CADERNOS EAV
ENCONTROS
COM ARTISTAS
BEATRIZ
MILHAZES
DANIEL
SENISE
EDUARDO
COIMBRA
ELIZABETH
JOBIM
VIK
MUNIZ
WALTERCIO
CALDAS
Governo do Rio de Janeiro
Governador
Sérgio Cabral
Vice-Governador
Comissão de Projetos
Daniel Senise
George Kornis
Guilherme Bueno
Luiz Fernando Pezão
Coordenadora do Programa
Aprofundamento 2012
Secretaria de Estado
de Cultura
Anna Bella Geiger
Secretária de Estado
COORDENADORA DO PROJETO
DE PESQUISA 2012
Adriana Rattes
Gloria Ferreira
Subsecretária de Relações
Institucionais
Coordenadora do Núcleo
Olga Campista
Subsecretária de Ação Cultural
Beatriz Caiado
Subsecretário de Planejamento
e Gestão
Mario Cunha
Superintendente de Artes
Eva Doris Rosental
escola de artes visuais
parque lage
Diretora
Claudia Saldanha
de Arte e Tecnologia
Tina Velho
Assistentes de Administração
Carmen da Costa Souza
Sergio Bastos
Assistentes de Ensino
Cristina de Pádula
Lucas Leuzinger
Estagiária
Vanessa Rocha
Assistente de Projetos
Renan Lima
Estagiários
Vitor Zenezi
Assessor
Branca Zuma
Vitor Coimbra
Assessora editorial
Assessoria de Imprensa
Coordenador Administrativo
Biblioteca
Coordenadora de Ensino
Maurício Azevedo
Olga Alencar
Coordenadora de Projetos
Supervisão técnica das Oficinas
de Imagem Gráfica
Clarisse Rivera
Roberto Tavares
Comissão de Ensino
Manutenção
Joanna Fatorelli
Herbert Hasselmann
Tania Queiroz
Glória Ferreira
Luiz Ernesto Moraes
Maria Tornaghi
Bárbara Chataignier
Gerson de Araújo Freitas
Homero Gomes de Moraes
Iraci Laurindo de Oliveira
Associação de Amigos da
Escola de Artes Visuais – AMEAV
Presidente
Paulo Albert Weyland Vieira
1º Vice-Presidente
Márcio Botner
2º Vice-Presidente
Guilherme Gonçalves
Conselheiros
Ernesto Neto
Fábio Szwarcwald
Captação e Gestão de Recursos
Sandra Caleffi
Auxiliar Contábil
Luis Carlos Silva
ASSISTENTES ADMINISTRATIVOS
Guilherme Segal
Hércules Souza
SecretARIA
Ana Carolina Santos
Natália Soares
Thais de Souza
EAV
Rua Jardim Botânico, 414
Jardim Botânico
Rio de Janeiro | RJ
22461-000
Tel | Fax: 21 3257 1800
www.eavparquelage.rj.gov.br
Créditos dos Cadernos
Organização
Joanna Fatorelli e Tania Queiroz
Assistente
Vanessa Rocha
Projeto Gráfico, Tratamento de
Imagem e Produção Gráfica
Dupla Design
IMpressão
ENCONTROS
COM ARTISTAS
Ultraset
agradecimentos especiais
Carlos Minc, Cristina Bahiense, Guilherme
Gonçalves, Henrique de Aragão, Iole de
Freitas, José Luis Alqueres, Letícia dell’Orto,
Leticia Verona, Marcos Arzua Barbosa,
Tanit Galdeano
DANIEL
SENISE
Fotografias
Ambroise Tézenas, Ana Stewart, André Morin,
Cesar Barreto, Eduardo Mattos, Fausto
Fleury, Felipe Felizardo, Gabriela Toledo,
João Mussolin, Sonia Parma, Lucia Helena
Zaremba, Marco Terranova, Pat Kilgore,
Pedro Oswaldo, Rubber Seabra, Sérgio Araújo,
Vicente de Mello, Wilton Montenegro
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE
LIVROS, RJ
Revisão de texto
Itamar Rigueira, Lilian Zaremba, Janaisa Viscardi,
Julia Scamparini, Paulo Serran, Sophie Bernard,
Vanessa Rocha, Rachel Valença
Transcrição
Louise D.D.
