começar e parar. Quando você 20 21 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES desenha uma linha reta, tem um momento em que o gesto para, mas a reta nunca para de fato. O quadrado produz um pouco esse efeito, mas ele delimita uma superfície. bastante disciplinada. Passo aproximadamente sete horas por dia nesse lugar, porque preciso estar com minha pintura. Acontece às vezes de eu passar um dia sem fazer nada, mas é no ateliê que penso. Não sei resolver um problema de pintura andando na praia. No entanto, neste aqui, Maresias2, o olhar é atraído para este ponto. O centro é muito raro no teu trabalho. Christian Lacroix: É verdade, tem um núcleo e um movimento no centro. Mas a intensidade é tão forte que tem uma hora em que você perde o centro. Christian Lacroix: É também verdade que nos afogamos Christian Lacroix: Quando pinta, você se sente mais calma fisicamente? Ou você tem momentos de lentidão e sensualidade alternando com momentos mais energéticos, quase eróticos, como na música brasileira? Você fica focada ou tem medo, às vezes, de que esse processo tão longo seja mais lento que teu pensamento? Não existem coisas que poderiam escapar no meio do caminho? nesse centro. E dou um corte com este quadrado, que é mais definido. Todos nós temos dias de dúvida e de angústia. Você trabalha tão bem, melhor, ou menos bem que o normal nessas condições? Tem dias em que você não consegue trabalhar? Christian Lacroix: Meu humor tem relativamente pouca influência sobre o processo do meu trabalho. No Rio, onde tenho meu ateliê de pintura, sou Tenho sempre medo da velocidade dos meus pensamentos e das imagens que me vêm à mente. Contudo, esses pensamentos e imagens são freados pela lentidão do meu processo e da técnica que utilizo. Quando trabalho, paro em algum ponto e me pergunto: o que acontece agora com estes quatro quadros pendurados na parede branca? Várias ideias surgem. Concentro-me sobre o quadro que me parece mais avançado, que apresenta um caminho mais claro. Christian Lacroix: Isso significa que você trabalha em série? Ou prefere, ao contrário, evitar o princípio das séries? 22 23 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES Faço esforços para evitar as séries. Quando se trabalha em diferentes telas ao mesmo tempo, é mais fácil recorrer à mesma paleta. Mas não é o que procuro. Preciso passar de uma atmosfera para outra, de uma paleta para outra, e sobretudo trocar constantemente os dados do problema. Quando faço uma exposição individual, gosto de mostrar obras que põem em evidência essas variantes. Christian Lacroix: Você já ficou tentada pelo computador, pela paleta gráfica? O processo que você está descrevendo agora é muito parecido com o trabalho no computador. Não uso o computador para meus quadros porque a tela é muito pequena. Tenho uma necessidade compulsiva de contato físico com as telas. Meu ateliê é pequeno, e é o mesmo desde que comecei a pintar. Comprei a outra parte da casa, mas descobri depois de alguns anos que prefiro trabalhar num espaço reduzido. Christian Lacroix: Se não olharmos de muito perto este material que é completamente físico, ele faz pensar no computador. Acho interessante o fato de realizar com a mão algo tão contemporâneo. E é aí que vamos talvez começar a falar da tua relação com a tradição e o país, que não tem nada a ver com um museu de arte e tradições populares. Ao mesmo tempo, é evidente que não é possível pensar que você é escandinava. Não digo que lembramos imediatamente do Brasil, mas percebemos muito rapidamente a latinidade, o Mediterrâneo, a Espanha, algo que compartilhamos e também que avança e está na “modernidade”. No teu trabalho, há muitos elementos que vêm das igrejas, dos trajes, do têxtil. De onde vem tua relação com isso? É algo que remete à infância, às afinidades com esse país que herdou tradições portuguesas, mas que é mais jovem? É também um país culturalmente bem misturado. Eu conscientemente utilizei esse aspecto desde o início. Essa relação com o passado me interessa, mas é complicada, porque a pintura vem da Europa, depois dos Estados Unidos, e em seguida passa pelo Brasil com o modernismo brasileiro dos anos 30. Como fazer a ligação entre essa história e minha cultura, as coisas que vejo, que vêm da minha cidade, dos meus interesses? As artes decorativas, por exemplo, me fascinam. No começo, usava tecidos, fazia colagens. Meu trabalho era mais geométrico. Ganhei liberdade com as formas no início nos anos 90. Foi nessa época que fiz a primeira exposição que realmente contou. Tinha acabado de descobrir minha técnica, podia fazer meus desenhos. Voltei a usar elementos industriais nas minhas colagens recentemente. 24 25 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES Ao mesmo tempo, há uma independência incrível em você. Eu não diria que você está indo contra a corrente – não vamos começar a discussão da pintura que está viva ou morta, mas sempre presente – no entanto, você parece se encaixar no que vivemos aqui nessa época, esse fenômeno ligado, não à movida espanhola, mas à necessidade de sensualidade depois de anos de minimalismo, de nada, de conceptualismo, de branco sobre branco e preto sobre preto. Você deve ter tido dificuldades em relação a isso. Christian Lacroix: Claro, tive problemas para que aceitassem meu trabalho. Sinto-me uma artista geométrica, mas não posso colocar tudo em um quadrado ou um círculo. Imagino que as pessoas que estudavam com você na escola eram muito conectadas com o que se fazia em Nova York, enquanto você tinha seu próprio caminho com os têxteis que cortava. Você devia ser a única. Christian Lacroix: Estava totalmente sozinha no Brasil. A arte contemporânea brasileira é cativante, e há alguns artistas muito bons reconhecidos internacionalmente, mas não são encontrados na pintura. Eles fazem objetos, arte conceitual. Depois de um tempo, uma porta O Buda, 2000 Acrílica sobre tela 191 x 256,5 cm Foto: Ambroise Tézenas 26 27 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES se abriu nos Estados Unidos. As pessoas ficaram atraídas por esse estilo, percebido pela crítica americana como uma pintura abstrata que trazia coisas novas. importante. Tem também os colecionadores, mas é um grupo à parte. Pagar 40.000 dólares por uma obra nos Estados Unidos e na Europa parece normal, mas no Brasil não é comum. Existe um complexo em relação ao uso de referências populares? Christian Lacroix: Totalmente, sobretudo no meu meio. Essas referências estão ligadas às camadas sociais mais pobres do meu país, não dizem respeito aos intelectuais e às pessoas das artes. Elas têm uma conotação pejorativa, mas sempre as usei. Porém, acho que essa relação está mudando um pouco hoje em dia. As elites culturais começaram a dar importância ao fato de ser brasileiro, de ter uma arte brasileira, e essas referências populares são cada vez mais aceitas. De maneira mais geral, as artes plásticas são muito elitistas. Não é realmente o caso na Europa e nos Estados Unidos, onde as pessoas vão ao museu, visitam instituições e galerias. É diferente no Brasil. Temos museus e instituições, mas há pouco tempo, desde os anos 80. Foi minha geração que estimulou as pessoas a frequentar esses lugares. O contato com o público nos era indispensável. Quando eu dava aulas, meus alunos me diziam que não podiam entrar nas galerias, porque eram muito fechadas. Agora, o público é mais Não tenho a impressão de que você quer afirmar tuas raízes, mas simplesmente que esses motivos falam com você. Fazem parte de você, da tua tradição, da tua família, da atmosfera na qual cresceu, sem tentar politizar ou procurar uma alternativa. Mesmo que haja um pouco de alterglobalização na tua pintura, um lado ligeiramente à contracorrente das regras estabelecidas, tanto no mercado das artes, na política, na economia, como na sociedade regida pelos Estados Unidos. Teu trabalho nos obriga a tomar distância em relação a esse contexto dominante. A noção de “exotismo” significa algo pra você? Christian Lacroix: Se você está pensando nos clichês do exotismo, obviamente não estou de acordo. Mas a Tropicália, que já mencionei, me atrai. No catálogo intitulado Mares do Sul3, o texto de Adriano Pedrosa faz um paralelo com Gauguin e a ideia de que devemos ir aos trópicos para reencontrar uma espécie de paraíso perdido. É muito pertinente. Christian Lacroix: 28 29 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES A imagem que me vem imediatamente à mente quando penso nos trópicos, no ser tropical, é a da beleza, da sensualidade e do primitivismo. É uma visão que me encanta, de pura fantasia, de sonho, de desejo do prazer desconhecido. Gauguin fez uma viagem à procura do “paraíso perdido” e introduziu esses elementos na sua pintura. O projeto modernista brasileiro fez o contrário: se alimentou da arte europeia para espalhá-la nos trópicos. A beleza me cativa, mas acho que, mesmo que meu trabalho possa ser bonito, ele representa um mundo claustrofóbico. o fôlego. O labirinto é aquele que você descreve: um passeio por um jardim do século XVIII, que pode levar à claustrofobia ou não. Não diria que é bonito, é inquieto. Não falaria de angústia, mas de um lado labiríntico, de uma busca orgânica: como se você caminhasse num corpo ou num jardim em forma de labirinto no qual você procuraria o Minotauro seguindo o fio de Ariadne. As pautas talvez sejam o fio vermelho que impede que você se perca. Existem impressões em que, pessoalmente, me reconheci nos meus momentos de melancolia, quando sinto um pouco de mal-estar. Não diria que é bonito... Podemos chegar até a ideia de que ele absorve, que nos devora. Você também se alimenta de coisas, e depois fagocita outras. O que me impressiona é essa força cinética. É nessa força centrífuga que você encontra o equilíbrio dessa explosão/impulsão... Quando estamos em frente a uma de tuas telas, temos uma sensação de explosão e de unidade ao mesmo tempo. Tem algo que segura esse big bang no lugar, que impede que seja completamente desordenado, e que torna finalmente todo o teu repertório imperceptível, não identificável, mas coerente. É um todo, uma unidade. Não digo que há uma serenidade, isso depende do quadro. Entretanto, não se pode afirmar que se trata de uma flor com uma pérola e um motivo têxtil de 1960. Nunca. No final, temos uma impressão única. Você procura contar a tua história por inteiro, ou quer que o espectador leia algo específico? Entendo perfeitamente essa sensação de claustrofobia e de labirinto. A claustrofobia vem de um excesso de imagens justapostas, de contrastes simultâneos de cores intensas que podem fazer perder Existem pelo menos dois tipos de espectadores: os amadores e o meio especializado, composto pelos críticos de arte e os artistas. Tenho a sorte de conhecer os especialistas que vêm ver meu Christian Lacroix: Christian Lacroix: 30 31 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES trabalho no ateliê. Paulo Herkenhoff, um crítico de arte, foi e ainda é uma fonte constante de conselhos. Tenho amigos artistas com quem converso também. As críticas americanas e europeias publicadas na imprensa especializada sobre uma exposição, ou meu trabalho de maneira geral, são preciosas para mim. Os textos tomam frequentemente uma distância em relação à obra e oferecem leituras inesperadas. A opinião do público amador surge de maneira direta e espontânea, o que me fascina constantemente. Às vezes, levanta dúvidas. As crianças têm também uma relação especial com minha pintura, identificam-se facilmente e as suas reações são expressas sem filtro. De fato, preciso de contato, de trocas. Gosto imensamente da reação espontânea do público. Em Veneza4, as pessoas vinham à minha sala tirar fotos para levar de lembrança. Foi surpreendente, principalmente quando sabemos que as artes plásticas são dirigidas a um público especializado. Christian Lacroix: E quando a crítica é ruim, o que você sente? As críticas ruins, se honestas, são geralmente justificadas e desempenham um papel positivo. É sempre irritante ler uma crítica ruim, mas pode trazer algo. Quando alguém tentava convencer Maria Callas a voltar a fazer concertos, ela dizia que, mesmo que latisse, lotaria a sala. Mas ela recusou porque sabia que não tinha mais voz. Então entendo que você precisa expor teu trabalho, confrontar, falar, escutar... Falando em Veneza, como se faz a escolha do artista que representa o Brasil? Christian Lacroix: É o curador escolhido pela Fundação Bienal de São Paulo que trata da seleção brasileira para a Bienal de Veneza. Em 2003, o curador era Alfons Hug. Você acha que foi escolhida em função do tema Sonhos e Conflitos: a ditadura do espectador? Christian Lacroix: Não sei, mas a relação entre o sonho e o conflito me convém perfeitamente. Você só apresentou obras recentes em Veneza. Foram feitas especialmente para a ocasião? Christian Lacroix: Christian Lacroix: Fora uma obra de 2000 , as outras são mais recentes, mas já fazem 32 33 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES parte de coleções. Fiz também três quadros6 especialmente para a Bienal. Criei uma ligação entre eles, mas cada um tem uma história bem diferente. Com certeza você já conhecia o espaço do pavilhão brasileiro, mas quando te disseram que você ia representar o Brasil com a fotógrafa Rosângela Rennó, não teve vontade de fazer um trabalho particular em relação à luz, às paredes, ao volume? Christian Lacroix: Em Veneza, o pavilhão é modernista. Sua iluminação natural e a circulação fluida entre os espaços, entre o interior e o exterior, são perfeitas para expor meu trabalho. Gosto muito de mostrar obras que fazem parte de coleções. Minha produção não é muito importante: de dez a doze telas por ano. Quando exponho uma tela e ela integra uma coleção logo em seguida, ninguém mais a vê. Quando participo de uma exposição organizada por um museu, uma instituição ou uma bienal, é a oportunidade de mostrá-la de novo. Obviamente não é sempre fácil pedir as obras emprestadas, porque muitas vezes estão espalhadas pelo mundo. Em Veneza não há ruptura, mas, ao mesmo tempo, é a diferença que faz a história, entre coerência e incoerência. Falando nisso, teu repertório não é repetitivo porque é muito rico, mas ele se renova constantemente? Uso sempre os mesmos elementos, mas acrescento outros o tempo inteiro. Christian Lacroix: Você faz coleções de pérolas, de margaridas...? Sim. [Risos] Como os moldes que servem para fabricar roupas, tenho um repertório de motivos isolados que repito, como as rosetas. Posso usar um motivo hoje e só vir a reusá-lo daqui a cinco anos. Posso também reutilizar um desenho mudando sua cor. Depende da composição. Crio novos motivos o tempo todo, mas gosto de desenvolver os ricos e incluí-los em novas composições. Outros, mais pobres, são usados em algum momento, e depois abandonados. Estes moldes só servem para uma parte da composição. São criados somente porque você precisa daquela forma específica naquele exato lugar? Christian Lacroix: Christian Lacroix: Exatamente. 34 35 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES “Muitas vezes dizem que sou corajosa de fazer o que faço. Penso exatamente o contrário, faço isso porque tenho medo.” Christian Lacroix: O novo motivo pertence então a uma nova família? As rosetas e os buquês tornaram-se uma família. Christian Lacroix: Existe um lado lúdico no teu trabalho, com a ideia da família que vem tirar fotos no teu pavilhão de Veneza e, ao mesmo tempo, é fácil imaginar tuas telas na casa das pessoas. Penso nesse espaço, nas casas tradicionais do Japão, onde se mostra o que se tem de mais bonito. Pode ser uma cerâmica, uma flor, um quadro ou uma estampa... Destacadas dessa forma, essas coisas são um convite à meditação. Teu trabalho é muito sólido. Consegue resistir a esse tipo de meditação diária, porque contém muitos estratos. Desperta um passeio em si mesmo e pelo universo. Mais cedo, estávamos falando em cosmos, planetas e essa história de labirinto interno do qual nunca saímos. É importante percorrê-lo o tempo todo. As primeiras vezes que vi teus trabalhos, eles me evocaram a ideia de uma planta carnívora. Você passa por eles e se sente aspirado, hipnotizado. Você é obrigado a olhar e, quanto mais você olha, mais gruda nele, mais você descobre pistas e mais essas pistas te absorvem e te fazem ricochetear para outros signos. Estamos no âmbito da arte e não no decorativo. 36 37 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES Se tem algo de que gosto nas artes decorativas é sua maneira de ecoar nas atividades humanas. Pode-se escrever a história da humanidade através das artes decorativas. Todos nós precisamos dessa forma de expressão. Poderíamos obviamente viver num quadrado branco, mas seria difícil sem essa sensibilidade. Acho que meu interesse pelas artes começou com esta observação. O que existe atrás da beleza? E por que precisamos fazer isso? Antes do motivo em si, começa pela cor, o quase desejo de comê-la, de ter uma relação física com ela. Christian Lacroix: A cor é o centro do meu trabalho. É por ela que começo e acabo uma tela. Aliás, foi a primeira coisa que me atraiu no teu trabalho. A primeira vez que vi fotos de um dos teus desfiles, tive um ataque de vertigem! É como se um quadro tivesse ganhado um corpo tridimensional. A relação tão complexa e detalhada entre as cores, as surpresas exuberantes que surgiam de um lugar específico da roupa, uma rosa dourada com um contorno verde e pequenos apliques cor de berinjela, tudo isso colocado em cima de uma renda off-white! Ainda não falei do meu trabalho, mas acho que está em constante contradição: é o que me faz ficar em pé, como o funâmbulo no seu fio. É algo entre o Christian Lacroix: high and low, não para ir em direção ao zen, mas em direção à meditação e ao universo. Este é um aspecto importante do teu trabalho, há sempre os dois extremos: a Espanha e o vodu, os católicos e os pagãos. Fui criado na religião católica, uma religião estranha. No sul da França, as igrejas foram construídas sobre antigos templos dedicados a Vênus. Ainda existe algo muito sensual nelas. Mas não acredito que possa haver espiritualidade sem sensualidade. Preciso apreender a vida através do toque, preciso respirar, falo muito em cheiros. Quando era criança, na escola maternal, eu levava os potes de tinta à boca. Eu tinha vontade de amarelo, de vermelho, eu queria me recarregar com elas, da forma como imagino um caçador pré-histórico se abastecendo da força do animal que matava e comia. Como não sou muito violento, preferia engolir tinta. [Risos] É algo de que gosto muito em você, este trabalho transatlântico e perpétuo que fala da tua família, do teu povo, da tua tradição. Talvez seja por isso que a gente se reconhece nos nossos trabalhos; eu, com minha arte decorativa ou aplicada, não sei muito bem o que faço. Acho que provocamos este mesmo processo de encontros entre coisas que não têm nada a ver entre elas. Tomar algo muito bruto e muito barroco, muito primitivo, primário, repugnante, sujo, humano e esfregá-lo com ouro, 38 39 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES pedras preciosas, coisas que brilham. É verdade que isso diz algo para as crianças, e não se trata somente de um trabalho de impulsão. Portugal, que é um país mais calmo. Trabalhava então com mais renda e crochê, e nas referências aos trajes. Esse interesse depois desapareceu, e evolui para a abstração. Todas essas contradições são fascinantes. Funcionam como motor, assim como o medo, aliás. Tenho medo de muitas coisas. O carnaval, a praia, a floresta, as artes decorativas, o kitsch, as igrejas e até as cores me dão medo e também me fascinam. Muitas vezes dizem que sou corajosa de fazer o que faço. Penso exatamente o contrário, faço isso porque tenho medo. Mantemos um cordão de segurança em volta da gente. [Risos] Medo de afundar nas coisas, de ser aspirado. É por isso que não olho para o vodu, nem para o circo ou mesmo para a moda. [Risos] É algo que me dá muito medo. É um universo no qual não me reconheço. Mas, me diz uma coisa, você não tem vontade de alcançar mais simplicidade? Tenho a sensação de que você se livra cada vez mais de coisas discerníveis para avançar em direção à abstração. Christian Lacroix: É verdade. No meio dos anos 90 mergulhei no México, no sangue, nas igrejas barrocas, nas cores dos trajes, a Espanha mais que Eu tive a sensação de que você integrava babados que você tinha bordado. Você me explicou que começou pelo têxtil. Hoje você tem vontade de voltar ao tecido através da fita. Christian Lacroix: É um retorno bem lento. No início, eu fazia colagens com tecidos. Depois, desenhei em cima de tecidos já estampados. Estava muito interessada nos bordados e nos trabalhos feitos à mão em geral. Depois, em 1994, preparei uma exposição7 para o México e, quando pendurei os quadros, tive a sensação de ter exagerado. Eu me dei conta de repente de um contraste excessivo, e fui para a arte abstrata, a Op art, a geometria... Passei por isso também, em 2000. Fiz uma coleção na qual não havia tecidos estampados, só linhas muito geométricas. As clientes fizeram encomendas das coleções anteriores, porque nessa não havia renda, nem bordados, mas sim plástico. Eu queria ver onde eu estava. Funcionou muito bem com a imprensa e os profissionais, Christian Lacroix: 40 41 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES mas muitas pessoas não entenderam. Isso me levou a tomar um novo rumo, e eu não teria sido chamado para trabalhar para o TGV ou Pucci se tivesse ficado no kitsch que, aliás, não é um termo pejorativo para mim. Meu pai me dizia, quando eu era criança: “procure pelo gosto antes de dizer que não gosta”. E faço tudo assim. Isso me lembra uma frase de Théophile Gautier, que dizia que uma coisa é interessante quando se começa a olhar para ela por muito tempo. Eu queria te perguntar de onde vêm os tecidos que você usa. Christian Lacroix: Depende das coleções. Procuro descobrir, identificar meus desejos, mesmo os mais difusos, e extrair deles um tema, uma direção, uma tendência. Os materiais são meu ponto de partida, que é determinante e muito ligado à identidade da coleção. Hoje em dia é preciso ser reconhecível no primeiro olhar, mesmo que isso possa parecer redutor. É cada vez mais difícil existir no meio de tantas outras Maisons. Na realidade, cada vez menos Maisons fazem coleções de alta costura. E cada vez mais recém-chegados ou talentos emergentes aparecem no calendário do prêt-à-porter. Mais uma razão para ser radical e visceralmente você mesmo. Nos anos 1995-2000, a tendência era para o minimalismo zen, less is more. Para mim, more is never enough. Continuei então no maximalismo com a convicção de que aqueles que gostavam do meu trabalho desde o início continuariam a gostar dele, do sul do Loire até a Flórida. Mas, voltando aos tecidos, para garantir a exclusividade indispensável à alta costura, onde cada modelo deve ser único, prefiro mandar fabricar tudo, exceto os lisos: as sedas são pintadas à mão, os tweeds são fabricados em teares manuais por artesãos de todas as idades e horizontes, fiéis ou novos a cada coleção. Entregolhes um dossiê com os temas dos quais falei antes para que, como no tênis ou no pingue-pongue, eles me mandem de volta a sua interpretação, que pode me fazer bifurcar para uma nova direção. Esses temas são, no início, meus “bancos de dados”, porque todo dia remexo em dezenas de fotos, desenhos, quadros, como um vampiro. Alimento-me das imagens dos outros. Procuro fazer books de colagens. Um dia, Patrick Mauriès, um amigo editor, viu esses scrapbooks e me convenceu a publicar parte deles. Então, naquela coleção (verão 94), mantive um diário muito sincero, desde a primeira inspiração até o desfile finalizado. Meu ponto de partida foi uma gravura que tenho em casa, que representa 42 43 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES todos os monumentos de Arles no início do século XIX. Adoro essas épocas transitórias, híbridas, quando se sente uma gestação em direção a algo ainda indefinido. Na moda, isso se traduzia por uma cintura alta, hesitante, entre o quadril e os seios, dando ao traje “arlesiano” da gravura uma proporção pouco conhecida. E a cada coleção preciso revisitar essa visão da “arlesiana” que, por essência, continua não se mostrando. Sempre vi nisso uma metáfora bonita da minha profissão. Também sempre senti a necessidade de confrontar esse traje a outros períodos ou países, como quando se esfrega duas pedras para fazer fogo. E, para essa coleção, eram os anos de guerra e da Ocupação que me perturbavam de novo. Foram dramáticos para nossas famílias. Nasci em 1951, seis anos depois da Liberação, mas através das ruínas que ainda existiam e das coisas não ditas, percebíamos a violência, as sequelas surdas da Colaboração ou da Resistência. Uma criança sente isso. E, adolescente, fiquei com essa fascinação que ainda me “ocupava”, colecionando revistas e jornais, fotos da época, como Patrick Modiano, que acabei encontrando por ter a mesma fantasia que habita obsessivamente todos os seus romances. Yves Saint Laurent também se inspirou nesse período para uma coleção que fez bastante barulho, creio que foi em 1971. Hoje, é mais o trabalho dos artistas contemporâneos que eu confronto com o que me vem da Provence e da Camargue. A arquitetura também. O Brasil teve grandes arquitetos. Eles te influenciaram de alguma forma? Sim, a ligação com o modernismo, as linhas, as curvas muito suaves que fazem um desenho no espaço. Oscar Niemeyer e Roberto Burle Marx desenharam jardins juntos. Interessei-me de perto pelo trabalho de Burle Marx. Antes, minha relação com a natureza era mais ligada à sua reprodução da natureza do que à natureza em si. Agora, estou ficando mais atenta a essa relação. É como uma luz natural que me lembra as igrejas. Christian Lacroix: Tem algo dos vitrais no teu trabalho. Nunca fiz vitrais. Pensei nisso em relação à luz quando eu estava olhando algumas de tuas telas. E aí voltamos para um tipo de espiritualidade e meditação. Sinto que você poderia fazer coisas incríveis em arquitetura. Christian Lacroix: Já pensei nisso, mas ainda tenho muita coisa para fazer em pintura. 44 45 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES É preciso fazer escolhas; mas a criação de banners para o MoMA de Nova York te trouxe algo? Christian Lacroix: 8 Sim, foi fascinante, e eu gostaria de repetir a experiência. Mas me dei conta de que eu precisava realmente fazer escolhas em função do tempo que esse tipo de atividade me toma. Christian Lacroix: Para você não se espalhar demais? Exatamente. Depois de Veneza, vou parar tudo e me concentrar numa série de novas estampas nos Estados Unidos. Depois, em Kerguéhennec, na Bretanha, só vou trabalhar com colagens de papel. Mas é raro eu me permitir o luxo de fazer uma coisa de cada vez. No ano passado, montei uma cenografia para o espetáculo de dança da companhia da minha irmã, Marcia Milhazes Dança Contemporânea, fiz um livro de artista e um banner para o MoMA de Nova York, e ainda desenhei uma joia para uma coleção particular. Tudo isso além das pinturas para uma exposição em Londres10 e para Mares do Sul no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio . Sou péssimo nisso. Não sei dizer “não”. Em 2003, trabalhei na concepção do interior do TGV Atlantique (Trem de Grande Velocidade); dos futuros Christian Lacroix: uniformes de todo o pessoal da Air France, tanto de solo quanto de bordo; acabei os figurinos de Il Re Pastore, de Mozart, para o Teatro da Moeda em Bruxelas; emendei com os figurinos de William Christie para Arts Florissants em La Villette; e comecei os de Eliogabalo, uma ópera inédita de Cavalli, também para o Teatro da Moeda de Bruxelas. Sem falar das coleções Pucci e Christian Lacroix, e de umas cinquenta letrinhas para o centenário do Larousse - 19052005. Só espero que todos esses trabalhos alcancem a mesma qualidade e se alimentem uns dos outros. Acho também que vou aceitar a missão de decorar alguns hotéis em Paris. Estamos de novo falando em artes decorativas e arquitetura. O vitral também (nunca fiz, mas me fascina): resolvi participar de um concurso com um artesão formidável de Toulouse, o ateliê Fleury, mas entregamos nosso dossiê de candidatura alguns minutos depois do encerramento das inscrições: o destino disse “não” por mim... Mas estávamos falando em vitrais, arquitetura e arte decorativa... Tem os jardins também. Minha galeria de Londres, a Stephen Friedman Gallery, dá para a rua, e os quadros podem ser vistos de fora. Muitos artistas fecham a vitrine, mas gosto da possibilidade de leitura dupla, de poder ver dentro quando estou do lado de fora e vice-versa. 46 47 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES Imagino que o banner do MoMA se movimente. É algo que te interessa? Christian Lacroix: Um vitral? Por que não! Você vai expor as colagens que fará durante a residência em Kerguéhennec? Christian Lacroix: É o que me fascina: trabalhar com o movimento das cores. A Rua 53 é visualmente muito poluída e eu queria que o banner dialogasse com a paisagem. Fiz um desenho bastante simples, com cores que poderiam ser chocantes: o ouro, o rosa e alguns verdes. Além do movimento, as cores mudaram. Foi uma boa surpresa. O MoMA resolveu manter o banner até o final do ano, enquanto a ideia no início era deixá-lo somente no verão. Com a chegada do outono e da chuva, o banner perdeu seu brilho e, sem o sol, mudou ainda mais. Ele ganhou luz própria. Se eu fosse arcebispo no Brasil, te encomendaria vitrais para uma catedral barroca [Risos]. Vejo muito bem teu trabalho na luz. Christian Lacroix: Meu trabalho tem luz própria. Ele funciona com luz intensa, e acho a luz natural a melhor possível. A superfície da tela muda com o movimento dos corpos que passam em frente. Provoca contrastes brilho/opaco, dourado/fosco, suave/áspero. Um dia, gostaria de fazer uma exposição na penumbra. Tenho esta visão de entrar no meu ateliê à noite e sentir algo como a iluminação de uma igreja. Pretendo. Se elas funcionarem, porque nunca fiz colagens de verdade. Essas colagens seguirão o mesmo processo que as pinturas? Christian Lacroix: Não, para as colagens sobre papel o processo será diferente. Vou usar materiais de origem industrial: papel de chocolate e de bala, papel de seda, transparentes e estampados, e até fitas... Você faz pesquisa nos jornais? Onde você recupera todos esses elementos? No lixo, nas papelarias? Christian Lacroix: No momento, estou fazendo uma verdadeira coleção de papéis de embalagens, mas não de qualquer tipo. Prefiro não misturar as embalagens, me limitar àquelas que expressam sedução, prazer e exagero. O sentido seria completamente diferente se eu usasse papéis de chocolate com embalagens de sabonete. 48 49 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES Nos papéis de chocolate você tem ouro, prata, metal; não são somente transparentes. Christian Lacroix: Tenho alguns papéis transparentes. Christian Lacroix: Você guarda as letras, os nomes, os desenhos? Sim, tudo! Quando for a Kerguéhennec, você vai chegar com coisas já preparadas? Christian Lacroix: Acabamos de olhar uma cor chamada chartreuse. É a cor de um licor à base de plantas feito por monges. Chartreuse é a cor amarelo-verde de algumas plantas: algo entre anis e limão. Christian Lacroix: Prefiro o verde-limão. É uma cor que uso em várias tonalidades. Combina muito bem com as outras cores nos meus quadros. Mas muitas vezes me traz problemas, porque o verde é uma cor difícil na pintura. Aliás, assusta muitos pintores. O uso do verde é uma pergunta recorrente quando falo do meu trabalho com os críticos de arte. Você pode explicar por que o verde é tão difícil para os pintores? Christian Lacroix: Não, só com embalagens e algumas ideias. Christian Lacroix: Talvez eu esteja enganado, mas me parece que você usa cores mais fluorescentes que alguns anos atrás. Mais brancas e mais parecidas com o Stabilo. Sim, elas se intensificaram com o tempo. As relações entre as cores são muito complexas. As cores que eu usava no início eram mais simples. Depois, comecei a intensificar a relação com a forma, os motivos, as justaposições, e, claro, com os contrates entre as cores. Como o marrom, acho que é uma cor que provoca confusão. Não combina com as outras cores e, ao mesmo tempo, é uma amalgamação total. Incomoda, é um pouco suja. Mas é também a cor da natureza, e certos pintores têm tendência a esverdear suas telas quando em contato com a natureza. Trabalho ao lado do Jardim Botânico e talvez seja por isso que o uso espontaneamente. Além do mais, o Rio é uma cidade de contrastes violentos entre os verdes, os azuis e os amarelos. 50 51 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES Christian Lacroix: Você sabia que para os franceses, e sobretudo para os profissionais do palco, é uma cor maldita, que dá azar? Quando você faz figurinos de teatro ou de dança, precisa perguntar antes se pode usar a cor verde. Em geral, é proibido. O ator Alain Delon, por exemplo, não suporta trabalhar num palco onde tenha verde, nem que seja a folha de uma árvore ou de uma flor. Se tiver um buquê, ele pede para retirarem as folhas para só ficar com as flores. Por outro lado, é a cor das costureiras, que têm uma padroeira, Catarina, que é também a padroeira das moças solteiras. As cores associadas a Catarina são o amarelo e o verde, o que muitas vezes dá um amareloverde. Podemos dizer que o verde não é indiferente a ninguém. Essa relação entre o verde e o palco é interessante, eu não sabia. É uma pergunta que sempre me faço. Uma de minhas clientes queria um vestido excepcional. Depois de apresentar várias coisas para ela, mostrei o verde chartreuse, bem mais verde que amarelo. Ela gostou, e acrescentei uma renda dourada. Ela fez então um lindo comentário que me lembra o teu trabalho. Ela me disse: “Com o ouro e este verde, quero que você coloque uma terceira cor que dê mais profundidade”. Ela tinha uma reflexão de pintor. Christian Lacroix: Ovo de Páscoa, 2003 Acrílica sobre tela 298 x 189 cm Foto: André Morin 52 53 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES O que é excitante com a pintura é este mistério. Trabalho com cores constantemente, conheço-as, pensei e desenvolvi uma gama ampla de cores, mas há surpresas sempre. Se você colocar um leve toque de rosa, a tela inteira toma outra dimensão. É totalmente mágico. E pode imediatamente destruir ou salvar um quadro. diziam que nunca se podia misturar o verde e o vermelho. Era a pior coisa que se podia fazer. Para fazer um último paralelo com a moda: acontece muito de eu ver uma roupa que criei e pensar que deveria jogar tudo fora, que me enganei. Lembro então que talvez outra cor possa salvar o vestido. É por isso que o verde é problemático para mim. Em si, não é difícil de usar. Acho que todas as cores combinam bem com o verde. O problema é que, quando fica fácil demais, se torna bonito. Christian Lacroix: De vez em quando, prefiro fazer ligações com tonalidades mais próximas. Os degradês dão uma sensação de vibração e vertigem. Em francês, se usa também a palavra “desmaiar” para uma cor que desaparece num degradê. De fato, tem muitas combinações de cores que funcionam bem e são sedutoras. Eu sempre tive em mente a imagem de uma planta carnívora que te atrai, te encanta e, uma vez que te pega, não te faz mal, mas gera incômodo. É sempre preciso ter uma sensação de perigo, de risco. Christian Lacroix: Acho sempre difícil usar o verde sem que fique bonito. De vez em quando, procuro fazer uma inversão, torná-lo menos sedutor. Christian Lacroix: Mas isso pode também ser feito sem branco. Costumo brincar com as cores complementares. Para encerrar o assunto do verde, lembro que, quando eu era criança, todas as revistas de moda Christian Lacroix: Christian Lacroix: Você já fez um quadro sem verde? Não creio, mas ele pode aparecer nas minhas telas em pequenas pinceladas, só para pintar uma pétala de rosa, por exemplo. O branco e o preto, por outro lado, são cores que me trazem um verdadeiro problema. Eu as usei juntas pela primeira vez em 2002. Prefiro cores como o roxo, o verde e o azul muito escuros. 54 55 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES Não há branco puro nos teus quadros, é um branco que se move. Christian Lacroix: Às vezes mantenho a tela como é, como base para o branco, mas ele nunca está puro. Penso muito no branco, mas raramente o uso. No momento, o rosa e o laranja funcionam de maneira oposta para mim. Este ano, quando eu estava quase acabando de preparar uma exposição para a galeria Max Hetzler em Berlim, me dei conta de que meu ateliê tinha sido invadido pelo rosa e pelo laranja. Obriguei-me então a mudar de cor para o último quadro. Apesar de procurar constantemente mudar de paleta, às vezes a cor toma conta e me controla. Os acidentes são voluntários ou são acasos que você resolve manter na tela? as cores estão equilibradas. Não posso mais passar para o estágio seguinte, em que acrescentar elementos vira decoração. Quando encontrei coisas que criam uma ruptura no olhar do espectador, mas que são orgânicas, abertas, é aí que paro. Há um lado meio inacabado que é interessante no teu trabalho. Há sempre uma área não coberta. E, de fato, se essa área fosse pintada, a tela se tornaria papel de parede e não mais uma pintura. Christian Lacroix: É exatamente isso, quero manter a ideia de composição. Christian Lacroix: Christian Lacroix: Já aconteceu de você voltar a trabalhar uma tela acabada? Existem acidentes voluntários e involuntários, dos quais me sirvo ou não. Eles são ligados à memória da folha de plástico usada, ao que acontece quando a tiro da tela. Em que momento você sabe que um quadro está acabado? Christian Lacroix: Em geral, o ponto final acontece no momento em que sinto que Sim, já aconteceu. Faço um quadro num lugar. Uma vez acabado, é mostrado num outro lugar. De certa forma, saiu de sua estrutura, e o resultado é às vezes diferente. Para minha última exposição em Nova York12, eu tinha pintado uma pequena tela que não me agradava plenamente. Chegando lá, resolvi não a mostrar, e vou retrabalhá-la. Já aconteceu também de eu jogar quadros fora. Tem até um período de meu trabalho, por volta de 1987, em que não 56 57 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES fiquei com nenhuma tela. Duas ou três foram vendidas, mas dei as outras para alguém na rua. Eu não podia guardá-las no meu ateliê, eram como fantasmas monstruosos. Claro. Tenho os mesmos amigos há muito tempo, e minha relação com a cidade não mudou. Já falamos da influência do cotidiano. Uma das coisas marcantes do teu trabalho é a influência das joias. Você se inspirou na Miriam Haskell? É uma coincidência? Christian Lacroix: Você se encontra com muitos artistas no Brasil e nos Estados Unidos? Christian Lacroix: No Brasil tenho alguns amigos artistas, mas o trabalho deles não é muito próximo do meu. Nos Estados Unidos e na Europa, tenho mais relações com artistas que trabalham no mesmo sentido. Para mim, é importante não ficar isolada. Philip Taaffe, um pintor americano de quem gosto muito, usa também a noção do decorativo. A inclusão de elementos das artes decorativas na pintura abstrata é um assunto recorrente. Nos anos 70, Robert Kushner lançou o pattern painting e, nos anos 80, as telas de Philip eram, de maneira surpreendente, a melhor representação desse estilo. Estou também em contato com outros artistas americanos e ingleses, como Polly Appfelbaum, Franz Ackerman, Fiona Rae, Sarah Morris, Davis Reed, Fabian Marcaccio, para citar alguns. Christian Lacroix: da tua família. Mas você fica no teu ambiente pelo viés Fiquei impressionada quando vi pela primeira vez um livro com o trabalho dela, por acaso, numa livraria. A sua história também é incrível. O Museu da Moda da rue de Rivoli organizou uma exposição que se chamava Demais, a partir de uma coleção na qual havia coisas da Miriam. Expuseram joias incríveis dos anos 40, em forma de fruta, pássaro, inseto, era maravilhosa. Christian Lacroix: Isso é interessante, porque, nessa década, boa parte das clientes da Miriam eram atrizes americanas. Foi nessa época que ela conheceu Carmen Miranda, cujos figurinos a influenciaram. Olhar um livro é uma coisa, mas desenhar e usar uma fonte de inspiração é diferente. Já usei referências pop e primitivas, mas as formas de suas joias não vêm somente de uma mistura de elementos. São composições com formas orgânicas e harmoniosas. Christian Lacroix: 58 59 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES Tem também o trabalho da Bridget Riley... Em 2000, o Dia Center de Nova York organizou uma grande retrospectiva de seu trabalho, que foi impressionante, pois é muito difícil ter a oportunidade de ver as obras dela. A exposição me deu uma sensação incrível de vertigem. Ela usa muitos tipos de listras e linhas. É um trabalho muito físico. Foi a partir daí que pensei que era possível fazer movimentos orgânicos com linhas. Você sabia que ela praticamente parou de mostrar seu trabalho depois de uma exposição no MoMA em 196513, porque a crítica foi de uma virulência horrível? Entretanto, Riley resolveu insistir. É muito intrigante: como fazer arte sem mostrar o que se faz? Christian Lacroix: Você trabalha com assistentes? Faço a maior parte do trabalho, mas tenho dois assistentes que não são artistas. Um cuida do acervo e da administração, o outro é uma pessoa com quem troco ideias sobre meu trabalho. Em geral, ele executa o que peço, mas, às vezes, lhe dou total liberdade. Nem sempre uso o que ele faz. Ele não tem formação artística, mas tem uma relação interessante com as cores. Christian Lacroix: Você não acha que ele foi impregnado pelo teu trabalho e que, na realidade, a cor que escolheu é a tua? Não, ele tem uma noção muito pessoal das cores. É surpreendente, porque é um rapaz simples. Às vezes, peço a opinião dele. Gosto também de conversar com as pessoas que não têm nenhuma relação com meu trabalho. Um amigo meu chegou ao meu ateliê um dia e disse: “coloca isso aí”, e obedeci!!! [Risos] Às vezes funciona. E você, pergunta a opinião dos teus assistentes? Sempre, mas pergunto sobretudo à minha mulher. Ela conhece meu trabalho, e preciso da opinião de uma mulher. Não sei o que é um vestido. Nunca usei! [Risos] É estranho os couturiers serem homens. Em geral, as mulheres que trabalham com moda criam uma moda mais simples e mais prática, como Agnès B., Sonia Rykiel, Chanel... Os homens talvez façam uma moda mais misteriosa e enigmática para as mulheres. Christian Lacroix: Geralmente, introduzo um problema para poder avançar no meu trabalho. Você procede da mesma forma? Christian Lacroix: Um problema para avançar? Com certeza. 60 61 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES Mesmo que eu não o defina de maneira consciente para ter certeza de avançar. Sou, creio, muito concreto, ancorado à terra e, é verdade, preciso encontrar um equilíbrio tangível entre meus desejos viscerais e a demanda dos clientes, a inspiração e a finalidade. Por outro lado, há também os problemas que a gente cria. Penso na ideia do Sul que animou a fundação da Maison que leva meu nome, porque a noção de raízes apareceu para mim em 1987 como minha principal diferença, minha individualidade, minha identidade. Depois, ao longo das coleções e dos anos, fiquei preso a elas, amarrado. Decidi mudar em 2000, com o milênio. Na noite de 31 de dezembro de 1999, resolvi que precisava aperfeiçoar meus conhecimentos em informática para poder desenhar com o computador; resolvi não me forçar a trabalhar de novo o tema da tauromaquia, da Espanha e de Arles. Um mês depois a coleção estava pronta, gráfica, e misturava organza com rhodoïd (plástico transparente), musseline com tranças de sacos plásticos reciclados, sem renda, somente cores primárias sobre um palco inacabado, como uma pausa na imagem. Meus amigos e colegas reconheceram meu trabalho, me deixaram seguro de novo, apoiaram a abordagem, o que me ajudou a conscientemente limpar o supérfluo para então reinsuflar, pingo a pingo, coleção após coleção, elementos mais familiares, mas com uma leveza maior. Foram uma coleção e um ano determinantes. Em 1999-2000, um ano decididamente importante, precisei também renegociar o contrato que me liga ao grupo LVMH. E tomei a decisão de trabalhar como freelancer, de fundar a XCLX, uma empresa através da qual a Maison de Couture se torna um dos meus clientes, como qualquer outro: Emilio Pucci, os teatros ou as óperas que encomendam figurinos para mim, as editoras para as quais faço ilustrações, etc. Essas áreas diferentes me permitem respirar, lidar com problemáticas inesperadas que nutrem meu trabalho. Para responder à tua pergunta, são provavelmente estes desafios que me fazem avançar, como a futura decoração do TGV Atlantique, que entrará em serviço em 2005. Isso começou com um projeto para “vestir” o TGV Mediterrâneo e anunciar que, em 1999, o trem alcançaria sua maior velocidade entre Paris e Marseille. Para aquela ocasião, eu tinha criado uma colagem gigantesca que cobria o trem. Eu queria que, ao vê-lo de longe, ele desse a sensação de um cometa, com todo o espectro de cores quentes nas composições viradas para o Sul, e nas composições finais, em direção ao Norte, 62 63 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES a continuação do espectro com as cores frias. Eu queria também que pudesse “ser lido” de perto, da plataforma, porque, para mim, a viagem é uma história de literatura, com frases, palavras e citações. É também uma história de cinema ou de teatro, em que somos tanto atores como espectadores, estejamos olhando o trem passar ou aparecendo no enquadramento da janela, de um lado ou do outro do vidro. Havia também, portanto, entre cada janela, o retrato de pessoas de que gosto, personagens famosos ou anônimos, como meus avôs ou tataravós que tinham trabalhado no P.L.M. (o trem rápido Paris-Lyon-Marseille). E tudo isso se apoiava em ampliações gigantes de detalhes escaneados das minhas coleções e roupas étnicas. Enfim, quando eu estava almoçando para comemorar o sucesso desse projeto, o presidente da S.N.C.F (empresa responsável pelo transporte ferroviário francês) comentou que estavam organizando um concurso para renovar o interior dos TGV. Resolvi participar dele com um time de designers especializados em ferroviário e um fabricante de assentos. Levou dois anos. Fomos selecionados entre os finalistas autorizados a construir uma maquete em tamanho real. E ganhamos em maio de 2004. Para a primeira reunião de “defesa”, mostrei a foto de uma vértebra sólida, tranquilizadora, articulada, que aguentava a fragilidade de um ovo, alguns tecidos coloridos, efeitos de reflexos aquáticos, e a ideia de leveza. Foi assim que especialistas realizaram meu primeiro assento técnico, cujo pé não se vê imediatamente, como uma concha flutuando no ar. No teatro, trabalho muito com o diretor Vincent Boussard, com quem tenho uma ótima relação, mas que tem um universo bastante oposto ao meu, abstrato, intelectual, cerebral, quase sem cor. Nessa posição também sou confrontado com algo pouco comum, que não é fácil para mim, menos óbvio que meu trabalho habitual. Eis então os problemas que me estimulam e talvez me façam avançar: estar onde não estou sendo esperado. Digo-me todos os dias que eu gostaria de me dar o tempo de um ano sabático para “juntar” todos os meus “pedaços”. Ou pelo menos um verão para pensar no que sou, no que faço, na minha relação com o mundo, através do meu universo pessoal e do meu trabalho. Mas isso não é possível, e o improviso acaba se impondo no cotidiano. Como negociar com a realidade? Como juntar utopia e comércio? A necessidade de vender e não desagradar a si mesmo? A globalização niveladora, medíocre, e a riqueza que reside na diferença, nas individualidades, na “contracorrente”? Falo muito em uma 64 65 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES “altermoda”, como se fala em alterglobalização. Meus pontos de vista sobre a época e o mundo no qual vivemos, meus objetivos e minha filosofia são, na realidade, opostos àqueles do meu “principal acionário”. No final das contas, esse é o problema principal... Na pintura, não somos obrigados a criar algo útil. Não é o caso da moda ou do que você fez para o TGV, assim como o trabalho coletivo é inevitável quando se concebe uma cenografia. A tela branca na parede é um espaço de criação livre. Você cria objetos vivos que habitam um corpo temporário e vital. Não percebo muito bem a fronteira, e é por isso que gosto da problemática do decorativo. Existe o decorativo que é arte e a arte que é decorativa. Conheci bem o Julian Schnabel, que expôs em Nîmes na Maison Carrée, um templo romano muito bem preservado. Ele queria que eu fosse o primeiro a descobrir a exposição. Quando entrei naquele espaço, eu disse: “Você é um grande decorador”. Acho que ele ficou muito magoado, mas eu não quis ser pejorativo. Vejo mais o lado decorativo do Schnabel do que qualquer outra coisa. Pessoalmente, nunca pensei que pudesse ser pintor. Alimento-me do Christian Lacroix: trabalho e do discurso dos outros. Mas vamos voltar a você: você me parece bastante tímida, tem um trabalho um pouco tímido! É verdade, este é meu problema com a realidade. Quando estou no ateliê, crio um mundo meu através da pintura. E quando saio do ateliê, é como se outra história fosse começar. Não sou muito frágil, mas preciso fazer esforços. A comunicação com a realidade não é fácil, apesar de eu geralmente estar à vontade. É por isso que a pintura é um desafio. Os convites, as participações em projetos variados, as cenografias, as joias são outra coisa, um outro mundo que toma tempo da minha pintura. Esses projetos não me deixam segura, e nem sempre tenho certeza de sua utilidade. Se os projetos continuarem a aparecer, vou precisar pensar no que deverei fazer para me organizar, dedicar tempo, tirar deles algo positivo. Mas preciso de aberturas para avançar na minha pintura. E é por isso que preciso parar de vez em quando, viajar, reencontrar energia, colocar minha vida pessoal em ordem. Tudo isso é importante para minha pintura. Você reflete muito sobre o que acontece no Brasil e no mundo? O 11 de Setembro mudou teu trabalho nas tuas relações com os Estados Unidos? Christian Lacroix: 66 67 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES Os grandes questionamentos da vida, o mundo no qual vivemos, fazem parte do meu trabalho de maneira subjetiva. Meu ateliê é um universo fora dessa realidade. Meus sentimentos surgem das cores, formas, símbolos... Desde o 11 de Setembro, o repertório dos anos 70 que me interessa está cada vez mais presente na minha pintura. O símbolo Peace and Love, por exemplo, se tornou uma constante. lúdicas, barrocas, resplandecentes, com tudo que estava acontecendo. Eu mostrava então as cartas que recebia, com seis meses de atraso, de moças que escreviam dos porões das casas bombardeadas, e que diziam: “Você não pode imaginar a esperança que nos deu a revista na qual vimos fotos de seu trabalho. Organizamos um concurso de beleza para nos sentirmos vivas”. Pessoalmente, sinto esta angústia do fim do mundo, do fim de algo. Christian Lacroix: Perdemos o sentido do respeito. Precisamos lutar contra isso. Não se pode trabalhar da mesma maneira, mesmo que seja no sentido de um trabalho mais alegre, mais espiritual. Christian Lacroix: Claro. Acredito na vida, na beleza das coisas que trazem uma energia positiva. É também a arte que dá certo sentido à nossa época, e que pode mostrar um caminho diferente. É por isso que não gosto das exposições que parafraseiam o mundo ou o jornal da manhã. Transcender o mundo para ir mais longe... Durante a guerra na Iugoslávia, me perguntaram como eu podia continuar a fazer coisas 68 69 C A DER N OS EAV B EAT RI Z MI L HAZES Notas Saiba mais 1. MILHAZES, Beatriz. Urubu, 2001. Acrílica sobre tela. 119 x 399 cm. BEATRIZ Milhazes. Textos de Fréderic Paul, Simon Wallis. Entrevista: Beatriz Milhazes/ Christian Lacroix. Bignan:Domaine de Kerguéhennec, 2005. 