Gravação
Bruno Marcus - TOMBA Records
PROJETO DE CAPTAÇÃO
Coordenação: Lucas Leuzinger
Vídeo: Simone Michelin
Com participação de: Aline Besouro
e Lucas Ferraço
Gravura: Tina Velho
Multidão | Catarse: Pedro Struchiner
e Rodrigo Maia
Divulgação: Monocromo
BEATRIZ
MILHAZES
C129
Cadernos EAV 2010 : encontros com artistas /
organização Escola de Artes Visuais do Parque Lage
; Beatriz Milhazes ... [et al.]. - [organização Joanna
Fatorelli e Tania Queiroz]. - Rio de Janeiro : EAV, 2012.
il.
ISBN 978-85-64192-07-2
1. Arte brasileira - Século XXI. 2. Arte
contemporânea - Brasil. 3. Instalações (Arte). 4.
Videoarte. 5. Artistas - Brasil. I. Milhazes, Beatriz, 1960-.
II. Fatorelli, Joanna. III. Queiroz, Tania. IV. Escola de
Artes Visuais do Parque Lage.
12-6799.
CDD: 709.81
CDU: 7.038.6(81)
18.09.12 24.09.12
038949
EDUARDO
COIMBRA
ELIZABETH
JOBIM
VIK
MUNIZ
WALTERCIO
CALDAS
AP RESENTAÇÃO
A Escola de Artes Visuais do Parque Lage, vinculada à Secretaria de
Estado de Cultura, lança os dois primeiros volumes da série Cadernos EAV: Encontros com Artistas, visando registrar e preservar o
resultado dos encontros que vem promovendo, desde 2009, entre
artistas consagrados e os alunos do seu Programa Fundamentação.
Gratuito e semestral, o Programa é etapa inicial de formação do
jovem artista, curador, crítico ou mesmo daqueles que pretendem trabalhar no campo das artes, combinando aulas de prática
artística a cursos de história da arte. Uma vez por mês, nos finais
de semana, a Escola promove os Encontros, exclusivos para os
alunos do Programa.
O resultado destes encontros vem gerando um precioso acervo,
único em seu conteúdo e inovador em sua forma, que leva diretamente a palavra do artista ao público de jovens estudantes, criando
um diálogo que enriquece todos os que dele participam.
Ao reunir essas conversas nos Cadernos EAV, optou-se por oferecer
uma leitura ágil e dinâmica, capaz de levar o leitor a partilhar da
qualidade viva e espontânea que marcou aqueles momentos de
troca e de experiência. Organizados em volumes anuais, os Cadernos EAV tiveram o apoio de diversos colaboradores através do crowd
funding viabilizado pela plataforma virtual Multidão | Catarse.
Essa nova forma de captação e a ideia de disponibilizar o conteúdo
desses encontros se alinham ao perfil da Escola de Artes Visuais do
Parque Lage – democrática, livre e transdisciplinar, estabelecendo
um importante elo com a sociedade civil e possibilitando um espaço
rico em trocas e diálogos.
Agradecemos a valiosa colaboração de todos os artistas e professores que participaram dos Encontros, debatendo sobre a sua obra e
seus processos de criação.
CLAUDIA SALDANHA - Diretora da EAV Parque Lage
BEAT RI Z M ILHA ZE S
DAN IEL SENISE
EDUARDO COIMBR A
EL IZ ABETH J OBIM
V IK M UNIZ
WALT ERCIO CA LDA S
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200
316
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BEATRIZ MILHA Z E S
Texto extraído de conversa entre o estilista
Christian Lacroix e a artista Beatriz Milhazes,
realizada em Paris em setembro de 2003.
Conteúdo gentilmente cedido pela artista.
Christian Lacroix: Quando olho teu trabalho, me pergunto
por onde você começa. Imagino que você faça um primeiro
desenho preparatório, de formato menor, antes de mergulhar
nele. Penso também na questão do acaso: teu processo
de preparação é fundamentado, planificado, organizado,
ou você deixa lugar para a inspiração de último minuto?
Você escolhe antes as dimensões, ou começa para depois
deixar o motivo aumentar?
Meu trabalho passa por várias etapas. Pinto diretamente na tela,
sem preparação. Posso começar de maneiras diferentes. Em geral,
escolho uma dimensão e depois espalho uma cor muito diluída
sobre a tela, mas posso também começar por um motivo muito
pequeno ou pequenos pontos, que desenvolvo.
Maresias, 2002/2003
Acrílica sobre tela
300 x 267 cm
Foto: Fausto Fleury
Christian Lacroix:
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C A DER N OS EAV
B EAT RI Z MI L HAZES
Como células que se separam e crescem.
Exatamente. Tenho em mente uma imagem borrada que me guia.
Comecei uma série na qual eu queria incluir um quadro branco,
algo que nunca consegui fazer. No entanto, continuei com a ideia
até chegar a uma atmosfera branca. Sirvo-me também de imagens
mais comuns, uma paisagem ou uma natureza morta, ou até mesmo
mais óbvias, como uma árvore.
Christian Lacroix: Há frequentemente uma linha que evoca
o mar ou o horizonte no meio do quadro e que, quando
a descobrimos, parece uma explosão – mesmo que seja
uma explosão muito pensada. Tenho a impressão de que as
horizontais te ajudam bastante a fixar tudo. Já falamos do
primeiro motivo que cresce cada vez mais para, em seguida,
invadir o espaço. Mas você disse que escolhe as dimensões
antes, portanto, define esse espaço.
Normalmente, sim. Tenho uma ideia, como se fosse uma paisagem,
mas só decido onde colocar a linha do horizonte depois. Sirvo-me
de coisas bem simples e, mesmo que faça parte de um processo, o
acaso entra também em jogo, mas todos os elementos presentes
na tela têm uma lógica. Posso trabalhar durante uma semana, duas
semanas, e até mais, para tomar uma decisão. Às vezes, demoro um
mês para terminar um quadro, e já aconteceu de eu ficar um ano
sobre o mesmo trabalho.
Christian Lacroix:
Você trabalha vários quadros ao
mesmo tempo?
Sim, porque as minhas telas são compostas por uma infinidade de
elementos que me tomam um tempo louco de reflexão. A técnica
também absorve uma grande parte do meu tempo, mas não se trata
só de técnica. Começo vários quadros ao mesmo tempo porque
preciso manter um diálogo com cada um, escutá-los, olhar para
eles com recuo. Mas às vezes não funciona. Muitas vezes, jogo
tudo fora e recomeço.
Christian Lacroix: Essa é uma pergunta que eu queria te
fazer. Acontece muito de você ter que recomeçar, voltar
para os quadros? Ou acrescentar novas colagens? Há muitos
estratos, como nas escavações arqueológicas?
A técnica que utilizo em pintura se apoia no princípio da colagem.
Pinto motivos sobre uma folha de plástico e colo a imagem pronta na
tela. Em seguida tiro o plástico, como um decalque. Minha pintura é
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B EAT RI Z MI L HAZES
feita do ajuste desses pequenos pedaços que pintei separadamente.
Há, portanto, uma infinidade de camadas. Além do mais, uso as
mesmas folhas de plástico há uns dez anos. Essas folhas são impregnadas de memória, e seu desgaste pode provocar irregularidades.
esconder o primeiro. Mas nem sempre funciona, acontecem muitos
acidentes. Contudo, o plástico é transparente e posso ver exatamente onde vou colocá-lo. Isso me ajuda bastante.
Você nunca teve vontade de sair do
quadro e pintar diretamente na parede? Teu trabalho é tão
generoso que parece que a pintura poderia pular para a
parede e que as células poderiam invadir as janelas, as
luzes, ou brincar com a transparência. O wallpainting nunca
te atraiu?