136 p. Edição bilíngue francês-inglês. 2. MILHAZES, Beatriz. Maresias, 2002/2003. Acrílica sobre tela. 300 x 267 cm. 3. MILHAZES, Beatriz. Mares do Sul. Apresentação: Francisco Weffort, Frances Reynolds Marinho; Tradução: Izabel Murat Burbridge, Michael Asburg, Odile Cisneros. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2002. 190 p., il. color. 4. 50º Bienal de Veneza, Pavilhão Brasileiro. Veneza, Itália. 5. MILHAZES, Beatriz. O Buda, 2000. Acrílica sobre tela. 191 x 256,5 cm. 6. MILHAZES, Beatriz. Para dois, 2003. Acrílica sobre tela. 298 x 189 cm. ____. Ovo de Páscoa, 2003. Acrílica sobre tela. 298 x 189 cm. ____. O sol em Londres, 2003. Acrílica sobre tela. 250 x 230 cm. 7. MILHAZES, Beatriz. Exposição individual realizada na Galeria Ramis F. Barquet , Monterrey, México, 1994. 8. MILHAZES, Beatriz. White Ball Projects 70, 2000. Banner, nylon costurado. 107, 5 x 300 cm. 9. Coisa linda - Livro realizado em 2002 e editado pelo Library Council do Museum of Modern Art, de Nova York. Trinta serigrafias e uma colagem; 44 páginas mais duas folhas de acetato e uma prancha solta; introdução de Clifford E. Landers, nota da artista e letras de canções brasileiras; tiragem de 175 exemplares, numerados e assinados pela artista. 10. MILHAZES, Beatriz. BEATRIZ MILHAZES. Exposição individual realizada na Galeria Stephen Friedman, Londres, 19 de abril a 18 de maio de 2002. 11. MILHAZES, Beatriz. Mares do Sul. Exposição individual realizada no Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro, 29 de outubro de 2002 a 26 de janeiro de 2003. 12. Polly Apfelbaum and Beatriz Milhazes. Exposição coletiva realizada na galeria D’Amelio Terras, Nova York, 6 abril a 24 de maio de 2012. 13. The Responsive Eye. Exposição coletiva realizada no Museu de Arte Moderna da Nova York, 23 de fevereiro a 25 de abril de 1965. BEATRIZ Milhazes: pintura, colagem. Apresentação de Marcelo Mattos Araujo; curadoria e texto de Ivo Mesquita; textos de Oswaldo Corrêa da Costa e Faye Hirsch; cronologia comentada de Florecian Malbran. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2008. 200 p. HERKENHOFF, Paulo. Beatriz Milhazes. Monterrey: Galeria Ramis Barquet, 1994. HERKENHOFF, Paulo. Beatriz Milhazes: obras reunidas. Rio de Janeiro: Barléu Edições, 2006. 256 p. MILHAZES, Beatriz. Mares do Sul. Apresentação Francisco Weffort, Frances Reynolds Marinho; tradução Izabel Murat Burbridge, Michael Asburg, Odile Cisneros. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2002. 190 p. MILHAZES, Beatriz; RENNÓ, Rosângela. Shattered Dreams: Sonhos despedaçados. São Paulo: Fundação Bienal, 2003. 87 p., ilustrado; livro-catálogo da Bienal de Veneza. 70 DA NIEL SENISE Agradeço à Escola de Artes Visuais, por me convidar para falar sobre o meu trabalho. Como vocês são estudantes, vou tentar ser bem objetivo; vou falar de como meu trabalho se organiza, sobre a sequência dele – acho mais interessante ser breve aí – e, depois, quando conversarmos, podemos estender mais algumas coisas. Eu acho que isso interessa a quem está pensando sobre seu processo pessoal. Quero só fazer uma notação: eu vim para o Parque Lage há muito tempo, como aluno, depois de ter estudado engenharia. Eu não sabia nada de arte. Minha formação não é uma formação tradicional. Quer dizer, eu gostava de ver arte em livros. Meu contato com a arte nessa época era por aí. Eu tinha muitos livros na minha casa, alguns livros de arte. E a vida toda a representação da arte foi uma coisa presente na minha vida. Sem título, 1985 Acrílica sobre tela 230 x 190 cm 72 73 C A DER N OS EAV DAN I EL S EN I S E Intuitivamente, eu fui fazer o que achava que estava a fim: vim aqui para a EAV e fiz um semestre de aula com John Nicholson. Isso foi no começo dos anos 80. Fiz também um semestre com o Luiz Áquila. Encontrei um pessoal aqui, alugamos um ateliê em Botafogo, e foi aí que eu comecei, e que as coisas começaram a acontecer para mim. E foi relativamente rápido. Num período de quatro anos, eu passei de um aluno básico, aqui da escola, a participante da Bienal de São Paulo. meu ateliê ficou muito denso de material, a ponto das telas grudarem nas paredes. E essa operação se tornou uma das coisas que eu passei a utilizar: a impressão do próprio espaço de trabalho. No início dos anos 80, a pintura era a linguagem do momento – e eu comecei um trabalho que tinha raiz no neoexpressionismo dessa época, e em alguns artistas que eu gostava. E era uma coisa muito dinâmica. Eu fazia dois, três trabalhos por semana, dividia meu tempo entre trabalhar num escritório de programação visual e pintar. Em 85, participei da Bienal de São Paulo. Bem nesse momento eu senti que precisava entender melhor o que era arte, pelo menos como isso funcionava para mim. Todos os meus trabalhos até então eram feitos com tinta acrílica. Eu tinha achado um método de, a partir de uma imagem, desconstruí-la – um processo de embate com tinta, pincel. Comecei a incluir novos materiais. No final dos anos 80 teve início a minha primeira crise com a pintura. Eu comecei a usar tinta a óleo, e outras coisas foram surgindo. O A tela aqui mostrada, sem título1, é de 88, quando eu dividia o ateliê com o escultor Angelo Venosa. Tem uma escultura dele no final da Praia do Leme, Baleia2. Nesse trabalho, eu usei um pedaço de uma sobra do Ângelo – o espaço negativo de um trabalho dele foi o tema dessa pintura. E é uma pintura de processo. Eu fazia camadas, colando, descolando, não tinha hora para acabar. Em outro trabalho3, imprimi o chão do meu ateliê, tem as marcas das tábuas, e pintei algumas coisas por cima. O processo consistia em imprimir o espaço de trabalho, depois pintar em cima e depois imprimir o espaço outra vez. Eu usava os pregos que tinha no ateliê como tema. Meu espaço de trabalho era de certa maneira o tema de algumas telas. Agora vou dar um pulo para 92, quando tentei avançar com a ideia da impressão do chão. Aproximei-me da ideia do sudário, para mim, um objeto que é representado com sua própria matéria. Uma metáfora de uma das conquistas da pintura moderna, que é tornar a tela um objeto. Ela deixa de ser uma coisa passiva. 74 75 C A DER N OS EAV DAN I EL S EN I S E Arrangement in Grey and Black No.14 é a imagem de uma tela que via nos livros da minha infância, cujo nome popular é “Retrato da mãe do artista”, do James Whistler, e mostra uma mãe sentada de lado. Eu fiz essa mãe só com preguinhos enferrujados5, na superfície. Isso é uma maneira de se pensar a ideia do sudário. O corpo produzindo sua imagem com a sua própria matéria – no caso, os pregos. Essa tela se desdobrou numa série que não foi projetada inicialmente, mas foi saindo ao longo de dois anos. eu também misturava um pouco de pigmento. Agora não uso mais, essa mistura impregna o pano e o cola no chão. Toda matéria que está no chão vem no pano, que fica mais grosso. Tem uma fisicalidade diferente do pano inicial, que é um lençol. Em Despacho6, eu refletia a imagem da mãe, na área escura da imagem, eu usei pó de limalha de ferro e cola branca e não mais pregos. Desde o final dos anos 80, optei por não usar mais a pincelada, a marca do gesto na tela. Eu ia pintar de outra forma. E a pintura inicial, em que usava a pincelada, durou apenas um ano e meio. Ela que não está I9 é de outra série, de 1994. Ano em que – mais de uns dez anos depois de começar a experimentar com pintura – as coisas começaram realmente a se sintetizar de forma mais clara, em termos do que me interessava como autor, como pintor. Essa imagem faz parte de um grupo de cinco telas que eu fiz com a mesma imagem. O tema dessa pintura é uma parte de um afresco do Giotto, que está numa igreja em Florença, numa capela10. É uma parte que está faltando no afresco do Giotto – essa parte central. Sem título7 é uma sequência do trabalho da mãe do Whistler, sendo que, no meio, há essa impressão de um ateliê que eu tinha na Lapa – é um chão de mosaico muito bonito. Não dá para ver nessa imagem, porque a reprodução não é muito boa, mas tem todo um desenho de mosaico do chão que foi impresso. Como é essa impressão? Coloco um pano muito fino de algodão, como um lençol, e sobre ele aplico cola e água; nessa época, às vezes, Uma tela foi gerando outra, e a última dessa série da “mãe do artista”, – quer dizer, a mãe já foi embora há muito tempo – eu chamei de Casamento8. Eu pintei usando um verniz asa de barata, um verniz para lustrar móveis, joguei álcool no verniz e depois água – e surgiu um branco. Cada trabalho desses que estou mostrando foi um tipo de parto. Eu fiquei seis meses trabalhando nisso, alguns acidentes aconteceram. Eu descobri que aquilo que estava faltando na pintura do 76 77 C A DER N OS EAV DAN I EL S EN I S E Giotto estava no território da minha pintura, seria o meu tema. Mas havia imagens muito curiosas, como a trajetória do voo do bumerangue. Não sei como é que se afere isso. Eram três trajetórias, e eu desenhei três trajetórias com preguinhos. A ideia é contar uma história através de pequenos registros, é uma história de um evento invisível, contada através de registros que têm uma relação com o tempo. Há várias maneiras de se ver esse trabalho, eu achei que essas camadas de leitura eram interessantes. Eu chamei essa série de Ela que não está. Nos anos 80, eu tinha feito uma tela11 com esse título pensando em uma pessoa – e resolvi usar o título aqui novamente, agora atribuindo o “ela” à pintura. Em Ela que não está II12, pintei a ausência da pintura do Giotto com pó de ferro, e, em cima desse pó de ferro, apliquei verniz asa de barata, que se dissolve com álcool e quando se joga água ele fica esbranquiçado, é bem interessante. Passando para outra série que considero importante. Tudo isso é um trabalho de um processo, eu faço alguma coisa e tenho uma resposta do trabalho assim: “Olha, isso é uma coisa que me interessa”. Bumerangue13 também foi feito com preguinhos, e eles deixaram a marca na superfície. Eu trabalho na horizontal, ponho água, com um pouquinho de cola Cascorez, e sal sobre os pregos. Quando a água seca, os desenhos dos pregos ficam impressos na superfície. Como falei, o meu primeiro contato com arte foi através de imagens de livros, eu tinha umas coleções antigas da minha mãe. Uma delas chama-se Tesouro da juventude14. E agora um salto bem largo no tempo: Cavalariças I15 já é de 2001. Como falei, essas impressões de chão, de espaços, eu comecei a fazer em 87 e 88, por aí. Elas sempre estiveram presentes no ateliê, mas por algum tempo eu as abandonei. A partir de 95 tem uma fase em que eu era casado com uma americana e a gente ia muito para Nova York, e eu, às vezes, tinha um ateliê lá. E nas áreas de Nova York e Connecticut, nos lugares em torno, há muitos imóveis de madeira. Sempre que eu estava por lá, imprimia esses espaços. Eu punha esses panos enormes – e, às vezes, tinha um prédio inteiro para fazer. Assim fiz uma fábrica inteira, sozinho. Ficava uma semana, punha 300 m de pano por 2 m de largura, imprimia tudo, e tinha um monte de pano impresso. Em 2000, fui morar em Nova York, e tinha muitos desses panos. 78 79 C A DER N OS EAV DAN I EL S EN I S E Eu saí do Rio de Janeiro, onde tinha um ateliê muito confortável com assistentes, e passava o dia por lá, ficava andando, às vezes, sem saber o que fazer – e pensei: “Preciso começar a ser mais objetivo, é outro espaço”. parece pequena, nesse espaço tão grande. Mas ela também repercutia o espaço onde estava colada, por representar esse espaço. E ela foi feita com a matéria do espaço. Isso era uma ideia que me agradava. Isso foi uma das razões pelas quais experimentei mais com esses panos. Eu comecei a justapor partes dos panos para formar uma imagem de um espaço. Essa foi a ideia inicial. Um trabalho que quase me agradou, fiz no MAC de Niterói17. Quando fui convidado para expor lá, o MAC estava com aquele carpete já encardido e a ponto de ser trocado. E eu pedi para a diretora para que quando ela o tirasse, que me desse o carpete para eu fazer o trabalho com ele. Aí, nesse caso, cada superfície ou cada plano é um pedaço de pano; então tenho doze pedaços de pano colados em diferentes tamanhos – porque esta impressão não é homogênea. Ela é irregular, uma parte é mais intensa do que a outra. Esse espaço que eu imprimi é o espaço das Cavalariças, no Parque Lage. O chão era de madeira, e essa tela foi exposta na parede ao fundo da imagem representada. Ela repercutia o próprio espaço. A matéria que está nela é a matéria do espaço. Ainda tem um pouco de pigmento nesse pano, mas toda essa irregularidade era sujeira, era coisa que eu arranquei do chão. E a tela foi para a parede no próprio espaço. Em frente a Cavalariças I estava Cavalariças II16, com 4 m x 3 m, e Ela não me deu carpete suficiente para que eu pudesse preencher todas as paredes, e isso é o que lamento nesse trabalho, porque eu queria fechar todo aquele círculo do MAC com os carpetes. Como o carpete é muito homogêneo, apesar de estar deteriorado, não dava para ajustar por pedaços diferentes de carpete para formar alguma imagem. Então, eu representei um pássaro que voa por toda a região aqui da Baía de Guanabara. E, na verdade, ele é simplesmente o corte. Eu tirei o pedaço do carpete, e é a própria parede do museu que forma a imagem do pássaro voando. Isso foi em 2003. Em 2005, fiz Obra18, que é uma sequência desses trabalhos de colagem em que a coisa ficou um pouco mais obsessiva. Eu resolvi que 80 81 C A DER N OS EAV DAN I EL S EN I S E essas impressões de madeira podiam voltar a representar madeira. Ao invés de usar um pano para representar um plano, como estava fazendo até então, usei um pedaço desse pano para representar um pedaço de madeira. Nessa época já não uso mais pigmento na mistura. Basicamente, é só matéria que está no chão, que está impressa no pano e que está sendo vista. Eu representei, basicamente, um plano com pequenos nichos vazios. Essa tela é grande. Para mim alguns trabalhos devem ser grandes para que o observador seja integrado ao que está sendo representado. Ela tem 4,60 m de largura por 2,5 m de altura. E cada linha é uma colagem diferente, e elas não estão superpostas, elas são justapostas – e isso leva um tempo muito maior do que aquela outra das Cavalariças, que eram cinco, dez panos colados. Em Obra eu tenho um pano em cada linha. Nessa época, eu já trabalhava com assistentes, e era a única maneira de poder fazer esse trabalho. É uma coisa, certamente, obsessiva. Cada planozinho desse trabalho é um pano diferente. Nesse caso, a ideia inicial era assim: como eu já tinha imprimido em vários lugares do mundo – no Brasil e nos Estados Unidos, basicamente – eu tinha pedaços de pano de um lugar em Connecticut, de um lugar no Bronx, de um lugar na antiga Casa do Estudante aqui do Rio, do meu ateliê. E eu tinha essa coleção de paninhos, então imaginei fazer esse trabalho19, que eu posso chamar de escaninhos ou prateleiras, ou uma fachada moderna – e com panos de todos esses lugares por onde estive. A virgem ainda20 é um trabalho que vem mais ou menos na mesma época, é outra maneira de representar o espaço com essas colagens. Comecei a juntar imagens de espaços de pinturas do Renascimento, para criar essa pintura com características mais pictóricas. A sensação permanente, nessa época, é que, com esses trabalhos, eu estava chegando a um modo de trabalhar em que planejava e projetava o trabalho quase totalmente, antes de começar a fazê-lo. O problema na execução era de valor, de cor, de pensar como é a luz e o contraste. E, ao longo desse tempo, eu comecei a sentir um desejo de retomar o embate de ateliê, que havia no início – de não ter a coisa tão definida a priori antes de começar a executar. Não que isso seja uma garantia de que o trabalho vai dar certo. Tenho um monte de trabalhos lá no ateliê, um monte de coisas que não funcionaram. Mas, de qualquer maneira, esse trabalho é uma resposta a essa vontade de retornar a um processo mais de embate, que eu tinha antes de morar em Nova York. Eu voltei para o Brasil em 2004, 82 83 C A DER N OS EAV DAN I EL S EN I S E “Meu desejo sempre é que o trabalho esteja no reino da imagem, que a comunicação seja mediada pela pintura.” e esses últimos trabalhos que eu citei – mais complexos e mais fragmentados – foram feitos de 2004 para cá. Outro motivo para eu escolher imagens do Renascimento para representar, foi que imprimi um casarão lá na Lapa, que tinha sido usado para algum tipo de filmagem e ficou com um pigmento vermelho no chão, que só apareceu quando fiz as impressões. Esse pigmento lembra muito o vermelho cardeal que está nos afrescos e na pintura do Renascimento. Nessas composições, usei pedaços de obras de alguns pintores do Renascimento. O uso do vermelho era importante, para trazer a sensação do ambiente da pintura desse período. Ici et ailleurs21 é parte de uma série que eu estou fazendo, que chamo de Reino – e meu desejo é fazer no ano que vem uma exposição só com esses trabalhos. E é uma outra tela dessa série das estruturas arquitetônicas, uma tela bem grande, tem 4,60 m por 5 m. As aquarelas “...”22 são um trabalho que eu comecei a fazer, sem saber bem por quê. Um dia, na minha casa, eu estava fazendo uma aquarela para alguma ilustração que me pediram, e aí eu comecei a fazer aquarelas a partir do chão da minha sala. 84 85 C A DER N OS EAV DAN I EL S EN I S E Quando fui morar nesse apartamento, havia resolvido mudar a posição dos tacos. Eu não gosto de tacos naquela disposição que chamam espinha de peixe, me dá uma sensação triste. esse trabalho voltei também a usar a tinta e a mão. O meu chão não tem essa diversidade de madeiras. É de uma madeira só, peroba. Mas aí comecei a inventar algumas e também a copiar outros tipos de madeira. Quando eu mudei a posição dos tacos, a principio não me dei conta, mas eles começaram a se relacionar uns com os outros, como se fossem pequenas paisagens. É muito interessante. Essa imagem é a imagem da sala onde tenho uma televisão e um sofá, onde eu fazia essas aquarelas. Eu ligava a televisão e ficava fazendo aquarela. Eu comecei a fazer esses taquinhos, pensando: “Uma hora, isso vai dar em um trabalho”. Levou uns dois anos, até eu decidir que o trabalho seria a imagem do espaço onde estava fazendo as aquarelas. E isso está na escala real. Esse trabalho tem 4 m por 5 m. Essas são as saídas da sala. Pena que esse trabalho se destruiu; depois de todo esse esforço, eu mandei o trabalho para ser montado, num lugar que faz trabalhos para artistas, e eles usaram uma cola dupla-face que não funcionou. Com o tempo, as aquarelas começaram a se soltar e não tinha mais jeito de colá-las de volta – então, o trabalho foi para o lixo. Eu fiz outro, depois, com a planta do corredor da minha casa. Com Havia o desafio de reproduzir as transparências de algumas madeiras – são várias camadas de tinta, que, às vezes, tenho que aplicar quase ao mesmo tempo. Era muito divertido fazer isso. Algumas vezes eu ficava um jogo de futebol inteiro fazendo uma só aquarela, e em outras, numa tarde, eu fazia cinco. Eu comecei a fazer papéis maiores de aquarela e a cortar. O objetivo não era sofrer, mas ter um tipo de produtividade também. Skira I23 é parte de uma série em que eu ainda estou trabalhando. São telas feitas com páginas de livros de arte. Na minha casa, quando eu era criança, haviam alguns livros de arte da editora Skira, depois passei a comprá-los. Neles as reproduções das obras são impressas em papel couchê que são colados às páginas com texto ou informações. Eu usei as páginas de suporte, sem as reproduções. Como são livros antigos, algumas páginas são mais amareladas, outras menos. Nesse trabalho usei o contraste das páginas de papel antigo, da mesma maneira que eu estava usando as impressões de chão. 86 87 C A DER N OS EAV DAN I EL S EN I S E No início não sabia muito bem o que fazer com esse material, como acontece muitas vezes. Na época, tive uma conversa com um crítico e curador – e ele achava que eu deveria tematizar essa imagem. Por exemplo, ele falou: “Se você pegar Guerra e paz , você vai fazer uma coisa diferente do que se pegar a Bíblia. Isso era a continuação de uma conversa que tinha tido anteriormente, com esse crítico, em que ele insistia que eu deveria politizar o meu trabalho. Outra coisa no meu processo é que eu acumulo muito papel de convites de exposição e catálogos, essas coisas. Principalmente convites. E, num determinado momento, resolvi reciclar esse papel para depois desenhar nele. Eu comecei a pesquisar isso, acabou que eu não fiz esse trabalho; e um dia, eu resolvi fazer tijolinhos24 de papel reciclado. Meu desejo sempre é que o trabalho esteja no reino da imagem, que a comunicação seja mediada pela pintura. E os livros dessa editora Skira também estiveram sempre presentes na minha vida. Tem uma edição sobre os mosaicos de Ravena, dessa editora, que é imbatível, porque, em várias reproduções, eles têm até sete cores. Hoje, eu não sei como é, mas, nessa época, você podia fazer toda uma impressão, um rolo inteiro só de uma imagem – então, a regulagem era perfeita para aquela imagem, e o livro tinha uma qualidade maior. Hoje é diferente. Com uma aproximação é possível ver o detalhe da imagem – o branco entre esses pedaços de papel é um suporte de alumínio, onde eu colei os papéis, justapostos. Esses escritos pequenos são os títulos dos trabalhos que estavam colados na página. A ideia era fazer alguma coisa com papel que vem das artes, do sistema das artes. Onde existe muita sobra. Eu recebo um monte de convites toda semana, todo mundo recebe. Daí eu comecei a fazer esses tijolos, resolvi fazer umas telas com eles. Mas antes de fazê-las, fui convidado para fazer uma exposição no Centro Cultural São Paulo e a proposta era utilizar o próprio lugar, o próprio centro cultural como tema para o trabalho. Lá no CCSP, há uma escultura do Brecheret, cujo título é Eva25. Eu coloquei uma fabriquinha de reciclagem de papel nesse lugar. Com os papéis que sobravam do Centro Cultural comecei a fazer tijolos e ao longo do período da exposição fui empilhando-os em torno da escultura26. A cada mês fui subindo meu muro em torno da Eva. Como esses tijolos são só justapostos, eu precisei criar colunas para que as paredes não caíssem. E eu acho que elas deram um desenho mais legal para o volume que foi surgindo. 88 89 C A DER N OS EAV DAN I EL S EN I S E Várias associações surgiram ao longo do trabalho. Muita gente achava que o material do tijolo era o mesmo da escultura; outros falavam que estava ocultando a nudez da Eva. Um cara, um escritor, disse que havia um embate entre o trabalho do Brecheret, que é mais próximo à academia, com um trabalho contemporâneo. Eu discordei dele. Achava que, na verdade, estava até chamando a atenção para o trabalho do Brecheret, que havia uma comunicação. Nos anos 80, aconteceu uma volta da pintura. O mundo todo começou a pintar, novamente. Teve um boom de grana no mundo, e nesses polos de cultura e grana – tipo a Europa, os Estados Unidos – surgiram mercados de arte muito fortes e uma arte muito rápida, que era a pintura. Rápida no sentido de que pintores com cinco anos de carreira já estavam mostrando trabalho, estavam com mercado. O Centro Cultural São Paulo tem muitas atividades, passa todo tipo de gente. E ficou um cara lá, trabalhando, fazendo esses tijolos; ele conta histórias interessantíssimas de pessoas roubando tijolos, outras batendo com tijolos na cabeça. Muita gente conversando com ele. Finalmente, agora estou fazendo telas com esses tijolos. Gostaria de ouvir um pouco mais sobre essa decisão de abandonar, de alguma forma, essa manualidade da pintura – e, também, sobre a ideia de suporte, como é que isso se relaciona dentro do seu trabalho. Eu já vi trabalhos seus apoiados sobre material metálico e também sobre tela. Como é que isso foi se construindo? Aluno: Ao mesmo tempo em que, na Alemanha, não eram tão jovens os pintores que estavam começando a ficar fortes. Entre eles, estava o Markus Lüpertz; Richter sempre esteve em evidência, mas estava mais; Sigmar Polke e Anselm Kiefer. Mas, na Itália, havia a transvanguarda italiana, que eram os caras mais jovens, e era uma pintura muito ruim, muito gestual. Pior ainda era o neoexpressionismo alemão – mas era a pintura que se fazia no mundo. A Bienal de 1985 foi dedicada à pintura – mas ela fez uma afirmação, só que a curadora resolveu fazer uma intervenção meio discutível em relação a isso. Ela criou “A grande tela”. Era uma parede que ia e voltava, ia e voltava; eram três paredes ao longo do prédio da Bienal, o que é longuíssimo, só de pintores, um ao lado do outro. Eram pintores do mundo todo. 90 91 C A DER N OS EAV DAN I EL S EN I S E Alguns discordaram, principalmente os alemães, que tiraram os trabalhos da parede, e acabaram em salas separadas, ela meio que reduzia tudo a quase que uma epidemia, um vírus mundial. Por outro lado, existia esse aspecto, sim. Quando comecei a pintar, comecei como muita gente que estava no Parque Lage, que não sabia o que fazer e como fazer isso. Quer dizer, tudo era variável. Eu achei que, se me ativesse a essa forma moderna de pintar eu não ia conseguir descobrir nada sobre o meu assunto. Além disso, eu tinha a sensação de que, para um trabalho de arte ser potente, ele tinha que discutir ou problematizar a linguagem que estava usando. Eu acho que esse foi o primeiro momento em uma Bienal em que a curadoria teve um tipo de ação ativa, mais incisiva – de botar o dedo na criação, e mostrar: “Olha, essa pintura coletiva aqui eu fiz, e fiz com a pintura de todo mundo”. Essa pintura era muito “pictórica”. De certa forma, era como se tivesse deixado para trás todas as descobertas do período moderno, como as pinturas mais de superfície, minimalistas. Era toda figurativa e tinha muito de embate. E eu estava aqui no Rio, sofrendo influência desse momento. Para mim, foi ótimo começar assim. Eu gostei muito do trabalho de um pintor chamado Markus Lüpertz, que vi na Bienal de 1983. Quando comecei a pintar à maneira dele, comecei a fazer o meu trabalho, que não era exatamente o do Markus Lüpertz, mas que funcionou como um lugar onde eu podia começar a pensar em pintura de uma forma mais organizada. Foi um tipo de iniciação, que depois descartei. E descartei porque vi que não ia ter futuro naquilo. Eu acho que essa pintura dos anos 80 só lidava com um aspecto do modernismo, que era o aspecto da expressão. A própria transvanguarda italiana, que veio do Bonito Oliva27, era uma ideia meio requentada de maneirismo. O Bonito Oliva dizia que o pintor contemporâneo estava num tipo de platô, que a arte tinha chegado num tipo de esgotamento e que ele poderia usar elementos de períodos que lhe interessassem. Mas os artistas que ele apoiava eram todos muitos parecidos entre eles. Tinham uma pintura figurativa, uma narrativa quase anedótica, às vezes poetizada. Mas a pintura já tinha conquistado mais do que isso no final do século XX. Então, eu pensei que se ficasse na pincelada, ia ter que me dedicar a inventar um tema psicológico, social, com figuras, imagens, e eu 92 93 C A DER N OS EAV DAN I EL S EN I S E não queria fazer isso. Achei, então, no final dos anos 80, que o tema do meu trabalho era a própria pintura. Como ela é mais ampla do que o que eu fazia naquela época, eu estava numa bela crise, e pensei: “Eu vou experimentar outras coisas”. Essa impressão do espaço me ajudou a abandonar o pincel. você vai ver um Van Gogh, pensa: “Essa pincelada foi feita pela mão do Van Gogh, que esteve nesse espaço pertinho daqui”. Quando você diz que abandonou o pincel, para mim parece que seu trabalho se tornou mais manual do que antes. Você fala também bastante sobre sofrer para fazer o trabalho, e eu queria saber se essa parte do manual mais denso, do sofrimento, te dá um prazer maior no final, quando você vê sua realização. Aluno: Por que você acha que ele se torna mais manual? Porque você está usando outra linguagem, que não aquela da pincelada, você está realmente pegando em materiais mais densos, diferentes. Aluno: Eu acho que o trabalho continua manual. Abandonar a pincelada não é abandonar o contato pessoal com a obra. Eu acho importante ter um contato, acho que uma das características que me agradam nas artes é saber que o autor passou bem pertinho dali. Quando Quer dizer, cria uma sensação de coisa única, na obra de arte, que, hoje em dia, a gente não precisa mais ter. Uma obra de arte não precisa mais dessa qualidade, mas isso é uma coisa que me agrada. Abandonar a pincelada não é abandonar o embate que eu estava tendo na época. Foi simplesmente porque essa pincelada representava uma parte do que é pintura, mas a pintura é representada por mais coisas. Ao longo do período moderno, a pincelada some várias vezes. Pollock usa tinta, mas não usa o pincel pincelando, por exemplo. Por eu estar tentando fazer uma coisa que eu não sabia o que era, e nem sabia de que maneira fazê-la, era uma coisa angustiante em si. Ao longo do tempo, tentei lidar com isso, tentei diminuir essa sensação de angústia, porque não é legal estar angustiado o tempo todo. Mas é uma coisa que sempre esteve presente. Depois de 25 anos, até Prometeu, na montanha, começa a gostar do abutre. Ao longo do tempo, eu, obviamente, aprendi com meu trabalho e comecei a selecionar as coisas que me interessam. Tanto o conteúdo, do que ele trata, como a forma que vou trabalhar. Agora, eu lido com esse desconforto de uma maneira mais racional. 94 95 C A DER N OS EAV DAN I EL S EN I S E EVA, 2009 Tijolos de papel de catálogos e convites de exposições, cola PVA e gesso Vista da Obra: Centro Cultural de São Paulo, 2009 Foto: João Mussolin 96 97 C A DER N OS EAV DAN I EL S EN I S E Mas, no início, eu tinha uma ação angustiada, muito forte – porque eu estava num processo muito intenso. E era um contraste, até. Na época, eu li uma matéria numa Flash Art ou Artforum dessas, que dizia (é claro que eram os americanos que estavam falando) que essa coisa angustiada já não tinha mais a ver com a arte contemporânea, que era uma atitude romântica europeia de antes da guerra e que, agora, não precisavam mais sofrer para produzir. A pergunta era: por que os artistas não se matavam mais, não se suicidavam como antigamente? Era verdade, se morria de overdose, mas não por não aguentar o processo de vida integrado à obra. E o que se dizia, mais recentemente, é que isso era uma coisa ultrapassada. Eu estava num embate no ateliê que era visto nas mostras que eu fazia. Isso estava sendo mostrado quase todo ano em uma galeria. Eu gosto de alguns trabalhos dessa época, porque eles me indicaram várias coisas; mas tem alguns que não me agradam. Fiquei um período de dez anos num estado intenso de especulação. Ainda acho que está tudo se formando. Às vezes, acordo com essa sensação. Mas hoje tenho uma maneira mais saudável de lidar com isso. No meu caso, o começo foi um processo de muita internalização, para eu tentar descobrir o que estava acontecendo – e levei pelo menos dez anos para ter uma primeira organização clara, os primeiros sinais do que me interessava. A coisa curiosa, pelas circunstâncias da época, é que comecei a expor e vender meu trabalho logo no início desse processo. Estava numa situação em que tinha que lidar com uma trajetória. Isso poderia ter me congelado, ou me colocado numa situação de paralisia. Eu queria que você falasse um pouco mais sobre a técnica que você usa para fazer a impressão desses terrenos. Você falou que usa cola, mas eu não consegui visualizar muito bem como seria esse processo. Aluno: A primeira vez em que colei uma coisa no chão foi acidental e com a própria tinta acrílica que estava do outro lado do pano. Ela o atravessou, pois era um pano muito fino, colou no chão, e trouxe a matéria que estava lá. Eu comecei a imprimir usando água, cola Cascorez e um lençol fino, espalhando essa mistura no pano com um rodo. O pano é tão fino que ele é encharcado por essa solução de cola e água. Quando você tira o pano do chão, a matéria está menos presa ao chão do que ao pano. Essa é a maneira que eu uso para imprimir esses lugares. 98 99 C A DER N OS EAV DAN I EL S EN I S E Você falou de trabalhos onde a sua relação já estava definida a priori, e outros em que a obra vai se revelando no processo. Eu gostaria que você comentasse um pouco mais sobre essa diferença. Aluno: Desses trabalhos que eu mostrei, alguns me indicaram coisas que me interessavam para formar aquilo que é o meu discurso, o meu conjunto representativo, minha pintura. Essas coisas foram acontecendo. Eu era – vamos dizer – o espectador privilegiado. Eu via o que saía e decidia se aquilo era uma boa resposta ao trabalho. Esse acidente de ateliê é uma coisa comum. Eu li uma entrevista ontem de uma pintora americana, que já tem um trabalho estabelecido; ela comentava que em certa ocasião, em Berlim, no final da noite, ela apagou uma coisa na obra, voltou no dia seguinte e viu que esse gesto tinha resolvido o trabalho. Quer dizer: por mais que se tenha uma abordagem planejada nos trabalhos, muitas vezes é uma descoberta, um acidente que faz o trabalho se realizar. Ao longo do tempo, esses acidentes definiram coisas importantes em relação à minha produção. E, a partir deles, eu pude planejar mais a priori o trabalho. Em 1993, eu estava numa viagem de carro, pensando: “Eu não posso ficar um mês indo para o ateliê todo dia e não terminar um trabalho”. Eu tinha acabado de ter um filho. “Eu tenho que definir o que o meu trabalho é – para, a partir disso, produzir com menos perda de energia, planejar o trabalho a priori”. Eu cheguei a algumas ideias relacionadas a sudário, a memória, que eu anotei, e depois guardei. Ao longo do tempo, esses momentos fizeram com que eu criasse um tipo de intimidade com aquilo que faço, com o que me interessa; e eu podia já planejar o trabalho a priori. Nesse momento, eu estou tentando trabalhar nesses dois estados. Quais são? Um é fazer um trabalho em que não sei como é que vai ser, como essa série de pinturas que eu chamo de Reino. O outro é fazer um trabalho que eu sei exatamente como vai ser – como esses de tijolos. A feitura desses trabalhos é quase uma produção de fábrica. Eu tenho um liquidificador industrial, tenho as formas de tijolo, um assistente que me ajuda – que faz isso para mim – e estabeleço uma quantidade de tijolos por semana para cumprir. Enquanto isso, ao mesmo tempo, estou fazendo essas telas de uma forma diferente. Um trabalho de embate que começa a partir de 100 101 C A DER N OS EAV DAN I EL S EN I S E alguns parâmetros que estabeleço, mas que não tem hora para acabar. Eu acho que o artista está sempre falando a mesma coisa, mas a forma como ele fala vai evoluindo, vai se transformando. Eu quero falar essa coisa de uma forma muito projetada e de uma outra não muito projetada. boçal de tinta acrílica. Dessa forma, eu pintei para a Bienal de 85. Na época eu tinha um marchand muito provocador, em São Paulo, chamado João Manuel Sattamini – primo do colecionador João Leão Sattamini. Ele trabalhava com uns artistas em São Paulo, como o Nuno Ramos, e me falou: “O Nuno disse que você não sabe pintar com tinta a óleo”. E era verdade, eu nunca tinha usado tinta a óleo. Mas essa forma “não muito projetada” é mais projetada do que era no início. Hoje eu posso usar alguns esquemas para fazer esse trabalho da série Reino. Algumas superposições de imagens de trabalhos do Renascimento, eu uso o computador, coisa que não tinha naquela época. Enfim, mas é processo, ainda é embate. Você falou, em determinado momento, sobre os materiais, como era seu processo com tinta acrílica, da dificuldade que teve no uso da tinta a óleo. Gostaria que você comentasse mais sobre isso. Aluno: Como falei no início, comecei com tinta acrílica, e trabalhava de uma maneira simples; eu usava poucas cores, elas mal se misturavam, era quase como desenhar. Eu comprava tonéis de um medium acrílico chamado Movilit e misturava pigmento nele. Era uma coisa assim, uma quantidade Então eu comecei a usar tinta a óleo e, realmente, eu, literalmente, comecei a patinar nela. Toda aquela rapidez do acrílico sumiu. Não só porque a tinta era diferente, mas porque eu tentei usá-la de uma maneira diferente, também. O meu ateliê virou um lugar insuportável, estava coberto de tinta em todas as superfícies. Aquele cheiro de tinta a óleo me intoxicava. Eu não abandonei a pincelada por conta disso, mas esse material me fez também usar a tinta de outra maneira. Posteriormente, com essas impressões, eu comecei a misturar tinta acrílica com tinta a óleo; eu imprimia chão com cola, que é uma coisa à base d’água, e depois eu pintava em cima, às vezes com tinta a óleo, mas às vezes com tinta industrial. Agora, eu quase não tenho mais tinta no ateliê. Voltando para essa mudança no seu trabalho, eu queria saber como foi que ela aconteceu. Você começou Aluno: 102 103 C A DER N OS EAV DAN I EL S EN I S E muito cedo, com um trabalho que estava em voga na época. Como você foi tomando essa decisão de seguir outro caminho? Foi uma coisa solitária, uma decisão sua, ou havia o apoio de outro grupo de pessoas que estavam querendo sair dessa discussão? Isso é interessante. Eu estava falando hoje, com uma amiga, que quando comecei a pintar eu tinha muita vontade de realizar algo. Em 1982 fiz um curso aqui na Escola, e depois, em 1983 fiz outro. Fui à Bienal de 1983 e foi muito legal. Tinha o Jorginho Guinle, umas pinturas enormes. Tinha esse cara, o Markus Lüpertz, com quem eu fiquei muito impressionado. E, dois anos depois, eu estava na Bienal. Em 83 eu não tinha um trabalho. Em 85 eu já tinha “um trabalho”, e além de estar lá, fui dar uma palestra para os orientadores da Bienal sobre o meu trabalho. Quer dizer, é ridículo, não é? Eu tinha dois anos de trabalho, nem sabia direito o que eu estava fazendo. Eu tinha 24, 25 anos e tinha me formado em Engenharia. Eu sabia que se não começasse a pensar direito sobre isso, no final dessa década, eu estaria trabalhando de novo com programação visual. Era um problema meu, eu tinha que me aprofundar nessa história. Eu só tinha tido a sorte de estar fazendo isso já como artista, o que dá um grande alento. É melhor fazer isso sendo reconhecido do que estar no seu ateliê batalhando até você descobrir um grande trabalho sem que ninguém veja. Estar sozinho, nessa hora, é muito chato. A exposição que teve aqui no Parque Lage, Como vai você, geração 80?28, tinha 180, 200 pessoas, muita gente. Eu tinha certeza de que dali não ia ficar nem 10% disso. E foi o que aconteceu. Existia toda uma coisa, naquele momento, que não era para permanecer, não tinha como se sustentar. Não importa o que estava acontecendo nessa época, agora é outro território, outro momento. A pintura como linguagem vai existir sempre. Temos trabalhos que juntam linguagens distintas, até fica difícil classificar qual é a linguagem principal. Mas o que sustenta uma obra é a sua qualidade, independente da linguagem do momento. E, naquele momento, eu tinha essa sensação de que, se eu não mudasse, se continuasse naquele ambiente expressionista, não ia conseguir ir adiante. Mas você conseguiu fazer essa transformação de uma maneira que não envolveu riscos financeiros? Porque você já estava, provavelmente, vivendo do seu Aluno: 104 105 C A DER N OS EAV DAN I EL S EN I S E trabalho anterior, que era típico da geração 80, e fazer essa transformação pedia um período. Foi uma coisa que você foi fazendo racionalmente, você foi largando seu trabalho antigo para continuar dentro do meio, ou foi de um salto que você trouxe um trabalho diferente? Não. É porque eu mostrei poucas imagens. Mas na verdade nunca teve uma ruptura muito grande no trabalho. Quando comecei, eu trabalhava em um escritório de programação visual dentro de um banco e saí de lá porque já estava na Bienal de 85. Fazia mais sentido ficar pintando, porque eu poderia me sustentar. Mas até meados dos anos 90, minha vida era muito simples. Eu não precisava de muito dinheiro, então o risco financeiro era sempre baixo, porque eu não ganhava muito. O mercado começa a ficar forte do meio dos anos 90 em diante. Não só para mim, mas acho que o mercado em geral começou para todo mundo nessa época. Mas, no meu processo, sempre tirei a pressão financeira da expectativa do trabalho. Eu acho isso um problema. Porque é uma maneira de você ficar sendo mal influenciado. Quer dizer, se você tem vontade de fazer uma coisa que tem pouco potencial de mercado, pode ser que você a descarte, por questões de grana. Você falou daquele trabalho: Ela que não está, que é sobre uma parte que está faltando do afresco do Giotto. Eu queria saber como é que você lida com essa informação. Pois eu, pelo menos, ao ver o trabalho, não saberia identificar isso sem esse dado. Eu queria saber como é que você insere essa informação no trabalho, se isso é uma preocupação. Aluno: Meu desejo é fazer um trabalho em que o espectador não precise de uma informação a priori. Eu gosto também da ideia de um trabalho que não fale de uma coisa só. Que, para você, ele fale uma coisa, e, para outra pessoa, fale outra. Mas é inevitável hoje em dia – no momento que a gente vive – as obras terem referências. Não da arte apenas, mas terem um território em que, se você tiver algum tipo de informação, pode se relacionar de uma maneira mais intensa com esse trabalho, pensar mais nele. Por isso, os tijolos de Tijolos para EVA são feitos com livros, com material de arte. Seria diferente se eles fossem feitos de cimento, gesso e cola. Ou se fossem feitos com papéis do Diário Oficial. Teriam um outro significado. Quer dizer, me interessa uma arte que chame o olhar, uma obra que chame o olhar. Você pode dizer que ela pode ser bonita, pode ser atraente, pode ser barulhenta. 106 107 C A DER N OS EAV DAN I EL S EN I S E Mas eu acho que isso é uma maneira de entrar num ambiente, e a forma como você lida com esse ambiente é pessoal, é sua. dentro?”