Christian Lacroix:
Christian Lacroix:
A espessura te interessa?
Sim, me interessa, mas prefiro evitá-la. Gosto muito da pintura
em geral, mas não ao ponto de deixar aparecer pinceladas. Se
você passa o dedo sobre uma das minhas telas, vê que é completamente plana. Gosto dessa relação com a pintura homogênea.
Dá para ver o traço da mão, mas não a espessura da tinta. Toda
a tinta pegou a espessura do plástico. O tocar é macio. Comecei
também a brincar cada vez mais com os brilhos e os contrastes e
a trabalhar mais as superfícies opacas e foscas, o que me permite
obter texturas diferentes.
Christian Lacroix: Você pode tirar um elemento e colocá-lo
num outro lugar ou, uma vez colado, é obrigada a trabalhar
por cima dele?
Não posso tirar nada. Uma vez que o elemento é colado, se eu
não gostar, a única solução é colar outro elemento por cima para
Eu nunca pensei nisso. Pessoalmente, prefiro os espaços brancos,
lisos, quadrados. É claro que consigo me imaginar trabalhando
um dia com o tridimensional. Mas, para mim, uma forma recortada é estranha, não pertence realmente à composição. Creio que
perdemos profundidade com o recorte. Por outro lado, me parece
mais difícil e interessante resolver certas questões e utilizar essa
atmosfera com a tela como suporte. O uso de elementos indissociavelmente ligados às artes decorativas ou à arte popular introduziu
uma polêmica entre os artistas. Se eu fosse para o espaço arquitetural, seria obrigada a inverter os conceitos.
Christian Lacroix:
Você brinca muito com as transparências?
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C A DER N OS EAV
B EAT RI Z MI L HAZES
Sim, uso cores transparentes, sobretudo nas minhas estampas. Elas
me ajudam a dar mais qualidade, mistério e vida às cores.
Christian Lacroix: Você se considera pintora, gosta de
pintura, reivindica a pintura, e por isso fica dentro da
sua área, mas será que, se trabalhasse diretamente sobre
a parede, você teria a impressão de não estar mais
fazendo pintura?
É possível. Para mim, a pintura é feita sobre uma tela e um chassi,
limitados por um espaço quadrado ou retangular. Quando saímos
dessa estrutura, as questões da pintura abstrata ou da arte decorativa são então transpostas para o espaço arquitetural. Uma tela
redonda desviaria o olhar do espectador em direção a essa forma
para fazê-lo esquecer dos acontecimentos internos do quadro.
Mas, além da pintura, me interesso por cenários.
Esta relação com o decorativo, que
você assume muito bem, é uma questão muito importante
no teu trabalho. Estamos longe do decorativo, mas você
o explora até torná-lo abstrato, conceitual.Não é mínimo,
mas acho que por ser tão máximo, torna-se mínimo. Isso
também me faz pensar em como os universos são conectados,
Christian Lacroix:
assim como os planetas, entre si. Você mencionou a ideia
de população, e tive a impressão de que cada desenho
era habitado por uma vida própria, uma história própria,
conectada ao planeta vizinho. Há também a história que você
se conta. Mesmo que seja um pouco vaga, ela te guia. Não
está decidida na tua cabeça, mas você avança.Mas será que
a história tem tanta importância? Não é uma história literária.
Se quiséssemos fazer uma correspondência com teu trabalho,
você parece mais próxima à música que à literatura. Ou é
o contrário?
Tenho problemas com a literatura. Mesmo quando a literatura é
muito abstrata, ela define coisas antes; é próxima do real. Penso
que a pintura e a arte em geral são mais livres. É uma tendência
do ser humano querer explicar tudo. Todos procuram estabelecer
conexões quando não necessariamente existem. Tenho histórias
na minha cabeça, e creio que elas são os sentimentos, os sons, os
odores que me guiam. No que me diz respeito, isso passa pelos
meus quadros e os títulos que lhes dou, mas o título vem depois.
Christian Lacroix:
Como uma última palavra, o ponto final...
Exatamente. É outro motivo, outro trabalho.
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C A DER N OS EAV
B EAT RI Z MI L HAZES
“Faço esforços para evitar as
séries. Quando se trabalha
em diferentes telas ao mesmo
tempo, é mais fácil recorrer
à mesma paleta. Mas não é o
que procuro. Preciso passar
de uma atmosfera para
outra, de uma paleta para
outra, e sobretudo trocar
constantemente os dados
do problema.”
A tua pintura não é conectada
diretamente à tradição musical brasileira, a música é só
algo que te faz avançar, um pouco como um trampolim,
um impulso. Lembra-me a Pítia de Delfos, que tomava
uma substância que a fazia viajar para outras visões e
outros universos.
Christian Lacroix:
Para este quadro, intitulado Urubu1, comecei a pensar na música, nas
pautas, como algo organizado. Sou profundamente ligada a alguns
movimentos musicais brasileiros, como a Bossa Nova e a Tropicália.
Mas, nessa tela, foi algo que me veio espontaneamente à mente.
Comecei a trabalhar com listras um ou dois anos atrás, porque os
quadrados e as linhas retas me traziam um problema sério. Essas
formas têm um aspecto acabado, enquanto o círculo nunca para.
Christian Lacroix:
Você não consegue desviar, no canto.
Exatamente. É uma questão de ótica. Sinto vontade de elementos
visuais intensos. Não sinto vontade de dar um centro ao espectador. Comecei a introduzir listras porque oferecem um esquema,
podem criar um efeito ótico que eu só obtinha com círculos. É uma
coisa no limite do ridículo, mas isso surgiu depois de dez anos de
trabalho... As listras me permitem começar e parar. Quando você
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C A DER N OS EAV
B EAT RI Z MI L HAZES
desenha uma linha reta, tem um momento em que o gesto para,
mas a reta nunca para de fato. O quadrado produz um pouco esse
efeito, mas ele delimita uma superfície.
bastante disciplinada. Passo aproximadamente sete horas por dia
nesse lugar, porque preciso estar com minha pintura. Acontece
às vezes de eu passar um dia sem fazer nada, mas é no ateliê que
penso. Não sei resolver um problema de pintura andando na praia.
No entanto, neste aqui, Maresias2,
o olhar é atraído para este ponto. O centro é muito raro no
teu trabalho.
Christian Lacroix:
É verdade, tem um núcleo e um movimento no centro. Mas a intensidade é tão forte que tem uma hora em que você perde o centro.
Christian Lacroix:
É também verdade que nos afogamos
Christian Lacroix: Quando pinta, você se sente mais
calma fisicamente? Ou você tem momentos de lentidão e
sensualidade alternando com momentos mais energéticos,
quase eróticos, como na música brasileira? Você fica focada
ou tem medo, às vezes, de que esse processo tão longo seja
mais lento que teu pensamento? Não existem coisas que
poderiam escapar no meio do caminho?
nesse centro.
E dou um corte com este quadrado, que é mais definido.
Todos nós temos dias de dúvida e de
angústia. Você trabalha tão bem, melhor, ou menos bem
que o normal nessas condições? Tem dias em que você não
consegue trabalhar?
Christian Lacroix:
Meu humor tem relativamente pouca influência sobre o processo
do meu trabalho. No Rio, onde tenho meu ateliê de pintura, sou
Tenho sempre medo da velocidade dos meus pensamentos e das
imagens que me vêm à mente. Contudo, esses pensamentos e imagens são freados pela lentidão do meu processo e da técnica que
utilizo. Quando trabalho, paro em algum ponto e me pergunto: o
que acontece agora com estes quatro quadros pendurados na parede
branca? Várias ideias surgem. Concentro-me sobre o quadro que
me parece mais avançado, que apresenta um caminho mais claro.
Christian Lacroix: Isso significa que você trabalha em série?
Ou prefere, ao contrário, evitar o princípio das séries?