. Eu pintei só chapado, e ficou chato, então eu provoquei uns acidentes de verniz com água, que deram um efeito pictórico naquele espaço contido, que se expandiu um pouquinho também para fora do espaço, mas principalmente dentro daquele espaço – que era a forma que faltava no Giotto. A falta do Giotto é uma coisa assim: eu fui para Florença para ver o Giotto. Aí, você está lá olhando, é uma capela, a igreja tinha umas capelas e tinha a capela da família Bardi, onde estava ilustrada a vida de São Francisco de Assis. Há um guia mostrando o que está acontecendo na pintura, fala da qualidade nas expressões, fala da qualidade da cor do Giotto. Há uma tremenda mancha muito interessante, lá, que tem uma história, mas sobre a qual o guia não fala. O seu olho vai através daquela mancha, apesar dela estar te atingindo visualmente da mesma forma que o afresco. Ambos estão no plano físico, o mesmo plano de apreensão, mas ela não está sendo comentada. E eu achei interessante esse tipo de exclusão que o olho tem que fazer, às vezes, para que se veja alguma coisa. Claro que isso é apenas uma das maneiras de se pensar nisso. Então, eu pensei em fazer umas telas onde o meu campo de trabalho seria exatamente o que está faltando no painel do Giotto. Eu fiquei uns seis meses pensando: “como é que eu vou pintar lá Visualmente, o trabalho Ela que não está tem uma forma interessante. Mas, quando você tem essa informação de que aquilo ali é a parte que falta do afresco do Giotto, isso acrescenta outro tipo de interpretação, ou um outro tipo de dimensão na fruição de quem está vendo o trabalho. Então, era isso que eu queria saber, se você acha essa informação fundamental ou se ela é simplesmente uma coisa a mais. Porque eu vejo isso em muitos trabalhos seus. Em A trajetória do bumerangue: quando você fica sabendo que aquilo ali é a trajetória invisível do bumerangue, parece que o trabalho ganha muito mais força. Aluno: É, mas na verdade, como eu já disse, eu não espero que todo mundo veja o trabalho do jeito que eu vejo. Eu gosto de um trabalho que tenha um apelo visual forte, inicialmente, e se você tiver mais informações sobre esse trabalho, tudo bem, isso aumenta a capacidade de você fruir em relação a ele. 108 109 C A DER N OS EAV DAN I EL S EN I S E “eu tinha a sensação de que, para um trabalho de arte ser potente, ele tinha que discutir ou problematizar a linguagem que ele estava usando.” E eu acho isso inevitável, na arte contemporânea: a informação é parte do trabalho. Me incomoda só quando, sem a informação, não há nenhum tipo de comunicação com o trabalho. Por outro lado, tem um artista contemporâneo que diz: “Eu me preocupo com todas as instâncias do trabalho, eu tento tratar de todas as instâncias do trabalho”. Eu não acho que isso seja possível, a não ser alguns trabalhos do período da arte conceitual, onde a possibilidade de um devaneio é quase zero. Mas, hoje em dia, eu acho isso uma pretensão. Eu não consigo tratar todas as instâncias do meu trabalho, e acho muito legal, eventualmente, que alguém traga uma nova instância de ver um trabalho meu. Porque o trabalho também é uma mediação sua com alguma coisa que você não conhece. É a materialização dessa mediação. Eu gosto de me sentir o observador privilegiado do trabalho. Eu não tenho o domínio de todas as leituras dele, mas acho que não tem como se fazer um trabalho hoje sem referências. Ter múltiplas referências é muito interessante. Eu queria falar um pouco desse trabalho dos tijolos no CCSP. Quando você estava falando da série Skira, você mencionou uma prática de não tematizar a pintura, de não trazer temas de ordem social e política para o trabalho de pintura. Aluno: 110 111 C A DER N OS EAV DAN I EL S EN I S E Mas esse trabalho dos tijolos tem uma lógica de interdição. Isso, em algum aspecto, fala sobre sociabilidade, sobre o acesso à arte. Aí, eu queria saber: Como você descola essas dimensões da vida do trabalho? E por quê? Aquela frase foi rápida; é legal você trazer isso, porque é uma questão. Eu acho que não tem como separar a vida do trabalho – e eu acho que, hoje, a arte contemporânea que mais me interessa é a que volta a tratar das questões da vida e que não se preocupa simplesmente com a sua especificidade, a arte pela própria arte. Esse é, em geral, o encaminhamento da arte hoje. Existe uma tendência, também, de uma arte engajada politicamente e socialmente, num nível maior do que me interessa, principalmente quando ela tematiza uma questão social. Sem espaço para nenhuma transcendência. Eu não tenho interesse nisso. Gosto da ideia de uma arte que possa permanecer depois que seu contexto muda. Claro que você tem que se reportar ao contexto do Fra Angelico para ver melhor o trabalho dele. Mas tem especificidades do período Fra Angelico que não são mais relevantes hoje. O que eu quero dizer é que não há como um trabalho, hoje, não se comunicar por uma via da nossa vida social. Esse trabalho dos tijolos, à medida que eu fui fazendo, fui descobrindo vários níveis de apreensão. De como é que se pode olhar para ele por outro caminho que não o que eu tinha – essas coisas das instâncias, que eu tinha pensado a priori. Por exemplo: a estátua da Eva está olhando para um lado, e por acaso eu botei a fabriquinha do tijolo no andar de baixo, e o olhar dela ia direto para lá. Então, alguém falou: “Há uma relação de uma pessoa que está sendo aprisionada com seu carcereiro, ela está vendo os tijolos que vão envolvê-la.” Eu não tinha pensado nisso. Eu pensei mais na ideia de construir um volume de caráter escultórico – foi a primeira vez que eu fiz uma coisa assim – em torno de uma escultura muito interessante, que tem formas macias – enquanto meu objeto tinha formas duras, arestas. Essa Eva não tem arestas, é um corpo. Essa foi a minha chegada principal a esse trabalho – mas, obviamente, tem outro nível de leitura, que é: em todo o material publicado por esse espaço e por outros centros culturais, eu tirei a informação dessas publicações. Eu zerei as publicações, em termos de conteúdo informativo, e transformei em material. Isso é uma coisa política, uma afirmação política, uma crítica ou uma intervenção. 112 113 C A DER N OS EAV DAN I EL S EN I S E Eu peguei um material que fala da arte e retirei o que está sendo falado, o que é uma operação inversa àquelas impressões de espaços vazios. Nesta, eu pego a informação que está no espaço e coloco na parede. Aqui, eu estou tirando a informação que está no material e botando na parede. Isso está falando de coisas além do que simplesmente a minha vida interior abstrata. Tratando da ligação, da questão desses materiais com a vida em torno. isso, ainda existia toda uma operação em cima da ideia da pintura, principalmente, ou do objeto. A Leda Catunda, que ainda lidava com a superfície pictórica; o Leonilson, a Bia. O Angelo Venosa, que é um escultor – mas que também trabalha no plano. Esses são os meus companheiros de geração. A Cristina Canale, que tem um trabalho mais pictórico; o Luiz Zerbini, que hoje tem uma produção muito interessante, em que ele circula de materiais prontos para uma pintura mais virtuosa. Eu acho que o que caracterizava esse grupo era a diversidade de soluções. Claro que há um ambiente político, que é inevitável. Toda arte é conceitual. Existe sempre um percentual de conceito na arte. E toda arte é política. O que não me interessa é quando ela é tematizada, e isso é tão predominante que o fato da visualidade fica secundário. Como você vê sua relação atual com outros artistas contemporâneos? Da geração que te marcou no início da carreira, com outros artistas brasileiros da geração 80, e também no panorama internacional. Você vê semelhanças, proximidades com algum grupo, ou existe uma independência muito grande entre os artistas? Aluno: No passado, eu já conversei com alguém que o que unia os artistas da geração 80 era a diversidade de soluções. Mas, quando falei Cada um fazia do seu jeito, inventou a sua cozinha – a partir ou de uma poética pessoal ou de uma preocupação pessoal com a arte. Isso, logo ao final dos anos 80, se expande com outros artistas que saem do plano, como o Ernesto Neto, a Rosângela Rennó e outros que vieram depois e que também têm essa característica. Eu acho que, hoje, a gente não tem mais essa proteção da marquise moderna, em que você começava a discutir uma questão a partir de algumas regras formais estabelecidas a priori. Hoje você pode usar qualquer coisa e aquilo funcionar. Eu não sei se responde a sua pergunta, mas eu acho que, às vezes, um artista plástico pode ter uma conversa mais interessante com um cientista do que com outro artista plástico. 114 115 C A DER N OS EAV DAN I EL S EN I S E Como estava falando, eu uso a arte para resolver um problema pessoal de viabilizar minha vida nesse mundo, mas isso não quer dizer que vá me entender, no sentido de ter uma troca profunda com uma obra de um determinado artista, porque a arte, hoje, se tornou um campo muito amplo de expressão. Na verdade, depois eu não gostei de ter mostrado esse trabalho no MAM. Eu lamentei tê-lo colocado no MAM, porque ele foi feito para o MAC. Esse é o tapete do MAC, esse era o céu em volta do MAC. O espaço do MAC é circular, então, era como se eu tentasse eliminar as paredes do museu. Quer dizer, se eu tivesse tapete para todas as paredes, que não foi o caso. Mas é o início da ideia de que o pássaro é a própria parede do MAC. Inclusive existe uma crise de limites, e eu acho que esses limites, ao longo dos próximos tempos, vão se redefinir. O que é arte, o que não é arte. A relação da arte com o mundo comercial, essas coisas que estão sendo tão presentes na nossa vida. Eu começo a partir desse meu problema pessoal de expressão, e existem alguns artistas que me interessam. Não necessariamente são pintores ou amigos meus, mas é com essas obras, eventualmente, que eu convivo – e vejo as coisas se desenvolverem. Mas é um campo muito amplo. Hoje, acho que não tem mais como você formar um grupo em torno de uma ideia. Para começar, isso dá certo – mas, depois, cada um vai ter que seguir o seu caminho. Aluno: A respeito daquele trabalho dos pássaros no MAC, que depois foi remontado no MAM29: a versão do MAC eu não tinha visto, mas no MAM você optou por uma outra coisa, por deixar aquele resquício do corte do pássaro ali presente no trabalho. Eu queria que você comentasse o porquê dessa escolha. Quando eu exibi no MAM, eu não tinha essa distância, eu não tinha todo esse ambiente. E resolvi colocar as sobras dos bichos, desses pássaros, penduradas. Mas achei que o trabalho ficou muito sujo, perdeu a sensação de imagem pura. Por exemplo, nessa foto, você não consegue identificar o que é isso. Só se você chegar mais perto que vê que é um tapete pregado na parede com pushpin. Por isso que, no MAC, resolvi não deixar os corpinhos das aves penduradas. No MAM, eu coloquei de volta, mas acho que não foi uma boa solução. Você usa muito a fotografia no seu processo de criação? Por exemplo, aquele trabalho das Cavalariças tem uma relação de expor um trabalho criado a partir de uma Aluno: 116 117 C A DER N OS EAV DAN I EL S EN I S E imagem do local no próprio local, criando várias projeções, como se houvesse uma profundidade expandida. Eu vi no seu site trabalhos daquele mesmo processo de retirar o chão, e dizem respeito à arquitetura de uma galeria ou então de um museu. Eu queria que você comentasse isso, se existe esse mediador fotográfico, ou não. gravura, em que se faz uma tiragem, o impressor imprime, você vai lá e assina. Isso me dá uma sensação de suvenir. Eu acho que até por eu gostar de pensar na ideia do sudário, na presença da coisa na frente do observador, da coisa mesmo na frente do observador, a ideia de peça única, para mim, é muito mais atraente. Há alguns trabalhos seus em que o título parece ser muito importante. Eu queria saber sobre essa relação entre a palavra e a imagem, para você. Aluno: Na verdade, eu nem uso fotografia para isso, em termos técnicos. Eu faço uma transferência de desenhos mesmo. Eu desenho o espaço, ponho um ponto de fuga e faço o espaço. Eu fiz uma série, quando comecei a fazer esses trabalhos com espaços, em que representei alguns espaços de museus. Eu escaneava essas imagens, depois desenhava as linhas, fazia um acetato e projetava na parede. Essa é a relação técnica com a fotografia, não é? Eu não sei, talvez não tenha muito a dizer, a desenvolver, aqui, uma ideia sobre como esse trabalho se relaciona com fotografia. Tem uma coisa que acho que me interessa e que eu gosto, em arte, que é a peça única. Eu fiz alguns trabalhos com fotografia, mas cada uma delas tem uma intervenção, que faz com que uma não seja igual a outra da mesma série. Eu não gosto muito da ideia de Eu tenho trabalhos que acho que se resolvem pelo título. Mas tem trabalhos em que eu não consigo achar o título. Eu adoraria ter mais facilidade para títulos, como, por exemplo, o Arthur Omar, que eu considero o melhor autor de títulos do Brasil. Ele tem um livro chamado Antropologia da face gloriosa, que já é grande um título. E ele escreveu um texto sobre meu trabalho chamado O chão andaluz. Tem alguns trabalhos que se eu tivesse tido um bom título eu teria colocado. Eu acho o título importante. Quando não consigo, ou acho que o título vai atrapalhar, deixo sem título. Mas existe um trabalho meu que se sustenta principalmente pelo título, um que não citei aqui, mas o título é O beijo do elo perdido30, que tem uma 118 119 C A DER N OS EAV DAN I EL S EN I S E metáfora com a ideia do retorno da pintura, sempre. O trabalho ficou terminado e passou a existir depois que achei esse título. Notas 1. SENISE, Daniel. Sem título, 1988. Acrílica, óleo e esmalte sintético sobre tela. 245 x 201 cm. 2. VENOSA, Angelo. Baleia, 1989/90. Aço Corten. 600 x 350 x 250 cm. 3. SENISE, Daniel. Sem título, 1988. Acrílica e óleo sobre tela. 185 x 135 cm. 4. WHISTLER, James Abbott McNeill. Arrangement in Grey and Black No.1: Portrait of the Artist’s Mother, 1871. Óleo sobre tela. 144,3 x 162,4 cm. 5. SENISE, Daniel. Portrait of the Artist’s Mother, 1992. Acrílica e óxido de ferro sobre cretone. 202 x 207 cm. 6. SENISE, Daniel. Despacho, 1993. Acrílica, pó de ferro e verniz poliuretânico sobre cretone. 207 x 304 cm. 7. SENISE, Daniel. Sem título, 1993. Acrílica, pó de ferro e verniz poliuretânico sobre cretone. 207 x 355 cm. 8. SENISE, Daniel. Casamento, 1994. Acrílica, pó de ferro e verniz encáustica sobre cretone. 160 x 190 cm. 9. SENISE, Daniel. Ela que não está I, 1994. Verniz poliuretânico, pó de ferro e laca sobre tela. 193 x 305 cm. 10. BONDONE, Giotto di. A morte de São Francisco, 1325. Afresco da capela Bardi, S. Croce, Florença. 11. SENISE, Daniel. Ela que não está, 1988. Acrílica e betume e pigmentos sobre tela. 247 x 212 cm. 12. SENISE, Daniel. Ela que não está II, 1994. Verniz poliuretânico, pó de ferro e laca sobre tela. 193 x 305 cm. 13. SENISE, Daniel. Bumerangue, 1994. Esmalte sintético e óxido de ferro sobre tela. 14. Coleção de livros editada por W. M. Jackson Inc. Obra originalmente inglesa publicada no Brasil em 1920 e reeditada em 1958. Cada edição, composta por dezoito volumes, aborda assuntos científicos, históricos, resumo de livros clássicos e biografias. 15. SENISE, Daniel. Cavalariças I, 2001. Acrílica em colagem sobre madeira. 300 x 300 cm. 120 121 C A DER N OS EAV DAN I EL S EN I S E 16. SENISE, Daniel. Cavalariças II, 2001. Acrílica em colagem sobre madeira. 300 x 400 cm. 17. SENISE, Daniel. Quase infinito. Exposição individual realizada no Museu de Arte Contemporânea, Rio de Janeiro, 22 de fevereiro a 1 de junho de 2003. Saiba mais: http://www.danielsenise.com 18. SENISE, Daniel. Obra, 2005. Acrílica em colagem sobre madeira. 300 x 400 cm. 19. SENISE, Daniel. Soft and Hard, 2007. Acrílica em colagem sobre alumínio. 250 x 465 cm. 20. SENISE, Daniel. A virgem ainda, 2006. Acrílica em colagem sobre madeira. Dimensões: 200 x 300 cm. 21. SENISE, Daniel. Ici et ailleurs, 2007. Acrílica em colagem sobre alumínio. 465 x 500 cm. 22. SENISE, Daniel. “…”, 2007. Aquarelas em colagem sobre madeira. 400 x 500 cm. 23. SENISE, Daniel. Skira I, 2009. Papel colado sobre alumínio. 200 x 150 cm x 2. 24. SENISE, Daniel. Tijolos para EVA, 2009. 25. BRECHERET, Victor. Eva, 1919. Mármore polido. 1,17 m de comprimento. 26. SENISE, Daniel. EVA, 2009-2010. Instalação em progresso. Centro Cultural São Paulo. 27. Achille Bonito Oliva reconhecido crítico italiano de arte contemporânea, com vasta produção, nas décadas de 70 e 80, sobre o maneirismo. Atuou também como professor de História da Arte Contemporânea na Universidade La Sapienza em Roma e como curador. 28. Como vai você, geração 80?. Exposição coletiva que reuniu trabalhos de 123 artistas, realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro, aberta em 14 de julho de 1984. 29. SENISE, Daniel. Vai que nós levamos as partes que te faltam. Exposição individual realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 6 de junho a 20 de julho de 2008. 30. SENISE, Daniel. O beijo do elo perdido, 1991. Acrílica e óleo sobre cretone. 139 x 203 cm. Iovino M., María; FERREIRA, Glória. Vai que nós levamos as partes que te faltam: Daniel Senise. São Paulo: Pinacoteca, 2011. 335 p., il. MESQUITA, Ivo. Daniel Senise: ela que não está. Textos de Ivo Mesquita, Dawn Ades e Gabriel Pérez-Barreiro. São Paulo: Cosac & Naify, 1998. 220 p., il. Edição bilíngue português-inglês. SENISE, Daniel. Daniel Senise — 34–01 38 AVE, LIC/S.R. 34, RJ/W.L. 140, RJ. Salvador: Paulo Darzé Galeria de Arte, 2008. SENISE, Daniel. XXIX Bienal de São Paulo. Textos de Marco Silveira Mello e Luiz Camilo Osório. São Paulo: Casa da Imagem, 2010. 88 p., il. 122 EDUA R DO COIMB R A Vamos começar esse encontro, com um vídeo1 sobre a obra Passarela2, uma instalação permanente do Museu do Açude. [ Áudio do vídeo O azul do céu não existe] O azul do céu não existe A paisagem só existe quando alguém a olha. É a partir desse ponto de vista que deve ser pensada a paisagem, uma coisa compreendida como extensão do espaço visual, a paisagem como um grande côncavo que nos abarca, onde se misturam vibrações contínuas, luzes, distâncias, caminhos e deslocamentos. Uma concha enorme que só existe até ao alcance da nossa visão, é uma superfície que está longe, mas se aproxima Natureza da paisagem, 2007 Grama, copos de plástico e madeira pintada Dimensões variáveis Vista da Instalação: Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2007 Foto: Eduardo Coimbra 124 125 C A DER N OS EAV EDUARDO CO I MB RA e chega a nos tocar, olhar uma paisagem é também ser olhado por ela, feito de um seguido de vinte e sete e zero átomos. Falta muito, mas... é estar nela na direção de inúmeros pontos que se alinham ao nosso O azul do céu não existe. olhar em várias perspectivas. O horizonte é uma linha, uma fenda, uma possibilidade de mergulho em direção ao fundo da imagem. Nadamos em busca do ponto de repouso, o silêncio, onde toda a memória do percurso se torna presença ativa. Eu gostaria de inicialmente agradecer à Escola de Artes Visuais pelo convite e a todos vocês pela presença. Imagino que seja interessante falar um pouco da minha trajetória e comentar alguns trabalhos que fiz e que me levaram às questões em que estou trabalhando agora. Dali, de onde nasce a paisagem, talvez um duplo de nós esteja também em busca do seu próprio olhar, a ricochetear entre linhas e luzes. Ver não é uma atividade linear, contínua e consequente. Uma paisagem não é algo onde alguém possa se excluir. Olhar uma paisagem é fazer parte de um fenômeno. Qual é a forma da paisagem? Ela é a forma de todos os movimentos do olhar, os seus ecos e recortes. Percorrer uma paisagem é andar no plano e no tempo, é contornar as formas e instante vibrar na profundidade. Por mais que voemos, atravessamos sempre as camadas de um mesmo plano. Estamos comprimidos entre a dimensão infinita daquilo que não enxergamos e a impossibilidade de penetrar além da superfície do olhar. O teletransporte é o limite para a existência de paisagem. Cientistas conseguiram teletransportar um feixe de raio laser durante dois segundos, e reproduziram em outro local do laboratório. Em poucos anos querem teletransportar um átomo. Somos Pra falar um pouco das minhas raízes, tenho formação em Engenharia Elétrica e trabalhei oito anos na General Electric. Depois fiz o curso de pós-graduação de História da Arte e Arquitetura no Brasil, na PUC do Rio. Passei raspando pela geração 80, andei frequentando a EAV, enquanto ainda era engenheiro, um ano antes da geração 80, e por pouco não participei. Fui fazer outras coisas, voltei a trabalhar em ateliê em 88, 89, e a partir daí comecei a expor, de 90 em diante. Me entendo, assim, fazendo parte de uma geração de artistas que vieram imediatamente após a geração 80. Essa produção, podemos entender como uma resposta ao que era praticado na geração 80, principalmente na questão da quebra do uso do suporte tradicional que, particularmente através da pintura, era muito presente. A escultura, também, era uma categoria bem específica, e nossa geração começou a fazer trabalhos multimídia, no sentido de que não 126 127 C A DER N OS EAV EDUARDO CO I MB RA era a especialização em um determinado meio de expressão que identificava o trabalho, mas sim a poética de cada um. De certa maneira foi uma retomada de experiências presentes na arte experimental dos anos 70, de um modo diferente, mas que partia para uma prática que não tinha o meio como categoria pré-determinada do fazer artístico, a estratégia do trabalho é que fazia o artista preferir determinada pesquisa de material, o uso de um determinado objeto, um ou outro tipo de acabamento. A importância da realização manual da obra, do gesto, como marca do artista, foi abandonada completamente. Era uma geração que partiu mais para a questão do objeto, usou muito a apropriação e a ideia das instalações, ambientações, o uso da fotografia, mesmo não sendo fotógrafo, uso de vídeo e performance. Dessa geração, em que me incluo, vou citar alguns nomes: o Ricardo Basbaum, que foi meu parceiro em vários projetos, Raul Mourão, João Modé, Carla Guagliardi, Brígida Baltar, Marcos Chaves, Valeska Soares, Tatiana Grinberg e vários outros, José Damasceno, Ricardo Becker. Salvo alguns que começaram antes, a maioria desses artistas começou mesmo a trabalhar nos anos 90, que, na realidade, foi a época em que a arte brasileira começou a ganhar evidência no cenário internacional. Uma característica dessa geração, diferente da geração 80, foi sua relação com o mercado. Na geração 80, o mercado foi um dos grandes agentes legitimadores daqueles trabalhos, e na nossa geração demorou um tempo até o mercado assimilar a produção. Hoje, vários de nós temos galerias e situação no mercado, mas isso demorou um pouco para se estabelecer. Outra característica presente nessa geração era a criação, por iniciativa dos artistas, de muitos grupos de estudo. Nós fizemos um grupo chamado Visorama, vários desses nomes que eu citei participaram dele. Começamos em 1989 como um grupo de estudo que se reunia em casa, líamos textos de arte e filosofia, e, depois de um tempo, resolvemos partir para a rua. Fizemos várias palestras, aqui na EAV foram diversas, também em outros lugares no Rio, São Paulo e Minas. Fizemos um banco de imagens de mais de duas mil imagens em slides, que utilizávamos nas palestras, recolhidas em revistas, catálogos e livros, e também através de doações de artistas, juntando arte contemporânea brasileira e internacional. Essas atividades duraram uns quatro, cinco anos, e acabaram gerando a revista Item. Eu, o Basbaum e o Raul fizemos o primeiro número, a partir de um texto do Basbaum sobre a exposição Escultura carioca3, os nomes que eu citei estavam quase todos lá também. A revista Item durou seis números. Era uma revista que tinha por ideal colocar a arte, o pensamento da arte, junto a outras formas de pensamento, como psicologia, história, antropologia, filosofia, 128 129 C A DER N OS EAV EDUARDO CO I MB RA música, história da arte, crítica de arte. Os textos eram sempre acompanhados por imagens de arte contemporânea e a ideia era apresentar essa multidisciplinaridade, que é uma característica do pensamento contemporâneo e por conseguinte da atividade artística. Em seguida, eu, o Basbaum e o Raul, novamente, criamos o Agora – uma agência para produção de eventos artísticos, não só nossos mas também de artistas convidados. Em parceria com o Capacete, do Helmut Batista, ocupamos um espaço na Lapa e durante dois anos e meio apresentamos vários projetos. A prática dos coletivos de artistas estava ainda começando no Brasil e podemos dizer que fomos um dos projetos pioneiros. coisa que tem um funcionamento, que tem uma otimização prática para sua realização. Uma característica marcante na minha produção, não só nos trabalhos iniciais como até hoje, é que quando eu penso um trabalho, quando a ideia surge na minha cabeça, surge também a maneira como ela vai ser executada. A forma final do objeto, ou da intervenção, está ligada à condição técnica dele existir como realidade. Isso com certeza é uma herança, ou melhor, é uma característica do lado engenheiro. Como falei, trabalhei como engenheiro, foram sete anos num centro de desenvolvimento de equipamentos para uma fábrica de medidores de energia elétrica. O que eu fazia não era o produto a ser comercializado, eram equipamentos a serem usados na fábrica, quadros de calibração, equipamentos para o controle de qualidade, etc. Havia uma oficina onde eu e os engenheiros que estavam comigo desenvolvíamos protótipos e construíamos aparelhos. A rotina de fazer esses objetos, esses protótipos, me deu a aptidão para fazer o que eu faço hoje e, de certa maneira, definiu como eu iria conduzir o meu trabalho de artista. Acho que tem muito dessa experiência a ideia de fazer um objeto no mundo real, pensar uma Penso que uma obra de arte é o resultado de um trabalho intelectual que realiza uma coisa ou uma situação nova no mundo, uma coisa que, de alguma maneira, transforma o mundo – há o antes da existência da obra e o depois. O trabalho científico faz uma coisa semelhante, mas a ciência busca respostas para as indagações da civilização e busca o que a gente chama de progresso da civilização. A arte, não. A arte quer fazer perguntas, a arte quer criar rupturas, incertezas, quer abrir lacunas. A arte serve para isso, para fazer com que coisas que estão instituídas como certas possam ser, de alguma maneira, repensadas e daí surgir uma nova possibilidade, uma resposta nova para uma situação nova. Acho que o trabalho do artista é desenvolver uma linguagem própria dentro de uma poética que ele se propôs a aprofundar, e que estabeleça um campo para a ação de uma inteligência compartilhada com a instância pública. O 130 131 C A DER N OS EAV EDUARDO CO I MB RA trabalho do artista é esse, e as perguntas que o trabalho dele suscita vão engrossar o caldo cultural que caracteriza o lugar onde ele vive. Acho que toda obra de arte é universal, mas está totalmente ligada ao lugar onde ela foi pensada e produzida. fora de um pedestal, em relação com o tamanho da sala, com a luz do ambiente, que ele se misture com tudo isso, esse é o lugar onde eu pretendo que ele apareça. Voltando a falar de meus trabalhos, tenho interesse que eles revelem, tornem explícito o mecanismo que usamos para compreender e perceber as coisas. Através de paradoxos e desvios da percepção, a ideia é provocar a necessidade de um realinhamento para a compreensão de uma situação nova. A mim interessa operar esse realinhamento, propor esse desvio, e que o trabalho seja o dispositivo que faça a bússola voltar a sua posição original depois de ter passado perto de um imã. O resultado formal do trabalho está a serviço da eficiência, para causar o desvio e o realinhamento que pretendo, a forma, portanto, pode ser de uma coisa já existente como, por exemplo, uma foto. Gosto de trabalhar com um vocabulário acessível de coisas e referências do cotidiano, reconhecíveis e facilmente elaboradas pelas pessoas, justamente para ter uma eficácia nessa interjeição que o trabalho pode causar. Acho que o trabalho deu certo quando ele, trabalho, não se entende como uma obra de arte, que ele até possa passar despercebido, que ele possa ser como um armário ou uma janela. Que ele tenha a postura de estar no mundo real, ali, para viver Meus primeiros trabalhos eram trabalhos que funcionavam como se fossem aparelhos, tinham aparência de objetos comuns, mas através de mecanismos elétricos, luminosos e motores, propunham relações temporais e espaciais com o entorno onde eles estavam inseridos. Como, por exemplo, a Cabine4, um armário de ferro onde através de uma janelinha pode ser visto um campo infinito de LEDs em seu interior, ou no Espelho5, onde um contador digital de tempo, variando de 00 a 99 segundos com os números do mostrador formados por números menores, se confronta com a imagem refletida do espectador. Durante a década de 90 realizei várias exposições onde criava um espaço cenográfico e alguns objetos eram colocados como se fossem elementos de uma narrativa. A primeira dessas exposições chamava-se Istmo6. Constava de três malas com movimentos respiratórios, gerados por motores em seus interiores, e uma janela com uma imagem de céu em backlight. Foi a primeira vez que usei uma imagem fotográfica, e a imagem de céu começou a ser uma constante em várias situações. Meu interesse surgiu do fato de 132 133 C A DER N OS EAV EDUARDO CO I MB RA “Gosto de trabalhar com um vocabulário acessível, composto de coisas e referências do cotidiano, reconhecíveis e facilmente elaboradas pelas pessoas, justamente para ter uma eficácia nessa interjeição que o trabalho pode causar.” uma imagem de céu ser uma imagem peculiar, é a imagem da virtualidade por excelência. O azul do céu não existe, não há um plano cromático no fundo da imagem, é a refração da luz nas camadas da atmosfera que gera essa cor. E os densos volumes brancos das nuvens não são mais que acúmulos de gases. A imagem do céu, uma coisa tão emblemática e sedutora, tão presente no nosso imaginário, em várias iconografias da arte, passei a achar interessante como índice de infinito, a visão de um lugar inalcançável, já apontando para o interesse que eu teria em trabalhar as relações de espaço interior e exterior. Em meados dos anos 90 realizei uma série de trabalhos, que chamei de Paisagens. Eram trabalhos com uma qualidade escultórica acentuada, onde eu juntava a imagem de céu, em backlight numa caixa de acrílico, e terra, matéria física. Foi a partir desses trabalhos que comecei a me interessar pela ideia de paisagem. Tenho trabalhado principalmente três questões em meu interesse pela paisagem: sua qualidade híbrida de imagem e matéria, a noção de horizonte e a relação de mútua presença entre quem vê e o que é visto. Como sabemos, a ideia de paisagem surgiu na Renascença a partir do interesse do “novo” homem em compreender e representar o seu entorno. Portanto, a paisagem já surgiu como sendo ao mesmo tempo a realidade física e a representação dessa realidade. A paisagem é aquilo que se 134 135 C A DER N OS EAV EDUARDO CO I MB RA vê, a paisagem só existe se alguém vê. Os elementos físicos estão lá, as árvores, os prédios, mas a paisagem está diretamente ligada ao ato de ver. É o real através de um recorte da visão, é, portanto, uma construção ligada à materialidade e à imaginação. Outro elemento que começou a me interessar a partir desses trabalhos, o que parece evidente, é a noção de horizonte. O que é horizonte? O horizonte é uma linha que separa o palpável do não palpável, o visível do não visível, aquilo que está na frente daquilo que está por vir ainda, que está ali atrás da terra. O horizonte é um limite entre o material e o virtual, entre o agora e o porvir. Essa linha que determina esse contorno é o fundo da paisagem, ela separa a realidade da ficção. O terceiro ponto de interesse é a qualidade da experiência do contato com uma paisagem. A paisagem é uma concha que te abarca, e você está ali em seu lugar olhando e sendo alvo de inúmeros pontos de vista que se intercruzam a sua frente. Ver uma paisagem é fazer parte de um fenômeno. muitas vezes se junta com questões da arquitetura, mas que também se utiliza da imagem fotográfica em experiências que conjugam imagem e tempo e imagem e espaço. Invenção da paisagem7 foi o primeiro trabalho de grande porte que realizei em diálogo direto com a arquitetura. O MAC de Niterói tem em sua concepção arquitetônica uma relação explícita com o entorno geográfico, achei oportuno fazer um comentário sobre essa relação sobrepondo as diferentes situações do primeiro e do segundo piso do prédio. Após percorrer o perímetro circular do primeiro piso, onde as paredes envidraçadas expõem completamente a paisagem no entorno do museu, o visitante chega ao segundo piso, onde o contato com o exterior é totalmente vedado. Aí, no ponto diametralmente oposto à entrada, instalei o trabalho – um monte de aproximadamente 7 m3 de terra encostado na parede externa, onde através de quatro aberturas pode-se ver uma paisagem contínua em backlight. Essa imagem fotográfica foi tomada de um ponto no exterior do museu exatamente atrás da parede onde está o trabalho. O efeito é como se através da terra existissem quatro janelas para o exterior. Em diversas ocasiões meu trabalho faz referência a Magritte, e essa, evidentemente, é uma delas. Esse trabalho, além do confronto da materialidade da terra com a imagem fotográfica, provoca, devido à sua escala, um embate entre o elemento natural bruto e a pureza da arquitetura. Do final da década de 90 até agora, nos últimos 13 anos, tenho trabalhado basicamente em duas frentes, que várias vezes se juntam, porque na realidade são a mesma coisa. Uma são os trabalhos com elementos da arquitetura, tanto em nível de projeto, com desenhos e maquetes, como também em objetos e realizações em espaços arquitetônicos, e a outra é uma reflexão sobre a paisagem, que 136 137 C A DER N OS EAV EDUARDO CO I MB RA Em Asteroides10 realizei pela primeira vez trabalhos exclusivamente com fotografia. Essas colagens foram feitas com fragmentos de registros fotográficos de paisagens realizados em seis dias e locais diferentes. O material foi captado em algumas horas de caminhada em cada um desses locais, com uma câmera analógica, e posteriormente analisado no estúdio. Essas imagens, somente vistas após a revelação dos filmes, apresentavam por vezes os mesmos acidentes geográficos tomados de diferentes ângulos e distâncias. A ideia era criar uma nova paisagem a partir da diversidade de imagens captadas em cada uma dessas experiências. A operação aqui realizada transforma a sensação de concavidade presente na apreensão de quem visualiza o entorno que o circunda em um elemento convexo, um corpo maciço cercado de áreas de céu. Essa inversão de orientação da paisagem, quase como uma dobra sobre si, redireciona a evidência para o plano da visão. Ao mesmo tempo, a imagem dessa nova paisagem é dotada de materialidade, pois é composta por pedaços de fotografias visivelmente identificados em seu corte e justaposição. Nessa sucessão de dobras, por fim, o que vemos é a fotografia dessa colagem. Aqui a fotografia age conceitualmente na fronteira entre imagem e matéria, remetendo a uma condição intrínseca da paisagem. Colagem10 , era uma parede de fita adesiva transparente, trançada de alto a baixo entre vários postes estruturais, num local próximo ao pano de vidro do museu, voltado para a baía e o Pão de Açúcar. Ao longo da exposição, várias impressões foram deixadas na fita, poeira, marcas de roupas, digitais, adicionando um registro temporal à apreciação da paisagem. Nesta mostra, entre outras obras, apresentei pela primeira vez trabalhos em maquetes. Penso esses trabalhos não como obras a serem construídas na escala real, são objetos finalizados que sugerem exercícios de pensamentos espaciais, e, cada um a seu modo, tecem relações entre arquitetura, paisagem, percepção e deslocamento. A aparente funcionalidade dessas propostas arquitetônicas está sempre ligada à experiência espacial que elas sugerem, assim também é na série dos Estádios11. Essas formas arquitetônicas, pensadas para jogos específicos, são definidas a partir da dinâmica espacial de cada jogo. São jogos pensados por mim tendo sempre o futebol como referência, mas com regras e formatos próprios. Assim, o movimento do jogo, o desenho de como é jogado, se reproduz no desenho da arquibancada. A ideia é que a audiência vivencie espacialmente o jogo, o espaço da contemplação é contaminado pelo espaço do movimento. Na exposição Paisagem local9 aprofundei várias ideias que lidavam com a relação entre arquitetura e paisagem. Um dos trabalhos, Outro trabalho em maquete que lida com arquitetura e deslocamento é o conjunto das Escadas (2006). O trabalho, formado por 138 139 C A DER N OS EAV EDUARDO CO I MB RA módulos, permite a criação de aglomerações variadas, admitindo inúmeras possibilidades de expansão, relevos e caminhos. Os elementos arquitetônicos são apenas degraus e portas nas paredes laterais dos degraus. As portas são aberturas que sugerem espaços protegidos sob os degraus, formatados pelo desenho ondulante dos caminhos. Essa maquete apresenta um objeto arquitetônico onde os espaços habitados e os caminhos que os conectam são formalmente complementares – não há sobra de espaço. A economia de elementos, aliada à homogeneidade do branco, transforma a visão frontal do conjunto numa experiência ótica onde se evidencia o ritmo das linhas dos degraus e os diversos planos que eles atingem. de São Paulo, no Vale do Anhangabaú. Oito câmeras foram posicionadas em pontos distintos no entorno do Viaduto Santa Ifigênia. Próximos ou distantes, comum a todos os enquadramentos era a presença do viaduto e seu guarda-corpo amarelo como elemento gráfico marcante na paisagem. A intensa diversidade de fluxos de pedestres e veículos e a profusão de elementos arquitetônicos e equipamentos urbanos, aliadas às várias possibilidades de visualização no posicionamento das câmeras, davam riqueza de detalhes a um lugar saturado de acontecimentos. Sob um único comando as oito câmeras foram disparadas simultaneamente (17:05 do dia 1º de abril de 2004). Em conjunto, as oito fotos apresentam um instante expandido, um instante que pode ser percorrido e vivenciado lentamente. As ações percebidas de diferentes ângulos compõem a realidade do instante, sua densidade e permanência. A outra etapa do projeto, Nível do mar, era uma proposta de fotografar o horizonte marítimo a partir de vários pontos na costa brasileira. Através de fotos de satélite, foram escolhidos onze pontos ao longo do litoral, de maneira que a interseção lateral do campo de visão dos pontos adjacentes estivesse dentro das quinhentas milhas, limite do território brasileiro. O percurso teve início no Norte do Pará e terminou na fronteira de Santa Catarina com o Rio Grande do Sul. No processo de realização das fotos, houve o cuidado de se registrar o limite lateral da imagem com um acidente geográfico Trabalhar o espaço arquitetônico, as relações de escala e proporções, a dinâmica dos ambientes, os possíveis caminhos e ocupações, a separação entre interior e exterior, o espaço aberto natural ou urbano, e, portanto, as relações com a paisagem, a percepção e vivência da paisagem, esses são assuntos recorrentes em meus trabalhos recentes. No desenvolvimento das pesquisas sobre a paisagem, a imagem fotográfica é um suporte que utilizei diversas vezes. Como no projeto Paisagem-Fenômeno, desenvolvido com o apoio da Bolsa Vitae de Artes, onde a questão era a experiência da paisagem como um acontecimento no espaço e no tempo. O projeto era dividido em duas etapas. Aqui foi realizado no centro da cidade 140 141 C A DER N OS EAV EDUARDO CO I MB RA terrestre. Desta maneira, ficava claramente definido o ângulo do alcance da visão e seu correto posicionamento no mapa. A proposta é que, vistas em sequência, essas onze fotos retratem a fronteira lateral do Brasil. A ideia do horizonte como o lugar do infinito, um lugar além, cria um abismo para essa lateralidade, mas em termos de medidas e posicionamentos técnicos temos sim a visão dessa fronteira, embora não saibamos identificá-la. Aqui é um conjunto de fotos que registra vários lugares distintos olhando para o mesmo instante. Nível do mar é um conjunto de fotos que registra vários instantes distintos olhando para o mesmo lugar. Aluno: Foi uma escolha, pegar o tempo bom? Eu escolhi onze fotos, mas eu fiz várias outras. Aquela do Pará, no Norte do Pará, Atalaia, eu fiquei um tempo até ter uma situação boa. Do Pará para Fortaleza eu fui de avião, quer dizer, nos pontos que estavam determinados pelo mapa, eu fiquei esperando a coisa funcionar, eu fui preparado para ficar um tempo. Nos pontos do Sul eu fui de carro, então eu fotografei bem mais do que está aí. Acabei escolhendo essa quantidade de fotos porque achei mais interessante. O infinito lateral. Você disse que tira várias fotos e depois as seleciona conforme, por exemplo, o tempo bom. Aluno: Estádio, 2011 MDF pintado e miniaturas de plástico 134,5 x 142,5 x 23 cm Foto: Eduardo Mattos 142 143 C A DER N OS EAV EDUARDO CO I MB RA Por que não a escolha de um determinado tempo, ou um instante determinado mesmo? pulverizados pelo afastamento entre os vasinhos. Esse elemento, típico microcosmo ou unidade de paisagem, remete à ideia da paisagem como construção de significado, como produto cultural. E o plano de grama é o chão da paisagem, um elemento vivo homogêneo que se estende sobre as superfícies. Que se pode pensar infinito, que se alinha perfeitamente ao horizonte. A instalação contava ainda com a presença de três esferas negras de madeira pousadas sobre o gramado em três locais no espaço. Essas peças funcionavam como pesos visuais que equilibravam a apreensão da paisagem no espaço arquitetônico. Únicos elementos acima do plano de grama, eram presenças remotas mas pontuais, silenciosos mas atuantes em sua “ausência” no espaço. Manter um elemento vivo no museu, a grama, no claro embate entre natureza e cultura proposto por este trabalho, exigiu uma rotina de cuidados com ações especializadas a serem realizadas nos horários complementares – poda, iluminação solar suplementar, rega, adubação, tratamento de pragas, troca de vasinhos e reposição de áreas de grama. Foram operações periódicas durante um mês e meio que mantiveram a grama viva e garantiram o retorno integral à fazenda de origem, onde foi inteiramente replantada. A paisagem visitou o museu e retornou ao seu lugar de origem. Poderia ser, mas, na realidade, o que importava para mim nesse trabalho é que eu queria que ficasse visível o limite lateral do horizonte. Em todas as fotos o horizonte termina visualmente numa porção de terra. Isso é o que determina o ângulo no mapa. O importante era a foto conter um registro geográfico para eu saber de que largura era o leque, para que um leque encostasse no outro antes das quinhentas milhas. Então, agora com relação a essa coisa da escolha, de ser bonito ou não, bom, eu acho que qualquer um era bonito. Eu escolhi uns lugares em que havia uma boa visibilidade, onde eu pudesse fazer um recorte em que o nível do mar ficasse no meio da foto. Para finalizar essa apresentação, vou mostrar três trabalhos de grande escala que expõem de maneiras diversas algumas relações entre paisagem e arquitetura. O projeto Natureza da paisagem12, realizado no MAM Rio, se constitui da transposição de um plano de grama de uma fazenda de plantio para o interior do museu. O gramado ocupou uma área de aproximadamente 600 m2 no chão do museu e foram utilizados em torno de onze mil vasinhos com grama plantada. Os visitantes percorriam o interior do trabalho através de espaços abertos no plano de grama, cujos limites eram Em outro trabalho, Passarela, em vez da natureza visitar a arquitetura, a proposta foi inversa; consistiu da construção de um objeto 144 145 C A DER N OS EAV EDUARDO CO I MB RA arquitetônico no meio da floresta. Foi um projeto realizado no edital Arte e Patrimônio, em conjunto com o Museu do Açude, na floresta da Tijuca, no Rio. É um trabalho permanente que, como todas as obras que estão expostas nesse espaço do museu, foi pensado para conviver com a natureza, a proposta já incluía esse desafio. A ideia da Passarela é ser um meio para uma experiência de imersão no espaço aéreo da floresta, proporcionar uma visão do entorno somente possível através de seu percurso. Obviamente todas as instâncias necessárias foram percorridas para que tivéssemos a permissão para construção do trabalho, inclusive a avaliação de que árvores seriam capazes de suportar o peso das estruturas. A opção era que a passarela só se apoiasse nas árvores, não deveria ter outro tipo de apoio, portanto o desenho do trabalho, a forma final que ele teria, seria determinado pelas condições do local. A trilha no interior da mata que dá acesso a esse local corre junto a um barranco. Minha ideia era que a passarela partisse da trilha e se lançasse rumo ao alto das árvores, num sentido contrário ao piso descendente do terreno, chegando a atingir 14 metros de altura na extremidade do percurso. Neste projeto o embate natureza e cultura também exigiu determinadas especificidades – a escolha dos materiais (maçaranduba, aço Corten, aço inoxidável) e o desenvolvimento de um projeto de sustentação da estrutura garantindo que as partes metálicas não encostassem diretamente nas árvores, evitando assim o risco de transmitir ferrugem para o interior dos troncos. Um último trabalho que eu gostaria de apresentar, Nuvem13, foi uma intervenção que realizei num espaço público urbano, na Praça XV, aqui no centro do Rio. Era um conjunto de cinco caixas de luz, com imagens em dois lados, medindo cada uma 5 m de altura por 5 m de largura, com espessura de 50 cm. Elas eram posicionadas em paralelo com um intervalo de 2 m entre elas. O conjunto todo media pouco mais de 10 m de comprimento. As faces maiores eram cobertas por imagens fotográficas de uma nuvem impressas em lona translúcida e as faces laterais eram cobertas por espelhos. Olhado de lado, o conjunto sugeria a visão do volume de uma nuvem fatiada, e durante a noite a luz intensa das caixas criava um casulo luminoso que dava mais unidade ao conjunto. As laterais de espelhos, mais perceptíveis de dia, davam leveza ao conjunto, uma vez que subtraíam a presença e o peso das caixas. Era um trabalho numa escala que interagia com os elementos da praça e do entorno, sendo visível também para quem cruzava pelo alto o viaduto da Perimetral. A experiência de criar uma obra que ocupasse um espaço com um intenso movimento de pedestres, das mais variadas camadas da população, e ao mesmo tempo fosse visível pelo entorno movimentado dos veículos, me deu a dimensão do que é uma intervenção num espaço público. 146 147 C A DER N OS EAV EDUARDO CO I MB RA Achei interessante terminar a apresentação com esse trabalho, pois aqui posso reafirmar o que penso ser realmente interessante em fazer arte. Toda arte é pública. Toda arte exerce uma atitude crítica num ambiente cultural. É certo que os espaços convencionais para abrigar as obras de arte, os museus, instituições e galerias, têm seu lugar garantido na dinâmica expressiva da produção artística. Mas acredito que a esfera pública é o campo de ação da obra de arte, é ali que se potencializa sua qualidade universal. Sem o respaldo da instituição que de antemão legitima e sugere uma disponibilidade prévia para que se entenda aquele objeto como um objeto especial, a obra no espaço público conta apenas com sua presença viva. Digo viva pois é na vida das pessoas, no fluxo da cidade, que ela interfere. O espaço público é o lugar do convívio de uma infinidade de individualidades anônimas, é o espaço da liberdade para que essas individualidades interpretem e façam seu próprio entendimento dos fatos. É o canal mais direto para o exercício do que penso ser a tarefa do artista. No blog do Raul Mourão há um espaço em que ele pede para que artistas escolham cinco imagens de trabalhos que sintetizam sua obra. Você, no blog, escolheu entre alguns trabalhos o Nuvem, que coincidentemente é um dos trabalhos que mais me impressionou pela força e potencial simples. Aluno: Você citou também a Passarela, que, em minha opinião, é um trabalho que também conduz o olhar do público para a paisagem de uma maneira muito simples. Gostaria que você enumerasse algumas noções ou aspectos que precisam ser pensados pelo artista quando ele coloca o seu trabalho na rua, ao invés da galeria ou do salão, se há algo a ser pensado que diferencia o que você faz quando expõe na rua ou numa galeria. Primeiramente tem o ponto de vista da chamada neutralidade que um espaço convencional tem. Na realidade não tem neutralidade nenhuma, porque cada instituição tem suas características, mas de alguma maneira um trabalho no cubo branco, vamos chamar assim, tem uma proteção da própria situação dele estar ali. Ele está ali para quem foi ver uma obra de arte. É um espaço protegido. Na rua, o trabalho está ali do lado do pipoqueiro, ele vai ter que dar conta de estar ali, ele tem que dizer a que veio – em uma galeria ele não precisa dizer a que veio, você vai apreciá-lo dentro de uma moldura. Na rua, o trabalho tem que se impor de uma maneira diferente, ele até pode ser silencioso, pode ser quase imperceptível, existem várias estratégias. Na rua, ele tem que lidar com vários vetores, são diversas as situações que ele tem que avaliar, o tempo de estar exposto, de ser perecível, do espaço que ocupa, das pessoas poderem reagir de um jeito ou outro. 