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C A DER N OS EAV
B EAT RI Z MI L HAZES
Faço esforços para evitar as séries. Quando se trabalha em diferentes telas ao mesmo tempo, é mais fácil recorrer à mesma paleta. Mas
não é o que procuro. Preciso passar de uma atmosfera para outra,
de uma paleta para outra, e sobretudo trocar constantemente os
dados do problema. Quando faço uma exposição individual, gosto
de mostrar obras que põem em evidência essas variantes.
Christian Lacroix: Você já ficou tentada pelo computador,
pela paleta gráfica? O processo que você está descrevendo
agora é muito parecido com o trabalho no computador.
Não uso o computador para meus quadros porque a tela é muito
pequena. Tenho uma necessidade compulsiva de contato físico
com as telas. Meu ateliê é pequeno, e é o mesmo desde que comecei
a pintar. Comprei a outra parte da casa, mas descobri depois de
alguns anos que prefiro trabalhar num espaço reduzido.
Christian Lacroix: Se não olharmos de muito perto este
material que é completamente físico, ele faz pensar no
computador. Acho interessante o fato de realizar com a mão
algo tão contemporâneo. E é aí que vamos talvez começar a
falar da tua relação com a tradição e o país, que não tem nada
a ver com um museu de arte e tradições populares.
Ao mesmo tempo, é evidente que não é possível pensar que
você é escandinava. Não digo que lembramos imediatamente
do Brasil, mas percebemos muito rapidamente a latinidade, o
Mediterrâneo, a Espanha, algo que compartilhamos e também
que avança e está na “modernidade”. No teu trabalho, há
muitos elementos que vêm das igrejas, dos trajes, do têxtil. De
onde vem tua relação com isso? É algo que remete à infância,
às afinidades com esse país que herdou tradições portuguesas,
mas que é mais jovem?
É também um país culturalmente bem misturado. Eu conscientemente utilizei esse aspecto desde o início. Essa relação com o
passado me interessa, mas é complicada, porque a pintura vem da
Europa, depois dos Estados Unidos, e em seguida passa pelo Brasil
com o modernismo brasileiro dos anos 30. Como fazer a ligação
entre essa história e minha cultura, as coisas que vejo, que vêm
da minha cidade, dos meus interesses? As artes decorativas, por
exemplo, me fascinam. No começo, usava tecidos, fazia colagens.
Meu trabalho era mais geométrico. Ganhei liberdade com as formas
no início nos anos 90. Foi nessa época que fiz a primeira exposição
que realmente contou. Tinha acabado de descobrir minha técnica,
podia fazer meus desenhos. Voltei a usar elementos industriais nas
minhas colagens recentemente.
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C A DER N OS EAV
B EAT RI Z MI L HAZES
Ao mesmo tempo, há uma independência
incrível em você. Eu não diria que você está indo contra a
corrente – não vamos começar a discussão da pintura que
está viva ou morta, mas sempre presente – no entanto, você
parece se encaixar no que vivemos aqui nessa época, esse
fenômeno ligado, não à movida espanhola, mas à necessidade
de sensualidade depois de anos de minimalismo, de nada, de
conceptualismo, de branco sobre branco e preto sobre preto.
Você deve ter tido dificuldades em relação a isso.
Christian Lacroix:
Claro, tive problemas para que aceitassem meu trabalho. Sinto-me uma artista geométrica, mas não posso colocar tudo em um
quadrado ou um círculo.
Imagino que as pessoas que estudavam
com você na escola eram muito conectadas com o que se
fazia em Nova York, enquanto você tinha seu próprio caminho
com os têxteis que cortava. Você devia ser a única.
Christian Lacroix:
Estava totalmente sozinha no Brasil. A arte contemporânea brasileira é cativante, e há alguns artistas muito bons reconhecidos
internacionalmente, mas não são encontrados na pintura. Eles
fazem objetos, arte conceitual. Depois de um tempo, uma porta
O Buda, 2000
Acrílica sobre tela
191 x 256,5 cm
Foto: Ambroise Tézenas
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C A DER N OS EAV
B EAT RI Z MI L HAZES
se abriu nos Estados Unidos. As pessoas ficaram atraídas por esse
estilo, percebido pela crítica americana como uma pintura abstrata
que trazia coisas novas.
importante. Tem também os colecionadores, mas é um grupo à
parte. Pagar 40.000 dólares por uma obra nos Estados Unidos e
na Europa parece normal, mas no Brasil não é comum.