148 149 C A DER N OS EAV EDUARDO CO I MB RA “O horizonte é um limite entre o material e o virtual, entre o agora e o porvir. Essa linha que determina esse contorno é o fundo da paisagem, ela separa a realidade da ficção.” Eu queria saber se essa diferença influencia de alguma maneira as suas escolhas, da escala. Você acabou de falar que escala não importa, poderia ser uma escala pequena, mas ainda assim você acompanha os trabalhos de longe para ver como as pessoas reagem, não é? Essa questão não te influencia mesmo? Aluno: Eu acompanho na medida do possível, sim. Agora, a questão da escala depende da situação, um trabalho silencioso é uma coisa, um trabalho como esse da Nuvem é outra. Era uma escala para que a nuvem fosse atravessada. Estava ali do lado do Paço Imperial. Achei interessante ser vista de longe, de cima, do chão. Fiz testes de escala no local, pensei o ângulo para uma pessoa na Primeiro de Março ver o volume da nuvem, chequei a inclinação do conjunto, coloquei uns moldes de madeira no chão, fui na Perimetral olhar, falei para meu assistente virar mais para cá, virar mais para lá, e com uma estrutura de tábuas em pé visualizamos a altura do trabalho em relação ao entorno. Através de uma maquete, estudei os melhores ângulos de visibilidade, mas você tem que checar tudo no local pra dar conta do que o trabalho vai fazer ali. Você perguntou se eu vou ver o que as pessoas falam, uma das coisas que mais me emocionou foi o que um boy me falou. O garoto passou olhando e eu estava com um fotógrafo. Ele chegou e falou: “O que é isso aí?” 150 151 C A DER N OS EAV EDUARDO CO I MB RA Eu respondi: “Isso é uma obra de arte”. Aí ele falou: “Ah, é tua?” “Sim, é, fui eu que fiz, eu sou o autor.” Ele olhou e falou: “Pô, cara, que interessante, você pousou uma nuvem na praça, e através dos espelhos você enfiou a praça na nuvem.” O cara fala isso e vai embora. Isso daria um texto maravilhoso. Queria o nome dele pra fazer uma citação... Aluno: Você falou que tem assistentes, não é? Eu queria saber como funciona o seu processo de produção, se você desenvolve um conceito, faz um planejamento e deixa o trabalho braçal para outras pessoas, ou se você participa de todo o processo. Como eu falei no início, quando eu penso o trabalho eu já penso uma possível execução. Quer dizer, com a experiência que eu tenho de utilizar diversas técnicas e materiais, tenho um certo know-how de saber como as coisas podem ser realizadas, se é melhor ser feito dessa maneira ou da outra. Então, o trabalho já é concebido assim, já tem um trajeto de como ele deve/vai ser feito. Agora, o fazer em si, eu delego a pessoas para fazerem e acompanho o processo. Tenho sorte de ter ótimos assistentes, que trabalham comigo há muito tempo. Eu falo sempre que se não fossem eles eu com certeza faria coisas diferentes. Você falou sobre o começo da sua carreira, até citou o Basbaum e alguns outros artistas, dizendo que havia uma dificuldade de inserção no circuito de galerias, mas ao longo da sua fala você também foi descrevendo uma série de trabalhos, dos projetos que foram realizados através do sistema de bolsas, instituições. Eu queria saber, para você, qual é o papel da instituição, você acha que teria conseguido realizar esses trabalhos sem esse suporte institucional, já que, por um caminho de circuito de mercado o trabalho não fluía? Aluno: Uma boa pergunta. Realmente tive sorte de ganhar bolsas para executar esses trabalhos. Foi uma pena a bolsa Vitae acabar. A minha foi a última para as artes plásticas. Tem havido alguns editais. É interessante aplicar, porque realmente ajuda, e tem sido uma possibilidade de realizar trabalhos que de outro modo são inviáveis. Por exemplo, um trabalho desses como a Passarela, se não fosse esse edital, não tinha como fazer. É muito difícil a galeria bancar fazer um trabalho desses. Por mais que aquilo vire um canal por onde você possa vender outros trabalhos, isso não acontece, pelo menos aqui. O papel da galeria é comercializar trabalhos que o mercado consome, mas ela pode te ajudar a viabilizar várias coisas do seu trabalho, a divulgação, a inserção e tudo mais. Acho que a galeria tem um papel fundamental para a coisa funcionar, mas pra 152 153 C A DER N OS EAV EDUARDO CO I MB RA trabalhos de grande porte você tem que procurar patrocínio de empresas ou via editais. A experiência faz com que você saiba o que é oportuno para todos pra que a coisa aconteça. É você entender que quem vai dar a grana está dando a grana para a marca estar ligada em um negócio certo, em uma hora certa, em um lugar certo. É assim mesmo que funciona. Então, se você sabe esse caminho, se a produtora que trabalha contigo sabe esse caminho, se tem os contatos, a possibilidade da coisa deslanchar é grande. dessa ação, dessa jornada no lugar, fotografar, revelar as fotos, escolher os cortes, botar tudo na mesa, ficar olhando, parar, voltar no dia seguinte, olhar novamente. Resolver o tamanho dos asteroides para criar um conjunto homogêneo, dos seis serem uma série. Então, tudo isso tem um tempo. Outro trabalho é outro tempo. O da Nuvem, por exemplo, não é o tempo da criação que é o mais longo, é o tempo da execução. Nos Asteroides, até o fim, até eu colocar o último pedaço colado, a imagem poderia ser outra coisa. A Nuvem não poderia ser outra coisa, desde que o projeto saiu do ateliê e o serralheiro começou a fazer as caixas de ferro, o trabalho já ia ser aquilo. Eu poderia estar trabalhando em outra exposição, em outro lugar, e não acompanhar a execução do trabalho, já estava tudo definido. Foi um engenheiro quem calculou a fundação para estruturar o trabalho no chão, e a espessura do ferro, não tinha nada a resolver na montagem. Meu envolvimento foi com a preparação das fotos, aprontei os arquivos, vi a prova e mandei executar. Portanto, os tempos são diferentes, dependendo da concepção de cada trabalho, de como é que você quer encaminhar aquela sua ideia. Tudo é definido pela ideia que move o trabalho. Cada trabalho tem o seu tempo, e grau de envolvimento do artista na sua realização. Aluno: Na maioria dos seus trabalhos você fala sempre do projeto, pegando o exemplo do Asteroide e o da Nuvem. Em Asteroide você fala: “eu passo um dia fotografando e a partir disso eu vou juntar...”. Tem um caminho, você poderia fazer uma lista de bolo de como fazer o trabalho do Asteroide, e tem a lista de bolo de como preparar o projeto da Nuvem. Eu queria saber como é que funcionam esses tempos. Esses tempos do trabalho menor, onde é você que está lá nesse embate, no ateliê, desenvolvendo a obra, e o tempo do projeto gigantesco que vai para dimensão pública. Como você lida com isso? O tempo de estar envolvido, de realizar o trabalho, varia de acordo com a lógica que constitui o trabalho. Os Asteroides são resultado Aluno: Como você lida com os prazos? Tem um prazo x para desenvolver uma obra, e à medida que o prazo vai 154 155 C A DER N OS EAV EDUARDO CO I MB RA terminando, como é a questão da ansiedade? Nesse trabalho das caixas, por exemplo, você tem um limite com o serralheiro, o tempo dele de executar, e vocês têm que trabalhar em conjunto, como lida com isso? Porque essas limitações são o meu desespero, às vezes quando o prazo acaba é que a ideia surge, e é uma ideia perfeita. A única coisa que eu tenho para te dizer é: “Rala aí que você vai chegar lá”. Acho que é uma coisa de experiência mesmo, com o tempo você vai entender como a coisa funciona. Tem situações mais folgadas e situações menos. Na Passarela, por exemplo, pra inauguração, apesar de toda a complicação pra construir, deu tudo certo, mas para o catálogo não deu. Eles queriam fazer as fotos do trabalho finalizado para o catálogo ser lançado na inauguração. Foi uma questão institucional que não deu para cumprir. Pra mim, a meta era o trabalho ficar pronto no dia que ia inaugurar, obviamente se ficasse pronto antes as fotos sairiam no catálogo, mas não deu tempo. Assim, quanto mais experiência você tem, mais você ganha confiança pra saber se aquilo vai dar, ou não, ou até mesmo mudar o procedimento ou a expectativa para a conclusão do processo. Aluno: Exato, então o projeto já está ali esperando alguém para te ajudar a iniciar, um incentivo, um edital... Agora, quando alguém chega e fala, do nada: “quero uma coisa inédita, nos meus parâmetros”, e você tem que criar com aqueles parâmetros, e não tem a ideia inicial, você só tem o prazo. Então, mas os parâmetros que você fala são assim, tipo: “A grana sai tal dia...” O tema como, por exemplo, “Ah, o banco vai comemorar o ano da França no Brasil”. Aluno: É um desafio tentar dar conta disso, com relação ao lado criativo eu não posso opinar em nada, acho que é uma questão de você ter um insight, uma coisa que, à medida que o tempo passa, você vai tendo mais controle, usar coisas que você já pensou. Um conselho que eu dou para todo mundo é: rabisquem bastante, mesmo coisas que vocês não usem na hora, eu já fui buscar coisas lá atrás e que deram supercerto, na época eu não... Aluno: É, isso salva muito. Totalmente. Esse trabalho da Nuvem, eu pensei há cinco anos em uma outra situação, para ser uma coisa dentro de um espaço 156 157 C A DER N OS EAV EDUARDO CO I MB RA “O espaço público é o lugar do convívio de uma infinidade de individualidades anônimas, é o espaço da liberdade para que essas individualidades interpretem e façam seu próprio entendimento dos fatos. É o canal mais direto para o exercício do que penso ser a tarefa do artista.” institucional, que não aconteceu, ficou a ideia. Quando apareceu essa possibilidade para um espaço público, fui lá, peguei a ideia, pensei o tamanho e realizei o trabalho. Portanto, primeiramente guardem as ideias, vocês têm que gerar um arsenal de ideias, quando estão andando de ônibus, ou dirigindo, você rabisca, depende do processo de cada um, madrugada adentro, na cerveja do bar, sei lá onde, você lê uma poesia, você vê um filme... O outro lado é o ponto de vista prático de você, tendo a ideia, estar amarrado a um programa com prazo apertado. Aí é só mesmo a experiência que vai te dizer se dá pra pegar ou não. Se teu processo começa a virar uma coisa mais profissional, assim, no sentido de você já ter aquelas pessoas com as quais você conta, que entendem o que você está querendo, você fica mais seguro pra correr riscos. Aluno: Eu percebi que o seu trabalho tem um acabamento muito bem feito, bem executado, e houve um momento que você falou das fotos do trabalho Asteroides, com a faca olfa. Nesse contexto, existe algum limite no seu processo criativo em relação à manipulação da imagem? Hoje em dia, eu diria que é impossível não manipular uma imagem. Eu acho que qualquer imagem é manipulada. Mas, quando 158 159 C A DER N OS EAV EDUARDO CO I MB RA eu falei da faca olfa, foi na realidade para não tirar do trabalho o processo que o revelou. Já fiz trabalhos com fotos manipuladas, totalmente manipuladas, inclusive trabalhos com paisagens. Não é uma bandeira da não manipulação, não é nada disso. É uma coisa da estratégia do trabalho, especificamente. Nesse trabalho dos Asteroides, está lá a colagem, a colagem existe, está lá no meu estúdio, nunca mostrei a colagem porque o trabalho é a imagem fotográfica da colagem. Eu escaneei a colagem, ora, se ficou um grão lá no scanner que não interessa, lógico que você limpa, o que eu estou falando é que a evidência da faca olfa é reveladora da constituição da imagem, a imagem foi construída por pedaços de imagens, então isso faz parte do trabalho. no espaço. Então, para esse trabalho, a escolha das imagens da nuvem foi a partir de arquivos que eu tinha, de nuvens em expansão e redução. Fiz o recorte para um formato definido e a nuvem ficou assim. Essa nuvem nunca existiu. O que existia eram imagens de uma nuvem em mutação. Ao colocar as imagens em sequência, criei um casulo espacial – que era a ideia do trabalho. A outra questão que você colocou, a respeito do céu, é como eu te falei lá no início: o céu para mim é uma imagem sedutora pela raiz dela mesmo, pelo que é o céu, além de tudo, como você mesmo falou, a presença na história da arte, onde sempre se vincula a uma coisa onírica, um caráter apolíneo, são variadas as referências ao céu. A mim interessa muito, por ser essa coisa tão presente e ausente ao mesmo tempo, porque no céu nem o azul nem esses volumes existem realmente como a gente concebe os outros volumes, as cores e as coisas. Aluno: Eu gostaria que você falasse um pouco da sua escolha da nuvem como representação de desenho. Pergunto pois, em minha opinião, a nuvem é já uma coisa muito visual e simbólica, inclusive se analisamos a representação do céu na história da arte, com uma variação de dimensões, formatos e sentidos... Eu tenho um arquivo imenso de céus. Eu sempre fotografo e renovo. Como eu falei, esse trabalho da Nuvem já estava na gaveta há um tempo, a ideia de fazer uma coisa fatiada que junto criaria um corpo Eu queria perguntar sobre a grama, o gramado. Qual é a sua referência, o verde? Porque você falou sobre nuvem, céu, mas e a grama, que aparece em vários trabalhos seus? Por que você não usa grama sintética, por exemplo, já que a natural demanda mais cuidado, você teve que se preocupar com a incidência de luz e etc. Aluno: 160 161 C A DER N OS EAV EDUARDO CO I MB RA O interessante do gramado é ser um plano vivo, de alguma maneira, numa referência de paisagem um gramado está sempre presente, muitas vezes como plano infinito, rumo ao horizonte. Então, o fato de ser plano, de ter uma homogeneidade, trazia uma pureza formal que me interessou bastante no diálogo com a arquitetura. Ser um plano e poder dissipá-lo, pulverizá-lo em copinhos e continuar na mesma altura, era como ser uma pele que se abria para o surgimento do chão do museu. Me interessou mexer um pouco com uma coisa que a arte faz o tempo todo, que é o confronto entre natureza e cultura. E que momento especial de nossa cultura é aquele espaço do MAM. Vivi vários dias ali dentro, e o MAM é um lugar muito especial, é uma felicidade inacreditável aquela obra arquitetônica. Gostei de fazer o gramado naquele espaço com aquele pé direito enorme, o cheiro da grama, e o trabalho atuar só no nível do chão. De não ter excesso de elementos, e deixar o espaço ser o assunto. Na floresta, no caso da Passarela, por exemplo, foi uma intervenção dentro de um terreno vivo, numa coisa viva também, mas de outra ordem. Ali, pra dialogar com aquele espaço, eu tive que subir, dar volta na árvore, descer, ter escada. Foi uma outra experiência, e, como falei antes, uma experiência de certa maneira inversa na relação natureza e arquitetura. Quanto à questão do sintético ou não sintético, a ideia era trazer a paisagem e levar a paisagem de volta. Eu não queria ilustrar um fato, eu queria fazer o fato. Foi a transposição de uma paisagem e um retorno dela ao lugar de origem, passando pela bênção do MAM. 162 163 C A DER N OS EAV EDUARDO CO I MB RA Notas Saiba mais 1. O azul do céu não existe. Direção de Gustavo Rosa de Moura e edição de Bernardo Barcellos. São Paulo: Mira Filmes, 2008. Documentário (12 min) son., color. http://projetonuvem.wordpress.com 2. COIMBRA, Eduardo. Passarela, 2008. Instalação permanente no Museu do Açude. Madeira e aço. Dimensões: extensão 32 m. 3. Escultura carioca. Exposição coletiva realizada no Paço Imperial, Rio de Janeiro, 1994. 4. COIMBRA, Eduardo. Cabine, 1989. Ferro, espuma, espelhos, circuito luminoso com LED’s. 165 x 46 x 35 cm. 5. COIMBRA, Eduardo. Espelho, 1991. Madeira folheada a ouro, espelho, circuito eletrônico luminoso. 140 x 100 x 12 cm. 6. COIMBRA, Eduardo. Istmo, 1992. Janela: madeira pintada, policromia em duratrans, caixa de luz de madeira e acrílico. 35 x 151 x 38 cm; malas com movimentos respiratórios: pele de vaca, tecido sintético, motores elétricos. 66 x 84 x 23 cm, 46 x 70 x 26 cm, 18 x 42 x 30 cm. 7. COIMBRA, Eduardo. Invenção da paisagem, 1998. Terra, policromia em duratrans, caixas de luz de madeira e acrílico. Dimensões: extensão da terra: 22 m; altura da terra: 1,90 m; cada foto: 60 x 90 cm; conjunto das fotos: 60 x 460 cm. Obra realizada por ocasião da primeira edição do programa Artista Pesquisador no Museu de Arte Contemporânea de Niterói. 8. COIMBRA, Eduardo. Série Asteroides, 1999. Fotografias. 9. COIMBRA, Eduardo. Paisagem local. Exposição individual realizada no Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, 2000. 10. COIMBRA, Eduardo. Colagem, 2000. Fita adesiva. 353 x 1350 x 8 cm. 11. COIMBRA, Eduardo. Série Estádios, 2000-2011. Maquetes em MDF. 12. COIMBRA, Eduardo. Natureza da paisagem. Exposição individual realizada no Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, 27 de maio a 15 de julho de 2007. 13. COIMBRA, Eduardo. Nuvem, 2008. Estrutura de ferro, impressão em lona translúcida, lâmpadas fluorescentes, espelhos. Dimensões: cada elemento: 470 x 470 x 48 cm; conjunto: 470 x 470 x 1180 cm. DO CONCEITO ao espaço: Eduardo Coimbra, Regina Silveira. São Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2003. 87 p. EDUARDO Coimbra. Textos de Glória Ferreira, Adolfo Montejo Navas, Ligia Canongia e João Modé. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2004. 144 p. EDUARDO Coimbra: Passarela. Rio de Janeiro: Museu do Açude, 2008. 15 p. 164 ELIZ A BETH JOBI M Vou começar minha apresentação, exibindo dois DVDs sobre o meu trabalho mais recente. O primeiro é sobre um trabalho1 que fiz em 2005 para a Bienal do Mercosul2. [ Áudio do vídeo Aberturas3 ] Aberturas Neste trabalho, começo definindo formatos, procuro pensar a divisão em partes de tal modo que a continuidade do todo se dê simultaneamente a uma relativa autonomia de cada parte. As telas se estendem em sequência, como cartas de baralho que, unidas, fazem um jogo. As linhas formam figuras, volumes, letras. A tinta a óleo é aplicada com rolos de espuma utilizados na pintura de parede. A cor vibra com a variação Maquete para projeto de exposição, 2010 Foto: Elizabeth Jobim 166 C A DER N OS EAV das camadas de tinta e a indefinição dos contornos das linhas. Depois de traçar as linhas, escolho algumas para variar a grossura, e algumas áreas são cobertas de cor, criando massas. Me sentei no chão rodeada de pedras e de pequenos papéis cortados e ordenados proporcionalmente ao tamanho das telas. Olhando para as pedras, desenhei um risco contínuo para toda a sala. Depois passei o risco para as telas e pintei. Acho que somos uma construção. O espaço nos vem em partes, e dessas partes formamos um todo que nos permite ser unidade e não um monte de fragmentos. Meu trabalho quer nos lembrar disso, de como partes se juntam e como elas formam um todo. A possibilidade de juntarmos partes, imaginarmos um todo articulado e aberto ao fora nos permite 167 EL I ZAB ET H J O B I M Nessa instalação, para a Bienal do Mercosul, foi a primeira vez que fiz um trabalho de pintura com o caráter de ocupar um espaço, uma sala inteira. Em um trabalho anterior, eu já havia ocupado o espaço de uma sala, mas não com pintura. Em 2008, fiz um outro trabalho4, mais ou menos nos moldes do de 2005, mas o projeto se modificou bastante. Este foi feito no Bronx, em Nova York, e pensado especialmente para lá. Fiz um planejamento aqui, mas executei as telas lá. Desse trabalho, foi feito um vídeo, em inglês, sob a direção de Thomas Piper. Infelizmente, não há tradução do vídeo para o português, mas dá uma visão geral do trabalho, por isso gostaria que vocês vissem. Espero que entendam o meu incrível inglês com sotaque. (Risos) existir e nos relacionarmos com o que há fora de nós, partes ou todos, universos construídos por teorias ou observados em uma noite sem [ Exibição do video An Introduction to Elizabeth Jobim’s Work5 ] lua. Os fragmentos se articulam em uma unidade que se desdobra e inclui o branco de fora. O branco do trabalho quer ser a parede. Não é a pintura como uma janela, nem um acontecimento localizado na tela. Há uma vontade de se expandir, de tornar a parede uma parede e um lugar onde as linhas se afinam e engrossam, onde a cor vibra, como também vibram as nossas retinas quando vemos as coisas. As linhas vão se conectando umas com as outras, de tela para tela, e essa ligação se dá em um jogo de fluência e corte, continuidade e ritmo, legato e staccato, como na sucessão de notas musicais tempo. Aqui tropeçam, ali gaguejam, quase perdem o rumo. E acabam se encaixando. Preparei algumas imagens dos meus trabalhos, assim como algumas imagens também sobre o meu processo de produção, embora eu ache que esses vídeos esclareçam bastante essa parte. Pensei em dar seguimento a nossa conversa traçando um percurso desde o início da minha carreira, quando eu comecei a expor, no início dos anos 80. Participei inclusive da exposição da geração 806, aqui no Parque Lage. Este foi um período bastante inicial do meu trabalho, mas para vocês – eu soube que muitos de vocês estão fazendo um curso de iniciação também –, achei que seria interessante. 168 169 C A DER N OS EAV Quando comecei, fazia trabalhos gestuais abstratos, principalmente sobre papel. Fiz uma série de cursos com artistas como Anna Bella Geiger, com Frederico Morais, na PUC, onde eu fazia Programação Visual, além de um curso com o Ronaldo Brito. E depois, também fiz cursos com Eduardo Sued e Aluísio Carvão no MAM. Os primeiros trabalhos que mostro aqui para vocês são pequenos, menores, mas apresentam bem o clima da época. Nesse período, eu também viajei para fora e lá eu tive a oportunidade de ir a muitos museus e galerias, o que foi como uma formação para mim, porque aqui no Brasil não víamos muita coisa. Aqui, em geral, eu via os trabalhos a partir de fotos de revista ou copiava textos que me interessavam. Não era como hoje em dia, em que se tem mais acesso a exposições que vêm de fora e eventualmente também exposições de artistas brasileiros que, naquela época, você tinha que ir à casa das pessoas para ver. Ainda hoje, há um pouco desse caráter, não há, no Brasil, tantos museus interessantes para se ver arte brasileira. EL I ZAB ET H J O B I M há algum tempo eu não via seus trabalhos reunidos e fiquei muito impressionada com a força emocional daqueles trabalhos e com o frescor que eles ainda mantêm. Porque, com a passagem do tempo, alguns trabalhos perdem muito do interesse, se transformam. E os trabalhos dele continuam muito intensos, muito cheios de energia. Ele também escrevia sobre arte, era generoso e informado. Para o período, seu trabalho já estava maduro, enquanto o de muitas outras pessoas estava apenas começando, como era o meu caso. Cito, então, um trecho de um texto de Jorge Guinle para que vocês tenham uma ideia do que se pensava na época: No meu caso, por motivos emocionais, estéticos, se encontra uma mescla do expressionismo abstrato gestual do Willem De Kooning e do Matisse, até um surrealismo automatista. Mas cada apropriação de um estilo, de um pensamento inicial, é desviada do propósito inicial da escola escolhida justamente pela inclusão de uma outra escola que seria sua negação. Por exemplo, o lado decorativo, joie-de-vivre matissiano das cores, seria negado pela construção ritmicamente exacerbada do expressionismo abstrato. Por outro lado, a tragédia dessa mesma pince- Nesse período da geração 80, houve um retorno da pintura, havia muita influência do neoexpressionismo e da transvanguarda, e eu aproveito para citar aqui um trecho de um texto de Jorge Guinle sobre isso. Aliás, sua última exposição7 me impressionou muito. Já lada abstracionista é negada pelo otimismo da cor e pela ambiguidade cômica da operação. A possibilidade e o prazer de sempre alargar e nutrir essas contradições formam a base da minha práxis artística. (Guinle, 20098) 170 171 C A DER N OS EAV Já no final dos anos 80, comecei a fazer trabalhos que trazem ainda muitas referências do meu trabalho inicial, mas com uma diferença fundamental: passei a utilizar um modelo, como no caso do trabalho9 baseado no Rapto das Sabinas10, uma escultura do maneirista Gianbologna, artista italiano. Ao utilizar os modelos, eu desenhava com técnica similar aos meus trabalhos abstratos anteriores, mas a partir da observação dessas esculturas. Outra característica é que eram feitos com duas folhas de papel. Um outro exemplo dessa fase é o trabalho11 baseado na escultura do Laocoonte12 . Ao ser chamada para participar de uma exposição13 na Funarte, que ficava no Museu de Belas-Artes, fui observar o que havia lá, e encontrei cópias de esculturas clássicas, bem feitas, em gesso. Lá estava Laocoonte, uma escultura grega. E então, fiz os trabalhos no local. Sobre eles, Ronaldo Brito escreveu um texto, nos anos 80, que citarei a seguir: Os estudos de Elizabeth Jobim seriam assim compulsoriamente temáticos, reabilitando a disciplina da cópia de museu, e intempestivos, registros pessoais mais ou menos passageiros; repetições acadêmicas, pedagógicas, e repetições reflexivas quase sistemáticas. Tomados inocentemente por transes, logo afirmam sua dimensão pensada e distanciada; analisados como estratégias de desconstrução acusam prontamente o caráter de improviso, assumem a incerteza básica do EL I ZAB ET H J O B I M presente. E a referência direta à história da arte revela mesmo um toque de astúcia: uma vez explícita, permite o trânsito franco e desinibido. (Brito, 198814) Essa citação aborda várias questões. Quando comecei a utilizar o modelo, eu utilizei um que já fazia parte da história da arte e apresentava a ideia de reprocessamento, discutida por Jorge Guinle e bastante corrente nos anos 80. Mas eu também acredito que é uma característica do meu trabalho: gosto de partir de coisas extremamente simples, de falar de algo bem primário, desse momento em que você observa algo e faz um desenho a partir dessa observação, de como é essa operação. No período em que eu comecei a utilizar essas esculturas, a fazer questão do modelo, e comecei também a utilizar a fragmentação do suporte, criaram-se os elementos bem básicos no meu trabalho, como a ligação, a continuidade com o modelo, entre a observação de alguma coisa que existe e que eu gosto de observar, até mesmo para evitar que o meu trabalho seja uma composição puramente da minha vontade. Quando se está em frente ao papel, você pensa “O que vou fazer? O que vou botar nesse papel?”. Se você não está se referindo a nada, tem uma tendência a fazer uma composição nos moldes da abstração europeia, e isso era algo que eu queria evitar. No meu processo, ter um modelo, algo que eu olho e, entre aspas, copio, é uma maneira 172 C A DER N OS EAV “Os estudos que eu faço para os meus trabalhos são mais gestuais do que o trabalho final, que tem sido cada vez mais simplificado.” 173 EL I ZAB ET H J O B I M de não ter que resolver para onde se direciona a minha linha, a mancha, a forma, o arabesco. Eu tenho algo que está ali, fora de mim, para que eu não tenha que ser puramente a minha vontade ou a minha expressão. Além disso, quando eu faço essa observação, surge uma certa geometria, a espacialidade, a profundidade que há nas coisas e que a pintura também tem, na sua origem e em toda a sua tradição.A pintura é aquele lugar em que você vai reproduzir a visão, como a gente vê as coisas, como a gente vê as coisas no mundo e no espaço, na profundidade; a pintura fala disso na bidimensionalidade. Voltando aos desenhos, nos anos 90 eu passei um período sem trabalhar e, ao retomar, não sabia bem o que faria. Eu me voltei, então, para os objetos do meu ateliê, como um exercício, para fazer desenhos de observação que eu já fazia, mas, dessa vez, sem me basear em outra obra de arte. Comecei a fazer desenhos de tubos de tinta e, dos menores, passei a fazer desenhos maiores. Posteriormente, passei a fazer pequenas pinturas de naturezas-mortas, que são justamente os objetos que estavam no ateliê, como os tubos de tinta... E depois disso, acrescentei as pedras. Esses desenhos são como paisagens também, têm um clima um pouco morandiano, até mesmo metafísico, e aproveito para citar aqui um trecho de um texto de Paulo Venâncio sobre esse trabalho. 174 C A DER N OS EAV Como é possível, hoje, um desenho que se pretenda natureza-morta se a desatenção com as coisas se intensifica cada vez mais? O pouco que resta daquele interesse prolongado – interesse que diverge cada vez mais das tendências atuais da arte – não é capaz de emprestar suprema importância à representação de um arranjo prosaico de objetos comuns. É preciso uma insistência obsessiva na presença das coisas; investir nisso todo o esforço de um fazer artístico elaborado, para que daí, despretensiosa e casualmente, resultem, como neste trabalho, “estudos” compulsivos do mesmo tema e pinturas com ar de “fim de semana”. Tal é a paradoxal missão poética desse trabalho: empenhar o alto saber histórico da pintura na irrelevância banal de uma coisa qualquer que se quer ter para si, desenhando sem parar. (Venâncio, 199715) Nesse mesmo período, 1997-1998, tenho uma outra série de desenhos, maiores, feitos com tinta a óleo, na horizontal, e que passei a fazer em têmpera, colocando o trabalho na parede na vertical, deixando a tinta escorrer. Em um desses desenhos, por exemplo, o trabalho vem da observação de pedras, feito em acrílico, com quatro folhas de papel de 1 m x 0,70 m. Fiz também pequenos desenhos de nanquim com as pedras. Nos desenhos menores, é possível ver a figura claramente. Muitas vezes, as pessoas veem o trabalho como um trabalho abstrato, mas o trabalho é todo feito com base na observação. Para mim, não há uma separação entre o trabalho abstrato e o trabalho figurativo. 175 EL I ZAB ET H J O B I M Em um trabalho que realizei em São Paulo para o Maria Antonia16, tive pela primeira vez a ideia de ocupar a parede do espaço; não eram desenhos individuais. Fiz trabalhos de observação com quatro, seis ou oito folhas, tirei-os da sua ordem e os rearranjei de maneira um pouco aleatória; em algumas partes, eles mantêm a configuração, em outras não. Desse trabalho, veio todo o sistema que utilizo até hoje com as telas, mas, atualmente, os projetos são bastante planejados. No caso do Maria Antonia, fiz alguns estudos, mas, na verdade, resolvi como o trabalho ficaria ao chegar no espaço, com uma pilha de papéis debaixo do braço. Depois disso, fiz uma exposição no Espaço Sérgio Porto17 e modifiquei a configuração inicialmente proposta no Maria Antonia. São os mesmo desenhos, mas eles foram organizados de uma outra forma e ocupam todas as paredes. Em 2008, fiz uma exposição na galeria do Lehman College, no Bronx. A ideia inicial era fazer todo o planejamento aqui e simplesmente executar e montar o trabalho lá, nos EUA, o que não foi possível, de modo que, ao chegar lá, havia uma parte já pronta e planejada e outra parte por planejar. Comecei, então, a executar as telas grandes e, ao mesmo tempo, tive que finalizar o planejamento. Peguei pedras da região, o que é muito interessante, porque cada lugar tem a sua pedra, cada lugar tem a sua geologia, um tipo de pedra diferente, um brilho, uma luz diferente. São vários desenhos que levarão ao trabalho final: 176 177 C A DER N OS EAV há um desenho de linha feito a partir da observação de uma série de pedras, há outros esboços que faço recortando cada pedaço já no tamanho proporcional das telas, imaginando como passar de uma tela para outra. Hoje em dia, acredito que meu trabalho adquiriu essa característica do encontro das partes. Isso me interessa cada vez mais e procuro fazer de tal modo que as partes sejam praticamente independentes e adquiram sentido apenas quando se conectam com as outras, e não ao contrário. No início, se eu desejava fazer uma determinada forma, ela se estendia pelas várias telas ou pelos vários papéis. Cada vez essa passagem de uma tela para outra é pensada de tal forma que tenha fluência, que vá acontecendo de uma tela para outra. Há uma narrativa, algo de temporal nessas instalações, o que faz com que o público tenha que percorrer o espaço para vê-las. Eu chamei o trabalho de Endless lines lá em Nova York e Sem Fim aqui no Rio; eram exposições casadas, com o mesmo sistema. Na exposição Sem fim, na Lurixs, utilizei uma espécie de volume, que são algumas telas mais largas que as demais. Assim, é possível ver a lateral das telas fazendo parte do trabalho. Nesse caso, só é possível ver o trabalho ao percorrê-lo, porque é preciso olhar o trabalho de um lado e seguir andando para conseguir visualizar a outra parte. Conforme o espectador anda, partes do trabalho vão aparecendo e outras vão desaparecendo. Essa mesma ideia foi usada em uma EL I ZAB ET H J O B I M exposição18 que realizei na Frederico Sève. Nela, o conceito de volumes também está presente, mas são trabalhos individuais feitos com várias partes. Seu trabalho tem, no início, características expressionistas no traço, mas, aos poucos, vai se tornando geométrico. Sabe-se que havia uma ‘birra’ entre os expressionistas informais, no abstracionismo informal, e os geométricos, e parece que você consegue reunir essas duas características. Gostaria que comentasse mais sobre essas características na sua obra. Aluno: Isso é bastante curioso, porque quando eu comecei a estudar, procurei uma formação bastante diversificada: fiz cursos com Anna Bella Geiger, que fazia trabalhos bem conceituais, também com Sued e Carvão, que tinham trabalhos bastante geométricos, mas, naquela ocasião, nem mesmo eles sugeriam que eu fizesse trabalhos geométricos. E essa parece ser uma característica da arte brasileira. Nós tínhamos muita admiração pelos artistas da década de 70, e, evidentemente, os princípios teóricos que regiam esses modos de trabalho eram diferentes, mas havia bastante diálogo, e eu, hoje em dia, acho muito curioso o fato de o meu trabalho finalmente ficar próximo ao trabalho de Sued, porque, quando estudei com ele, não 178 C A DER N OS EAV 179 EL I ZAB ET H J O B I M havia nenhuma similaridade. Os professores não nos forçavam a seguir em uma ou outra direção. Ao contrário, eles eram muito abertos e apoiavam aquilo que estávamos fazendo. Os estudos que eu faço para os meus trabalhos são mais gestuais do que o trabalho final, que tem sido cada vez mais simplificado. Eu costumo dizer que, no começo, você tem milhões de ideias do que quer fazer e você faz todas aquelas coisas. Quando você é jovem, produz uma quantidade enorme. E com o tempo, quando você desenvolve seu trabalho, o trabalho vai acontecendo, e você segue aquela linha. Assim, eu tento acompanhar o trabalho. Em 2008, dei início aos projetos com os volumes, porque, ao fotografar as telas na maquete, percebi que a lateral que havia pintado parecia enorme e a linha seguia para a lateral. Naquele momento, eu pensei: “eu tenho que fazer esse trabalho”. Mas eu nunca quis fazer esse trabalho; foi assim, aconteceu. O trabalho tem seu percurso e, no meu caso, acho que as coisas se comunicam. Mesmo em um Mondrian você encontra espacialidade. Se você faz uma pequena diagonal na linha que não é ortogonal, é possível reconhecer uma movimentação. No caso do meu trabalho, acredito que ele se comunica: as pinturas com o esboço de linha e o desenho aguado... Ao observar o seu trabalho, percebo nele muita filosofia, a questão da relação do todo com as partes e, por Aluno: Laocoonte, 1988-89 Paintstick sobre papel 140 x 100 cm Foto: Pedro Oswaldo 180 181 C A DER N OS EAV ser professora de Estética, me pergunto sobre a relação com a pedra, o ser da pedra... Os pré-socráticos, por exemplo, falam da questão do ser da pedra; para eles, era um mistério por que as pedras ficam juntas. Conectado a isso, gostaria de ouvir seus comentários sobre a Bienal deste ano, que terá como tema a arte política e o retorno de uma narrativa política nos trabalhos de arte contemporânea. Eu gostaria que você falasse um pouco sobre a relação do seu trabalho com a questão mais política. Eu li Merleau-Ponty e acho que tem muito a ver com a meu trabalho. Tanto nos desenhos de observação quanto na instalação, onde a percepção se dá por partes, no percurso, com o corpo. Eu acho que existem vários tipos de trabalho e um bom trabalho é um trabalho que é bom, não porque é um trabalho que é de pintura, ou de política, ou de fotografia, ou de vídeo. Existem muitas formas de se pensar o trabalho e existem muitas formas de o trabalho ser político também. Hoje em dia, reflete-se muito sobre como os conteúdos se apresentam. Quando eu comecei, não se falava muito sobre o trabalho e, principalmente, não se explicava o trabalho. Os trabalhos eram bastante herméticos, o que era particularmente duro para o jovem que gostava de arte contemporânea. Mas agora parece haver uma tendência, que vai além do trabalho político – ou não político –, que EL I ZAB ET H J O B I M é o trabalho explicado, o trabalho que vem acompanhado de uma bula. É possível encontrar todo tipo de abstração, mas cada uma delas está acompanhada de uma explicação de como aquilo veio a ser, surge uma longa história para que tudo se conecte.Há um lado bastante interessante nisso de que as coisas, todas elas, vêm de algum lugar. Eu não acredito que exista trabalho puramente formal, porque as coisas se conectam e há muitas poéticas, mas acho complicado alguns trabalhos em que parece que não há uma distinção entre a explicação do trabalho e o trabalho: não existe nada que você não compreenda e quase basta a explicação do trabalho, ele praticamente não precisa ser visto pessoalmente. Mas nós todos somos seres no mundo e tudo tem seu aspecto político. E até mesmo a Bienal deste ano parece ter um sentido de política bastante aberto, que não se atém a algo muito radical de um único tipo de trabalho. Em um de seus vídeos, em que se apresenta um trabalho seu em um espaço aberto, esse céu aberto vai se transpondo para um céu fechado para, então, dar lugar à imagem do Rio ao fundo. Eu já tinha visto esse vídeo no YouTube e me impressionou muito a diferença que o espaço aberto faz na mesma obra. Eu revi essa cena várias vezes. Eu gostaria de saber qual é a influência desse espaço aberto, se é que você acredita que há diferenças entre esses espaços. Aluno: 182 C A DER N OS EAV As fotos desse trabalho foram tiradas de maquetes. Eu estava realmente planejando essas exposições dentro de espaços fechados, mas como eu estava fazendo a maquete, coloquei-a ao ar livre, porque eu achei que seria bonito. Uma coisa bastante espontânea, sem muito planejamento, mas eu fiquei muito impressionada com essas imagens, porque o trabalho, de fato, adquiriu uma outra dimensão. Meu trabalho está, até hoje, dentro desses limites de espaços institucionais e galerias onde tenho oportunidade de expor, mas eu acredito que essas fotos são quase um projeto de um trabalho. Eu tenho vontade, inclusive, de executar esse trabalho, ou algum outro similar, ao ar livre, porque essa experiência também me impressionou bastante. No início da sua carreira, você trabalhou bastante com duas folhas de papel, o que eu acredito levar a essa combinação de telas que você usa hoje. Muito da sua produção, pelo menos os que eu vi, têm essa proposta de combinar duas telas, duas folhas. Eu gostaria de saber de onde surgiu a ideia de trabalhar dessa forma. Aluno: Eu comecei a usar duas folhas de papel porque achei que uma folha era pequena, e aqui no Brasil não existia uma folha de papel maior do que 1 m x 0,70 m. Eu utilizava também rolos de papel Canson de péssima qualidade, que não eram muito adequados à tinta. Havia 183 EL I ZAB ET H J O B I M um tamanho padrão e, um dia, eu quis fazer um trabalho maior e utilizei duas folhas. Ao utilizar duas folhas, percebi que havia esse aspecto da serialidade, mesmo que o trabalho fosse um trabalho contínuo, gestual. Então, comecei a fazer a linha pensando nessa divisão e passei a observar o momento dessa passagem para que houvesse uma fluência, que não ignorasse totalmente aquela divisão, porque você pode fazer um trabalho com milhões de partes ignorando-as completamente. Surge daí essa questão que cada vez mais me interessa. A pintura de uma única tela não é o meu trabalho, meu trabalho só se dá em duas ou três telas, porque o trabalho feito em uma tela é diferente do trabalho feito com mais telas. Essa junção das partes e o fato de que cada parte adquire seu significado pelo fato de estar com a outra parte e, se você virá-la em outra posição, ela também adquire outro sentido. Esses elementos são combinados por características, vertical/horizontal, cheio/ vazio, positivo/negativo, leve/pesado, baixo/alto. Há uma série de elementos que se podem combinar e o meu trabalho passou a ter essa característica, isto é, uma temporalidade, porque, para entendê-lo, é preciso percorrer o trabalho. Desse modo, ele se assemelha à escrita. No começo, realmente havia um esboço que compreendia tudo, hoje em dia eu não trabalho dessa maneira: eu tomo as partes, baseada no momento e na observação, quase como se fossem um ideograma, com partes que vão sendo combinadas. 184 185 C A DER N OS EAV “Se você reúne um trabalho vinho, um trabalho azul, um trabalho cinza, eles passam a se relacionar uns com os outros, enquanto que, quando você entra e vê apenas uma cor, trata-se da vibração daquela cor, naquele espaço, o que é bastante diferente de quando aquela cor dialoga com outra.” EL I ZAB ET H J O B I M Observei que o seu trabalho se desenvolve muito melhor em um espaço amplo e você mesma disse que, às vezes, dentro do seu ateliê, você não consegue configurar o trabalho da maneira como ele vai ser exposto. Como se dá a sua relação com a instituição? Eu imagino que você não tem a preocupação se vai caber ou não futuramente. Você produz sob encomenda ou a partir de um projeto que você propõe para a instituição? Aluno: Eu faço trabalhos no ateliê, eu vendo trabalhos em galerias, comercialmente, normalmente. Já os trabalhos de instalação, realmente, não sei como eu poderia fazê-los se não tivesse algum lugar para mostrá-los. Eles são feitos para o lugar, são planejados para o lugar, mas, pelo fato de serem feitos em partes e terem todo esse raciocínio, eles podem ser adaptados para uma outra instituição também. O grande problema dessas instalações é saber o que fazer depois que a exposição termina. Não há como mantê-las, como seria possível preservá-las? Eu já acompanhei vários artistas que fazem os trabalhos, desmontam-nos e estes não existem mais. Há o campo da arte pública, pouco comum no Brasil, mas mais corrente em outros países, em espaços como o metrô. Em Nova York, por exemplo, existe um projeto em que cada grande prédio deve ter um trabalho público no hall. 186 187 C A DER N OS EAV Percebi que no começo da sua carreira você usava muitas cores e, hoje, você tem obras mais limpas, usando basicamente o azul e o branco. Existe algum motivo para isso? Aluno: Quando eu era mais jovem, trabalhava mais com papel, então, meu foco era o desenho. Mas meu desenho sempre foi muito pictórico, especialmente depois que comecei a usar aqueles escorridos. E eu me perguntava se deveria tentar fazer aquilo também em uma tela. Mas, na verdade, eu já trabalhava com poucas cores. Quando comecei a trabalhar em tela, tentei o acrílico, bastante aguado, com escorridos, mas não funcionou. Então, passei a usar o rolo, com óleo, e a técnica foi totalmente diferente. Nesse momento, o trabalho se tornou muito mais simplificado. Eu fazia basicamente as mesmas formas, mas, em vez de executá-las com um grande pincel sobre papel, passei a executá-las com rolo sobre a tela; com isso, elas ficaram mais rígidas, mais retas. Com o tempo, desenvolvi o meu trabalho e o que aconteceu? Eu passei para a tela, cheguei à pintura a óleo, mas meu trabalho se tornou bastante gráfico. O trabalho é quase um desenho. E ele é gráfico não só porque é de uma cor só, mas porque é feito sobre o branco e o branco não é pintado da mesma maneira; ele é a base, apenas a cor é pintada em óleo. Se você reúne um trabalho vinho, um trabalho azul, um trabalho cinza, eles passam a se relacionar uns com os outros, enquanto EL I ZAB ET H J O B I M que, quando você entra e vê apenas uma cor, trata-se da vibração daquela cor, naquele espaço, o que é bastante diferente de quando aquela cor dialoga com outra. Você comentou sobre o arranjo das partes e uma possível serialidade, mas, nas imagens apresentadas, não parece haver uma repetição nas telas. Por mais que elas tenham um arranjo de acordo com o local em que são expostas, cada tela parece ser um desenho único. Você eventualmente tem alguma repetição de elementos, uma mesma tela em diversas situações em uma instalação, ou realmente cada tela é diferente, independentemente do arranjo? Você exporia um mesmo arranjo em outro espaço? Interessa a você repetir ou, por serem partes, em cada local você rearranja essas telas? Aluno: Não, a princípio, eu procuro manter, ao menos parcialmente, a ordem. Basicamente, o que eu faço é adaptar ao espaço, tentando manter essa ordem. O meu trabalho tem muito disso, porque eu faço pequenininho, aí, às vezes, eu faço médio, faço grande, e faço de uma cor, de outra cor. Os elementos se repetem, mas dificilmente o resultado se repete, porque há muitos elementos para serem combinados. No trabalho a que me dedico atualmente, algumas 188 189 C A DER N OS EAV partes repetem outras, dentro da mesma obra, mas em uma outra posição. Há uma tela totalmente branca e uma outra totalmente azul. Aliás, há duas telas azuis, que se repetem também. Mas isso é uma característica do trabalho. Eu acho que, às vezes, é possível conseguir mais variações usando a mesma coisa de uma forma diferente do que produzindo uma quantidade enorme de coisas diferenciadas.Porque, se uma pequena mudança é feita, a diferença aparece mais, porque se tem a referência do outro. Aluno: Eu observei que você usou o azul na maioria das suas telas. Há alguma explicação para isso ou seria só uma escolha? Ah, isso é bem pessoal, eu gosto muito dessa cor. O azul é uma cor que tem uma série de referências. Eu uso principalmente vermelho, vinho ou azul. E o vermelho e o vinho são cores mais corpóreas, mais sólidas, menos transparentes. Eu uso sempre cores transparentes. O meu trabalho não é opaco e também não tem um acabamento industrial, é um trabalho de velatura com transparência, e esse azul traz uma luz que vem do fundo, e é bem artesanal. Eu poderia fazer um chapado com acrílica, mas eu opto por deixar uma série de marcas. A cor mostra a luz do fundo, é bem escura, mas tem uma luz por trás. As cores que são mais interessantes para esse tipo de trabalho são bastante escuras, no sentido EL I ZAB ET H J O B I M de terem um contraste grande com branco e, ao mesmo tempo, serem vibrantes, luminosas. O azul tem essa característica. Além disso, o azul é o azul do céu, o azul da água, é o azul da sombra, é a cor que tradicionalmente dá a distância na pintura. E na técnica antiga as cores que estavam próximas eram pintadas em tons quentes, e as cores distantes em tons azuis. Então, quando você faz uma forma como as que eu faço, que têm uma ambiguidade espacial, em azul, imediatamente a pessoa vê aquilo como uma forma em profundidade. Você tem muitos trabalhos de desenho e pintura. Você já experimentou outras linguagens, como a fotografia, a gravura, a colagem? Aluno: Não exatamente. Eu fiz algumas fotos das maquetes e tenho vontade de fazer um trabalho fotográfico com elas. São fotos das pinturas, e eu estava em um momento de bastante envolvimento com o trabalho, fazendo essas maquetes, eu as coloquei diariamente ao ar livre, de manhã, à tarde... E foi tomando forma um trabalho que é quase um diário dessas maquetes, dos lugares onde elas puderam ir, e como poderiam se tornar diferentes em cada situação. Em parte, o trabalho está feito, mas, tecnicamente, ainda não fui capaz de executá-lo. 190 C A DER N OS EAV 191 EL I ZAB ET H J O B I M O que eu teria mais vontade de fazer seria escultura. O problema é a falta de tempo. No caso do meu trabalho, para cada um dos projetos que imagino, tenho que desenvolver, pessoalmente, uma técnica especial, e o projeto vai se transformar conforme a técnica. Não é um trabalho que eu pense, chame um técnico e consiga fazer. Embora eu trabalhe com vários assistentes – eles me ajudam muito –, o trabalho é mais medieval do que algo que pudesse ser feito assim tão objetivamente. Eu acho que poderia fazer outras coisas como, por exemplo, um plotter. Mas ainda não tive essa oportunidade. Você falou do início da sua carreira, de uma geração que ficou conhecida nos anos 80 como uma geração de pintores, embora muitos artistas fizessem outros tipos de trabalhos. E houve um momento, especialmente aqui no Parque Lage, em que um grupo de artistas se debruçou sobre a pintura. E você, no início da sua fala, contou essa história e citou, inclusive, um texto de Jorge Guinle. Como você vê hoje a pintura, especialmente no Brasil? Aluno: Eu a vejo mais intuitivamente. O Brasil tem muito disso: nos anos 90, eu escutava pessoas dizendo “A pintura acabou, agora é o vídeo, a fotografia”. A pintura pode não ser a coisa mais interessante no momento, mas ela não desaparece. E eu acredito que, no Brasil, Sem título, 2003 Tinta acrílica sobre papel 170 x 200 cm Foto: Cesar Barreto 192 193 C A DER N OS EAV o modismo pesa mais. Se a pessoa está fazendo um trabalho que não é moda no momento, parece que aquilo não tem mais interesse algum. A pintura é algo lento, que demanda mais tempo. Esse tempo é dificilmente entendido pelas pessoas, porque, hoje em dia, o tempo tem um peso muito grande na carreira do artista. Eu vejo artistas muito jovens que têm de expor em milhares de lugares, têm que ter o trabalho divulgado, ter um trabalho que possa ser mostrado em vários lugares. E na pintura, é preciso tempo para fazer um trabalho com qualidade, é preciso conhecer a tradição da pintura, o que não é tão fácil. É preciso ir ao MASP, no mínimo, para entender o que aquilo é. E é preciso pintar muito até o trabalho amadurecer, o que parece bastante difícil para um artista suportar hoje em dia. Esperar todo esse tempo. Passar tanto tempo sem fazer sucesso como seus amigos estão fazendo, desenvolvendo trabalhos que se resolvem mais rapidamente. E há ainda a questão de a pintura ser política ou atual ou qualquer coisa assim. Mas o que eu percebo e acho bem interessante é que, agora, enfim, há muita pintura sendo feita aqui no Rio de Janeiro e em São Paulo, e em Nova York também. Por artistas muito interessantes. Cito, por exemplo, Sarah Morris, que tem trabalhos de vídeo, de pintura e de pintura de instalação interessantíssimos e muito atuais. E não se trata da pintura no sentido do artesanato, de algo que se está guardando e mantendo vivo, como se fosse um reduto de EL I ZAB ET H J O B I M humanidade diante desse mundo tão descaracterizado. Existem muitas formas de pinturas que se relacionam com o minimalismo, com novos materiais. Eu vi recentemente a tese de Hugo Houayek, que trabalha comigo e fez uma tese sobre isso. Ele faz trabalhos ótimos de pintura com lona. Para ele, a pintura pode sair da pintura e entrar no mundo também. Eu acredito que o interessante, hoje em dia, é que há espaço para muitas formas e, depois desse momento em que parecia que a pintura morreria, passou a existir muito diálogo entre a pintura e outros meios. Por exemplo: eu vi a exposição19 de Andy Warhol na Pinacoteca. Ele tem um vídeo20 do Empire State que me lembrou muito as catedrais do Monet21. Então, será que aquele vídeo vai acabar com a catedral de Monet, ou a catedral de Monet está vivendo naquele vídeo também? Mas essa história da pintura, essa espacialidade da pintura, essa convenção final do quadro e da tinta sobre a tela, tudo isso me parece muito atual e vivo, de muitas formas. Até mesmo com impressões sobre tela feitas em computador. Afinal, por que você precisa imprimir essa imagem gerada em um computador em cima de uma tela? Deve haver algum motivo para isso. Eu já ouvi de alguns escritores e roteiristas que, no meio do livro, do roteiro ou das próprias filmagens, o personagem acaba assumindo uma vida própria, a história Aluno: 194 C A DER N OS EAV segue por um rumo que você nem imaginou a princípio. Eu queria saber se no seu processo isso também acontece. Se algum projeto já tomou um rumo que você não esperava, se existe essa relação de vida própria também com a obra. Sem dúvida. Por exemplo, no caso da instalação22 em que estou trabalhando atualmente. Eu queria fazer uma instalação nos moldes da minha última exposição e pensei, inclusive, em trazê-la para colocar junto com minha instalação atual e fazer, talvez, uma complementação. Quando executei o trabalho, não havia mais linhas, só manchas, e eu dizia: “não, eu quero linha, este trabalho não está andando” e fiquei numa luta com isso. Você tem que conseguir fazer o que quer, mas, ao mesmo tempo, você tem que escutar a obra. O meu trabalho é feito de uma forma espontânea, e o problema é que, quando se passa a querer fazer um trabalho em uma sala enorme com muitas pinturas, é preciso planejar muito. Mas eu acredito que o básico do meu trabalho é ainda um improviso. Você costuma expor fora do Brasil, e disse que as suas últimas referências têm vindo dos Estados Unidos... Eu me lembrei, então, de vários artistas brasileiros, como Eduardo Kac e Vik Muniz, que moram, trabalham e expõem fora do país. E aí eu queria saber qual o espaço do Brasil, ou da sua Aluno: 195 EL I ZAB ET H J O B I M formação, que aconteceu aqui no Brasil, no seu trabalho hoje, que é um trabalho tão globalizado, tão internacional. À medida que o artista sai do Brasil e produz fora, a partir de referências que ele vê lá fora, esse trabalho se torna um trabalho, de fato, não vinculado a nenhum lugar específico, ou vocês continuam tratando de questões e reflexões que nascem a partir do que viveram aqui no Brasil, mas com uma outra perspectiva? Eu não vejo o meu trabalho como tão globalizado assim, e eu ainda estou morando aqui. Acho que os trabalhos dos artistas brasileiros são muito bem recebidos lá fora. As pessoas estão encantadas com a arte brasileira neste momento. Até me surpreendeu, porque, há um tempo atrás, eu sentia bastante dificuldade, como se o meu trabalho não fosse visto como um trabalho diferenciado do trabalho de fora, ou brasileiro. O que aconteceu é que meu trabalho, neste momento, se aproximou muito do neoconcretismo. É uma coisa que não foi pensada, mas esses volumes têm uma relação com o objeto ativo do Willys de Castro no uso da lateral da tela como parte do trabalho. Eu sempre tive muito interesse nos artistas brasileiros. Quando comecei, eu tinha muito interesse no Goeldi, no Iberê. E acho que o meu trabalho ainda tem muito a ver com Goeldi. Já o Iberê foi 196 197 C A DER N OS EAV muito importante para mim porque ele era um artista que tinha um trabalho muito bacana e, nos anos 80, fez um trabalho muito atual, que dialogava com o trabalho de Jorge Guinle e com esse momento. O trabalho do Volpi também. Eu tive muitas influências, inclusive da pintura americana dos anos 50, e do minimalismo. Mas acho que meu trabalho só poderia ter sido feito aqui. E ele tem muita referência. Eu acho que, hoje em dia, a arte brasileira já tem uma conexão com ela própria, e perdeu essa característica de que não havia história, não havia de onde as coisas virem e, com isso, as referências de fora adquiriam um peso muito grande. Agora, há muita conexão. E existe uma coisa legal aqui, que é por causa do pequeno tamanho do meio de arte, você tem oportunidade de conhecer e conviver, de fato, com os artistas mais velhos e ter uma vivência. Eu conheci artistas e críticos que já estavam atuantes na década de 70 e foi uma troca muito rica. Não estou me referindo a uma homogeneização forçada, carnavalizada. Claro que há alguns trabalhos que são mais passíveis de ter esse tipo de leitura, uma leitura tropical, excessivamente limitadora, mas eu acredito que há um tipo de inteligência que está passando de um trabalho para o outro aqui no Brasil, o que é muito interessante. Eu acho que os jovens estudantes deveriam se ater a isso. EL I ZAB ET H J O B I M Notas 1. JOBIM, Elizabeth. Aberturas, 2005/2006. Óleo sobre tela. 2 m de altura e largura variável. 