Existe um complexo em relação ao uso de
referências populares?
Christian Lacroix:
Totalmente, sobretudo no meu meio. Essas referências estão ligadas
às camadas sociais mais pobres do meu país, não dizem respeito
aos intelectuais e às pessoas das artes. Elas têm uma conotação
pejorativa, mas sempre as usei. Porém, acho que essa relação está
mudando um pouco hoje em dia. As elites culturais começaram a
dar importância ao fato de ser brasileiro, de ter uma arte brasileira,
e essas referências populares são cada vez mais aceitas.
De maneira mais geral, as artes plásticas são muito elitistas. Não é
realmente o caso na Europa e nos Estados Unidos, onde as pessoas
vão ao museu, visitam instituições e galerias. É diferente no Brasil.
Temos museus e instituições, mas há pouco tempo, desde os anos
80. Foi minha geração que estimulou as pessoas a frequentar esses
lugares. O contato com o público nos era indispensável. Quando
eu dava aulas, meus alunos me diziam que não podiam entrar nas
galerias, porque eram muito fechadas. Agora, o público é mais
Não tenho a impressão de que você quer
afirmar tuas raízes, mas simplesmente que esses motivos
falam com você. Fazem parte de você, da tua tradição, da
tua família, da atmosfera na qual cresceu, sem tentar politizar
ou procurar uma alternativa. Mesmo que haja um pouco
de alterglobalização na tua pintura, um lado ligeiramente à
contracorrente das regras estabelecidas, tanto no mercado
das artes, na política, na economia, como na sociedade
regida pelos Estados Unidos. Teu trabalho nos obriga a tomar
distância em relação a esse contexto dominante. A noção de
“exotismo” significa algo pra você?
Christian Lacroix:
Se você está pensando nos clichês do exotismo, obviamente não
estou de acordo. Mas a Tropicália, que já mencionei, me atrai.
No catálogo intitulado Mares do Sul3, o
texto de Adriano Pedrosa faz um paralelo com Gauguin e a
ideia de que devemos ir aos trópicos para reencontrar uma
espécie de paraíso perdido. É muito pertinente.
Christian Lacroix:
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C A DER N OS EAV
B EAT RI Z MI L HAZES
A imagem que me vem imediatamente à mente quando penso nos
trópicos, no ser tropical, é a da beleza, da sensualidade e do primitivismo. É uma visão que me encanta, de pura fantasia, de sonho, de
desejo do prazer desconhecido. Gauguin fez uma viagem à procura
do “paraíso perdido” e introduziu esses elementos na sua pintura.
O projeto modernista brasileiro fez o contrário: se alimentou da
arte europeia para espalhá-la nos trópicos. A beleza me cativa, mas
acho que, mesmo que meu trabalho possa ser bonito, ele representa
um mundo claustrofóbico.
o fôlego. O labirinto é aquele que você descreve: um passeio por
um jardim do século XVIII, que pode levar à claustrofobia ou não.
Não diria que é bonito, é inquieto. Não
falaria de angústia, mas de um lado labiríntico, de uma busca
orgânica: como se você caminhasse num corpo ou num jardim
em forma de labirinto no qual você procuraria o Minotauro
seguindo o fio de Ariadne. As pautas talvez sejam o fio
vermelho que impede que você se perca. Existem impressões
em que, pessoalmente, me reconheci nos meus momentos de
melancolia, quando sinto um pouco de mal-estar. Não diria
que é bonito...