2. 5ª Bienal do Mercosul. Exposição coletiva, com trabalhos de 169 artistas, realizada em Porto Alegre, 1º de outubro a 4 de dezembro de 2005. 3. ABERTURAS. Direção de Luiza Nazareth e edição de Giovanna Giovanini. 2009. DVD (6’12’’) son., color. 4. JOBIM, Elizabeth. Endless lines. Pintura-instalação realizada na Lehman College Art Gallery, Nova York, 18 de setembro a 1o de novembro de 2008. 5. AN INTRODUCTION TO ELIZABETH JOBIM’S WORK.Direção de Thomas Piper. 2008. DVD (6’12’’) son., color. 6. Como vai você, geração 80?. Exposição coletiva que reuniu trabalhos de 123 artistas, realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage - EAV/Parque Lage, Rio de Janeiro, aberta em 14 de julho de 1984. 7. Jorge Guinle – Belo caos. Exposição individual póstuma realizada no Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, 18 de setembro a 8 de novembro de 2009. 8. GUINLE, Jorge. A pintura contra a parede. In: Conduru, Roberto. Jorge Guinle. Rio de Janeiro: Barléu, 2009. 9. JOBIM, Elizabeth. Rapto das Sabinas, 1988. Bastão a óleo s/ papel. 133 x 96 cm. 10. GIAMBOLOGNA. O Rapto das Sabinas, 1581-1582. Escultura em mármore. 410 cm de altura. Florença, Loggia dei Lanzi. 11. JOBIM, Elizabeth. Laocoonte, 1988. Paintstick e óleo sobre papel. 95 x 133 cm. 12. Laocoonte, séc. I d.C. Escultura com autoria atribuída a Hagesandro, Atenodoro e Polidoro de Rodes. Mármore. 213 cm de altura. 13. Desenho contemporâneo brasileiro. Exposição coletiva organizada pela FUNARTE e realizada na galeria Rodrigo de Melo e Franco de Andrade, Rio de Janeiro, 1988. 14. BRITO, Ronaldo. Improvisos reflexivos. In: Elizabeth Jobim, desenhos. Rio de Janeiro: Galeria Paulo Klabin, 1988. 15. VENANCIO FILHO, Paulo. Desenhos que desabam. In: Elizabeth Jobim. São Paulo: Gabinete de Arte Raquel Arnaud, 1997. 198 C A DER N OS EAV 16. JOBIM, Elizabeth. Elizabeth Jobim. Exposição individual realizada no Centro Universitário Maria Antonia, São Paulo, 22 de novembro de 2001 a 22 de janeiro de 2002. 17. JOBIM, Elizabeth. Desenhos. Exposição individual realizada no Espaço Cultural Sérgio Porto, Rio de Janeiro, 29 de outubro a 1o de dezembro de 2002. 18. JOBIM, Elizabeth. Voluminous. Exposição individual realizada na Frederico SèveGallery, Nova York, 12 de novembro de 2009 a 16 de janeiro de 2010. 19. Andy Warhol, Mr. America. Exposição individual realizada na Pinacoteca, São Paulo: 20 de março a 23 de maio de 2010. 20. WARHOL, Andy. Empire. Filme de 16mm transferido para vídeo, 1964. Mudo, p&b. (8h e 5 min. em 16 frames por segundo). O filme consiste num plano-sequência do edifício Empire StateBuilding, realizado das 20h06 às 2h42 de 25 de julho de 1964. 21. Entre 1892/1893, Claude Monet realizou uma série de cerca de 50 telas da catedral de Rouen, situada na antiga região da Normandia, no noroeste da França, reproduzindo a incidência da luz sobre a arquitetura da igreja em diferentes horários. 22. JOBIM, Elizabeth. Em azul. Instalação realizada na Pinacoteca, São Paulo, 19 de junho a 1o de agosto de 2010. 199 EL I ZAB ET H J O B I M Saiba mais Elizabeth Jobim. São Paulo: Gabinete de Arte Raquel Arnaud, 1997 200 VIK M UNIZ Começar uma discussão, uma palestra, uma conferência, é sempre difícil, porque eu sempre acho que estou no lugar errado, sabe? Eu devia estar sentado aí, com vocês, escutando alguém. Muitas vezes, eu não me vejo no direito de estar falando para um número grande de pessoas. Às vezes, as pessoas me perguntam: “O que o levou a ser artista? Como é que você começou a ser artista?” Geralmente, a minha resposta é que não fui que eu que comecei – foi todo mundo que parou de ser num determinado momento, e eu continuei sendo. Acho que quando você está falando com um grupo de estudantes, a pergunta mais pertinente é: “Como você começa a fazer arte? Como você acaba vivendo de arte, vivendo de ideias que você materializa?”. Valentina, a mais veloz, 1996 Cópia fotográfica de emulsão de prata 35,60 x 27,90 cm 202 203 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z Quando eu era jovem, nunca pensei que isso fosse possível. Eu tinha 18, 19 anos quando pela primeira vez um jovem artista me disse: “Eu sou artista plástico: eu trabalho, eu vivo de vendas de pinturas.” Esse artista foi o José Leonilson, na época em que eu ajudava a trupe do Asdrúbal Trouxe o Trombone1. Isso foi em 79, e foi a primeira vez que eu falei: “Como assim, você vive de arte?” Ele falou: “Eu vendo quadros”. Eu falei: “Isso é possível? Pensei que só gente morta vendia quadro”. você ter se tornado um artista, é uma atividade muito empírica, muito experimental. O caminho que me trouxe aqui, para estar falando com vocês hoje, é bastante sinuoso. Quando a gente explica uma carreira, tudo parece fazer parte de uma linha muito direta, reta, que leva esse momento que eu estou falando aqui com vocês de volta até o primeiro desenho que eu fiz, quando tinha quatro anos de idade. Parece que não faz nenhuma curva, porque, olhando em retrospecto, tudo parece fazer sentido – mas, na verdade, era justamente o contrário. Eu nasci em uma família muito humilde; meu pai foi garçom a vida inteira, a minha mãe foi telefonista, na época que tinha aqueles botõezinhos de apertar. Eles trabalhavam o dia inteiro; minha mãe trabalhava o dia inteiro, o meu pai tinha dois empregos. Eu pouco via o meu pai quando era criança, e fui criado pela minha avó. Quando você está começando a fazer alguma coisa, você tem um funil, uma infinidade enorme de possibilidades à sua frente; e quais são aquelas que vocês vão decidir pegar, que vão te levar aonde vocês vão querer estar – a questão é que você não sabe onde você vai querer estar, porque muito da prática de arte, ou até do fato de Eu não tinha a menor ideia de que um dia eu estaria falando com vocês sobre arte com a autoridade que eu estou falando hoje; e o que me levou a ser artista tem pouco a ver com a minha educação como artista, também. É até meio irônico falar isso para um grupo de estudantes de artes. Minha avó era uma pessoa incrível. Ela se ensinou a escrever, ninguém sabe como ela aprendeu a ler; porque ela nunca foi à escola, ela aprendeu a ler de tanto olhar para os livros dos seus filhos – ela teve quatro filhos. E da mesma maneira que aprendeu a ler sozinha, ela me ensinou a ler. Uma das primeiras memórias que eu tenho é de estar sentado com ela num sofá, com o dedo apontando para cada palavra, ela falando a palavra e eu repetindo. 204 205 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z A gente tinha uma enciclopédia – o meu pai ganhou, num jogo de bilhar, uma enciclopédia Conhecer – e eu me lembro que a gente lia aquilo direto. Acontece que ela me ensinou a ler de uma maneira completamente errada, ela me ensinou como se ensina pessoas que tem deficiência. Eu lia me lembrando da forma total de cada palavra, eu decorava essas formas. Uma criança de quatro, cinco anos tem uma capacidade incrível de memorizar a forma de uma palavra inteira. Então, quando eu entrei na escola, com sete anos, eu já estava lendo A ilha do tesouro com ela, o livro do Júlio Verne. a inventar uma maneira de fazer os desenhos, mais rápido. Por exemplo: carro era uma bolinha com dois pontinhos, era um sinal, como um hieróglifo. Eu me lembro de carro, me lembro de mesa, de casa. E isso foi até o segundo ano – não sei como eu passei do primeiro para o segundo, porque eu não sabia ler – não da maneira que eles estavam me ensinando. Mas eu não conseguia escrever, e não conseguia ler letra de forma, porque eu memorizava cada palavra. A maneira como eu aprendi a ler foi puramente visual, eu era como um autista, uma pessoa que tem Asperger. Então, até na minha dislexia, eu sou autodidata; porque aprendi a ser disléxico. Então, quando tive que reaprender a ler pelo sistema fonético silábico, eu não conseguia ler nada. Os meus cadernos pareciam a ala egípcia do Museu Metropolitano de Nova York; parecia hieróglifo, quando eu não sabia escrever. Nos ditados, metade era desenho, metade eram palavras. As pessoas ficavam furiosas, e falavam: “O que é isso?”. E eu comecei Eu tomei uma aversão incrível por sinais, por exemplo. Eu detestava matemática, porque era outro sistema de símbolos. Para mim, parecia muito simples, naquela época. Eu aprendi a ler da maneira que todo mundo aprendeu, mas uma coisa ficou; nessa prática de ficar fazendo esses desenhos pequenos, eu comecei a desenhar compulsivamente. E aí, lá pelos oito, nove anos, eu passei a ser aquele garoto que sentava lá atrás na classe para ficar fazendo caricatura de professor. Eu era o cara que desenhava, e aí já era. Você é “o cara que desenha”; “me faz um desenho aí”, “desenha isso”, “desenha aquilo”. Você começa a desenhar para impressionar as meninas, e, daqui a pouco, você já tem aquilo acoplado à sua personalidade – aquela informação – e aquilo passa a ser uma coisa importante. Quando eu tinha mais ou menos 13 ou 14 anos – eu sempre estudei 206 207 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z em escola pública – houve um concurso. Na época da ditadura se faziam umas coisas superbem-organizadas, no Parque do Ibirapuera, no prédio da Bienal, que não era bem um concurso, era um encontro interestadual de escolas públicas de arte. Eu já tinha passado daquilo, e eu comecei a imaginar outra dimensão para o desenho, quase para fugir daquele momento em que o progresso fica cada vez menor. Eu comecei a imaginar outro lado, um lado mais conceitual da prática do desenho, que era justamente: como a gente consegue ver profundidade em uma imagem, como é que a gente consegue? O que nos levou a ter essa relação com o mundo das imagens, que nos permite simplesmente entrar e viajar numa imagem? De onde vem isso? Um professor de matemática me mandou. Eu me lembro desse dia inteiro; eu fiz colagens, eu fiz um montão de coisas, eles adoraram tudo, e eu ganhei um prêmio, no fim. Eu nem sabia que tinha prêmio, mas me deram um ano de bolsa numa escola – era a Escola Panamericana de Artes, em São Paulo – para estudar desenho acadêmico. É lógico que meus pais acharam ótimo; eu tinha 14 anos, e para mim era a coisa mais incrível. Desenhar mulher pelada na escola era uma grande motivação. “Uau!”. Eu não tinha visto ninguém pelado na minha vida, só eu mesmo, até então. Quando eu vi, pensei: “Nossa, eu adoro desenhar!”. (Risos) Eu desenhava muito, eu queria assistir todas as aulas de desenho acadêmico. Inclusive eu vivi disso, uma época, ensinando desenho acadêmico. Eu comecei a procurar e encontrar – em algumas traduções muito rudimentares da época – os primeiros estudos, alguns eram feitos por psicologistas, outros por cientistas, sobre cognição visual. Na época, eu acho que havia um cara que se chamava William James Gibson, que era um dos pioneiros da pesquisa visual. Eu não vou falar que ele era o pioneiro da pesquisa visual, porque pesquisa visual vai desde os pré-socráticos, a gente tem mais de mil anos disso, mas, na linguagem técnica do século XX, esse cara foi um dos primeiros a ver isso de uma forma cientifica. Mas quando você começa a desenhar, tem uma hora em que você começa a ficar muito frustrado. Num momento você começa a fazer bastante progresso, mas aquele progresso vai ficando cada vez menor, menor – e aí há o momento: ou você continua ou você para. No século XIX, você tem Helmholtz, um pouco antes Berkeley. A visão é uma coisa que ninguém nunca conseguiu entender direito. E eu acho que, como artista, como em qualquer profissão, você tem que entender com o que você está mexendo. 208 209 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z Primeiro: o que é ter um aspecto físico? O que é luz? Ou até um aspecto fisiológico: como é que o olho vê? E tem ainda o aspecto psicológico, quando você vê essa coisa, é uma informação muito crua, muito pequena; e como a gente completa isso com o córtex visual, lá na parte de trás do nosso cérebro? “Eu não vou ser psicólogo.” Eu mexia com teatro, na época, adorava a ideia de representação. Eu tinha vários interesses: em psicologia, em filosofia, principalmente; mas todos giravam sobre a ideia de representação. E esse cara, William James Gibson, começou estudando percepção numa encomenda para a Força Aérea americana, porque eles estavam começando a desenvolver jatos – e, obviamente, o indivíduo vai numa velocidade muito maior do que a normal. E ele tem que se adaptar perceptualmente para sair. Então, ele começou a tentar descobrir como as pessoas viam profundidade; a visão periférica, todos esses elementos da visão começaram a ser estudados, porque eles queriam melhorar a interface, o mecanismo do avião, para ajudar o piloto a conduzir. O Gibson tem um livro fantástico – depois eu descobri como era ruim a tradução. Nessa época eu comecei a estudar isso e me interessei por psicologia. Só que eu era muito mau aluno, então eu tentei o vestibular para a Escola de Psicologia em São Paulo duas vezes e não passei. Eu consegui uma bolsa, ou meia bolsa para a FAAP. Aí, eu pensei: Eu fiz um curso vocacional uma vez, em que todos os alunos da minha escola receberam a resposta: um ia ser enfermeiro, outro médico, outro era isso, o outro era aquilo, e eu não recebia. Aí, fui até a diretora e falei: “Dona Clotilde, eu não recebi a resposta, eu não sei o que eu vou ser – por favor!” Ela falou: “Então, deixa eu ligar para lá.” Ela achou engraçado receber um outro papel: “Um outro questionário, para você”. E o questionário era assim: “Você tem algum parente que trabalhou nessa companhia que desenvolveu o teste?”, “Você conhece alguém que já fez esse teste?”, “Você já fez esse teste antes?” E eu respondi, “Não, não, não.” Eu voltei, e aí me mandaram uma carta explicando que havia 16 anos que eles tinham desenvolvido o teste, e eu era a primeira pessoa a responder as 150 perguntas para a mesma profissão. Era Direito. E hoje eu entendo por quê. Porque você está lidando na ideia, no domínio das impressões, você está tentando provar que uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra. O advogado, na verdade, como o 210 211 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z artista, é uma espécie de mediador entre o real, o que acontece, e como você vê o que acontece. Eu poderia ter sido um ótimo advogado, não é? Não, eu sou um ótimo advogado do diabo, e ele não paga bem. (Risos) você tem que ser um bebê que dirige e lê muito rápido de trás para frente para comprar aquele brinquedo. Impossível! A segunda opção era Publicidade; e isso, para mim, foi incrível, porque eu comecei a cursar e já no primeiro mês estava imaginando todo o meu futuro como uma pessoa que ia ganhar dinheiro criando coisas. Até então nunca havia imaginado isso, ser artista. Eu nunca imaginei que ia ser um artista plástico, isso não existia. Se eu falasse isso para o meu pai, ele ia rir da minha cara. A gente não conhecia artista plástico. A primeira vez que os meus pais foram num museu foi para ver uma exposição minha. E nisso, eu já comecei a pensar um monte de coisas. E algo que comecei a perceber foi que, em São Paulo, naquela época, eu não conseguia ler nenhum cartaz de rua, nenhum. Eu dirigia pela Cidade Universitária, perto da Hípica, e lembro que havia uns outdoors paralelos à Marginal Pinheiros, mas do lado oposto. E eles eram sobre brinquedos. Então, uma vez, eu passei e pensei: eu sabia vagamente que era sobre um brinquedo, que tinha um brinquedo ali, mas é incrível. Era do lado do motorista, paralelo à estrada, num lugar de alta velocidade, um negócio cheio de texto, Então eu falei com uma namorada que eu tinha: “Vem cá, você consegue ler aquilo?” Ela falou: “Não.” Aí, eu dei a volta no quarteirão, fui mais devagar: “E agora?” Ela falou: “Não.” Eu fui mais devagar... Você precisava ir a 15 km/h para conseguir ler o que estava escrito ali. Aí eu fiz uma anotação. O que eu fiz, durante três meses, foi um estudo independente de como melhorar o desenho dos pontos de vendas. É incrível como as pessoas não ligavam para isso nos anos 70. Hoje em dia é muito melhor. Havia duas empresas que trabalhavam nisso; hoje em dia tem a Clear Channel aqui, que faz coisas incríveis – veio um know-how americano, desde os anos 40 fazendo esse tipo de coisa. Mas naquela época, no Brasil, não tinha isso. Então eu cheguei numa das empresas e falei: “Vem cá, eu sei como melhorar os seus pontos de vendas, os seus outdoors, e eu posso fazer ficar muito melhor. Se você não me empregar, eu vou procurar a competição”. Então, ele viu o que eu estava fazendo e falou: “Eu te dou um emprego”. Eu saía num carro, comecei a distribuir percurso de mídia, uma coisa também que não se fazia, nessa época. E comecei a ganhar dinheiro. 212 213 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z Um dos meus clientes me deu um emprego numa agência, numa sucursal da Thompson. Eu fazia as duas coisas e aí logo abandonei a escola. Eu pensei: “Eu já tenho um emprego.” Eu já vi que podia pegar, dali, uma coisa mais prática. Eu vendia uns licores que ninguém bebia. Eles queriam aumentar a idade das pessoas que bebiam esses licores horrorosos, então bolei uma campanha; e eu adorava fazer isso, não vou dizer que não gostava. Eu não sabia que havia algo melhor do que isso, nessa época. que eu era o agressor, então, ele tinha pego um revólver e estava atirando em mim: “Pum, pum, pum, pum.” Aí aconteceu uma coisa superinteressante: eu ganhei um premiozinho da Associação de Publicidade de São Paulo. Pela primeira vez na vida eu aluguei um black-tie – um tuxedo, uma roupa lá – e fui para a cerimônia. Eu não conhecia ninguém, entregaram os prêmios, e me deram um negócio feio de acrílico. Eu peguei, tomei uns dois martinis e fui embora. Na hora que estava indo para casa, uma mulher parou o meu carro e falou: “Estão matando o meu namorado!” Eu saí do carro – eu tinha um Fusquinha azul-claro – fui lá, e apartei a briga: era um cara batendo num outro, com um soco inglês. Eu comprei uma passagem para ir para os Estados Unidos. Quer dizer, se não tivesse levado um tiro, provavelmente não estaria falando com vocês hoje. E aí, cheguei nos Estados Unidos com uma ideia fixa. Eu pensei: “Me liberei da publicidade”. Eu tinha uma ideia muito fixa de estudar teatro, fazer direção, escrever; eu também pensava em fazer cenografia. Quando eu estava voltando para o meu carro, escutei uma explosão, e quando vi, eu já estava no chão, olhei para trás e vi o cara que eu tinha salvado; como estava todo mundo vestido de preto, ele pensou E eu falei: “Nossa!”, engatinhei até o meu carro, fui até o hospital e desmaiei. Eu acordei dois dias depois, com o meu agressor – com a cara toda enfaixada, parecia uma múmia – me pedindo desculpas e me oferecendo dinheiro para eu não mandar ele para cadeia, o que eu aceitei, lógico: eu era pobre. Mas comecei a ver que isso não era a minha onda. Porque o que eu chamava de teatro, aquilo que estava gostando de fazer, aqui no Brasil, tinha a ver com o fim da ditadura, com a classe intelectual. Eu não aguentava mais a arte política; ninguém aguentava mais o discurso político permeando todo tipo de atividade artística. Então o escracho começou aqui no Rio: o Circo Voador, a Blitz, o Asdrúbal Trouxe o Trombone. 214 215 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z A minha geração não aguentava mais, sabe? Falar em Geraldo Vandré? Todo mundo falava em Geraldo Vandré, me dava arrepios: “Caminhando e cantando...” (Cantarolando) Parecia um bando de zumbis, eu não aguentava mais aquilo. pobre, cheio de artistas, pois artista você sabe como é: primeiro os ratos, depois os artistas. Lugar que é barato, com aluguel barato, atrai artista – então é sempre bacana. Tinha muito rato, também. Mas, naquela época, era incrível. Eu ajudava a fazer anúncios para clubes, com um amigo que se chamava Fernando Nataliti. Era muito tempo ouvindo aquilo; eu acho legal, é muito bom que tinha gente fazendo isso. Mas eu era jovem nessa época e estava de saco cheio de tudo isso. E eu pensava: “Pô, vamos ser felizes!” Quando cheguei aos Estados Unidos, ainda havia um compromisso muito grande com o avant garde2. Um dos caras – um tal de George Foreman – eu fui numa peça dele, e eram quarenta homens feios, de mais 40 anos, pelados num palco, gritando obscenidades, um deles segurando um rato na mão. Não dá... Eu falei: “Não: isso é pior do que Caminhando e Cantando...” E tinha isso, e tinha Cats, A Chorus Line , Broadway; nego dançando e sapateando, então, eu fiquei vagando intelectualmente num limbo cultural durante quatro anos e meio, cinco anos – porque eu fiquei sem saber o que ia fazer, e foi a melhor época da minha vida. Eu estava no lugar errado, na hora errada – era ótimo. Eu estava no East Village, a cidade tinha acabado de sair da crise da OPEP3, no começo dos anos 80, e tudo estava acontecendo ali. Era um lugar Eu saía todas as noites, a gente via tudo: os Ramones, o Talking Heads no CBGB. Tinha clubes incríveis, na época, e a classe das artes visuais era muito ligada com a poesia, com os escritores. Víamos esse pessoal o tempo todo, a música, era tudo muito relacionado. Era uma época em que, por exemplo, a música do subúrbio começava a permear, começava a descer para Manhattan, principalmente, para o sul da ilha de Manhattan. Tinha o Bronx, o Brooklyn; a produção da ideia de você pegar pedaços de coisas e refazer era uma coisa de que eu já gostava, eu sempre gostei de reggae, por exemplo, que era uma manifestação desse tipo: de você reassimilar coisas, reciclar ideias. O hip-hop era uma coisa que bombava muito, nessa época, tinha um clube que se chamava “The World”, aonde eu ia quase toda terça-feira, eu vi Afrika Bambaataa tocar, Kraftwerk. Eu via mundos muito distantes convergindo por causa de tecnologia, e era muito interessante 216 217 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z o que estava acontecendo. Na parte das artes visuais também tinha uma coisa incrível, em que começaram a aparecer galerias. filosofia do que ela. Eu entendia muito mais sobre o que eu estava falando do que ela; ela tinha ido a uma escola melhor, ela tinha ido para a escola que eu não tinha ido, e ela não sabia desenhar. Uma garagem, do tamanho desse palco em que estamos (2 m x 3 m), era uma galeria; aí, só dava para botar duas obras por vez. Eu achava ótimo, porque você não tinha que ver tanta coisa, era mais econômico, mas tinha galerias em toda parte, em que o pessoal tinha um orçamento mínimo, botava lá uma obra. E eu comecei a visitar e ficar amigo desses caras que tinham galerias. Eu também trabalhava num negócio como moldureiro e restaurador de pinturas vagabundas; e comecei a pintar, também, para vender, para ganhar dinheiro. Eram batalhas navais, sabe? Com galeões espanhóis e fragatas inglesas – eu adorava pintar a fumacinha dos canhões, e eu vendia por duzentos dólares. Fazia uma pintura a cada duas semanas e ia levando a vida assim. Comecei a imaginar uma profissão como artista plástico quando eu comecei a sair com uma artista plástica, uma namorada minha que era recém-formada da Yale, uma universidade americana muito chique e prestigiosa. Ela era muito metida, eu saía e ia ver muitas exposições com ela. E ela era muito pretensiosa, sempre achava que eu era um brasileiro que não sabia nada – e eu sabia mais de arte e E então fui pegando raiva dela, porque ela me tratava mal. Eu era, assim, o “amante latino”. Eu pensava: “Pô, que pretensão, não é?” Eu comecei a ficar com bronca, e aí teve um dia que ela disse uma coisa, e eu falei: “Não, eu não concordo.” E ela respondeu: “Ah, você não sabe nada, você não estudou nada – lá no Brasil, naquela selva? – Você não entende nada. Eu fui para Yale, eu sou artista, você não é”. No outro dia, fui procurar um estúdio para alugar. O único lugar que eu achei era no Bronx, uma hora de trem. Eu comecei a tentar fazer, eu falei: “Eu vou virar artista de marra, só para mostrar para essa pessoa”. Eu agradeço a ela, até hoje, por isso. E como é que a gente vira artista? Eu pintei de branco uma salinha, achei uma cadeira bonita no lixo, botei lá, tinha uma mesinha. Eu sentei e fiquei: “Vou fazer arte. Eu vou fazer uma arte aqui – você vai ver, danada, maldita – eu vou fazer uma arte”. É lógico que não é bem assim. Eu acho que arte não é uma coisa que a gente faz assim; eu tenho uma dificuldade incrível de imaginar 218 219 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z “E o que o espectador sabe? O espectador sabe muita coisa, ele está vendo desde que nasceu. Então, você começa a trabalhar a partir de princípios visuais primitivos.” artistas que ainda vivem no estúdio, todo dia, não é? A arte não é uma coisa em si, é uma espécie de veículo, uma espécie de funil, uma espécie de filtro por onde as coisas passam. Se você não tem uma vida, você nunca vai ser um bom artista – se você não faz outra coisa além do que você faz. É verdade que, por mais que a gente insista na possibilidade de uma educação de arte, eu acho que ela tem sempre uma espécie de coisa paralela. Eu vejo artistas que viram artistas porque estudaram Arquitetura, porque foram advogados, porque eram torneiros mecânicos, qualquer coisa. Mas é difícil, o pessoal que estuda arte acaba trabalhando com educação, trabalhando em museu. Quando eu comecei a pensar: “Do que eu gosto?” Eu gosto de teatro, eu gosto de representação, eu gosto de filosofia, mas tinha uma coisa que eu gostava, adorava. Eu adorava a ideia de mídia – eu sou daqueles caras que viam muita televisão. Eu estou sempre acompanhando tudo que sai, assim, eu jogo videogame, sou viciado em Wii. (Risos) E, ao mesmo tempo, eu leio os clássicos, eu não discrimino mídia de forma nenhuma, para mim tudo é bom, principalmente arte comercial. Eu acho que tem uma coisa muito elitista de falar: “Ah, é 220 221 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z artista comercial.” Existem duas indústrias que estudam imagens, hoje em dia, de uma forma direta e objetiva; e isso é muito claro na minha cabeça. Uma delas tem dinheiro e tecnologia. Publicidade e marketing; esse pessoal tem dinheiro, tem tecnologia, a pesquisa, eles têm como pegar feedback do público. E essa arte, sobre a qual a gente fala, essa arte da qual eu vivo, que são os museus, são as galerias, para mim é mais secundária ainda; porque eu acho que a arte mesmo está no momento, independente do contexto. Um momento em que as pessoas se encontram, a arte é o momento onde ela é feita. E tem também outra classe de pessoas, que são pessoas como eu; que não têm dinheiro, não têm tecnologia, mas têm liberdade, sabe? Eu posso fazer; eu não preciso vender nada, eu não estou amarrado por um cliente ou por uma proposta. Eu posso fazer o que eu quiser – então, eu acho que é justamente um pouco dessas duas coisas que funciona. Eu, até hoje, assino Advertising Now. Eu estudo, eu vejo – eu começo a ler o jornal pela parte de economia, não pelo segundo caderno. Eu estou repensando essa coisa toda, ultimamente, e acho que essa exposição que eu fiz aqui no Rio de Janeiro4 tem muito a ver com isso. Eu comecei a imaginar: e se eu tivesse uma carreira em publicidade? Eu adoro isso, porque publicidade é uma maneira de se inventar ou dar forma e identidade para coisas que não têm identidade ou forma, a princípio. Eu acho que tenho uma relação com o mundo. A minha relação com a arte é natural, instantânea; ela é a maneira como as coisas passam por mim. Às vezes, estou em Paris e se eu tiver que ir ao museu de ciência ou ao museu de arte moderna vou ao museu de ciência. Eu sei que é engraçado eu falar que tenho pouco interesse em arte – mas o meu interesse em arte é secundário ao meu interesse na vida, nas coisas, sabe, você poder viver, poder aprender as coisas de uma forma mais direta. Você, por exemplo, pega um líquido que é feito para lavar roupa – então, bota em uma embalagem que parece uma mulherzinha, faz ele cor de rosa, para dizer que é bom para as suas mãos. Já o mesmo líquido, se você quer dizer que é forte para tirar manchas, faz a embalagem parecer um revólver; pinta ela de vermelho, ou de azul – todas essas considerações. E isso, tem tudo a ver com arte, esse pessoal está pensando de uma forma artística. E eu comecei a pensar: “E se a pessoa que faz a imagem do objeto também fosse a pessoa responsável por fazer o objeto?” Isso é tema 222 223 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z de uma exposição5 que vai acontecer; são os primeiros trabalhos que eu fiz, e ela vai estar na Laura Alvim. São apenas objetos, não tem fotografia. Vocês estão todos convidados a ver, mas os primeiros trabalhos eram uma coisa mais ou menos assim: o Esqueleto do palhaço6, que é um fóssil de uma classe de apresentadores de muito tempo atrás; e tem o Ashanti Joystick7, que é um negócio para controlar videogame, africano, poderoso. fotografar as minhas obras para documentação e divulgação. Esse cara chegou com uma câmera enorme, dois assistentes, luzes; eles iluminaram o trabalho, eu achei que aquilo ficou tão bonito, sabe? Parecia a apoteose, que a razão que eu tinha feito o trabalho era só para tirar uma foto. Tem o Podium de balanço8. Agora, com esse negócio de doping, nego não está muito seguro do primeiro, do segundo, do terceiro lugar. Tinha o Máquina de café pré-colombiana9, Melitta, o Bonsai Table10, uma mesa bonsai; a Enciclopédia Britânica11 inteira em um volume só, e a Meia tumba12, para quem ainda não morreu. (Risos) E eu comecei a imaginar, ao mesmo tempo; fiquei pensando que, uma vez que eu não queria fazer imagens, eu queria fazer objetos, mas aí um dia apareceu um cara na galeria... Deixem eu voltar um pouco a história. Eu consegui uma exposição de grupo – eu consegui uma pessoa para me representar, em Nova York, fiz uma exposição, mandei aquela namorada chata embora, arrumei outra, e comecei a mostrar o meu trabalho. E aí, na primeira exposição, eles trouxeram um profissional para E eles fizeram uns cromos, de 4 x 5”, uma coisa incrível, tudo focado, tudo bem iluminado, mas eu olhei para aquilo e falei: “Isto está errado, tem alguma coisa errada neste negócio”. E eu fiquei com isso na cabeça durante semanas olhando aquilo. “Tem alguma coisa errada nessas fotos.” Então, para tirar a teima, eu fui numa lojinha e comprei minha primeira câmera. Isso foi em 88, tirei dinheiro, fui a uma lojinha vagabunda – loja errada. Eu comprei a câmera errada, botei o filme errado na câmera, tirei a foto com a luz errada e levei em um lugar errado para revelar. A foto estava uma porcaria, mas eu olhei a foto e ela estava certa; tinha alguma coisa a mais do que egocentrismo para falar que a minha foto era melhor que a outra foto. Eu as olhei por muito tempo, até que me ocorreu uma coisa. Na medida em que a gente vai envelhecendo, vai perdendo a capacidade de rotar, de rodar objetos no nosso campo visual mental; 224 225 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z Começamos a mentalizar objetos visualmente e não podemos girar eles na cabeça. Autistas e crianças fazem isso com muito mais facilidade do que a gente, e quando a gente imagina um objeto, antes de fazer o objeto, a gente imagina de um ponto de vista específico. “Mas que forma essas imagens têm?” Eu tinha esse livro, o primeiro livro que eu comprei, que se chamava O melhor da revista Life; é um livro que muita gente tem, com todas essas imagens que as pessoas estão carecas de conhecer e que já viram milhões de vezes. Mas, de vez em quando, elas têm que olhar de novo, para refrescar a memória daquelas imagens – da mesma maneira que a gente tem que, de vez em quando, olhar um álbum de família, para se lembrar dos tios e tias. E eu comecei a pensar nessa coisa da imagem dentro da cabeça. Se constrói o objeto e, uma vez que está feito, a gente anda em volta dele até encontrar aquele mesmo ponto de vista de onde havíamos imaginado esse objeto mentalmente, antes de fazê-lo. E quando conseguimos esse encaixe, esse match, o artista fica satisfeito por ter produzido uma coisa que era simplesmente mental, e que ele conseguiu dar uma forma material. O que é essa imagem que você não roda? Eu comecei a imaginar: “O que é isso? O que é essa imagem na sua cabeça, que você tenta conectar com alguma coisa que está lá fora?” Ao mesmo tempo, tinha um anúncio da Nikon que descrevia quatro das fotos mais importantes do século XX; era o John-John Kennedy quando o Kennedy morreu, fazendo continência; tem a mulher chorando em cima de um corpo, quando a guarda-civil americana atirou contra os estudantes, lá em Ohio; tem o Richard Nixon levantando o cachorro dele pelas orelhas; e um estudante na frente de tanques. Essas imagens estão todas na minha cabeça, e eu comecei a pensar: Eu perdi esse livro e comecei a desenhar as imagens de memória. Eu fazia sem pensar que isso fosse virar arte; eu me lembrava de alguma coisa, algumas das imagens eram fáceis, pois eu já havia desenhado elas. Por exemplo: o homem na Lua era bico, porque eu já tinha desenhado, eu me lembrava da reflexão. Lógico, o meu reflexo era muito maior do que na imagem original, o resto eu disfarçava um pouquinho. Para quem desenha é engraçado; expressão visual é muito difícil de fazer, mas a coisa mais importante para mim, é o punctum13. À medida que eu ia desenhando – foram dois anos –, eu ia mexendo, ia cobrindo ou apagando. E os desenhos foram ficando cada vez melhores. 226 227 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z O meu galerista pediu para eu fazer uma exposição com os desenhos. Eu não queria fazer. Ao mesmo tempo em que os desenhos eram muito parecidos com as fotos, eles eram horríveis como desenhos, eu tinha vergonha deles. E eu gostava muito dos desenhos nos quais eu estava trabalhando há muito tempo. Então eu tive essa ideia diabólica: “Eu fotografo o desenho, vendo a foto e fico com o desenho.” exatamente no meio. Quando você olha as imagens dessa série, se lembra disso; você lembra como aconteceu, parece que você está vendo a fotografia quando ela aconteceu. Boa ideia, não é? Mas, na hora em que eu fotografava o desenho, eu fazia um pouco fora de foco, para tirar a marca da minha mão, e também as falhas, a coisa de apagar. Porque eu desenhava com caneta, desenhava com o que tivesse à mão, para não esquecer a ideia. E quando imprimi, eu imprimi com a mesma linguagem, essa coisa de bolinha, de halftone, que era a linguagem com que eu tinha visto essa foto, pela primeira vez. Essa retícula é a maneira como a fotografia chegou a nós; desde o fim do século XIX até hoje, temos essas bolinhas. Quando eu fiz essa exposição14, ninguém questionava a veracidade da foto, eles só achavam que as impressões eram muito mal-feitas, falavam: “Mas a qualidade da foto está muito ruim, não é?” Eu falava assim: “É, é”. Mas era engraçado. Porque o que eu quis realmente fazer foi partir de uma coisa puramente mental e desenvolver ela até chegar Outra coisa que eu descobri é que tenho uma capacidade muito grande de inverter as fotos na minha cabeça, e isso foi exatamente o que fiz. Por isso, eu nunca fui processado pela Life, pela Associated Press, nenhuma dessas agências de fotografia; porque as imagens realmente são muito diferentes, mas elas são metade, elas chegam na metade do caminho. Essa coisa de chegar até a metade do caminho é interessante, porque eu comecei a imaginar isso: o artista só chega até a metade do caminho. Ele tem que trabalhar com um tipo de imagem que tem um apelo, ele tem que colaborar com o espectador, tem que usar o espectador como parte do processo. E o que o espectador sabe? O espectador sabe muita coisa, ele está vendo desde que nasceu. Então, você começa a trabalhar a partir de princípios visuais primitivos. A partir daí, no momento em que você consegue assegurar uma comunicação primitiva, uma comunicação física perceptual com o espectador, você pode construir o que quiser, você pode falar de história da arte, pode botar a erudição que você quiser ali em cima, contanto que aquilo chame a atenção da pessoa. E 228 229 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z essa pessoa tanto pode ser uma pessoa que vive no museu como uma pessoa que nunca foi no museu; pode ser uma criança ou uma pessoa adulta, idosa. sabe foi, recentemente, o que eu comecei a apresentar para ela. E Caravaggio não estava somente pensando no patrocinador, no mecenas dele. Ele estava pensando em uma arte que ia atravessar séculos, ia atravessar todo tipo de barreira humana, seja etária, social ou intelectual; eu acho que a grande ambição do artista é poder se comunicar com a humanidade, não só com a sua classe. Contanto que ela tenha um par de olhos, isso tem que funcionar. Eu nunca fiz arte com um grupo específico de pessoas, sabe? Eu nunca fiz arte para curador, nunca fiz arte para colecionador, nem para crítico. Também nunca fiz arte para mim mesmo; eu faço arte para dividir isso com as pessoas. E, logicamente, você tem que fazer arte que é inteligente e, ao mesmo tempo, você tem que pensar em acessibilidade, e isso é difícil de fazer. Você pode ser extremamente inteligente naquilo que faz com um grupo mínimo de pessoas – é muito fácil fazer isso. Mas ter um apelo que atinge o curador, o escultor, o colecionador, o curador de museu e aquela pessoa que nunca foi a um museu – é um desafio muito grande. E acho que vejo arte com essa ambição. Nisso, sou muito ambicioso. Durante toda a história, a arte relevante sempre teve esse poder. Eu não conheço ninguém que não gosta de Caravaggio. Outro dia eu levei a minha mãe ao museu, ela olhou um Caravaggio e começou a chorar; porque aquilo é forte. Minha mãe não sabe nada de arte, ela sabe muito pouco, o que ela Uma coisa que eu comecei a notar, também, partindo dessas coisas muito básicas: quando você olha as nuvens, você tem uma capacidade incrível de projetar coisas que você quer ver nessas nuvens, reconhecer objetos nas nuvens. Eu sempre faço uma coisa com a minha filha. Eu falo: “Olha lá, Mirna, aquilo parece uma foca.” Aí, ela fala: “É, aquela também é foca, outra foca, todas as nuvens parecem foca”. E ela fala: “Chato, não é, pai?” Vira tudo foca. Mas uma coisa que você não consegue fazer é ver dois significados na mesma coisa. Nós somos equipados com uma limitação cognitiva muito perversa. O mundo inteiro está na nossa frente, mas para a gente perceber ele em uma razão de tempo e espaço, a gente tem um handicap, uma limitação que se chama atenção, e a atenção faz com que a gente só perceba um fator temporal e espacial de cada vez, a gente não consegue assimilar dois significados simultaneamente, é como se fosse uma ampulheta, um grão de areia cai a cada vez. 230 231 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z E o que impossibilita a gente de ver tudo ao mesmo tempo, o tempo todo – que seria o universo de uma pessoa com autismo – é aquilo que faz a gente poder não apenas perceber as coisas de uma forma linear, como uma narrativa, mas, também, organizar isso na cabeça da gente, e ter uma razão de tempo e de história, e poder comunicar esses fatos com todo mundo. A partir da obra Duas vacas17, eu comecei, também, a imaginar a ideia do acidental. Acho que o homem, antes de poder produzir imagens, teve que adquirir a capacidade de ver uma imagem dentro da outra. Na verdade, a arte começou há muito tempo, no fim do mesolítico. Um homem primitivo entrou em uma caverna e, ali, observando os rachados na parede daquela caverna, de repente, ele viu uma coisa que parecia um animal, um bisão, talvez. É justamente a nossa inabilidade de perceber tudo ao mesmo tempo que faz com que a gente possa viver e conviver como responsável por todo o desenvolvimento da nossa civilização. Quando você olha a obra Nuvem e o remador15, ou você vê um cara remando ou vê um algodão ou vê uma nuvem; mas, no momento em que você vê a nuvem, perde o cara remando e o algodão; no momento em que você vê o cara remando, perde o algodão e a nuvem, e daí por diante. Você não consegue ver a coisa de mais de um jeito. Eu não sei se vocês conhecem uma ilusão de ótica que se chama o Cubo de Necker16. É uma coisa que parece um cubo, e você consegue vê-lo ir para a frente e para trás, mas você não consegue ver dos dois jeitos. A boa notícia é que você consegue controlar o que quer ver. Você escolhe se vê a nuvem ou o remador. E isso foi uma das primeiras séries que eu fiz só com fotografia, a partir do Best of Life. E, naquele animal, ele começou a ver um animal específico, um animal que ele tinha caçado no último inverno com os companheiros dele. Ele começou a observar, naquela forma, a caçada; começou a se lembrar do gosto do animal, quando o matou, da festa depois da caçada e ali, de repente, tudo apagou e aquilo virou um rachado, uma forma acidental na parede de uma caverna. Para recuperar aquela sensação, ele pegou num objeto pontiagudo, foi lá e desenhou um olho que faltava naquela forma – e então, toda aquela imagem voltou. Esse homem foi o primeiro artista; e ele criou, ali, uma forma que não existia até então, e não só uma forma – mas a capacidade de trazer o espírito de uma coisa que não está aqui, no presente, e poder transmitir essa coisa que aconteceu antes, não só para você mesmo poder ter a experiência daquilo novamente, mas também para poder transmitir aquilo para outras pessoas. 232 233 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z A invenção da representação talvez seja a maior conquista humana, depois do controle do fogo. A partir do momento em que você se deixa enganar por uma forma, por uma coisa que não está ali, em função de outra, você começa a estabelecer todo um sistema de trocas simbólicas – que nos permite, hoje em dia, ter uma estrutura política, ter uma economia, ter religião, tudo que exige crença exige essa troca, você se deixar enganar um pouquinho. O desenvolvimento da representação tem esse padrão muito persistente. Acontece que você tem essa coisa muito crua, muito primitiva, e, no momento que alguém começa a falar “Eu acho que isso aí não é animal, isso aí é um rachado na caverna”. o cara tem que melhorar um pouco aquela imagem, para continuar enganando, continuar enganando, continuar enganando; então, tem essa corrida entre o cinismo, o pragmatismo de quem está vendo contra o cunning – a esperteza e a tecnologia daquele que está produzindo as imagens. Imaginar que o som das palavras que estão saindo da minha boca tem significado; se eu desenho um círculo e faço linhas no radiano desse círculo, qualquer pessoa, uma criança de dois anos vai falar: “Isso é o Sol.”. O Sol é uma bola de fogo imensa, há oito minutos-luz daqui. O Sol é uma coisa que não dá para trazer pra dentro dessa sala; mas qualquer pessoa imagina. Isso é mágica: você imaginava isso, dentro de um plano onde não tinha virtual reality, onde não tinha Wii, não tinha televisão. Imagina esse homem primitivo vendo esse animal, nessa caverna. Era que nem cinema; era incrível, ele vendo que o animal estava ali, de novo, era como 3D, hoje em dia tem 3D que você fica: “Oh!”. (Risos) No meu caso, acho que a gente chegou a um nível de tecnologia no qual eu não consigo mais competir, no campo da ilusão – e nem é o que eu quero fazer. Em vez de fazer uma ilusão muito incrível – que o Steven Spielberg pode fazer, a animação da Pixxar pode fazer – eu estou mais interessado em falar da ilusão no seu nível mais básico. Eu estou mais interessado na pior ilusão possível, uma ilusão que você olha e fala: “Como é que eu caio em uma coisa dessas?”. Eu não estou interessado em iludir a pessoa, mas em oferecer a esse espectador uma perspectiva da necessidade que essa pessoa tem de viver, da ilusão da vida prática dessa pessoa. Então, para isso, eu acho que você pode usar todo tipo de ferramenta. O artista não pode ter preconceito. A pior coisa que pode acontecer na vida de qualquer intelectual é o preconceito. 234 235 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z Por isso, quando o intelectual começa a falar muito de política, eu já fico meio assim, porque já está dividindo o mundo em duas partes. Acho que, sobretudo, você tem que usar todas as ferramentas possíveis para fazer o que você quer fazer ou dizer o que você quer dizer. Humor é uma coisa legal em arte, porque humor é uma coisa que pode ser usada de uma forma muito profunda, ilusão é uma coisa que também é importante, essas são estratégias de trabalho que eu fui desenvolvendo com o tempo. Eu não tinha nada para fazer na França, estava nos Alpes, estava muito aborrecido, e pensei: “Não tem nada para fazer aqui”. Eu não estava trabalhando e não consigo ficar parado. Então, perguntei para um fazendeiro lá se eu podia pintar nas vacas dele. A ideia era pintar, nas vacas, os mapas da recém-formada Comunidade Europeia: Itália, França, Portugal, Espanha. Era para um projeto, na cidade de Münster, para deixar essas vacas andando lá na cidade. Então, quando o cara visse assim, Chipre, Grécia, ele não ia pensar que era um mapa, porque o mapa da Grécia ninguém conhece direito, mas aí veria a Itália e pensaria: “Espera aí, essa vaca aí...” Duas vacas, 1997 Cópia fotográfica de emulsão de prata 35,60 x 27,90 cm 236 237 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z Então, falei para o cara: “Eu sou de São Paulo, eu não cresci em volta de mamíferos maiores que eu mesmo; então, eu morro de medo de cavalo, de vaca. Posso pintar nas suas vacas?” Ele falou “Não.” Eu falei: “Eu pinto o mapa da França, faço uma foto e dou para você.” E ele: “Está bom, pega aquela vaca ali”. Eu falei: “Aquela?” Ele respondeu: “Não, a mais feia – aquela do lado ali – pega ela, pinta, aí você lava e pinta de novo os outros países”. tem a capacidade de usar o que aprendeu dentro de um tipo de trabalho para um próximo. Então, eu não vejo só como um trabalho. Geralmente, eu vejo a série e a obra, porque ali tem toda uma narrativa que é quase cinemática; você vai vendo um trabalho, vai aprendendo, vai aplicando aquele conhecimento. Eu falei: “Ah, está bom.” Aí eu fui lá para a cidadezinha, comprei tinta, que era para ser lavável. (Risos) Era para ser lavável... Eu amarrei a vaca no pasto, em um toquinho que tinha lá e, muito idiota, comprei um mapa rodoviário da França. A tinta era muito rala e estava uma ventania, soprava o vento e a vaca adorou ser pintada, ficava vindo para o meu lado. Naquela performance maluca, a tinta começou a escorrer, a França começou a estragar, a degringolar; eu comecei a tentar fazer a Espanha, a Turquia, Paraguai, não deu certo; a única coisa que eu consegui desenhar foi uma vaca na vaca. Aí eu fui lavar, e a tinta não saiu. A vaca está desse jeito até hoje, foi a série mais curta que eu fiz. Eu trabalho em série; eu acho que é uma coisa interessante, porque gera um número muito grande de trabalhos. É legal, porque você É uma trabalheira. Mas eu nunca pensei em fazer uma obra-prima; não tem um Guernica18, não tem um Demoiselles d’Avignon19 no meu trabalho, são sempre coisas pequenas que vão avançando. É uma progressão muito pequena. Comecei a pensar a ideia de desenho, você vê um desenho do sol e a mágica do desenho; muitas vezes ela nos escapa, porque a gente está pensando na qualidade, na verossimilhança. Se eu faço, por exemplo, o retrato de um de vocês, vocês vão olhar para mim, vão julgar aquele desenho pelo nível de verossimilhança que o desenho apresenta com o meu modelo. Esse desenho está bom, esse desenho não está bom; parece com o modelo ou não parece. Vocês vão julgar o desenho só por isso, não vão pensar na relação do desenho com a imagem do modelo; e nem pensar sobre o que é o desenho – essa coisa que traz o sol para dentro de uma sala. Agora, se eu fizer o mesmo desenho no melado e botar formiga 238 239 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z andando em cima, você vai falar: “O que é isso? O que aconteceu?” Então, ao invés de você usar um ator, existe toda uma gramática na linguagem visual que é muito parecida com a linguagem escrita. Um desenho, uma representação, exige um ator e um personagem. No caso de Uma rosa é uma rosa20, é o arame fazendo uma flor, no caso do lápis é a mesma coisa: é um traço de grafite que se transforma naquilo que ele está desenhando. ver Anthony Hopkins. Aquele rei eu já conhecia; eu já tinha visto a peça, já sabia de cor o texto. O ator vira o personagem e você só tem o personagem. E eu me vejo como um diretor de teatro. Eu ensaio bastante, mas a minha performance é só por uma fração de segundo, para a lente da câmera. E eu sempre escolho maus atores. Os meus atores não são bons, não são como um lápis que faz uma representação e vocês quase não veem, ou como um bailarino que pula quase um metro e meio de altura e você nem dá bola, nem parece que pulou um metro e meio de altura. Tem uma história interessante. Uma vez, eu fui ver o Anthony Hopkins – vocês conhecem: o ator inglês, muito famoso, muito bom? Fui assistir o Rei Lear, de Shakespeare, no Central Park – e eu paguei 45 dólares para ver aquele grande ator fazer esse personagem de Shakespeare. E eu achei que fui roubado. Na hora em que ele começou a viver o personagem, ele desapareceu como Anthony Hopkins, e era só o rei, que estava ali. E eu paguei para Numa outra ocasião, eu paguei três dólares para ver uma produção mambembe do Otelo, em uma casa abandonada, lá no Queens, um bairro de Nova York. Um encanador chamado Joey Grimaldi fazia o mouro, o general, e era tudo muito mal feito. Aí, nos primeiros cinco minutos, o Joey Grimaldi, esse grande ator-encanador, entrou com força; ele era o grande general mouro, falava forte, com um sotaque do Brooklyn, e convencia. Com cinco minutos de performance, ele foi virando encanador de novo; aí foi virando general, encanador, general, encanador, general. Por três dólares, eu assisti a duas tragédias pelo preço de uma. (Risos) O melhor, o Sir Anthony Hopkins me trouxe o personagem do Rei Lear, mas o Joey Grimaldi, na sua incapacidade dramática, me trouxe o teatro. Ele me trouxe exatamente o momento em que uma coisa se transforma em outra; em que o encanador vira general e o general desce para a condição de encanador. Não é o general e não é o encanador: é esse momento onde esses dois mundos colidem. 240 241 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z Outro exemplo que eu dou sempre – eu já devo ter feito isso tantas vezes – vou ter que levantar para fazer isso, é uma performance mais física. As pessoas vão para museus – você, artista, tem que fazer isso. Tem que ir e olhar as pessoas, como elas andam no museu, porque o museu tem uma coreografia. Por que acontece isso? Porque, no momento em que a pessoa chega naquele ponto onde ela está vendo a paisagem, ela parece que está dentro da paisagem ou fora da paisagem; ela se aproxima daquela imagem, e aquela paisagem se perde, vira tinta, ela observa só o material. Toda aquela imagem, aquela coisa ideal, ela se dissolve em uma forma material, uma coisa primitiva, uma coisa que sai da terra. Tinta é uma coisa que sai da terra, sabe? É óleo, tem óleo feito de banana. Então, você pode ver. As pessoas chegam ao museu e fazem uma coisa assim: elas andam e aí elas param. Vamos dizer que tenhamos uma pintura de uma paisagem exposta. As pessoas andam em direção à paisagem, param ali, como se tivesse um pedaço de fita no chão; todo mundo para no mesmo lugar. Por que elas param ali, não param mais aqui? Por que elas não olham de longe, por que param ali? É óbvio: elas param ali porque é o momento onde a pintura, a paisagem, preenche o campo visual da pessoa, mas ainda te dá a possibilidade de ver as arestas, o fim, o limite daquele quadro. A pessoa que está vendo consegue entrar dentro daquela paisagem, mas ela tem ciência de que aquilo é só uma imagem. Aí, a pessoa faz uma coisa incrível, que todo mundo faz: ela faz assim (o artista se movimenta para frente e para trás). Todo mundo vai e volta, vai e volta, parece retardado. Ninguém percebe, mas todo mundo fica assim; às vezes dá uma disfarçadinha, dá uma olhada. As pessoas falam: “Você usa materiais inusitados”. Eu respondo: “Você sabe o que é tinta? Tinta é um material inusitado também, você não sabe nem o que tem dentro; foi usado até um pó de múmia para fazer tinta, no século XVIII”. Então, a pessoa se aproxima e vê o material, se afasta e vê o mental. Entre o material e o mental tem um momento em que clica, a coisa se transforma, e você, então, percebe que não é o material nem o mental, é exatamente aquele ponto onde uma coisa se transforma em outra. O objeto de arte – a pintura, a fotografia – nada mais é do que uma membrana que separa o nosso mundo mental, cognitivo, idealista, intelectual, do mundo pobre, e às vezes perverso, das coisas 242 243 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z materiais. Tudo o que está além daquilo é material, é substância, é primitivo; e são coisas que, na verdade, não têm nenhum valor até o momento que a gente começa a ver elas como coisas de valor. que você dá em alguém. Aquilo lá, quando tudo pode virar, quando tudo pode se transformar, é a coisa mais importante. Outro dia, eu estava pensando nisso, tem esse telescópio Hubble21 que consegue ver objetos – ou trazer imagens de objetos – que estão já próximos do event horizon. Eles estão se distanciando do centro do universo, já quase na época do Big Bang, em uma velocidade, em uma aceleração de ¾ da velocidade da luz, a gente ainda consegue enxergar isso. Construímos um negócio que nos possibilita ver o começo do tempo – e todas as partes desse telescópio foram tiradas da terra. Tudo é feito de terra: o metal, o plástico, o computador que está ali dentro. Tudo é feito de terra. Nós somos incríveis, para falar a verdade, às vezes eu até me orgulho de ser um ser humano, porque fazer um negócio desses... Mas, voltando àquele momento de transformação, eu acho que é o sublime na arte e é o sublime em tudo. Quando uma palavra te toca; eu até comparo com coisas mais simples: quando o jogador de basquete arremessa a bola; ela saiu da mão dele e ainda não chegou no aro. Aquele “ahhh”, um segundo antes do primeiro beijo A gente não percebe esse momento como algo que está acontecendo o tempo todo; e precisa “objetificar” ele de uma forma intelectual, para poder vivê-lo – e é isso que a gente chama de arte. A série Imagens de linha22 tinha um pouco a ver com falar de uma coisa muito simples, que é o desenho; as pessoas olham e falam: “Ah, é um desenho a lápis”. Aí, quando chega perto, vê que não é um desenho a lápis, que é uma escultura de arame. Aí, você não sabe o tamanho, não sabe quanto tempo levou para fazer, não sabe onde foi fotografado. A ideia de se fotografar uma representação cria toda uma ambiguidade em torno dela, que cria uma possibilidade de diálogo. A pessoa – o espectador, o público – olha, e fala: “Como é que isso foi feito? Quanto tempo levou? Que tamanho tinha? Onde foi feito? Por que está amarelo?” Você faz coisas, por exemplo: arame representando arame no filamento da lâmpada. O meu trabalho é muito organizado, eu começo com linha, depois vai da linha e começa a tomar mais forma; e é uma coisa que eu pensei: “Com a linha, não dá para fazer 244 245 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z paisagem.” Eu sempre quis fazer paisagem, e a ideia de paisagem tem a ver com distâncias. mim; para ficar perto de mim, para eu os olhar, porque os pais estavam trabalhando, e eu fiquei amigo deles. Eu me lembro que, quando eu empinava pipa, eu comprava carretel de 200 jardas, 300 jardas. E eu imaginava a distância em jardas, e aquilo, a linha com a distância, para mim, tinha uma coisa muito forte. E eu comecei a fazer alguns desenhos com linha. Quando você olha, eles parecem uma gravura antiga, mas quando você chega perto, vê que tem duas dimensões; e elas são muito ambíguas, tem a dimensão da linha em si e a dimensão do desenho. Todo dia ia brincar com eles; e, depois de duas semanas que eu estava lá, a Valentina, uma das meninas, me convidou para ir almoçar com os pais dela, bem no dia em que eu estava vindo embora. E os pais dela eram pessoas tristes, pesadas, cansadas, sem nenhum humor; a vitalidade das crianças que moravam naquele lugar lindo, paradisíaco, tinha desaparecido completamente. E eu ficava imaginando: “Como uma criança daquelas se transforma em um adulto desses?” Eu comecei a imaginar o pontilhismo, que é uma coisa quase fotográfica. O que é fotografia? São cristais de prata e gelatina: a partir daí, eu estava começando a mexer também com a ideia do negativo. Mas eu acho que foi numa viagem, voltando ao assunto de você ser artista e viver mais do que trabalhar. Quando voltei para Nova York, eu só tinha as fotos pequenininhas. E comecei a pensar num poema que se chama O açúcar, do Ferreira Gullar, que fala justamente disso. De onde vem o açúcar? E ele acaba dizendo: de vidas amargas e pessoas amargas é que eu adoço o meu café nessa manhã maravilhosa em Ipanema – alguma coisa assim. Eu tirei umas férias – minha carreira estava indo para lugar nenhum –, aí, eu troquei com um cara umas férias em um hotel por uma obra de arte. Eu passei duas semanas no Caribe, em uma ilha que se chama Saint Kitts. E lá, eu conheci uns meninos que não sabiam nadar – eles moravam na ilha, mas não sabiam nadar. Então, cada vez que eu entrava na água, eles vinham em cima de E eu pensei: “É o açúcar. Você tira um produto dessas pessoas, e vai tirando a doçura da criança, com o trabalho.” Eu decidi fazê-las com açúcar, nessa série23; para mim, o que mais ajudou foi que esse trabalho foi feito nas férias, sem intenção nenhuma de se tornar um grande trabalho – mas foi feito com sinceridade, e eu acho que tem muito a ver com isso. No fim de cada trabalho, eu 246 247 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z usava a fonte mais e botava o açúcar que eu tinha usado para fazer a foto dentro desses vidrinhos, que eram parte da exposição, com só seis fotografias. Na verdade, era para serem sete, só que eu bati no pedestal, no tripé da câmera; depois de trabalhar seis dias fazendo a foto, eu dei uma cacetada, e a sétima foi embora. do tamanho da linha de verdade. Agora você aumentou o tamanho e ficou esquisito, não gostei”. Eu falei: “Eu não tenho escolha; já está emoldurado e vai para exposição, hoje, lá na galeria Robert Miller. Porque eu errei: mas artista erra menos que entregador de UPS”. Aí, ele falou: “Você vai se danar com isso”. Eu mostrei essa foto, no dia, e fui jantar com um crítico de arte americano muito famoso, um cara superimportante. Ele sentou na minha frente e falou: “Eu tenho acompanhado o seu trabalho e gosto muito; mas, esse trabalho seu, eu não gostei, não”. Eu perguntei: “Por quê?” Ele falou: “Por causa da linha: naqueles primeiros, você a usava fininha, e a linha era do tamanho igual ao da linha grande.” Aí, eu falei: “Você tem que estar certo, porque o meu entregador de UPS falou a mesma coisa que você!” O cara nunca mais falou comigo. Dessa época tem uma história engraçada, também: tinha um cara que entregava pacotes lá em casa. Ele se chamava William, era um jamaicano grandão. Uma vez, ele me ajudou com uma caixa, aí ele viu uma dessas fotos, e falou assim: “O que é isso aí?” Eu falei: “É o meu trabalho”. Ele perguntou: “Isso é uma arte?” Eu respondi: “É, é arte”. Ele falou “Mas espera aí, uma arte como esse negócio aí, é uma foto?” Eu falei: “Eu não vou falar, você tem que ver: o que você acha que é?” Ele não soube dizer. E eu falei para ele: “Açúcar”. Aí ele ficou encantado, adorou: aí toda hora, quando levava um envelope, chegava lá em casa: “O que você está fazendo, lá em cima? Posso subir para ver?” E ele começou a virar um palpiteiro no meu trabalho. Um dia, ele chegou e falou: “Esse trabalho de linha aí está muito grande, antigamente você fazia pequenininho, e a linha da fotografia era Mas o William, quando a filhinha dele nasceu, foi lá na minha casa e perguntou se eu podia emprestar uma câmera; ele nunca teve uma câmera na vida dele. E eu falei: “Não, eu vou com você e tiro a foto”. Ele falou: “Vai mesmo?” Eu disse: “Vou.” Aí, eu fiz uma foto da filha dele, que havia nascido há dez dias. E a sétima criança de açúcar, eu refiz, com o retrato da filha dele, que se chama Agnes. E, engraçado, a loucura é que, quando eu fiz isso, eu ganhava dois mil dólares por cada set, cada fotografia que eu vendia. E eu vendia 248 249 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z “Eu nunca fiz arte com um grupo específico de pessoas, sabe? Eu nunca fiz arte para curador, nunca fiz arte para colecionador, nem para crítico. Também nunca fiz arte para mim mesmo; eu faço arte para dividir isso com as pessoas.” uma aqui, outra ali. E essa série, outro dia um colecionador comprou e vendeu, por duzentos mil dólares, o jogo inteiro delas. Fico imaginando que o William, algum dia, vai vender aquela foto da filha dele, que é única, e vai pagar a universidade dela inteira em Harvard. Logo depois dessa experiência, o New York Times fez uma resenha do meu trabalho, e eu entrei na exposição24 que se chama Nova fotografia, do MoMA – e minha carreira como fotógrafo deslanchou e tem sido o que é, até hoje. E eu devo tudo a essas crianças. Eu tive uma retrospectiva25, dois anos depois, no International Center of Photography, o Centro Internacional de Fotografia, em Nova York; e, para mim, foi muito importante essa exposição, porque veio todo mundo: todos os curadores, os críticos, o pessoal de museu, de fotografia. Estavam todos lá, e estavam falando “Você é um grande fotógrafo”. Para quem nunca imaginou que fosse ser fotógrafo, isso era muito importante: aquilo me deu bastante segurança, mas eu estava: “Nossa, está todo o pessoal, a elite da fotografia nova-iorquina ou americana está aqui.” O pessoal até do Getty; Weston Naef estava lá. 250 251 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z Aí de repente, entra o William com a mulher; com uma Polaroid da casa dele, mostrando a minha obra na casa dele. E eu chorei, nessa hora, porque eu pensei que consegui fazer um negócio incrível: eu consegui estar aqui e estar na casa do William, ao mesmo tempo. Para mim, isso foi fundamental, quando ele falou: “Olha, está lindo, lá em casa”. Aquele cara gostava do meu trabalho – e o Peter Galassi, que é o curador de fotografia do Museu de Arte Moderna, estava falando a mesma coisa. Acho que para vocês que estão pensando em fazer arte, isso é muito importante. tem que abrir esse discurso; trazer pessoas para dentro disso, porque quanto mais gente melhor. E, até hoje, isso influenciou minha produção de uma forma incrível. Eu acho que, hoje em dia, eu não penso em outra coisa. Isso aí, fazendo o açúcar, e a ideia de se colocar o maior número possível de camadas, para retardar um pouco a apreensão da imagem de forma instantânea. E o gosto é uma coisa interessante; você se lembra de um gosto e começa a associar. Eu tenho uma agenda, sou até muito previsível: tenho essa coisa que eu acho que a arte tem que ser para todo mundo. Encheram o meu saco porque eu fiz uma abertura de uma novela, ultimamente, mas eu falei: “Para começar, não ganho dinheiro fazendo nada disso. Eu faço tudo através da ONG com a qual trabalho e faço por causa da ONG. Mas, de uma forma ou de outra, você ter arte contemporânea na casa de cinquenta milhões de pessoas, todos os dias: o que você pode falar disso? Você não consegue fazer isso em lugar nenhum do mundo. Você não consegue fazer isso com o YouTube, é um fenômeno puramente brasileiro”. Tem que ser para todo mundo. Arte contemporânea é uma coisa legal, é importante; e é direito, não é privilégio. Eu acho que a gente Eu levava duas semanas para fazer uma imagem de linha, e as Imagens de chocolate26 eu tinha que fazer em uma hora, senão o negócio secava. Então, em vez de produzir uma imagem, eu produzia muitas. Era como fazer pesquisa genética: eu comecei a aprender, também, muito dessa relação entre o material e o tema, através dessas imagens de chocolates, das quais eu fiz muitas. Eu fiz gente morrendo, eu fiz gente se beijando. Freud podia explicar por que todo mundo gosta de chocolate, e ele foi o primeiro cara que eu fiz. Era como Jackson Pollock, aquela melequeira que ele fazia. Tinha uma coisa, porque o chocolate é uma invenção cultural e uma invenção industrial. O chocolate tem tantas referências, ele é tão carregado; fala de obesidade, culpa, escatologia, tem tanta coisa que tem a ver com chocolate. Sujeira – você se melecar de chocolate – e, por isso, ele é muito ambíguo. Então, você usa uma coisa ambígua. 252 253 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z Diamante é a mesma coisa. Eu trabalhei com diamante; o diamante é uma invenção: a indústria do diamante foi salva, nos anos 30, por causa de um slogan: “Diamantes são para sempre”. Granito é para sempre, não é? Tem esses chicletes, que você põe embaixo de mesa, e vão ficar ali pra sempre. Quando a diretora do Whitney me ofereceu essa exposição28, eu comecei a lembrar de uma exposição que eu tinha ido dez anos antes, no Centro Pompidou, em Paris. Francês, talvez vocês não saibam, adora fazer greve – eles fazem greve o tempo todo. Eu fiz uma série de imagens com poeira27. A gente fala assim: “Puxa, se eu tivesse uma ideia...”. A pior coisa que há é você ter uma ideia, a pior coisa que pode acontecer, porque aí você vai ter que fazer aquilo. A diretora do Museu Whitney, de Nova York, me ofereceu uma exposição, e eu falei “Pô, legal”. Por exemplo, eu não desenho, eu não anoto nada. Se eu anotar, o negócio murcha, não é? Vai caindo... O meu sistema de trabalho é assim: eu olho alguma coisa, eu percebo aquilo e eu a deixo ali. Eu não anoto, porque, no momento em que você anota, interrompe o processo de evolução natural daquela ideia na sua cabeça. Então, a minha cabeça é uma sopa de letras; aquilo fica boiando, vão juntando umas com as outras, vão formando umas palavrinhas. De vez em quando elas afundam, eu nunca mais as vejo. Eu não me lembro; e se você se esquece de uma ideia, talvez seja uma coisa boa. Elas vão para algum outro lugar, de vez em quando elas voltam. Eu acho que isso tem funcionado para mim. Eles tinham uma exposição que era de arte minimalista – móveis do século XX. Teve uma greve e eles ficaram dois meses sem limpar o museu. A arte minimalista é feita para significar só aquilo, mesmo. É quase o que eu estou falando: esse exercício de você colocar o mental e o material juntos. Quando você pensa em minimalismo, ele se transforma em um esforço heroico, porque você tem uma forma supersimples, ela está falando apenas da sua própria existência, e toda a poética você tem que inserir ali dentro. É obvio que uma obra do Donald Judd – que é esse americano –, do Robert Morris, para aquilo existir, e significar só a si mesmo, tem que ter alguém limpando aquilo. Se alguém deixar aquilo sujo, passa a ter outro significado. E eu fiquei pensando na ideia do modernismo, em todas essas utopias que nós fizemos no século XX, que nós realizamos no século XX. Brasília, esses prédios do Mies van der Rohe, todas essas superfícies novas, lisas, que requerem constante manutenção, então tem que ter sempre gente limpando, limpando, limpando. 254 255 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z Você vê um castelo medieval – não precisa limpar; aquilo está sujo? Ótimo, já está velho mesmo, é bonito que esteja sujo, que esteja velho. Então, acho que a gente cria essa ideia do presente constante; e comecei a pensar em poeira, a poeira como material. A poeira que a gente não quer que esteja na obra – e depois fazer uma coisa de poeira. Geralmente, o contrário da coisa costuma funcionar. gama toda, vou fazer em branco e preto”. E, em uma semana, eu fiz a exposição. Um dia eu liguei para a curadora; eu estava no Havaí, fazendo uma exposição. Eu liguei e falei: “Silvia, eu tive uma ideia: vou precisar de uma coisa. Você guarda todos os sacos de aspirador de pó do museu, tá? Guarda para mim, eu estou chegando aí na segunda-feira”. Ela guardou. E, como boa museóloga, tinha um montão de sacos, em cada um estava escrito, exatamente, a sala de onde tinha saído a poeira. “Sala 21”, “Sala da família não-sei-o-quê”; tinha até o horário em que tinha saído a poeira, o que era ótimo. A poeira do primeiro andar tinha monóxido de carbono; todo mundo entra no Museu vindo da Madison Avenue e leva para dentro aquela poeira preta dos carros que estão ali, na avenida. No último andar, eles tinham tirado uma exposição – que era a Whitney Biennial – e nos Estados Unidos eles usam muito Sheetrock, que são paredes de papelão, então tinha muito branco. Aí eu falei: “Está perfeito, eu tenho o branco, tenho o preto, tenho a O que eu queria fazer é o seguinte: usar fotografias do museu, de exposições do museu, com obras do museu, usando a poeira do museu. O que eu não percebi, na hora, é que você não põe a poeira ali, a poeira tem que cair ali. Então eu passei um ano e meio trabalhando 12 horas por dia, fazendo uns stencils em cima de linhas; eu misturava a cor da poeira, eu soprava a poeira dentro de uma sacolinha de plástico, essa poeira subia e descia durante três horas e era o tempo em que eu fazia todo o circuito de doze obras e voltava nela, eu fazia isso doze horas por dia, só porque eu tive uma grande ideia, não é? Foi a coisa mais difícil que eu fiz até hoje, e muita gente não percebe. Para mim, foi uma das exposições mais bonitas que eu já fiz; ela foi pensada desde o começo até o fim, é uma exposição muito legal. E, engraçado, sabe o que é poeira? Aqui, no Brasil, as casas são muito abertas; mas nos Estados Unidos as casas são fechadas, no inverno fica tudo fechado, e tem muita poeira. Como é que a poeira entra? A poeira não entra, nós trazemos a poeira, a poeira é pele: 75% da poeira que está na sua casa é você. Você vai soltando a pele – você solta quilos de pele, anualmente, dentro da sua casa – e você 256 257 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z imagina que, dentro dessa poeira, você ia ter partículas de todos os visitantes do museu, se você faz um scan, escaneia o DNA desse material, isso dá uma lista de imprensa incrível. E é muito complexo – imagina! Olha como eu estou vestido: eu só me visto assim porque eu não tenho que decidir nada. Eu ponho preto e acabou, se eu tivesse alguma roupa de outra cor, eu ia ficar pensando: “Será que combina?”. E tinha muito pelo de cachorro – como é que tem tanto pelo de cachorro no museu? (Risos) Na série Imagens de tinta29, eu vou botando a tinta gota por gota. Essa ideia de você ter que se afastar da imagem, para poder ver ela melhor, é uma coisa que me interessava bastante, acho que muitos de vocês já conhecem, eu não vou ficar revisitando. Eu comprei um computador, e no manual constava que tinha 16 milhões de cores, no display, na tela. A primeira coisa que eu pensei foi: “Quem contou?” Pensando nisso, eu me toquei: “Eu nunca trabalhei com cor”. Eu trabalhei com coisas que tinham cor, mas a ideia da cor? Eu não trabalhava com cor; cor é uma coisa que ninguém sabe o que é: você não sabe se é uma propriedade inerente da matéria ou simplesmente uma coisa que você faz na sua cabeça. Ninguém, até hoje, conseguiu dar uma explicação definitiva do fenômeno da cor. E desde Aristóteles, desde Platão, as pessoas discutem isso. É incrível, com toda a tecnologia que nós temos, ainda não sabemos explicar isso. Duas cores é você sair de casa, ou não; três cores é um Mondrian. Você já tentou fazer um Mondrian? Tem um site na Internet que eles deixam você mexer um pouquinho. Toda vez que você mexe estraga, você nunca consegue botar no mesmo lugar, não é? E quatro cores? Aí, já se danou. Aí, é um Rafael; você não consegue – a complexidade de se criar uma composição dinâmica, cromática, é tão grande, tão superior. Por isso que eu digo: tem que ensinar desenho na escola, tem que ensinar pintura na escola; porque, aí, as pessoas vão dar valor. Quem nunca tentou pintar na vida não sabe como é difícil fazer isso. Outra coisa: em 2001, 2002, foi a época em que a tecnologia digital estava começando a despontar, e as vendas de câmeras digitais ficaram maiores do que das câmeras convencionais. Os meus amigos fotógrafos começaram a ficar desesperados: “E agora, vai acabar o filme?” E a coisa que mais desesperava os fotógrafos era o pixel; 258 259 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z bastava ouvir a palavra pixel, todo mundo ficava arrepiado: “Está pixelada a fotografia!”. é ritual, você está indo em direção à imagem, não é à imagem que vem em direção a você. E isso é uma prática que deveria ser comum, mas somos bombardeados por imagens o dia inteiro, a vida inteira – e não fazemos nada. E eu pensei: “Vou fazer fotografia pixelada, já que está todo mundo reclamando”. Eu sempre sigo na contracorrente; eu falei “Eu vou fazer fotografia com pixel, mas extremamente nítida.” Então, eu uso uma câmera enorme – um trambolho, uma 8 x 10” gigantesca – para fazer essas fotos que, na verdade, eram feitas de pixels, e eram fotos enormes. Não dá para ver; se vocês não foram à minha exposição, não vão conseguir ver isso em uma projeção, não faz justiça ao trabalho. Eu sou um artista de parede, não sou um artista de projeção e nem de página. Isso tem que ser bem claro quando a gente faz arte, você vê o seu trabalho em um livro ou em uma parede? Em um livro, você está limitado ao tamanho do braço da pessoa, se a pessoa tem o braço curto, ela vê maior, se tiver o braço longo, vê menorzinho. Você tem a vantagem da narrativa, mas, na parede, você vê de longe, você se aproxima – desde que você sai de casa, toma banho, lava a cabeça e põe uma roupa legal, pega o ônibus. O caminho que você faz até a imagem é muito importante, porque Em Cárceres30 trago uma outra ideia. Eu tinha feito aqueles trabalhos de linha, e ninguém impede que você volte às ideias. Eu comecei a pensar; eu estava em Ipanema e vi duas menininhas fazendo cama de gato, e pensei: “Sempre quis fazer desenho de arquitetura”. E há essas prisões do Piranesi31, que eu sempre sonhei em refazer, de alguma forma, então comecei a usar alfinete e passar linha. E você vê tudo nelas: são as prisões imaginárias, são uns exercícios de perspectiva superinteressantes. Aí, tem alguns detalhes que são muito grandes, na cabeça de cada alfinete você vê a câmera, e às vezes você me vê fazendo a foto, também: são autorretratos. Luiz32 não é campanha política, não! Quando eu passei a vir para o Brasil com mais frequência, eu comecei a ver Caras, sabe? Você vai ao médico e vê as revistas de celebridades. A ideia de você aparecer na revista – e eu, também, comecei a aparecer na revista... Minha mãe adora isso. Eu digo: “Mãe, compra – apareceu na Contigo. Tem lá, vai lá ver: a menina tirou uma foto”. 260 261 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z Eu acho engraçado, pois sempre me sinto um penetra: “Olha, apareci na revista”. Tem gente que acho que já pertence à revista, eu nunca pertenci à revista. Você vê a pessoa na revista e você vê uma fração de segundo daquela pessoa. Você pega outra revista e pega outra fração de segundo. Quando você está dirigindo, você vê esses rostos que estão em tudo quanto é lugar, desses políticos. Agora eu estou começando a lembrar do nome de alguns – dos mais feios – e você lembra por razões contrárias. Eu sou artista de mesa, o tempo todo – de natureza-morta. Porque eu sempre fotografo com coisas na mesa, e nunca fiz natureza-morta. Então eu fiz uma série que saiu daí e se transformou em naturezas-mortas36. Então, eu comecei a pensar: a gente acha que conhece essa pessoa, se a gente tem esses fragmentos minúsculos. A partir disso, eu tentei refazer a coisa pela fragmentação, com pedaços de revista – e eu fotografei todos eles. E quando eu fotografei o Lula, eu já tinha feito outros dois ou três, ele perguntou: “Você vai fazer a minha camisa, como?” “Você está com uma camisa meio verde, então eu vou fazer com revista de golfe.” Ele disse: “Como assim?” Eu expliquei: “A do João Ubaldo33, eu fiz com revista de surf, porque a camisa dele era azul.” Ele perguntou: “E a pele, você faz com quê?” “Com revista pornográfica.” (Risos) Ele não gostou muito, não. JOÃO I34 é do Joãosinho Trinta. A obra é grande, você vê cada bolinha. Fiz também o Seu Jorge35. E você põe carinha, põe um monte de coisas, é bonito de se ver, é lindo – acreditem em mim, é muito legal. Eu me mudei para um estúdio maior e comecei a lembrar o que o William tinha me falado: “Você perdeu a razão de ‘um para um’, da escala”. E eu comecei a fazer coisas grandes e a fotografar elas em espaços maiores. Uma rosa, eu tenho uma roseira lá em Nova York que dá umas rosas lindas, enormes – mas sempre tem bicho na rosa. Então, eu fiz a rosa37 toda de bichos – e deixei a rosa, sem bicho, no meio. Comecei a mexer com brinquedos, brinquedo é como um meio, como uma mídia; porque antes de se começar a dirigir, brincamos com carrinho; antes de cozinharmos, brincamos com panelinha. A ideia que dá é dessa coisa de o brinquedo ser um intermediário entre você e a sua vida como adulto. E usar isso como material parece interessante, também; não só o brinquedo que tem a ver com a imagem, mas também o brinquedo como um meio, usar o brinquedo como um material. E é uma coisa feia – plástico, por que tanto plástico? Colorido – eu fico imaginando de onde sai tudo isso. 262 263 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z Autorretrato (Estou muito triste para te contar, a partir de Bas Jan Ader) 38 é um autorretrato com dor de cabeça, baseado no Bas Jan Ader, um artista holandês, tem muito a ver comigo. diamantes. O Drácula40, o Frankenstein41. Caviar é que nem diamante, não é? É uma invenção. Imagina: o diamante vale o que vale porque é raro – porque isso, porque aquilo – mas é todo mundo controlado, e o caviar é a mesma coisa. Os trabalhos da série Imagens de diamantes39 são feitos com diamantes de verdade. Um louco de um amigo meu, que é vendedor de diamantes, me perguntou se eu queria fazer isso. E eu fiquei pensando: “O que eu vou fazer com diamantes? “Ah, eu vou fazer alguém sendo assaltado, fazer um cachorro fazendo xixi.” Coisas feias. Mas me ocorreu: “Todo mundo faria isso. Não – eu vou fazer exatamente o que o diamante quer dizer: vou falar da eternidade”. Aí, eu peguei algumas divas de Hollywood. Eu comecei – primeiro no Cais do Porto, depois, em Parada de Lucas – num estúdio grande, a trabalhar com sucata. O Narciso42 está na coleção do MoMA. De Parada de Lucas para o Museu de Arte Moderna de Nova York. E é bacana, porque eu estou lidando com coisas do tamanho natural – então, você tem uma relação ergonômica com os objetos. Em O Saturno43, do Goya, você vê que tem um piano, à direita da imagem – para vocês terem uma ideia da escala em que essas coisas são feitas. O Atlas44, do Guercino. Dá até vergonha; o pessoal compra foto de alguma coisa e acha que está comprando a coisa. Quando você fotografa um diamante minúsculo com uma câmara enorme, a resolução é tão grande que parece um diamante de verdade, muito grande; então, tinha gente que olhava, e falava: “Esse diamante é impossível, esse diamante tem cem quilates, onde você achou isso?”. O WWW45 eu fiz com o CDI, Centro de Democratização da Informática: é um mapa-múndi de computadores velhos, que eu fiz com o pessoal. Eles esqueciam que aquilo era uma ampliação, porque era muito nítido. Aí é que está o jogo dessas obras de diamante, elas são falsas. E eu fiz monstros de caviar, para casar com as mulheres dos Voltando ao assunto da cor: a cor, que você não sabe o que é, é pigmento e meio, ela tem um veículo – que pode ser óleo, água, ou têmpera (que é ovo). E eu estava com um amigo que falou assim: 264 265 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z “Na fotografia, você muda, entre uma coisa e outra. Na pintura não: a pintura você tem o que tem”. Eu respondi: “Não; porque, quando você pinta a cor molhada é diferente da cor seca, você nunca vê a cor de verdade.” Aí, eu falei: “Você só ia fazer se você pintasse a seco. No desenho você tem isso, no pastel, você tem a cor como ela é.”. A série Quebra-cabeças górdios48 é feita com quebra-cabeças. A ideia do quebra-cabeça é que você junta as partes – fisicamente – e elas formam uma imagem. Nesse caso, elas formam a imagem de um jeito ou de outro. O que eu faço? Eu imprimo trinta quebra-cabeças e faço como se fosse um acidente; faço baseado na imagem, não na colocação das peças. A única coisa é que, mesmo se você tiver quinze quebra-cabeças – que eu acho que é o limite – você sabe quais são as peças que vêm do mesmo set, da mesma caixa, por quê? Pela orientação. Mesmo que a peça de um quebra-cabeça seja uma abstração orgânica, a gente tem uma capacidade incrível de saber orientação, de saber se essa peça veio da mesma folha que outra peça. Elas são difíceis, porque é difícil fazer uma coisa parecer um acidente. Mentir, às vezes, é mais difícil do que falar a verdade. O Mark Twain falava que a ficção é muito mais difícil do que a realidade, porque ficção tem que fazer sentido. E eu fiquei pensando nisso: fazer uma coisa só com pigmentos. Eu uso instrumentos odontológicos e vou manipulando-os. Um Fontana46, por exemplo: feito grão por grão, sendo mexido ali. Isso está tudo solto, se eu der uma espirrada nesse negócio, vira uma poeira. Alguns desses trabalhos levaram uma semana para ficar prontos, outros demoraram muito mais, como A japonesa47, que levou seis meses e meio para ser feita. Então, por seis meses e meio, eu trabalhei o dia inteiro com uma máscara; porque o pigmento vermelho é cádmio, é veneno. Se eu respirar isso por seis meses, eu morro – e também para eu não respirar na obra, porque se eu respirar na obra, ela desaparece. Essa é a obra que levou mais tempo para ser feita – depois das de poeira, obviamente. O legal é que você faz uma coisa que leva três horas para ser feita e uma coisa que leva seis meses – não tem a menor diferença. Também não faz diferença a escala da coisa. Eu sempre gostei de umas obras que foram feitas nos Estados Unidos, nos anos 70, e se chamavam earthworks. E aí, eu tentei fazer no estúdio; porque, para mim, a maior fonte de informação, no meu trabalho, do ponto de vista conceitual, são os anos da minha própria formação como indivíduo – são os anos 60 e os anos 70, principalmente na Europa e nos Estados Unidos. 266 267 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z Nessa época, eu não tinha muito contato com arte brasileira e por isso eu acho que ainda sou muito influenciado pela arte europeia e americana dessa época. E eu pensei: “Fazer isso no estúdio não tem graça, o legal é fazer lá, mesmo.” Então, eu convenci o pessoal da Vale do Rio Doce. Durante quatro anos, eu fiz essas obras49, que podem ser vistas do Google Earth. E algumas delas são tão grandes que podem ser vistas por aviação comercial – outro dia, eu vi uma, a caminho de Brasília. arrumo um sponsor, alguma pessoa para pagar para eu fazer, eu contrato um cara para desenhar nuvens no céu. Como um cartoon, uma coisa meio Disney – e aí, fotografo as nuvens. É engraçado, porque você imagina uma nuvem no céu, mas você nunca a imagina na forma de um desenho; elevar a ideia de desenho a uma coisa de broadcast, sabe? Algumas delas têm cerca de 600 m de comprimento. E elas foram todas fotografadas de um helicóptero; a ideia é de você também elevar os limites do que pode ser um desenho, o que pode ser uma representação. E o legal é que, embora essas sejam coisas imensas, as fotos são pequenas. Você pega uma coisinha minúscula e faz uma foto grande; pega uma coisa grande e faz uma foto pequena, é legal lidar com essa ideia de oposto. Tesoura50 é uma das pequenas: tem uma pessoa andando ali, na parte de baixo da tesoura, aquela coisa de advogado – assine aqui, não é? O Alvo51 é imenso, você vê a paisagem, feita toda de verdade, não tem Photoshop aí, não. Uma coisa que eu tenho feito há mais de dez anos, sempre que eu Olhar alguém desenhar é uma coisa muito gostosa, se a pessoa desenha bem. Tem uns filmes sobre Picasso em que ele desenha no livro; aquilo é fascinante, porque você não sabe o que vai acontecer – e eu acho que é o mesmo, você fazer um desenho que milhões de pessoas podem ver ao mesmo tempo. Nuvem nuvem52 foi feito em Nova York em 2001, logo antes das Torres Gêmeas caírem. Não se pode mais fazer isso. Ninguém, nunca mais, vai pegar um aviãozinho e fazer desenho em cima de Manhattan – acabou. E eu consegui fazer umas cinco; foi um mês inteiro fazendo essas nuvens. Fiz uma imagem53 da ponte, em Nova York. A ideia era fazer uma nuvem que não representava nada. Eu queria que fosse só uma nuvem, mas aí eu recebi uma carta de uma mulher falando assim: “Querido Vik Muniz, eu queria me apresentar, eu sou madame fulana de tal, você não me conhece, nem ao meu marido, mas eu 268 269 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z queria falar sobre o nosso filho. O nosso filho era um cara muito popular na comunidade de beisebol americana aqui de Nova York. Ele era técnico de um time infantil muito popular, e também jogou beisebol – ele era um catcher (apanhador) – e era um cara muito envolvido com beisebol, que tinha dois restaurantes sobre beisebol em Manhattan. Ele morreu de câncer, e no dia que o cortejo funeral dele estava passando, no West Side Highway, todo mundo olhou para cima e viu uma luva de beisebol”. desenhar que se chamava “câmara lúcida”, que é um prisma que lhe permite ver o que está acontecendo na sua frente, projetado no papel – e você só traça. Eu usei isso para desenhar vários castelos – eu levo comigo quando viajo, para fazer desenhos. Eu tinha um monte de desenhos de castelos e falei: “O que eu vou fazer com esses desenhos? Eu vou colocar eles em grãos de areia.”. Eu falei: “Mas senhora, eu não quis fazer uma luva, eu só queria fazer uma nuvem”. Ela respondeu: “Mas eu vou falar uma coisa; o vento mudou, e a nuvem ficou parecendo uma luva de beisebol”. Assim como em Miami: a nuvem54 ficou bastante fálica, na praia gay de Miami, você vê o que você quiser. Ainda estou desenvolvendo, aos poucos, um projeto com o MIT – com o Media Lab –, que é de fazer castelos em grãos de areia, há uma máquina que faz. Em um grão de areia, você consegue colocar um desenho detalhado de um castelo do Vale do Loire. Esse castelo fica na Escócia – eu desenhei o castelo. O legal é que isso é uma interseção de mídias e tecnologias; porque, antes da fotografia, as pessoas usavam um instrumento para Aí, eu peguei um cara que tem um robô fantástico que faz chip. Pequenininho. E eu descobri que sílica e silicone são a mesma coisa, mesmo material; então, é fácil você colocar esses desenhos em um grão de areia e fotografar com um microscópio eletrônico. A dificuldade, agora que eu estou estudando com eles, é criar uma imagem digital, através do microscópio eletrônico, com uma resolução superior a 500 megapixels. Quero fazer uma imagem bem grande, que eu vou transformar numa fotogravura imensa – esse é outro método do século XIX, então, entre a escala e a tecnologia, eu estou cruzando o tempo todo – fazendo uma coisa velha a partir de uma coisa moderna e uma coisa grande a partir de uma coisa pequena. Eu queria fazer um desenho em que você corta o papel e é só sombra – na época, eu estava fazendo os trabalhos de arame. Só que eu estava fazendo os de arame e ia ficar muito parecido. Aí, eu pensei: 270 271 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z “vou fazer em cinzas, não é?” Mas, se eu estou de cinza numa parede preta, aquele cinza vai ser diferente do que se eu estiver na frente de uma parede branca. Não existe o cinza absoluto; porque, no nosso cérebro, para aumentar o contraste e diferenciar o fundo da frente, existe um fenômeno que se chama inibição lateral. O olho, ele vai se ajustando ao contraste das coisas que estão na frente em preto, de branco. Isso quer dizer que por isso não existe cinza absoluto; você vê um cinza diferente, dependendo do contexto onde ele está. em São Paulo. Eu falei: não pode ter preconceito. Você tem que ser livre, e eu comecei a trabalhar há uns 41 anos. Olha, eu estava falando de dez anos atrás, que uma ideia voltou – há 41 anos eu era um menino, um garoto de oito anos de idade, e eu fui pela primeira a um museu, e era o Museu de Arte Moderna de São Paulo. Obviamente não dá para você cortar uma imagem simplesmente a observando, o cinza dessa imagem, não ficava legal. Mas com Photoshop é ótimo, você divide, quebra aquela imagem numericamente, e em incrementos de cinza – e você simplesmente corta aquilo. E aí, o que você tem é incrível, você tem uma coerência numérica. Em Imagens de papel55, olhando de perto, as imagens são incrivelmente grotescas, horríveis. Você não vê a cara da criança, mas você vai ver de longe e elas são perfeitas – você completa todo o meio, sabe? Você consegue completá-lo com perfeição. De perto, é quase uma monstruosidade, mas elas são muito interessantes do ponto de vista cognitivo, a diferença entre de longe e de perto é incrível. Versos56 é uma série que eu estou fazendo e acabei de mostrar, Naquela época, a Lina Bo Bardi tinha feito o museu de uma forma completamente diferente; você não tinha a narrativa das obras em volta da parede do museu. As obras eram colocadas em painéis de vidro, todos virados para você. Quando você entrava no museu, estava a coleção inteira virada para você. Você fazia o percurso que você quisesse; e era muito mais orgânica a impressão do que você estava olhando, o que minimizava a ditadura da narrativa da parede. E dava, também, para um garoto de oito anos de idade ver a parte de trás da pintura. Crianças de oito anos não estão nem aí para pintura, mas a parte de trás era legal: tinha teia de aranha, tinha bichinho, tinha sujeira, e eu me lembro da parte de trás das pinturas. Trinta e tantos anos depois, eu estou andando com a diretora do Guggenheim, em Nova York, e a pintura que eu mais gosto da coleção é um Picasso que é a Mulher passando57. Aí, eu falei para ela: “Aquilo ali é a passadeira?” Ela falou: “É.” Eu perguntei: “Eu posso virar, para ver atrás?” Ela 272 273 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z “Eu trabalho em série; acho interessante, porque gera um número muito grande de trabalhos. É legal, porque você tem a capacidade de usar o que aprendeu dentro de um tipo de trabalho para um próximo.” falou “Pode”. Viraram. Eu falei: “Eu posso fotografar?” Ela falou: “Pode”. Eu tirei o meu telefone e fotografei. “Eu posso trazer a minha câmera grande, para fotografar?” “Pode”. “Quando eu vier fotografar essa daqui, eu posso fotografar algumas outras?” “Pode.” Aí pensei: “Eu devo estar ficando famoso mesmo, porque eu estou podendo”. Aí, eu fiz no Guggenheim, depois cheguei no MoMA, falei a mesma coisa: “Eu posso pegar Demoiselles d’Avignon e tirar da parede?” “Pode.”. Eu não sabia o que ia fazer com essas fotos, mas comecei a fotografar a parte de trás das pinturas. Eu consegui tirar o Domingo no parque, que há 16 anos não saía da parede do Art Institute of Chicago; consegui fotografá-lo. Durante quatro anos, eu fiquei com essas fotos, sem saber o que fazer com elas. Aí, eu falei: “Eu não vou mostrar só as fotos, é meio besta”. Então, tive uma ideia: todo mundo falsifica a parte da frente do quadro, ninguém nunca falsificou a parte de trás. Aí, eu comecei a pesquisar falsários, conservadores de museu, todo mundo que entendia da parte de trás do quadro. O que é a parte de trás do quadro? A parte de trás do quadro é só para 274 275 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z gente de museu e para artistas. Quando você mostra um quadro, a parte de trás está virada para você. A parte de trás parece com um estúdio; ela é suja, ela é furada, ela é maltratada – a parte da frente, não: ela é sempre limpinha, bonitinha. O que está na parte da frente do quadro é exatamente a mesma coisa, através da história. novo, não tem nada velho. A única coisa que eu não consigo controlar é o grão na madeira. O resto, cada marca, cada furo, cada arranhão é exatamente igual. A noite estrelada59, nós colocamos no MoMA, ao lado do quadro do Vincent Van Gogh. E ninguém soube dizer qual era uma e qual era a outra. A única coisa é que uma era um pouquinho mais escurinha do que a outra, porque na fotografia, você ia ter que ter uma fotografia exatamente com a mesma tonalidade da outra. Mas você não sabia qual era o original, você perde. O que você vê num quadro do Cézanne – sabe, Mont Sainte-Victoire 58– aquilo que você vê no museu é exatamente o que ele viu, naquela tarde do século XIX, quando acabou de fazer a pintura, em que ela ainda estava cheirando a óleo. Agora a parte de trás, não. Na parte de trás, a cada vez que ela foi exposta no museu, tomou uma etiqueta; a cada vez que foi colocada nos stretches – não sei como se chama isso – ela foi pregada novamente, teve uma marcação, criou diferentes marcas nas bordas, ela sofreu diferentes atitudes de conservação através dos anos. A parte de trás é a parte viva da obra, é a parte que documenta a própria vida da obra. E o que eu fiz? Eu voltei para fotografar todas as obras com a câmera digital, fazendo incrementos de mais ou menos doze polegadas, o que me permitiu fazer uma cópia fotorrealista, física, da parte de trás desses objetos. Eu reproduzi e expus objetos, não são fotografias – e são exatamente iguais aos originais. Mas a parte da frente é novinha, é tudo completamente No festival de cinema, a série Imagens de lixo60 está muito bem documentada; se chama Lixo extraordinário61 e é um trabalho que eu venho desenvolvendo há mais de três anos com os catadores do Jardim Metropolitano de Gramacho. Quando fiz a exposição no Rio, há dois anos, aquilo era uma confluência de várias coisas que eu já estava pensando há muito tempo; eu estava passando por uma crise pessoal, negócio de separação, e aí você fica pensando em tudo ao mesmo tempo. Estava fazendo um livro62 com a minha carreira inteira, então você começa a pensar. Eu falei do cara que tinha começado, estou falando do cara que está acabado; o cara que fez um livro grosso, 276 277 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z da obra, até fez uma exposição retrospectiva imensa, você começa a pensar e começa a ficar com medo, não é? Entrego lá o cartão, a mulher me dá o meu descontinho. Aí eu fui comprar outra coisa, e a mulher fala no microfone, quando a pizza está pronta: “Vik Muniz, Vik Muniz”. Aí, quando eu fui chegando, já tinha uma velhinha dizendo: “Você, ah, adorei o seu trabalho”. Aí a menina da pizza olhou para mim, e falou: “Eu adoro o seu trabalho”. E me deu a pizza. “Ahhhh!” Sabe? Teve também o cara que não me cobrou o táxi, para mim isso aí é tudo que eu queria. Será que acabou, será que isso aqui é o fim? E agora, o que eu vou fazer depois disso? Mas, nesses questionamentos, você descobre que é daí que vai saindo o material para onde você pode conseguir trabalhar; e uma das coisas que, até a exposição no Rio de Janeiro – a exposição começou em Nova York – me provaram, é que era um público imenso que ia ver a exposição, e todo mundo gostava. Crianças gostavam; velhos gostavam – e eu tinha conseguido fazer exatamente o que eu queria. Durante vinte anos, eu fiz arte para todo mundo, mas aí eu fazia uma exposição, e só as mesmas pessoas que iam. Aquele pessoal ia lá e tomava aquele champanhe, aquela coisa; tinha um artigo legal no jornal e, naquilo tudo, parecia que estava faltando alguma coisa. Quando essa exposição começou, há uns cinco anos, aquilo começou a me completar. E eu comecei a ver, a voltar àquela ideia do William, do meu entregador. Eu acho que culminou num dia; eu compro pizza ali no Zona Sul da Pacheco Leão e eu sempre vou comprar pizza. Aí, eu dou o meu cartão Zona Sul, em que está escrito o meu nome – meu nome é Vicente, não é Vik. Você poder ter essa coisa completa, mas eu precisava de uma prova. E, há três anos, eu decidi: “Eu vou fazer um projeto com gente que nunca entrou num museu, não tem a menor ideia do que é a arte; eu vou procurar essas pessoas do outro lado da sociedade de consumo”. Isso foi justamente durante a bolha econômica americana, em que você vendia tudo que fazia, estava tudo uma beleza. E aí, eu comecei a trabalhar com essas pessoas. Eu fui para Gramacho, e a primeira coisa que eu percebi foi o elemento humano. As pessoas ali são incríveis, não só pela vontade que elas têm de sobreviver, mas também pela maneira como elas conseguem, com humor. Você vai para Gramacho, pensa que é uma coisa dura, sofrida; mas, muito pelo contrário, as pessoas têm uma relação com o trabalho que é muito mais sadia do que em muita repartição pública. 278 279 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z Elas estão sempre rindo e tirando sarro uma da outra, é um ambiente muito civilizado, inclusive. É muito físico, as pessoas estão sempre se atropelando, mas quase não tem briga, quase não tem discussão. Eu comecei a fotografar essas pessoas, também levando a ideia do trabalho, que é muito forte, ali. Então, os temas eram geralmente ligados ao trabalho, no caso isso é um Atlas63, novamente. tinham, tanto que até a banheira era achada, o pano era encontrado65 – quando eles começaram a se ver nessa escala de 30 x 20 m, a vida dessas pessoas começou a mudar e a minha também. Então, esse documentário traça muito até o meu próprio preconceito, a minha mudança de atitude com essas pessoas, minha surpresa, e a relação delas com a própria imagem e com as imagens em geral. Em um Millet, O semeador64, a ideia é você semear, porque nasce muita coisa em Gramacho. Porque a gente joga coisa fora, no lixo orgânico tem semente, e como ali é um terreno extremamente fértil, então lá tem melancias gigantes, é incrível. E, no caso, o Marat fez isso, eu fiz porque eu achei uma banheira e fotografei essas pessoas. E aí, eu as convidei para dentro do meu estúdio, para trabalhar nos seus próprios retratos. Vocês têm que ver, ficou muito legal. Eu não esperava nada disso, mas o documentário ganhou Sundance, ganhou Berlim. É o documentário mais premiado no circuito internacional, hoje em dia, e está entre os 17 filmes com possível nominação para Oscar. Ele vai ser exibido, a partir do dia 29, no Festival de Cinema do Rio, e a distribuição nos cinemas eu acho que é a partir do ano que vem. Uma coisa que descobri, e que não tinha pensado antes, é que essas pessoas têm uma relação muito diferente da minha com a própria imagem. Muitas dessas pessoas não têm o retrato de si mesmos, e começaram a ter fotos de si mesmos, através de imagem de telefone celular, que é uma imagem muito diminuta, muito pequenininha. Quando essas pessoas começaram a se ver em uma escala monumental, no estúdio – em fotos feitas com o mesmo material que eles [ Apresentação de vídeo ] O lugar em que a gente chega com o que a gente faz é surpreendente em mais de uma maneira. Quando eu comecei trabalhar com essas pessoas, sabia que ia me envolver com elas, que eu ia querer fazer alguma coisa pela vida delas. Há dez anos eu saí do Brasil um menino pobre; e esse menino pobre ficou comigo esse tempo todo nos Estados Unidos, mesmo com a minha carreira se desenvolvendo de uma forma positiva e tudo. 280 281 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z Parecia que eu tinha que voltar e encarar essa pessoa aqui. Esse meu retorno implicava ter que lidar com isso: e a primeira coisa que eu procurei foi uma forma de trabalhar e me inteirar dentro da cidade como um todo. O meu estúdio fica em Parada de Lucas. Eu estou envolvido com três ou quatro ONGs, agora. Por exemplo, com a Louis Vuitton, com outras marcas – porque tem muita companhia, muita empresa que chega para mim pedindo trabalho comercial, eu disse muito: “Não, não posso fazer. Eu não faço, eu sou artista”. Mas depois, eu pensei: “Poxa, que besteira, cara; eu tenho dinheiro nisso, por que não?”. ter a princípio – o envolvimento com o meu nome – mas eles têm, também, uma ferramenta de marketing para poder dizer que estão trabalhando no terceiro setor, com uma ONG. Aí, com a L’Oréal, eu falei: “Olha, eu não posso fazer isso sozinho, mas eu sei quem vai fazer comigo”. Então, eu passei isso direto para uma ONG –que geralmente são ONGs que trabalham com jovens. Eu trabalho a ideia de cenografia ou de artes visuais com os jovens sob a minha orientação, e a gente realiza um produto que é o que a empresa quer. E é incrível, por que os jovens têm o curso, têm uma experiência que não é uma simulação. E eu tenho a oportunidade de participar disso, sem manchar o meu nome com um projeto comercial, mas também não deixando de fazer, porque eu também gosto de fazer isso. E a empresa ganha muito mais, porque eles pagam menos do que eu iria cobrar deles, na verdade – porque o meu tempo custa caro. E eles têm não apenas o que eles queriam Então, isso tem funcionado: é uma ideia que se chama Centro Espacial, e ela existe há cinco anos. No caso do Jardim Gramacho, eu comecei vendendo essas obras. Por isso que o Tião está tão nervoso no vídeo, porque aquele dinheiro é dele, ele queria que vendesse por muito mais, na verdade, e todas as obras nas edições numeradas elas foram, eu vendi, e todo o dinheiro foi para a ACAMJG, que é a Associação dos Catadores de Jardim Gramacho. Chegou uma hora em que eles não estavam mais precisando do dinheiro, porque já estava tudo certinho: e eu comecei a perceber que, se eu ficasse dando dinheiro, ia criar uma relação de paternalismo muito ruim. O que estava faltando ali, realmente, era uma estratégia de negócios, porque quem mexe com lixo geralmente não mexe com dinheiro, e quem mexe com dinheiro não mexe com lixo. Mas essa coisa está mudando, porque tem muito dinheiro no lixo. E eu estou começando a descobrir formas de fazer essa ponte entre o lixo e o dinheiro e fiz uma parceria com o Instituto Coca-Cola e com a Firjan. Através de uma ONG que se chama Doe Seu Lixo, a 282 283 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z gente desenhou modelos de negócios, de empreendimento, para companhia de catação. Sabe, talvez no início você precise de certa disciplina para se firmar ou para estabelecer uma linguagem. Mas, depois que você fez isso, o legal é “despirocar”, fazer um montão de coisas loucas. E você se sente capaz de fazer. E o pior que pode acontecer é ficar ruim, o padre Cícero não ser muito bom, mas você fez – você tentou. Isso deu tão certo, aqui no Rio de Janeiro, que agora esse projeto está sendo lançado em âmbito nacional; teve um relatório de sustentabilidade da Coca-Cola na ACAMJG, lá em Jardim Gramacho, uns dois meses atrás, e o projeto está impactando milhares de pessoas. A gente começa uma ideia boba de fotografar pessoas no lixo, e de repente... Agora, eu brinco com o Tião, toda vez que falam de lixo me chamam para falar alguma coisa – eu entendo mais de lixo – e, toda vez que é para falar de arte, eles chamam ele. A gente está trocando de papéis, e temos feito muita coisa legal. Outro dia, eu estava em um jantar e um cara falou: “Estou fazendo um filme sobre o padre Cícero”. E aí, ele olhou para mim: “Você não quer ser o padre Cícero?” Eu respondi: “Eu até quero, acho que eu quero sim”. Aí a Malu, minha mulher, falou assim: “Você está ficando louco?” Eu respondi: “Cara, eu sou artista, eu quero ser tudo; eu quero ser padre Cícero, eu quero trabalhar com lixo, eu quero fazer novela, eu estou escrevendo um livro de criança, eu estou escrevendo um roteiro de cinema – quem vai falar para mim o que eu posso e o que eu não posso fazer?”. Eu acho que, quando a gente começa a ser artista, está sempre tentando mostrar quem nós somos – e a gente não é ninguém, até aquele momento. Desculpe dizer para vocês, bem jovens, vocês ainda não viveram o suficiente para ter aquela relação tão dura com a sua própria personalidade. O bacana de ser jovem é que você está experimentando; você é extremamente inseguro e também tem esse leque de possibilidades na sua vida inteira, você pode fazer o que quiser e tem tempo para isso também. Eu me lembro que, nessa época, eu queria mostrar que eu desenhava bem, que discutia filosofia, discutia desenho, história da arte. Com o passar do tempo, você começa a aprender a escutar, começa a ter assistentes, a escutar o assistente, escutar as pessoas que estão à sua volta, escutar o galerista. Daqui a pouco, você está escutando todo mundo, e aí eu acho que é a maturidade do artista. Às vezes, eu me vejo nessa posição – e é uma posição muito legal, 284 285 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z é muito bom chegar nesse momento, em que você também tem essa generosidade, essa relação de abertura do seu trabalho que um jovem não teria, os jovens não são tão generosos assim. Eu não era – pelo menos. Outra coisa que eu queria dizer, para quem está começando, para quem está pretendendo fazer alguma coisa com arte: a coisa mais difícil é ter uma relação de gerenciamento de criatividade. Você não imaginar que está fazendo uma coisa que é para convencer alguém; a princípio, você tem que convencer a si mesmo, mas pensar nisso como um projeto de vida. E o que é bacana – e de que tenho muita saudade – é da minha insegurança. Eu estava falando: se você não é inseguro, você não sente as coisas direito, é como sexo com Viagra: “Está tudo certo, vamos fazer aí”. A coisa é que, quando você tem que prestar atenção em cada momento – porque a sustentabilidade daquele momento, daquela progressão é baseada em uma troca – você está muito mais atento. Quando você tem uma carreira, você tem um nome, e eu acho que você não tem mais essa coisa de falhar. Eu faço exposição em museu e não tenho mais essa insegurança, eu sei que vai dar certo, o pessoal vai vir. Vou vender algumas coisas, já aconteceu um milhão de vezes, já está tudo certo. Eu lembro quando eu fiz uma exposição numa cidadezinha minúscula – vieram 15 pessoas, e eu tremia: “Será que eles vão gostar? Será que eles vão gostar?” E isso era muito legal, porque eu tinha uma relação muito mais estreita com o que eu estava fazendo naquela época. Eu me lembro que estava começando a mostrar, começando a ter uma galeria, e aí minha ex-mulher, minha primeira mulher – eu estava saindo com ela há três meses – chegou, olhou para mim e falou: “Eu estou grávida e vou ter esse filho”. Eu não falei nada para ela, mas peguei o telefone, liguei para o meu patrão, na época, e falei: “Eu não vou vir mais, amanhã.” E desliguei. É como Cortez: eu botei fogo nos barcos, eu falei, eu vou ficar aqui, nesse lugar, eu vou ser artista: porque como moldureiro eu não vou conseguir criar essa criança. Daí para a frente, eu assumi isso e fui em frente: mas eu imaginei já toda uma vida como artista. Então, há tempo para fazer as coisas, para quem começa agora. Não tente dizer tudo em um trabalho só, imagina que isso vai mudar, vai desenvolver, vai ser incrível, você tem que acreditar nisso, de uma forma ou de outra. 286 287 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z E isso vai ser bom não só para você, mas vai chegar um momento em que isso vai ser bom para todo mundo; porque a imagem do artista, como essa criatura marginal – quase um parasita da sociedade – tem que acabar. Tem que acabar porque isso não é real e isso é uma degeneração da classe que se desenvolveu no sistema de valores da segunda metade do século XX, que colocou o artista nessa posição paralela. Na escola o sistema de educação ainda está ligado ao fim do século XIX e ao começo do século XX, quando existia a maturação da Revolução Industrial, que criou uma demanda muito grande para cargos técnicos e cargos burocráticos. Então, era importante que as pessoas aprendessem matemática, aprendessem a ler e escrever e a ter a letra boa. Até hoje é a mesma coisa: só que, com a queda das utopias do modernismo, a escola parou de formar técnicos e burocratas – e começou a formar consumidores. Todo mundo adora falar de Van Gogh: ele é louco, ele nunca vendeu, ele cortou a orelha – e aquilo virou o modelo do artista. Ninguém gosta de falar de Velázquez, que era muito rico, ou de Rubens, que conseguia mediar guerras entre nações. Ninguém gosta de falar de Leonardo, um cara que inventava milhões de coisas. Lembra daquele cara que entrou naquela caverna e que inventou o sistema, ou a possibilidade de a gente se desenvolver como uma civilização? Ele não inventou só a representação, ele inventou a história. Foi um artista que fez isso; e, hoje em dia, a gente fala de coisas, têm objetivos, mas a nossa razão em relação a esses objetivos está completamente deturpada, porque nós não temos mais um sistema de organização dessa quantidade imensa de informação que está presente o tempo todo. Uma falta de responsabilidade muito grande; a gente fala do meio ambiente, mas não fala dos nossos filhos. Vocês não têm filhos, mas vão ter – e o futuro começa a ser visto de uma forma diferente. Existe uma coisa que me preocupa muito, é o trabalho “daquele cara que inventou a história” ser jogado fora, por uma pequena falta de atenção nossa, da nossa geração. Em 1992, foi inventada uma tecnologia que completamente acabou com a ideia do documento visual. Aquela ideia do “ver para crer” não funciona mais, a partir daí. Se chama Photoshop. Todo mundo sabe, sempre houve a possibilidade de uma imagem ser manipulada, desde o início da fotografia – mas isso era uma coisa que era feita por técnicos. Hoje em dia, qualquer criança de sete anos consegue mexer com essa tecnologia, e muda tudo. 288 289 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z Por exemplo: o perfil no Facebook de muitos de vocês, vocês deram uma arrumadinha; apagaram aquela espinha no nariz, você imagina que tem gente que está tirando rugas, e daqui a 60 anos elas vão ter a mesma cara que elas tinham no ano passado. Elas vão olhar para a foto delas do perfil do Facebook e vão falar assim: “O que é que aconteceu, nesse tempo?” A fotografia não vai ser capaz de ser um representante fiel ou um marco fiel do desenvolvimento do tempo através da nossa história pessoal, e muito menos da nossa história coletiva. Se você imagina que isso já é louco, do ponto de vista pessoal, imagina como história. Em 1839, foi inventada a fotografia; e a partir daí, nós paramos de desenhar, paramos de fazer um monte de coisas. E a gente colocou toda a nossa história dentro desse receptáculo, desse meio que é a imagem fotográfica, e agora ela não significa mais nada. Onde a gente vai colocar a nossa história pessoal e a nossa história coletiva, a partir daí? Como o sistema de história vai se desenvolver sem provas – porque a gente aprendeu mais a mentir do que a dizer a verdade, nos tornamos cínicos além da possibilidade de apreender o mundo factual como ele se apresenta. E – muito preocupante – nós não conseguimos mais organizar de uma forma ordenada e taxonômica a informação que chega até Multidão em Coney Island, 32°C, Eles chegaram cedo e ficaram até tarde, julho de 1940, a partir de Weegee, 2009 Cópia fotográfica digital de emulsão de prata 121,90 x 154,90 cm 290 291 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z nós, pela diversidade e complexidade dos meios com que essa informação nos atinge. Por exemplo: eu estou completamente desmemoriado; meu hard drive já encheu, e eu não sei como jogar fora a informação. É uma coisa incrível, e todo mundo da minha idade tem isso. Até meu filho tem – ele não lembra mais de nada; porque, também, não precisa lembrar, está atrofiada a memória, você acessa o Google, pega o telefone. Google, eu já estou assim. Todo mundo aqui tem essa experiência ou já teve: você pensa em alguma coisa – e não sabe se você sonhou, se leu, se você viu em um filme, no teatro ou se alguém te falou. Por quê? Porque isso está no limbo, aqui dentro, completamente confuso. Somos uma geração estragada pelo excesso de mídia. Eu acho que, com o fim do documento visual e com a impossibilidade de criarmos uma história baseada em evidência visual, só temos uma saída, que é a educação. Só a partir do momento em que existe um consenso muito forte do que é uma imagem e o que são as implicações da imagem dentro da nossa sociedade; o que é feito, como existe, como acontece, talvez uma estrutura ética vá despontar, vá emergir desse consenso, desse sistema. Sem essa educação diferente – que eu acho que a gente tem que começar a promover – isso não vai ser possível. Eu acho que a meta principal dessa educação nova seria a organização da informação visual; ou então, a implementação de métodos nos quais a gente possa oferecer ferramentas às novas gerações para lidar com essa informação visual rica. Mas eu acho que não é porque não existe capacidade. A possibilidade de sinapses do cérebro humano – a qualquer hora, a qualquer momento – é superior ao número de partículas positivas do universo. O cérebro humano é uma das coisas mais incríveis, com as estruturas mais complexas que existem dentro da natureza. Isso quer dizer que existe espaço para a informação – só que ela tem que ser bem administrada. Eu estou com um projeto que se chama Escola do Olhar, que é justamente para criar ferramentas pedagógicas para uma educação do século XXI. E eu queria que fosse jogada essa pilha aí, que vocês pensassem sobre isso, porque é uma coisa muito importante. A gente vai ter que lidar com coisas muito importantes; o meio ambiente, a ecologia do mundo e a nossa ecologia mental. Eu acho que se a gente conseguir ver um mundo melhor, de uma 292 293 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z maneira mais eficiente, a gente vai poder salvá-lo. Isso não é só material, é mental também: e a gente tem que aprender a razão pela qual a gente faz isso, quando vai ao museu. de levar amigo lá; eles olham, veem aquela bagunça, aquele lixo todo, aí olham para aquilo. “O que eu vou falar para esse cara? Será que isso é o trabalho do cara?” Quando ele sobe lá e vê que aquilo forma uma imagem. “Ufa.” Dá um alívio. Eu gostaria de saber se você projeta, depois de tirar a foto, se faz uma projeção de slides e desenha, e depois vai montando? Aluno: Geralmente, coisas pequenas eu nunca projeto, porque eu desenho bem; então, ao projetar alguma coisa, às vezes você perde um pouco a naturalidade do desenho. Os chocolates, eu sempre olho e faço. Eu copio bem, eu não sei dizer se eu desenho melhor, porque eu já parei de desenhar, eu me curei do desenho. Mas, para essas coisas maiores, quando você trabalha com assistente, a dinâmica expande. Você tem pessoas lá embaixo, você tem que estar com um laser daqueles, falando: “Faz aqui, faz ali, mexe aqui”. Você não sabe o que está fazendo; sem falar que esses desenhos são projetados em um ângulo de 45 a 60 graus – o que faz com que a imagem, lá embaixo, seja uma distorção anamórfica. Ela vira um trapézio alongado, largo lá atrás, fininho e bem comprido. E quem vai ao estúdio geralmente não vê o desenho. Eu já cansei Posso falar que isso é alguma coisa, mas, como você não vê o que está fazendo, e como de onde eu estou fotografando é o único lugar que se vê a imagem daquele jeito, é preciso marcar o ponto visual. Mas você tem que saber fisicamente a posição do projetor. Pois o projetor sai, e entra a câmera 8 x 10”, e só daquele ponto que dá certo, porque o desenho não é feito de objetos, ele é feito da sombra, a gente sempre vai até onde a sombra do projetor chega, então só tem um jeito de fazer isso. Tentamos fazer marcando no chão e não deu certo, porque você não sabe onde está a sombra. O projetor, na verdade, joga a informação como ela tem que ser apreendida pela câmera. Só tem esse jeito de fazer. Você vai mudando; esse é um caso que a gente projeta, na maioria dos outros casos é feito direto. O negócio, também, é que você faz tudo para fotografar. As pessoas falam: “E depois, você desmancha?” “Desmancho, preciso do lugar”. “Não te dá nada, desmanchar essa trabalheira toda?” Eu digo: “Não, 294 295 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z eu jogo tudo fora, quebro e jogo tudo fora, depois tudo vai para o lixo”. Só que eu tenho que picar bem picadinho – porque tem um pessoal que começou a olhar o meu lixo para pegar coisas do lixo, lá no Brooklyn, para vender em leilão. de monge, então ele me contou uma história do Buda. Eu falei: “Um pouquinho, vai, só um pouquinho?” Fiquei empesteando ele por uns 15 minutos, até ele enfiar a mão naquele robe laranja dele, tirar uma câmera do bolso e falar: “Eu tirei umas fotos”. (Risos) Certa vez, eu estava no dentista e vi, na revista do dentista, que os monges tibetanos estavam fazendo uma mandala de areia – não sei se vocês sabem o que é isso. Os caras fazem uma coisa que é muito complexa. Eles fazem com uns caninhos de areia colorida; é lindo, parece um tapete, demoram semanas para fazer aquilo. E depois, assim que eles acabam de fazer, eles já começam a varrer para jogar fora, porque é uma ideia do budismo. Então, essa coisa de no fim tudo ser feito para ser fotografado; como você chega lá, em termos do processo, às vezes é a parte mais interessante. O que é legal desse trabalho é justamente você poder incorporar esse elemento humano. Se você começar a trabalhar e fizer sucesso, invariavelmente você vai ter que ter assistentes: todo artista na história da arte trabalhou com assistente. Não há um que não tenha tido um aprendiz, um pupilo, alguém que fazia alguma coisa. Eu li aquilo – a revista de dentista, geralmente, é muito velha – e pensei: “Vou lá ver”. Eu fui ver – com a cara toda anestesiada – e quando eu cheguei lá eles já estavam varrendo o negócio, para jogar fora. Eu olhei, e tinha um monge do meu lado, e eu falei: “Seu monge, você trabalhou nesse negócio aí?” E ele: “Trabalhei”. “Quanto demorou?” Ele disse: “Duas semanas”. “Mas você não fica nem um pouquinho chateado de estar desmanchando?” Aí, ele me deu aquela história de monge toda: “O caminho é melhor do que o destino”, aquela papagaiada lá. Aí eu falei: “Está bom, nem um pouquinho?” Ele respondeu: “Não”. E não dava mais umas histórias Como você usa o assistente, varia; tem gente que usa o assistente como uma espécie de escravo – ele vai ficar ali, trabalhando, não sei o quê. Eu acho muito mais interessante você interagir com o assistente, pois ele começa a fazer parte do seu trabalho – mas tem que assumir, não tem jeito, é que nem ruga. Você tem que assumir o assistente. O meu estúdio em Nova York, por exemplo, não é mais um negócio – está mais para uma seita, porque eu nunca consegui despedir 296 297 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z ninguém. Então todo mundo vai para lá; e quando eu não estou lá, eles ficam tristes – porque eu conto piada, eu fico mais fazendo bagunça em torno deles do que trabalhando mesmo, mas a gente tem uma dinâmica de trabalho de poder sempre mudar, o tempo todo. Eu digo que ser artista é a melhor profissão do mundo, porque você pode se empregar e se demitir todo dia. Outra coisa que é muito importante é nunca jogar nada fora, não fisicamente, materialmente, mas na cabeça. Nunca descarte nada, porque, se você erra, em termos de processo, agora, vai ver daqui a dois, três anos, você vai lembrar daquela coisa que não deu certo; e vai ser o momento certo para usar aquilo, e vai dar certo naquela hora, isso tudo é muito relativo. Mais alguma pergunta? Do jeito que ele levantou a mão rápido, vai ser uma pergunta difícil. Aluno: Não, imagina – não vai ser, não. Você falou da questão da percepção visual e da nossa percepção e funcionamento do cérebro, da educação visual; coisas que são muito importantes e presentes nos seus trabalhos. E, em outro momento, você falou da sua relação com artistas dos anos 60 e 70 – que você encontrava uma identificação muito maior com que acontecia nos Estados Unidos e na Europa. Eu queria saber se, de alguma maneira, existe alguma relação de referência com artistas dos anos 60 e 70, no Brasil, que trabalhavam também com essa questão da percepção do fenômeno do olhar, como o Cildo Meireles. Eu queria saber se algumas obras do Cildo te influenciaram ou não. Numa escala diferente. Eu me lembro de visitar o MAM de São Paulo uma vez. Tinha uma exposição de concretismo, que é parte da coleção do Leirner, me lembro de ver toda uma gama. Tinha Hélio, tinha Lygia; eu não lembro direito, era concretismo mais alguma coisa. E depois, eu lembro de pegar um ônibus lotado, e lá para o Jardim Panamericano teve uma briga feia dentro do ônibus. E eu fiquei pensando, assim: o que tem a ver onde eu fui com onde eu estou? Parece que tem momentos na sua vida que você vai estar aberto a tipos diferentes de imagens, e, naquele momento, abstração para mim era uma impossibilidade, porque eu vivi um momento físico muito real, de desconforto, de dor, de incerteza – e eu não consegui entender abstração. O Cildo, por exemplo, é um artista que sempre me impressionou muito, porque, na época, você não podia dizer o que queria dizer. E o que você escutava não era necessariamente a verdade. Eu sou um produto da ditadura, e, graças a Deus, eu sou um bom aluno; 298 299 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z porque eu não fui influenciado diretamente, não fui torturado, não fui preso, mas eu sou um produto do ambiente intelectual durante uma ditadura militar. Você vive numa espécie de mercado negro semiótico; a informação é negociada o tempo todo, você fala de política através de metáforas, através de canções de amor, através das flores, através de uma festa junina. desenvolvimento profissional – e até intelectual do ponto de vista de onde eu comecei a falar “eu vou ser artista” – se deu lá, e as minhas influências são predominantemente europeias e americanas. Você escuta a informação e aquilo não é verdade. Tem a marchinha, de Dom e Ravel, Eu te amo meu Brasil, eu te amo.66 Que ama o quê, rapaz? A informação é negociada, o que cria, no indivíduo, uma espécie de cinismo muito grande, um pragmatismo ferrenho de: “O que quer dizer esse negócio, aí?” Ao mesmo tempo em que você cria esse pragmatismo e essa desconfiança em relação à informação, você também desenvolve uma abertura, uma elasticidade metafórica muito grande. Nós temos isso, e a gente reclama que os portugueses não têm, por exemplo. Para nós, uma palavra pode significar milhões de coisas, a gente usa a metáfora de uma forma muito natural. Até a entonação da palavra já tem aquele elemento de metáfora; e a ideia que permeia o nosso discurso normal do dia a dia é que uma coisa pode significar outra. Às vezes, eu falo que sou um artista americano, porque o meu Eu não vou negar algumas influências da arte brasileira que eu conhecia da época; principalmente três, eu acho: o Tunga, o Waltercio e o Cildo. São artistas que falavam muito forte para a minha geração, o Cildo, principalmente, porque ele era tipo um herói cultural, ele era muito corajoso. Ele fazia coisas, e o discurso político dele era muito aberto, questionar valor numa época onde isso tudo é muito falso era uma coragem muito grande desse artista, enfrentar esses assuntos na época em que ele estava fazendo. O Waltercio é um cara que sempre me impressionou muito – eu sempre gostei do trabalho. E o Tunga, principalmente; porque eu acho que o Tunga tinha uma coisa que escapava a qualquer regra – ele sempre foi o meu artista preferido. Porque a ideia de desenvolver mitologias pessoais é uma coisa muito antiga da arte, tem um pouco a ver com a disciplina de alguns artistas que eu sempre gostei e que também eram os ídolos dele. Você pensa em Beuys, por exemplo. Eu estou mais para Warhol do que para Beuys. Eu acho que a ideia é você desmistificar o esoterismo de achar que a arte “é uma coisa 300 301 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z do espírito”. O espírito está aqui, está no visível, está no cotidiano, você tem que ver beleza nisso, porque é isso que você tem. Ficar imaginando, eu acho que está certo, tudo bem – vida após a morte, ótimo, você pode acreditar nessas coisas, para curtir o negócio. Mas, para entender melhor o lugar onde você vive, com as pessoas com quem você vive, você tem que observar, fazer arte sobre isso. A gente observa muito as tendências em torno quando estamos começando a fazer arte, porque a gente quer a segurança de que aquilo que estamos fazendo está dentro de um contexto contemporâneo atual e que aquilo tem algum valor. Mas no momento em que você começa a ficar observando muito, você para de fazer, se perde, se desvirtua na sua direção. Eu acho que muito da arte que me influenciou, influenciou também alguns artistas que estavam trabalhando um pouco antes de mim, aqui no Brasil. Esses três, que citei, eram os artistas que eu admirava e acompanhava o trabalho, e acabei fazendo amizade com eles, com o passar do tempo, mas, assim, engraçado, hoje em dia, qual o tipo de arte contemporânea que você gosta? Eu não sei dizer. Então, hoje em dia, eu não sei dizer para você: arte contemporânea? Não tenho muito interesse em arte contemporânea como uma ferramenta, como um elemento dentro do meu trabalho. Eu tenho um interesse paralelo, assim, como qualquer pessoa que não é artista tem. Eu vou ao museu: acho bom, acho ruim, mas aquilo não influencia, eu brindo àquilo, não observo muito, não. Eu trabalho muito como curador, eu estou fazendo uma curadoria de um evento enorme, aqui no Rio de Janeiro. Desde que comecei a ser artista eu já fazia curadoria, e eu não sei dizer; porque quando você dirige, você olha para frente, para o para-brisa, e o retrovisor. Você não fica olhando para os lados – se você ficar olhando para os lados bate o carro. Então, quem está fazendo o mesmo que você, você sente ali na visão periférica, mas isso não vai influenciar o seu destino. Você tem que ir para onde quer ir. Eu fico pensando muito mais em coisas que não tem nada a ver com arte. Uma vez, fizeram uma exposição de motocicletas no Museu Guggenheim e a mídia caiu de pau – mas eu adorei a exposição de motocicletas. Eu ficava injuriado: “Poxa, devia ter mais exposição de motocicletas no museu, eu adoro motocicletas”. Por que não pode ter? Eu fiz uma exposição agora, no MoMA67, em que eu misturei o departamento de design. Então você tinha uma pá de Duchamp, e 302 303 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z do lado tinha um balde do departamento de design; um balde verde que não era arte – era um balde. Mas não tinha etiqueta, então você tinha que lidar com aquilo pelo que era, o valor era todo, você tinha que negociar cada vez. O negócio de influência é uma coisa muito difícil, pois para começar a falar de um artista que me influenciou, é mais fácil falar dos que não influenciaram, porque você está aberto a tudo, eu acho que essa é a melhor política. Não é bem uma pergunta, mas algo que eu queria que você falasse um pouquinho mais. Eu li numa entrevista sua, uma vez, você dizendo que todo curador gostaria que a arte fosse tão popular quanto o futebol – e isso é um grande desafio. pouquinho mais disso, dessa coisa de atingir um grande público e de apreciar. Eu acho que o importante é você não permitir o que, às vezes, é um fenômeno: que a arte se torne uma espécie de ferramenta de elitismo cultural; deixar acontecer um pouco como na advocacia, no Direito, onde há uma linguagem tão difícil, tão complicada que quem não é advogado precisa contratar um advogado. Eu acho que se criou, ali, uma linguagem, um jargão tão complicado para lidar com coisas tão simples. Aluno: Eu acho que você atinge todos, na arte, quando o seu tema é universal ou quando há um decantamento da ideia que chega a uma questão simples que todos possam identificar ou apreciar – e eu vejo isso no seu trabalho, principalmente por esse elemento da visualidade, da percepção, que é uma coisa que está ao alcance de todo mundo. E é uma coisa que impressiona; então, eu só queria que você falasse um Estamos falando de coisas visuais, que têm uma instantaneidade, uma espontaneidade, naquilo que está na sua frente, que vai contra a ideia de um texto. Vai até contra a ideia de uma interpretação absoluta; e, aquilo que o texto traz – a ideia que arte tem que ser explicada – é muito ruim. Não tem que ser explicada, a arte é uma coisa para você sentir, não é para você entender. E sentir é uma coisa que todo mundo é capaz. É óbvio que, se você entende uma coisa um pouco melhor, você vai sentir ela de formas diferentes, mas isso é uma consequência daquele momento em que você começa a sentir aquilo que o Waltercio chama de curadorismo. 304 305 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z Existe isso: às vezes, parece quase uma necessidade daquilo ser um pouco mais do que é; porque, às vezes, é tão pouco, é tão simples e óbvio, e tão primitivo. Então, aquilo é embalsamado e decorado com uma aura de importância, de erudição. Mas isso só serve para afastar as pessoas. o público. Como? Não tem por que ser assim. Eu, justamente, acho que conseguir essa comunicação direta é o mais importante. E aí, o artista começa a dar essa abertura para certos parasitas virem se acoplar e sugar o sangue da produção artística. Eu fico imaginando, porque as pessoas que estão envolvidas com arte são bastante inseguras, na maioria dos casos – eu tenho que confessar isso. Mas o que é esse negócio de arte? Tem muita gente que não gosta, tem muita gente que acha que não serve para nada, tem muita gente que quer acabar, não quer dar dinheiro, não quer fazer museu. Então, isso está sendo o tempo todo questionado, desde que arte é arte, e aí, para se blindar, para se proteger desse questionamento, começa a se criar uma estrutura. “Você não entende, você não gosta porque você não sabe, porque você é burro.” Aquela história de artista falar: o colecionador é um idiota, o público não sabe nada, eu estou além do meu tempo – isso é tudo besteira. Eu acho que o cerne desse problema é o artista: ele mesmo. O momento em que o artista começa a imaginar que existe uma necessidade de interpretação do trabalho e um intermediário entre ele e Eu não vou falar que curadores e críticos são parasitas – mas muitos deles são, sabe? Contudo, tem muita gente que realmente tem a intenção de abrir o diálogo, ou pessoas que agem como uma espécie de meteorologista cultural; que pegam tendências e tentam aglomerar, até para dar mais sentido. Tem crítico e curador que me ensinou muita coisa, me fez ver coisas. Mas outros ficam só tentando criar discurso para si mesmo. E existe essa coisa do curadorismo, dessa criação de discursos que servem para criar uma espécie de diferencial entre quem vive no mundo da arte e os demais. A gente faz isso o tempo todo, quando compra um carro caro, quando põe uma roupa chique – é ostentação isso, e ostentação intelectual não é pior do que ostentação material. Se você se cobre de ouro, anda num BMW ou tem a sua bolsa Hermès, sabe? Aquela mulher é vulgar, mas também existe vulgaridade em começar a falar difícil só para parecer mais importante ou mais inteligente, isso também é vulgar. Eu acho que a gente tem que 306 307 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z “Então, a pessoa se aproxima e vê o material, se afasta e vê o mental. Entre o material e o mental tem um momento em que clica, a coisa se transforma, e você, então, percebe que não é o material nem o mental, é exatamente aquele ponto onde uma coisa se transforma em outra.” saber disso; aliás, não só nós, todo mundo tem que saber disso, que existe essa vulgaridade, é horrível. E isso é uma coisa muito predominante: você está no mundo da arte de uma maneira muito feia. O que é legal do Brasil não é só essa promessa grande que o país está vivendo, hoje em dia, esse ufanismo – até um pouco exagerado, às vezes –, mas a ideia de arte contemporânea no nosso país, nesse momento, ainda é um conceito em formação. Não está tão engessado dentro dos parâmetros, vamos dizer, europeus ou norte-americanos. Ali tem todo um mercado, tem toda uma estrutura muito mais poderosa em torno da produção artística, que limita um pouco a sua capacidade de expandir ou de mexer com esses conceitos da maneira que você desejar. Aqui, no Brasil, por ser um conceito em formação, a gente tem muita responsabilidade e muita influência nisso. Eu vou fazer 49 anos, agora, eu sou mais velho que o governador. E eu vivi tanto quanto ele, e o que é legal de ficar velho é que você fala e as pessoas escutam. Você fala com pessoas mais novas: “Respeite os mais velhos aí, governador”. (Risos) Eu acho que o que também é legal é que você começa a enxergar a possibilidade de se engajar em discursos que vão além da sua 308 309 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z produção como artista. Eu acho que o que está acontecendo no Rio é muito legal – eu estava comentando isso –, tem uma secretaria de educação que é engajada, estão vendo a produção artística do ponto de vista positivo e isso pode até vir a ser um fator de desenvolvimento econômico, mesmo. minha filha não sabe quem é o Frank Gehry – que é um arquiteto famoso –, mas se o Homer Simpson amassa um papel, joga no chão, e o cara vai lá e faz um prédio daquilo, todo mundo dá risada. Quem conhece o arquiteto sabe: mas quem não conhece, acha graça em fazer um prédio de um pedaço de papel. Mas isso não pode ser feito a partir de uma plataforma elitista. Eu acho que a gente tem que abrir a cabeça, ao fazer arte, pois para um trabalho ser inteligente, ele tem que ser inteligente em vários níveis. Eu chamo isso de “fenômeno dos Simpsons”. Eu tenho um amigo que é professor de Literatura em Harvard – uma das pessoas mais inteligentes que eu conheço. Tenho um outro que fazia pesquisa para o Michel Foucault e que dá aula na Brown. Esses dois amigos têm toda a coleção dos Simpsons – eles adoram os Simpsons. Minha filha de quatro anos e meio adora os Simpsons. Então, eu acho que arte inteligente tem que ter consciência da capacidade de atingir pessoas de diferentes níveis – intelectual, social e econômico. Eu acho que, primeiro, a gente tem que tomar muito cuidado, se policiar muito em relação a elitismos intelectuais. Ostentação intelectual é algo muito feio. Eu acho incrível você criar um produto que consegue atingir a elite intelectual do país e também uma criança de quatro anos e meio. Tem tudo ali, tem humor que é mecânico, que é pastelão, que é besta, que é nonsense, e também tem coisas como o Bart Simpson citando Nietzsche outro dia. O Jasper Johns e o Frank Gehry já participaram dos Simpsons. A Tem uma coisa engraçada: parece que o artista sabe mais de política do que o padeiro, o policial, ou o enfermeiro, não é? Uma onda de arte política invadiu os Estados Unidos, no começo dos anos 90, por exemplo, uma coisa horrível; todos os artistas falando da Somália, falando disso, falando daquilo. Cara, você não sabe nada. Eu acho que o artista está muito no mundo da Lua, ele sabe menos do que o padeiro, do que o policial. Não é que ele saiba mais – ele sabe menos. Por isso eu acho que, para ser um bom artista, tenho que ir para Parada de Lucas, tenho que ir na Maré, tenho que sair desses túneis daqui. Eu não vou negar: 310 311 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z eu adoro a Zona Sul, adoro comer num restaurante caro, adoro viajar de business, adoro ficar em hotel legal – todo mundo gosta. Não vou ser hipócrita, hipocrisia é outro problema. Eu sempre quis: eu fui pobre, eu não tenho problema nenhum com isso. Essa coisa de fazer apologia da miséria é coisa de intelectual, quem falou isso foi o Joãosinho Trinta, mas não dá. A gente não sabe mais do que ninguém. Talvez a gente, por achar que sente mais as coisas que os outros, tenha essa autoridade. Mas não sente, isso é outro tipo de ostentação intelectual do artista, eu acho que temos que sempre partir do principio de que somos seres humanos como quaisquer outros. Somos iguais, a mesma coisa, e é a intensidade da experiência que a gente vive, na nossa relação com a sociedade, na nossa relação no mundo, que vai produzir coisas, objetos ou mensagens mais importantes. E não o quanto nós somos melhores que os outros. Notas 1. Grupo de teatro formado no Rio de Janeiro em 1974, com um trabalho que se definia pela desconstrução da dramaturgia, a interpretação despojada e a criação coletiva. 2. Termo francês que significa “aquilo que está à frente”, e que foi adotado por uma série de movimentos artísticos e políticos do final do século XIX e início do século XX. 3. OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo). Grupo formado na década de 70 pelos principais países produtores de petróleo, para unificar o preço do produto, organizando um cartel internacional. 4. MUNIZ, Vik. Vik. Exposição individual realizada no Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, 28 de janeiro a 22 de março de 2009. 5. MUNIZ, Vik. Relicário. Exposição individual realizada na Sala de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro, 13 de outubro a 5 de dezembro de 2010. 6. MUNIZ, Vik. Caveira de palhaço, 1989. Plástico moldável, tinta, base de madeira e metal. 25,40 x 20,30 x 20,30 cm. 7. MUNIZ, Vik. Suvenir 18 (Console Ashanti), 1989. Madeira, fios elétricos, gesso. 40,60 x 27,90 x 27,90 cm 8. MUNIZ, Vik. Sem título (Pódio Balançante), 1988. Madeira laqueada. 61 x 139,70 x 93,20 cm. 9. MUNIZ, Vik. Cafeteira pré-colombiana, 1989. Cerâmica. 27,90 x 20,30 x 20,30 cm. 10. MUNIZ, Vik. Mesa Bonsai, 1990. Vaso de cerâmica, madeira, musgo, pedras. 35,60 x 35,60 x 15,20 cm. 11. MUNIZ, Vik. O grande livro, 1989. Enciclopédia inteira encadernada em couro. 86,60 x 27,90 x 21 cm. 12. MUNIZ, Vik. Meia lápide, 1991. Meia lápide de mármore. 13. Conceito criado por Roland Barthes, que define um fenômeno no qual sujeito e fotografia se afetam. É utilizado para nomear um “detalhe” na fotografia que chama a atenção daquele que a observa. 14. MUNIZ, Vik. The Best of Life. Exposição individual realizada na galeria Wooster Gardens, Nova York, 1996. 15. MUNIZ, Vik. Nuvem e o remador, 1993. 312 313 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z 16. Figura idealizada pelo cristalógrafo suíço Louis Albert Necker. Publicada pela primeira vez em um artigo de 1832, mostra um cubo se alternando em profundidade, essa sensação é provocada por uma ilusão de ótica. 17. MUNIZ, Vik. Duas vacas, 1997. Cópia fotográfica de emulsão de prata. Edição de 5. 35,60 x 27,90 cm. 18. PICASSO, Pablo. Guernica, 1937. Óleo sobre tela. 350 x 782 cm. Museo Nacional Reina Sofía – Madrid. 35. MUNIZ, Vik. JORGE, 2003. 36. MUNIZ, Vik. Série Imagens de revista, 2003. 37. MUNIZ, Vik. A rosa branca, 2003. 38. MUNIZ, Vik. Autorretrato (Estou muito triste para te contar, a partir de Bas Jan Ader), 2003. 39. MUNIZ, Vik. Série Imagens de diamantes, 2004. 19. PICASSO, Pablo. Les Demoiselles d’Avignon, 1907. Óleo sobre tela. 243,9 x 233,7 cm. MoMA, Nova York. 40. MUNIZ, Vik. Drácula, 2004. 20. MUNIZ, Vik. Uma rosa é uma rosa, 1995. Cópia fotográfica de emulsão de prata com viragem. Edição de 5 com 3 PAs. 45 x 45 cm. 42. MUNIZ, Vik. Narciso, a partir de Caravaggio, 2005. 21. O Telescópio Espacial Hubble é um satélite astronômico artificial não tripulado que transporta um grande telescópio para a luz visível e infravermelha. Foi lançado pela agência espacial estadunidense (NASA) em 24 de abril de 1990. 44. MUNIZ, Vik. Atlas, a partir de Giovanni Francesco Barbieri, 2007. 22. MUNIZ, Vik. Série Imagens de linha, 1995. 23. MUNIZ, Vik. Série Crianças de açúcar, 1996. 24. New Photography 13. Exposição coletiva realizada no Museu de Arte Moderna de Nova York, EUA, 1997. 41. MUNIZ, Vik. Frankstein, 2004. 43. MUNIZ, Vik. Saturno devorando um filho, a partir de Francisco de Goya e Lucientes, 2005. 45. MUNIZ, Vik. WWW (MAPA-MÚNDI), 2008. 46. MUNIZ, Vik. Conceito espacial, Attesa, a partir de Lucio Fontana, 2008. 47. MUNIZ, Vik. A japonesa, a partir de Claude Monet, 2006. 48. MUNIZ, Vik. Série Quebra-cabeças górdios, 2008. 49. MUNIZ, Vik. Série Earthworks, 2002. 25. MUNIZ, Vik. Seeing is Believing. Exposição individual realizada no Centro Internacional de Fotografia em Nova York, EUA, 1998. 50. MUNIZ, Vik. Tesoura (desenhos de Sarzedo), 2002. 26. MUNIZ, Vik. Série Imagens de chocolate, 1997. 52. MUNIZ, Vik. Nuvem nuvem, Manhattan, 2001. 27. MUNIZ, Vik. Série Imagens de poeira, 2000. 53. MUNIZ, Vik. Nuvem nuvem, 59th Bridge, 2002. 28. MUNIZ, Vik. The Things Themselves: Pictures of dust by Vik Muniz. Exposição individual realizada no Whitney Museum of American Art em Nova York, EUA, 2001. 29. MUNIZ, Vik. Série Imagens de tinta, 2000. 30. MUNIZ, Vik. Série Cárceres – a partir de Piranesi, 2002. 31. PIRANESI, Giovanni Battista. Carceri d’invenzione, 1749-1750. 32. MUNIZ, Vik. LUIZ, 2003. 33. MUNIZ, Vik. JOÃO II, 2003. 34. MUNIZ, Vik. JOÃO I, 2003. 51. MUNIZ, Vik. Alvo (Fazendão, Mina de ferro), 2005. 54. MUNIZ, Vik. Nuvem nuvem, Miami, 2006. 55. MUNIZ, Vik. Série Imagens de papel, 2008. 56. MUNIZ, Vik. Série Versos, 2008. 57. PICASSO, Pablo. Passadeira, 1904. Óleo sobre tela. 116.2 x 73 cm. The Solomon Guggenheim Foundation, Nova York. 58. CÉZANNE, Paul. Mont Sainte-Victoire, 1885-1887. Óleo sobre tela 59. MUNIZ, Vik. A noite estrelada (Van Gogh), 2008. Objeto em técnica mista. Edição de 2 com 2 PAs. 73,70 x 92,10 x 30,50 cm. 314 315 C A DER N OS EAV VI K MU N I Z 60. MUNIZ, Vik. Série Imagens de lixo, 2008. 61. LIXO EXTRAORDINÁRIO. Direção de Lucy Walker e codireção de João Jardim e Karen Harley. Londres: Almega projects e O2 filmes, 2009. Dvd (99 min) son., color. 62. MUNIZ, Vik; LAGO, Pedro Corrêa (Org.). Vik Muniz: Obra completa | 1987-2009. Rio de Janeiro: Capivara, 2009. 712 p. 63. MUNIZ, Vik. Atlas (Carlão), 2008. 64. MUNIZ, Vik. O semeador (Zumbi), 2008. 65. MUNIZ, Vik. Marat (Sebastião). 2008. 66. INCRIVEIS, Os. (intérprete) Dom e Ravel (Compositores) “Eu te amo meu Brasil”. Portugal: RCA Records, 1970. 67. MUNIZ, Vik. Artist’s Choice: Vik Muniz, Rebus. Exposição individual realizada no Museum of Modern Art (MoMA), Nova York, 11 de dezembro de 2008 a 23 de fevereiro de 2009. Saiba mais http://www.vikmuniz.net/ MUNIZ, Vik; LAGO, Pedro Correa do. (Org). Vik Muniz: obra completa 1987-2009. Rio de Janeiro: Capivara. 2009. 712 p. 316 WALT ERCIO CA LDA S Quando me coloco na situação de conversar sobre meus trabalhos, vejo dois desafios. Primeiramente tenho a certeza de que quem vai falar com vocês não é exatamente o artista, porque um artista, fala através da sua obra, isto é, prefere um determinado tipo de linguagem para, através dela, expressar suas ideias. Mas, segundo desafio, quando me proponho a falar de minhas ideias, isto já é uma outra linguagem. Essa pessoa que fala de suas ideias não necessariamente é a mesma pessoa que dispõe e delibera, como artista, da linguagem plástica e dos meios físicos para realizar uma obra, e já que não estou aqui simplesmente para mostrar minhas obras de arte, começo deliberadamente evitando passar para vocês uma informação visual através de qualquer projeção, Power–Point ou outro tipo de reprodução eletrônica, e isto tem um motivo: uma das questões fundamentais do trabalho que realizo é , justamente, preservar esta dúvida, e por que não dizer, certa crítica das imagens representadas. E o que eu quero dizer com isso? Se não é possível apresentar o trabalho através dos meios físicos que o justificam e da linguagem própria dessas obras, suas representações são inadequadas e estão imediatamente sob suspeita. Aceito, com muitas restrições, as fotografias, que reduzem a superfícies planas objetos tridimensionais, pois creio que a experiência plástica se dá através da relação das pessoas com os objetos físicos, sejam estes esculturas ou pinturas. Essa relação é fundamental para a explicitação da linguagem que está sendo deflagrada. Digo isto porque, pela forma e frequência como atualmente as informações nos são apresentadas, tendemos a confundir a representação com a realidade, aceitando as imagens que interpretam o fato como se fossem o fato mesmo. Mas elas são, na verdade, um outro fato, outra forma do real, com significações que moldam novas afirmativas próprias da linguagem. Lembro que o cineasta Jean-Luc Godard certa vez, tarde da noite, telefonou aflito para um fabricante de câmeras cinematográficas, propondo a construção de uma máquina que pudesse atender às exigências do novo filme que planejava, pois este não era possível com as câmeras que existiam no mercado. Essa história parece estar na contramão do que acontece hoje, quando o normal é escolhermos ou nos adaptarmos às inúmeras e infinitas opções que 318 319 C A DER N OS EAV WALT ERCI O CAL DAS nos são oferecidas. A tecnologia estaria nos vendendo, portanto, suas limitações como se fossem vantagens. Dentro de ambientes tecnológicos essa ilusão pode ser aceita, mas não acho que deva ser admitida por pessoas que trabalham de forma criativa, por artistas que têm a prerrogativa e as vantagens da invenção. Acredito que a autonomia da arte se dá, na prática, exatamente por esta insistência em escapar dos limites pragmáticos de sua aplicação, e isto em beneficio de sua própria liberdade. O que entendo como arte é muito diferente da arte aplicada, a mesma diferença que vejo entre ciência e tecnologia. A tecnologia é hoje um fetiche e não pode haver dúvida de que ela é realmente útil em grande parte das atividades humanas, mas vejo nisto, também, um problema e este assunto é complexo demais para ser tratado aqui, de forma tão rápida. Uma de minhas suspeitas deve-se ao fato de negligenciarmos uma conquista em nome de uma crença moderna na eficácia da vida vertiginosa. Conquistado arduamente em cada decisão ou dúvida humana, este tesouro é a subjetividade, esta capacidade que determina o grau de sobrevivência das obras de arte e que, parece, está sendo esquecida até mesmo por nós, os artistas. É que muitos daqueles que trabalham com cultura tentam nos fazer acreditar que tratamos o mesmo material. Talvez seja necessário estabelecer agora a diferença entre o que é sistematização do conhecimento, um esforço meritório da cultura, e a imaginação das hipóteses desconhecidas, que impulsiona e justifica as experiências artísticas. Tenho certeza que os artistas não trabalham apenas com coisas que conhecem, mas com novas situações, ainda mais desconhecidas, e a qualidade desse novo desconhecimento irá produzir ainda mais arte, mais linguagem artística. Vimos anteriormente que a presença inequívoca da tecnologia se dá de tal forma a confundir os fatos com suas versões. Façamos um rápido exercício especulativo sobre um dos aspectos que relaciona as gestões culturais e a atividade artística: as mostras de arte. No primeiro dia de uma exposição em uma galeria, abrem-se as portas para o público. Neste momento, a obra dos artistas, suas pinturas, suas esculturas e desenhos ficam disponíveis para venda. A partir daí, o artista corre o risco de vender ou não a sua obra. Se achamos que a questão começa aí estamos enganados, algo já está acontecendo e é esclarecedor: dezessete outras atividades, profissões, já ganharam dinheiro com esta mesma exposição. Vejam que aqui importa pouco a qualidade da obra, o mérito dos trabalhos expostos, e o que está em jogo é a quantidade de empregos que a situação indiretamente propiciou: o profissional que fez as molduras, o crítico que escreveu o texto, a loja que vendeu os materiais utilizados na mostra, os anúncios nas revistas, a impressão dos catálogos e seu respectivo projeto gráfico, tradutores e revisores, divulgadores e fotógrafos, e o staff da galeria, para citar apenas alguns. E todos esses profissionais já teriam recebido suas 320 321 C A DER N OS EAV WALT ERCI O CAL DAS remunerações, não correndo o risco do artista, que pode até mesmo não ter a sorte de ver o seu trabalho vendido. A situação, que aparece aqui como um exemplo, sugere que o mercado de arte opera hoje numa sequência, digamos, automática de eventos e isto é um fato da cultura que está relacionado diretamente à produção dos artistas. Mas estou convicto de que os artistas não podem simplesmente aceitar ser mais uma profissão nesta lista, afinal podem exercer a liberdade de pensar criticamente e não confundir eventos culturais com o seu trabalho realizado anteriormente, com liberdade de linguagem, no silêncio do atêlie. Através de obras que pensam esta e outras situações semelhantes, se faz necessária uma linguagem plástica inovadora e profundamente crítica, não apenas voltada para uma audiência e para as “vantagens da interatividade”. Mais do que nunca, é necessária uma defesa radical das poéticas pessoais, capazes de desafios imaginários efetivos, onde as exceções – e tudo no mundo é exceção – desqualifiquem com humor toda e qualquer operação que utilize a máscara arrogante dessa “cultura de resultados”. Essa atitude, essa defesa intransigente da subjetividade, lutando contra as limitações da realidade, é fundamental para a construção de uma arte autônoma e atenta aos desafios da época. E que os artistas se dediquem menos à produção de “cultura” e mais às possibilidades desconhecidas. Estas sim serão a razão e a justificativa de um embate estimulante e criativo com a realidade. Era o que queria dizer. Talvez, a partir daí, possamos desenvolver alguma coisa, começar uma conversa. Gostaria que você discorresse um pouco sobre o tema “arte e política”. Aluno: Existem várias formas de se pensar a relação entre arte e política, como existem várias formas de ver as relações entre arte e sociedade, e receio que abordemos este assunto de uma forma viciada, sob o estigma moral do compromisso. É óbvio que todo artista, como profissional, amador ou cidadão, participa de alguma maneira do que habitualmente chamamos de “relações sociais”. Mas o que vemos hoje é uma constante ideologização da forma de ver estas relações e algumas delas parecem não reconhecer na arte sua qualidade de linguagem autônoma. É como se algumas pessoas estivessem achando que política é uma atividade e arte outra, e que a relação entre elas estaria automaticamente estabelecida através dessa palavra mágica chamada “social”. Na realidade, há uma diferença muito grande entre a maneira como a política trata a coisa pública, e a arte, que, por sua vez, é um produto da sociedade. Há uma diferença considerável entre as qualidades artísticas de um quadro de Matisse e a forma como um museu apresenta sua interpretação curatorial e a política cultural na mostra onde 322 323 C A DER N OS EAV WALT ERCI O CAL DAS estão esses mesmos quadros. A experiência de visitar um museu, experimentando novas significações e relações propostas pelas curadorias, acrescenta um novo fato. Por outro lado, se dissermos apressadamente que não há qualquer relação entre arte e política, como é possível que uma linguagem inventada por humanos não tenha nada a ver com a realidade que os cerca? Mas se a arte pode ser praticada, questionando até mesmo seus parâmetros artísticos e ideológicos, já temos aí um fato muito interessante: será sempre necessária e eficaz uma linguagem que trata criticamente, e com liberdade, de sua própria inserção no código social, alterando-o. Portanto, como você vê, são várias as formas de abordar esta questão e a mais pobre dessas formas relaciona política e arte mecanicamente, pois não nos permite ver o quanto de criatividade existe na política e o quanto de política existe na arte. E, nesses assuntos, receio que algumas respostas sejam bem desapontadoras. Se eu não me engano, você começou a estudar com Ivan Serpa, não foi isso? Aluno: Sim. Relacionando com essa última pergunta que foi feita, sobre a relação de arte e política, o MAM tem uma Aluno: história, o surgimento do neoconcretismo que se deu ali, e eu imagino que você deva ter convivido com os artistas que participaram desse processo, não é? Eu queria saber qual foi a sua relação naquele momento com aqueles artistas, como era produzir nesse contexto, se o seu trabalho tem alguma proximidade com as questões daqueles artistas, como essa relação de arte política naquele momento, em sua opinião, acontecia, e como pode ser comparado com o que você estava falando agora sobre essa relação dicotômica e maniqueísta de arte e política. Bom, existia certa dependência entre conseguir fazer arte e sobreviver como cidadão. Na realidade, estávamos todos lutando pela liberdade, artistas inclusive, e éramos todos cidadãos; a relação entre arte e política, como você vê, era real e não, exatamente, conceitual. A luta para sobreviver física e intelectualmente numa situação adversa é muito mais do que uma ideia, estávamos lutando para poder fazer o que quiséssemos, não necessariamente nos orientando por uma vertente ideológica em direção a isto ou aquilo. Alguns artistas seguiram, até mesmo, esse caminho, mas essa não era a única opção. Havia que se inventar novas formas de luta. Um outro aspecto que marcava essa diferença era o fato de que havia uma maior interdependência entre as várias artes e seus artistas. 324 325 C A DER N OS EAV WALT ERCI O CAL DAS O Museu de Arte Moderna era um lugar de confraternização para artistas plásticos, músicos, poetas, cineastas. A Cinemateca do MAM era importantíssima, os encontros no bar eram frequentados por artistas de várias áreas, afinal era a expressão como um todo que estava em risco, não é? E cada conquista era um avanço, mais uma possibilidade liberada. Hoje, vistas de longe, parecem temas quase abstratos, mas as conquistas e esforços moldaram o nosso estímulo, surgiam como condições da prática artística. Particularmente, optei por pensar a política da arte e seus significados ao invés de praticar a política dos partidos. Em arte podemos confrontar a linguagem e usar muitos materiais, inventar mais linguagem é muito mais estimulante do que nos submeter a ela. Você falou sobre a tecnologia, sobre a ideia de se vender uma limitação como se fosse uma vantagem. Vejo isso no cinema, que é a minha área, estamos chegando num limite em que se tem tantas possibilidades que talvez ultrapassar as barreiras dessas tecnologias seja exatamente diminuir a quantidade do uso delas. Por exemplo, o uso cada vez mais frequente do 3D acaba mudando o cinema de uma maneira que ele deixa de ser o “cinema” antes conhecido. Hoje, optar por filmar em película é usar opções que não necessitam dessa tecnologia toda, ao invés de tentar Aluno: ultrapassá-la. Gostaria que você comentasse um pouco mais sobre isso. Você toca em um problema muito interessante. Há uma perda de linguagem na situação descrita, ou você se submete a essa perda de linguagem como se isto fosse uma vantagem ou continua a buscar na linguagem novas alternativas, evitando a visão estreita do entretenimento. Na realidade, o que você está dizendo é que esperamos mais da arte do que a celebração da eficiência da tecnologia, não é? E que nós artistas teríamos a responsabilidade utópica, mas neste caso urgente, de “desoperacionalizar” o mundo, acrescentando esforços para que este mundo desconstruído se torne, ao mesmo tempo, mais possível e menos provável. Nesse sentido, não nos interessaria a transformação da realidade em expressão, o que seria impossível, mas que a expressão fosse uma prerrogativa humana tão absolutamente fundamental, infinita, e que não seria domínio de ninguém. Talvez estejamos perdendo a noção dessas amplitudes, seduzidos num mundo hoje tão cercado de possibilidades. Não me esqueço da primeira vez em que fui apresentado ao computador; alguém disse: “Esta maquina é fantástica, pode reproduzir cinco mil cores”. E perguntei, quase imediatamente: “Mas só cinco mil cores?” A razão de minha pergunta estava na lembrança de uma aula de Ivan Serpa em 1963, na qual ele nos informava que, num estudo das cores 326 327 C A DER N OS EAV WALT ERCI O CAL DAS utilizadas por Matisse, haviam sido encontrados cinco mil tons de amarelo. Vejo aqui mais um motivo para que os esforços artísticos estejam sempre voltados para a produção de novas possibilidades, e não apenas para as representações de significados. Nos cabe uma reivindicação que nunca foi feita, nos cabe uma reivindicação que temos que inventar. Melhorar a qualidade do desconhecido talvez seja a grande aventura da subjetividade artística. decido encontrar a melhor forma possível para o que pretendo. E a forma encontrada pode, até mesmo, alterar o que pretendia inicialmente. Deixe-me acrescentar que quando entro em uma exposição qualquer e percebo o artista querendo me bajular com suas intenções, isto me incomoda muito. Ou se ele pretende que posso sentir algo relativo ao que ele espera, a situação fica ainda mais desconfortável. Em momentos como esse, estamos diante do mais ingênuo populismo estético. Já a minha intenção, devo esclarecer, não é criar uma empatia com o espectador, nem ter a pretensão de tentar identificá-lo com a obra, mas apresentar o que penso de forma clara para que, aí sim, na liberdade de sua disponibilidade, ele possa estabelecer, ou não, uma relação com aquilo que está sendo visto. Essa é a minha maneira de respeitar o espectador. Talvez tenhamos uma versão muito restrita do que possa ser compartilhar sentimentos, mas a sensibilidade é traduzida diferentemente de pessoa para pessoa, e seus interesses também. Lygia Clark disse em uma oportunidade que o cérebro também é uma víscera. E Einstein, com a língua de fora, nos lembra que pensar também é uma sensação... e boa. Talvez tenhamos sempre uma versão muito incompleta do que é sensação. Certamente, me emociono no processo de realizar uma exposição, tenho meu sentimento colocado ali, mas também não tenho dúvida: faço o que sinto, mas, também, o que penso, o que Eu queria fazer uma pergunta sobre o seu trabalho Salas e abismos1. Eu fui ver a exposição, que me causou um impacto psicológico muito grande, a predominância do branco e a assepsia dos materiais... Eu achei bastante árido, me deu uma coisa de vazio, de solidão, e queria saber como é que você pensa nesse efeito psicológico no espectador quando você conceitua sua instalação, as instalações espaciais, como você imagina que quem vê vá refletir sobre a sua obra ou vá viajar em cima dela ou o que vai sentir. Aluno: Nunca me preocuparam ideias de pureza, limpeza, ou qualquer dessas profilaxias. Por outro lado, sempre tive obsessão pela clareza e pelo que chamo “teor de evidência” das coisas. Clareza, para mim, é tudo aquilo que é possível realizar no momento em que 328 329 C A DER N OS EAV WALT ERCI O CAL DAS interpreto, o que suspeito, o que imagino, o que adivinho, o que quero, e tudo isso ao mesmo tempo. E o trabalho é a soma dessas vontades todas. Uma vez, alguém me disse que achava o meu trabalho frio, e eu lhe disse que não gostava de calor e que não havia necessidade de mais um artista quente em um país tropical, não me interessava ser um artista definido pela temperatura. Busco a clareza explícita das coisas observando a evidência inaugural dos objetos e suas imagens. realizar uma obra posterior àquela declaração, seria bem-sucedido apenas se ressuscitasse o suposto cadáver? Desculpem a sugestão maliciosa, mas quando nasci, em 1946, era esta hipótese divertida, da morte da arte, que agonizava. Cem anos depois, vimos assistindo uma “ressurreição” em cada artista interessante que aparece, e não são poucos. Certa vez, em uma livraria, um estranho ao meu lado dizia, indignado, que o artista Marcel Duchamp com as suas “atitudes críticas” tinha acabado com a possibilidade da pintura. Olhei para as estantes à nossa frente e observei: estávamos ambos diante de uma estante com dezenas de livros de arte, 70% dos artistas reproduzidos nesses livros vieram depois de Duchamp, e 80% deles eram pintores. Bastava olhar para a estante à nossa frente para desmentir o argumento. Portanto, a questão da morte ou não da pintura me parece absolutamente falsa. A pintura só morre em um mau artista, em um mau pintor; em um bom pintor ela está sempre viva e atual. Neste sentido, qualquer bom artista é contemporâneo. A saturação de todas as linguagens, inclusive a linguagem da pintura, exige que cada pintor encontre uma nova possibilidade significativa para sua prática artística. Essa é a questão. Qual é a diferença, afinal, entre um mau quadro e uma má instalação? Não há um melhor entre os dois. A superação da linguagem em cada uma dessas práticas é igualmente necessária e fundamental. Quando você fala da perda de linguagem, como o colega citou o exemplo do cinema, que está vivendo essa enxurrada de uma técnica diferente da sua linguagem original, se é que isso existe, você acredita que a pintura em algum período já tenha passado por um momento semelhante, em que se deparou com um desenvolvimento de alguma outra técnica, e nesse ponto se voltou para um caminho... para si mesmo, de repente, e aí deu nessa explosão de possibilidades que você está narrando. Aluno: Vamos partir da hipótese de que a arte, em algum momento da história, tenha sofrido um impacto que a desnaturalizou, como afirmam com prazer – ou desprazer? – alguns fundamentalistas estéticos. Seguindo essa hipótese, todo e qualquer artista, ao 330 331 C A DER N OS EAV WALT ERCI O CAL DAS “Talvez seja necessário estabelecer agora a diferença entre o que é sistematização do conhecimento, um esforço meritório da cultura, e a imaginação das hipóteses desconhecidas, que impulsiona e justifica as experiências artísticas.” Como você vê a formação, a necessidade de formação de um artista hoje? Ainda existe isso? Porque talvez a ideia da necessidade de uma escola de Belas-Artes tenha se diluído bastante, ou não? Aluno: Boa pergunta. Havia uma única escola, a de Belas-Artes, que era inadequada aos meus anseios, com uma postura estética tão antiga que desestimulava quem não quisesse copiar a natureza. Um anseio de atualidade, uma vontade de conhecer as obras mais modernas, me levaram a preferir as aulas de Ivan Serpa no Museu de Arte Moderna. O conhecimento deste artista sobre a história da arte era muito maior do que poderíamos esperar em uma escola de Belas-Artes, e, além disso, eles eram artistas praticantes. Observe que, na época, não tínhamos sequer um modelo do que era ser um artista, apenas uma vaga noção de um estereótipo. Hoje, todos nós podemos ter uma noção mais precisa do que é ser um artista. O modelo é relativamente simples, a imagem existe até mesmo no senso comum. Lygia Clark parecia ter um perfil de dona de casa. Ivan Serpa era um homem discreto que morava em um subúrbio e pintava num ateliê dez vezes menor do que esta sala em que estamos, e cada um deles tentava encontrar uma maneira de fazer a arte que queriam. Essa invenção de modelos era o que caracterizava a produção e a vontade de ser artista. Não por acaso, faço parte de uma geração 332 333 C A DER N OS EAV WALT ERCI O CAL DAS sem slogan, nem sequer precisávamos ter um slogan propagandista para viabilizar uma profissão. Cildo, Tunga, José Rezende, Barrio e muitos outros, tivemos que inventar um artista para cada um de nós. Hoje, isso parece ter mudado, só o Brasil deve lançar uma média de trezentos artistas por ano formados em instituições e com diplomas. Fui, por algum tempo, conselheiro do Rijksmuseum na Holanda, que concedia a melhor bolsa para artistas do mundo, que, nessa época, propiciava um estúdio, casa para moradia, dinheiro para produção das obras, exposição para o trabalho realizado e ainda dois mil dólares por mês para cada bolsista. Era como ganhar na loteria, uma coisa inacreditável. E o que acontecia? Artistas da África, por exemplo, que não tinham sequer televisão ou dinheiro para comprar tinta anteriormente, eram catapultados a uma situação ideal e muitos não sobreviviam culturalmente ao impacto da mudança. Essa situação gerava um tal descompasso nos artistas que, ao invés de realizar obras de arte, começavam a se preocupar com a complexidade da nova condição e a questão principal passava a ser a manutenção do novo estatuto. E o que acontecia a partir daquele momento? Os artistas, praticamente todos, passavam a adotar as mesmas soluções plásticas que, julgavam, os manteria na situação confortável em que se encontravam, e chamavam a atenção as soluções que achavam para resolver esse dilema: todos passavam a adotar meios audiovisuais e tecnologia de ponta, agora disponíveis. E, ao invés de experimentarem novos desafios com as possibilidades a seu dispor, aprenderam a justificar seus trabalhos com um discurso elaborado, buscando a competência nas justificativas. Não sabiam exatamente o que faziam, mas explicavam de uma maneira perfeita. O que aprendemos dessa situação é que algumas escolas ensinam como se comportar como artista, parecer artista, muito mais do que a abrir caminhos através da linguagem artística. E isto é mais comum do que se imagina. Eu queria que você falasse sobre a relação entre a palavra e a representação no seu trabalho. Aluno: Trabalhamos com a linguagem plástica, e essa é a razão da nossa atividade. Não é só o que fazemos que importa, mas a maneira como o fazemos. Às vezes nem mesmo o tema importa: qualquer filme do Hitchcock, que às vezes se baseia num pequeno livro de ficção sem importância, pode resultar num filme magnífico. Para mim, as palavras são um elemento a mais do trabalho, assim como todos os materiais utilizados na realização da obra, ou melhor: eu não hierarquizo matérias, eu as relaciono. Quando uma determinada matéria aparece na obra, isso nunca é casual – ela é tratada em suas características específicas, e isto quer dizer: a palavra surge na obra como palavra mesmo, e não como metáfora de um assunto. Quando 334 335 C A DER N OS EAV WALT ERCI O CAL DAS o aço aparece no trabalho, ele esta lá como aço mesmo, e não como alguma coisa que quer ser representada pelo metal. De certa forma, todos os materiais são protagonistas da mesma relação entre eles, o que me interessa, na realidade, não são os materiais, mas a relação e a possibilidade poética que possa existir entre as várias características dos materiais. As palavras teriam tanta importância, para mim, quanto uma cor, uma cor teria tanta importância quanto o bronze, o bronze tanta importância quanto o espaço, e o lugar que o objeto ocupa tem tanta importância quanto a palavra, a cor ou a forma. Meus esforços vão na direção de um objeto recíproco, no qual todas as partes sejam tão significativas quanto o todo que resulta dessas partes. Eu diria, mesmo, que desejo construir objetos que se assemelhem ao local que ocupam. estavam dizendo alguma coisa diferente e, para isto, buscavam constantemente uma linguagem especifica. Então, passei a me interessar pela natureza de seus esforços. Isto me impregnou de tal maneira que passei a imaginar como seria a minha própria busca de linguagem, a pensar no meu processo de busca como matéria do interesse. Por quê? Porque me diverte saber como processar uma ideia, ou um grupo de ideias, e ter a vontade de transformar coisas que não existem em coisas que existem. Hoje, posso concluir que o meu processo é a tentativa de entender o funcionamento de como as coisas aparecem. E a arte é perfeita para isso. Tudo se resume em acreditar que é possível transformar algo que não há em algo que pode vir a ser, e que, efetivamente, aparecerá. Esta hipótese é tão presente no meu trabalho que tenho a pretensão de achar que mesmo um objeto já feito pode continuar a aparecer constantemente. Este objeto que preserva, mesmo depois de concluído, sua capacidade inicial de aparecer parece ser o centro de minha poética. E, quando falo assim, suspeito que a afirmação esteja deliberadamente incompleta, mas isso me estimula ainda mais. Certa vez Sérgio Camargo, tendo na mão uma de suas esculturas, me disse: “Se eu não tivesse feito esse objeto, eu não teria agora o prazer de olhá-lo”. Esta é a resposta mais clara desse processo. E por quê? Porque a frase contempla a pessoa que desejou, a pessoa que realizou e a pessoa que teve o prazer de experimentar o objeto Gostaria que você falasse sobre o seu processo de criação: você tem uma ideia, ou você escreve, e depois pensa como vai transformar isso em uma instalação? Enfim, eu gostaria de saber como funciona o processo do pensamento até chegar ao trabalho final. Aluno: O processo? Comecei, como todos nós, visitando galerias de arte e museus. Me interessei, primeiramente, pela arte e não pensava em ser artista. Suspeitava que os artistas, através dos seus trabalhos, 336 337 C A DER N OS EAV WALT ERCI O CAL DAS uma vez mais, e de uma forma nova, como autor/espectador do feito. Essas três partes, projeto, realização e objeto final, estariam perfeitamente harmônicas na observação de Camargo. Meu processo pretende deflagrar no objeto realizado o começo de outro, o próximo, que trará ainda outro, e, assim, consecutivamente. É esse o meu processo. E a intuição é apenas a mais desconhecida das soluções imaginárias. artistas devem quase tudo à sorte, simplesmente. Como sabemos, a tentativa de utilizar a sorte é tão impossível quanto improvável. Só o esforço, eu acho, pode dar a esse risco espiritual, antes mencionado, uma significação. Eu vejo o artista personagem, este indivíduo que tenta, através de uma profissão, se estabelecer no mercado, de forma divertida e banal, quase patética. No final, há artistas que são produtores e artistas que são simplesmente re-produtores. Vejo estas duas figuras: um é um personagem que joga o jogo social e simbólico da profissão, e o outro o artista que tenta algo mais, algo que só existe quando se suspeita que exista. Lembrei-me de um conto curioso, que se não é verdadeiro é muito apropriado aqui: uma pessoa entra na casa onde habita um cientista, um homem da razão, e, ao entrar, percebe que em cima da porta há uma ferradura. O visitante perplexo questiona o cientista: “Mas o senhor acredita mesmo nisso? Acredita que uma ferradura pode lhe trazer sorte e mudar seu destino?” E o cientista responde: “Disseram-me que este objeto funciona até mesmo para quem não acredita.” (Risos) Você começou falando sobre o mecanismo em que a arte circula, desde a exposição, a curadoria, a divulgação de um trabalho, até a formação do artista. Gostaria que você dissesse como você entende esse indivíduo, esse personagem “artista” dentro da sociedade contemporânea. Aluno: Você usou bem a palavra, personagem. Como já disse, quando comecei a trabalhar com os objetos não sentia essa vontade meio difusa de querer ser artista, não era simples assim, mas era certamente uma decisão de risco. Talvez tenhamos perdido esta noção de risco relacionada à prática artística, substituindo-a por uma vaga noção de “profissionalismo”, a hipótese de que essa é uma atividade espiritual se confunde, agora, com o exercício de uma profissão. Várias dessas tentativas profissionais passam por inúmeros fracassos e poucos sucessos. Richard Serra chegou a dizer que na realidade os Sobre a questão da representação. Em um dado momento, você falou que não faz distinção entre palavra e objeto. E eu queria saber mais sobre esses objetos, porque a primeira coisa que eu vi sua foi um livro, o Manual da ciência popular2, em uma livraria, e lembro que aquilo me Aluno: 338 339 C A DER N OS EAV WALT ERCI O CAL DAS impressionou muito, os objetos que tinham sido produzidos, e eu não consegui esclarecer essa dúvida – me parece que a própria produção daquele livro é o trabalho, ou aconteceu uma exposição? A obra é o livro. Justamente, me pareceu ser o livro o trabalho, pois ele lidava com a questão das fotografias de objetos e ficava a dúvida se aqueles objetos foram realmente produzidos ou foram manipulados. Então, o trabalho acabava lidando com a questão da percepção, daquilo ser real ou não. Gostaria de saber mais, se a questão da representação, para você, passa por esse lugar da percepção fenomenológica. Aluno: Manual foi um livro feito um ano e meio depois de meu primeiro livro, Aparelhos3. Naquela ocasião, não era hábito artistas terem livros sobre suas obras, muitos colegas me aconselharam a não fazê-lo, pois, sendo eu um jovem artista, este livro poderia inviabilizar prematuramente a minha obra. Pensei muito a respeito, e embora tenha tido meu primeiro livro publicado aos 35 anos, hoje, esta idade não parece mais ser prematura para nada. De qualquer maneira, o desafio estava colocado e me fez pensar: “Por que será que os livros destroem a obra dos artistas? Que questão é essa?” E concluí que, na realidade, não eram os livros que destruíam a obra dos artistas, mas a atitude que os artistas tinham para com os livros que fechava possibilidades. Então, a questão passou a ser: “Qual livro quero fazer?” Não um livro em que as pessoas dissessem : “Vejam o que esse artista fez”, mas um livro que, depois de folheado, trouxesse a dúvida: “E agora, o que será que este artista vai fazer?” Então, novamente estimulado, passei a imaginar o livro que me convinha como proposta e plataforma de um futuro, um livro que fosse mais do que um simples registro do que eu já havia feito antes, e isso me fez ter uma visão crítica do livro. Não era mais a representação dos trabalhos que estava em jogo, mas a realização de um objeto impresso, questionador e capaz de reproduzir textos, objetos e suas fotografias de uma nova maneira. A questão seguinte seria naturalmente: “Se estou interessado no processo total da concepção de uma obra, então, devo me voltar, também, para a maneira como os livros podem alterar este processo”. Foi então que realizei o Manual da ciência popular, um livro que me fez pensar a respeito dos trabalhos reproduzidos e suas respectivas fotografias, legendas, texto, etc. Nesta nova situação, algumas fronteiras desapareceram e o trabalho era agora o próprio livro e suas representações. Não é por acaso que o Manual da ciência popular tem na capa a sua própria imagem. Anos mais tarde, diante 340 341 C A DER N OS EAV WALT ERCI O CAL DAS do quadro Las meninas4, de Velázquez, pude perceber que aquela obra tinha características jamais suspeitadas e ausentes das muitas representações gráficas dessa pintura. O livro Velázquez5 se volta, então, para esse espaço, para essa lacuna que existe entre o objeto real e a imagem impressa, e tenta , mais uma vez, enfatizar a transformação que se dá na passagem de um estado a outro das imagens. que valerão tanto que, paradoxalmente, não haverá mais quem as compre, porque não haverá quem as venda. Nesse sentido, A vitória de Samotrácia6 voltou à sua situação inicial: hoje, não há mais quem a compre ou quem a venda. A obra percorreu todo o período, desde que era grátis até a atualidade, quando não tem preço. O mercado seria, portanto, apenas uma instância entre esses dois momentos. (Não levem a sério esta hipótese, ela é apenas divertida.) Você fala desde o início sobre a representação da sua obra, e algo que me chamou a atenção foi que a forma como você coloca a obra faz parte da sua linguagem. E quando a obra sai do seu controle? Quando a obra é vendida ou na posteridade, daqui a duzentos anos, como você lida com isso? Com a sua obra depois que ela sai de suas mãos? Aluno: São três perguntas em uma só. Você tem formação de engenheiro? Aluno: Não. Aluno: O que nos traz agora a uma questão legal. Quando se vende uma obra, dá-se uma concessão patrimonial, mas não autoral. A legislação reconhece que, ao vender uma obra, abdicamos do patrimônio, mas não da autoria. O que faz com que a obra tenha exatamente o mesmo autor, seja em minha casa ou na casa de um colecionador. Outra questão, mais ingênua, sugere que o mercado muda o sentido da obra quando a adquire. Curiosamente todas as obras de arte, ou pelo menos algumas obras-primas, passam do momento inicial em que não valem nada para um outro momento consagrador em De arquiteto? Não. (Risos) Aluno: Reformulando, não são mais três em uma só. Eu imaginei que você tivesse formação em engenharia, porque eu fui à sua exposição e, sei lá, veio isso na minha cabeça, aí eu resolvi perguntar. Eu estou interessando em saber por que você acha isso. (Risos) 342 343 C A DER N OS EAV WALT ERCI O CAL DAS “Particularmente, optei por pensar a política da arte e seus significados ao invés de praticar a política dos partidos. Em arte podemos confrontar a linguagem e usar muitos materiais, inventar mais linguagem é muito mais estimulante do que nos submeter a ela.” Aluno: Você está interessado? Estou. (Risos) Eu perguntei se você tem formação em engenharia porque eu visitei o seu site e tive essa impressão... Eu gostaria de saber qual é a relação entre a representação e a significação por meio do título. Por exemplo, Orquestra7 é uma instalação com diapasões na parede. Há uma associação entre os diapasões e o título? Aluno: Creio que existe uma lacuna esclarecedora entre um instrumento e a sonoridade que produz; uma incongruência entre o som emitido por um saxofone e o próprio saxofone. Em 1982 a indústria fonográfica trabalhava com uma questão interessante. Os técnicos estavam começando a achar que existia um certo limite na capacidade de reproduzir sons através de microfones, esses captadores tinham sido projetados para reproduzir fielmente o som dos instrumentos, mas eram insatisfatórios. Depois de muito discutir, chegaram à conclusão de que a engenharia dos microfones não deveria captar o som de um saxofone, mas apenas, e tão somente, as frequências emitidas pelo instrumento. Essa pequena diferença melhorou em 30% a qualidade das gravações. Compreender que entre o objeto 344 345 C A DER N OS EAV WALT ERCI O CAL DAS saxofone e o objeto microfone existiam frequências foi fundamental. Talvez a escultura Orquestra, que você mencionou, tenha alguma coisa a ver com esta historia. O que eu tenho notado é que os artistas contemporâneos trazem um discurso de que a arte é o que torna o objeto arte. Eu queria saber se você acha que isso é um aspecto mais contemporâneo, ou não, que isso sempre aconteceu? Aluno: O público, hoje, me parece ser mais “conceitual” do que os artistas. E o que eu quero dizer com isso? Que o público aceita as interpretações das obras, antes mesmo de se colocar disponível para as obras, e isso aponta para três razões: há uma negligência dos artistas que aceitam esta facilidade; a cumplicidade de um público que parece aceitar essa situação, e uma ansiosidade curatorial que pretende intermediar a relação entre os artistas e seu público. Um público atônito, eu diria, vitimado por uma oferta imensa e incessante de significados. depois conhecer o original, por representação. Gostaria que você comentasse a evocação desses nomes em seu trabalho, enquanto artista brasileiro. Na realidade, sempre partimos de uma questão regional para uma questão universal. E, é natural que assim seja. É interessante como tudo isso mudou. Num livro chamado Vozes do silêncio8 André Malraux começa lembrando fatos curiosos, que Vermeer não conhecia Rembrandt embora morassem a 150 km um do outro. Isso é praticamente impossível hoje em dia, uma situação como essa. Por quê? Porque acredito que o que aconteceu teria que acabar acontecendo, e o que não aconteceu nunca correu o risco de acontecer. Então, quando vejo a história da arte como um fluxo constante de rupturas, vejo um rio que não tem nascente e não tem mar, e todos os artistas contribuindo para o movimento das águas desse rio. Incluo a história da arte em minhas obras como se fosse uma matéria, com efetivas possibilidades imaginárias, uma prerrogativa de linguagem. Começou a fazer muito sentido na minha vida uma relação entre a gravidade e o artista, como uma metáfora das limitações que a gente tem, algo que nos puxa pra baixo... Gostaria de saber se você tem alguma opinião sobre isso. Aluno: Percebo nos seus trabalhos uma referência à pintura e à escultura, como exemplo, em trabalhos com Giotto e Velázquez. Eu cheguei até Giotto vendo um Giotto seu, para Aluno: 346 347 C A DER N OS EAV WALT ERCI O CAL DAS Mas nós, os artistas, temos uma vantagem: podemos de certa forma utilizar a gravidade a nosso favor, não é mesmo? Escultores tratam exatamente dessa questão, do fato de que um objeto é irremediavelmente um objeto condenado a sofrer atração para o centro da Terra. Me interessam particularmente os objetos tridimensionais, porque, com eles, posso trabalhar com matérias que me agradam, como a transparência, por exemplo – e esculturas podem ser objetos transparentes. Objetos tridimensionais podem repousar em sua precariedade, ser estáveis, dinâmicos ou mesmo paralíticos. Podemos nos mover ao redor deles e ver muitos objetos em um só. Creio que se o mundo fosse opaco eu não seria artista. Felizmente, posso olhar um objeto e ver através dele. Este é meu oxigênio ótico, eu preciso dessa transparência para ver as coisas de várias maneiras. E é nos espelhos que esta transparência se resolve. Pinturas como as de Morandi são opacas e transparentes ao mesmo tempo. E não foi por acaso que eu me interessei pelas obras de Velázquez, que talvez tenha sido o primeiro artista a incluir a visão do espectador na pintura, a ponto de a obra e a visão do espectador se confundirem. Ao olhar, somos parte integrante do que é olhado e as obras nos respondem com uma versão inesperada e diferente da que depositamos sobre elas. O enigma destas respostas é a história do nosso olhar. Me interessou bastante aquele objeto Anda uma coisa no ar , na sua exposição. Eu gostaria de saber um pouco mais sobre ele. Aluno: 9 Pensei em como seria possível tornar aparente a metamorfose no exato momento de sua transição, exemplificado pelo momento em que, ao ver uma flor, sabemos, e apenas sabemos, que ela está crescendo diante de nossos olhos, mas não vemos o seu movimento. Olhar para aquela flor incorpora a ideia de que ela cresce constantemente, e a beleza vegeta na flor, relacionada a algo que não vemos... mas sabemos. Anda uma coisa no ar é este momento entre dois materiais semelhantes e que se distanciam apenas no tempo e no espaço: o carvão e o cristal. Como se fosse finalmente possível isolar o estado intermediário que se insinua entre a lagarta e a borboleta. 348 349 C A DER N OS EAV WALT ERCI O CAL DAS Notas Saiba mais 1. CALDAS, Waltercio. Salas e abismos. Exposição individual realizada no Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, 26 de agosto a 31 de outubro de 2010. http://www.walterciocaldas.com.br 2. CALDAS, Waltercio. Manual de ciência popular, 1981. Livro, edição de 2.000 exemplares. 3. CALDAS, Waltercio. Aparelhos, 1978. Livro, edição de 1.500 exemplares. 4. VELÁSQUEZ, Diego. Las meninas, 1856. Óleo sobre tela. 3,18 x 2,76 m. Museu do Prado, Espanha. 5. CALDAS, Waltercio. O livro Velázquez, 1996. São Paulo: Editora Anônima. 6. Vitória de Samotrácia é uma escultura, de autoria desconhecida, que representa a deusa grega Nice. Pedaços da obra foram descobertos em 1863 pelo cônsul e arqueologista francês Charles Champoiseau, nas ruínas do Santuário dos Grandes Deuses de Samotrácia. Apesar dos danos significativos e de estar incompleta, é considerada uma das grandes obras sobreviventes do período helenístico. 7. CALDAS, Waltercio. Orquestra, 2005. Instalação. 8. MALRAUX, André. As vozes do silêncio. Lisboa: Livros do Brasil, 1988. 248 p. 9. CALDAS, Waltercio. Anda uma coisa no ar, 2002. CALDAS, Waltercio. Salas e abismos. Textos de Paulo Sergio Duarte, Paulo Venancio Filho e Sonia Salzstein. São Paulo: Cosac Naify. 2009. 240 p. Edição bilíngue português-inglês. CALDAS, Waltercio. Aparelhos. Rio de Janeiro: GBM, 1979. 162 p. Edição bilíngue português-inglês. WALTERCIO Caldas 1985-2000. Textos de Ronaldo Brito, Paulo Sergio Duarte, Paulo Venancio Filho, Guy Brett, Nina Rodrigues, José Thomas Brum, Adolfo Montijo Navas, Sonia Salzstein e Lorenzo Mammi. Rio de Janeiro: CCBB, 2001. 265 p. 350 351 C A DER N OS EAV agradecimentos APOIADORES CADERNOS EAV Adriana Carrasco Alice Strauch Aline Carreiro Ana Costa Ana Cunha Ana Franco Ana Hortides Ana Lucia Leal Ana Luiza Moraes Ana Santeiro Analu Cunha André Dametto Andrea Matriciano Anna Helena Cazzani Antonio Caetano S. Neto Antonio F. de Queiroz Junior Augusto Lima Barbara Emanuel Barbara Targino Benjamin Rothstein Bet Katona Beth Young Bia Amaral Brigitte Bruns Bruna Fazolo Bruno Belo Cadu Carli Portella Carlos Alberto Mattos Carlos Zilio Carmen Ferreira Carmen Silvia Nora Dias Carole Chueke Carolina Cattan Carolina Cortes Carolina Kaastrup Cata Schedel Cathrine Clarke Clarissa Baumann Clarisse Rivera Claudia Hirszman Claudia Moog Claudia Saldanha Claudia Tebyriçá Claudio Diegues Claudio Gabriel Cláudio Luiz Garcia Cristiane Friggo e Barros Cristiane Geraldelli Cristina Amiran Cristina Cantergiani Cristina de Pádula Cristina Pimental Cristina Salgado Cristine Flores Daniel Penteado Daniel Yuhasz Débora Guimarães Diana Josefina Rosa Guenzburger Dulce Lessi Eduarda de Aquino Edval Ponciano Carvalho Elisa Brasil Elizabeth Jobim Ernesto Neto Evangelina Seiler Evany Cardoso Fátima Pereira Fernanda Pequeno Fernando Abrao Flavio Colker Franz Manata Frederico Bonfatti Gabriela Caspary George Kornis Gilberto Malva Filho Giodana Holanda Gisele Leme Gloria Ferreira Gloria Marcia Percinoto Gloria Seddon Gustavo Peres Gustavo Torres Herbert Hasselmann Illiada Carvalho Isabella Fernandes Jacqueline Medeiros Jacqueline Paschoal Jayme Fuks Jj Junior João Modé Jonas Aragutti Jose Antonio Ferreira José Eduardo Nogueira Diniz Jozane Braz Resende Julia Rebuzzi Karla Barros Katia Borneo Khalil Charif Laura Barreto Leila Ripoli Leo Ayres Leonita Colussi Lia do Rio Lidice Matos Lila Montezuma Lilian Zaremba Livia Flores Loise Rodrigues Lucas Milanez Leuzinger Luciana Algarte Luciana Paiva Luciano Diniz Lucimara Letelier Luiz Vergara Luiza Aché Lyana Peck Lydia Carmo Malu Fatorelli Manny Bernabé Manoela Cardoso Marcel Alcantara Marcelo Cattan Marcelo Diego Marcelo Rocha Marcia Britto Marcia Limoeiro Marcia Regina Fregolon Marcio Zardo Marcos Bonisson Maria Ângela P. 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