Podemos chegar até a ideia de que
ele absorve, que nos devora. Você também se alimenta de
coisas, e depois fagocita outras. O que me impressiona é essa
força cinética. É nessa força centrífuga que você encontra o
equilíbrio dessa explosão/impulsão... Quando estamos em
frente a uma de tuas telas, temos uma sensação de explosão
e de unidade ao mesmo tempo. Tem algo que segura esse
big bang no lugar, que impede que seja completamente
desordenado, e que torna finalmente todo o teu repertório
imperceptível, não identificável, mas coerente. É um todo,
uma unidade. Não digo que há uma serenidade, isso depende
do quadro. Entretanto, não se pode afirmar que se trata de
uma flor com uma pérola e um motivo têxtil de 1960. Nunca.
No final, temos uma impressão única. Você procura contar
a tua história por inteiro, ou quer que o espectador leia
algo específico?
Entendo perfeitamente essa sensação de claustrofobia e de labirinto. A claustrofobia vem de um excesso de imagens justapostas, de
contrastes simultâneos de cores intensas que podem fazer perder
Existem pelo menos dois tipos de espectadores: os amadores e
o meio especializado, composto pelos críticos de arte e os artistas. Tenho a sorte de conhecer os especialistas que vêm ver meu
Christian Lacroix:
Christian Lacroix:
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B EAT RI Z MI L HAZES
trabalho no ateliê. Paulo Herkenhoff, um crítico de arte, foi e
ainda é uma fonte constante de conselhos. Tenho amigos artistas
com quem converso também. As críticas americanas e europeias
publicadas na imprensa especializada sobre uma exposição, ou
meu trabalho de maneira geral, são preciosas para mim. Os textos
tomam frequentemente uma distância em relação à obra e oferecem leituras inesperadas. A opinião do público amador surge de
maneira direta e espontânea, o que me fascina constantemente.
Às vezes, levanta dúvidas. As crianças têm também uma relação
especial com minha pintura, identificam-se facilmente e as suas
reações são expressas sem filtro.
De fato, preciso de contato, de trocas. Gosto imensamente da reação
espontânea do público. Em Veneza4, as pessoas vinham à minha
sala tirar fotos para levar de lembrança. Foi surpreendente, principalmente quando sabemos que as artes plásticas são dirigidas a
um público especializado.
Christian Lacroix:
E quando a crítica é ruim, o que
você sente?
As críticas ruins, se honestas, são geralmente justificadas e desempenham um papel positivo. É sempre irritante ler uma crítica ruim,
mas pode trazer algo. Quando alguém tentava convencer Maria
Callas a voltar a fazer concertos, ela dizia que, mesmo que latisse,
lotaria a sala. Mas ela recusou porque sabia que não tinha mais voz.
Então entendo que você precisa expor teu
trabalho, confrontar, falar, escutar...
Falando em Veneza, como se faz a
escolha do artista que representa o Brasil?
Christian Lacroix:
É o curador escolhido pela Fundação Bienal de São Paulo que trata
da seleção brasileira para a Bienal de Veneza. Em 2003, o curador
era Alfons Hug.
Você acha que foi escolhida em função do
tema Sonhos e Conflitos: a ditadura do espectador?
Christian Lacroix:
Não sei, mas a relação entre o sonho e o conflito me convém
perfeitamente.
Você só apresentou obras recentes em
Veneza. Foram feitas especialmente para a ocasião?
Christian Lacroix:
Christian Lacroix:
Fora uma obra de 2000 , as outras são mais recentes, mas já fazem
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C A DER N OS EAV
B EAT RI Z MI L HAZES
parte de coleções. Fiz também três quadros6 especialmente para a
Bienal. Criei uma ligação entre eles, mas cada um tem uma história
bem diferente.
Com certeza você já conhecia o espaço
do pavilhão brasileiro, mas quando te disseram que você ia
representar o Brasil com a fotógrafa Rosângela Rennó, não
teve vontade de fazer um trabalho particular em relação à luz,
às paredes, ao volume?
Christian Lacroix:
Em Veneza, o pavilhão é modernista. Sua iluminação natural e
a circulação fluida entre os espaços, entre o interior e o exterior,
são perfeitas para expor meu trabalho. Gosto muito de mostrar
obras que fazem parte de coleções. Minha produção não é muito
importante: de dez a doze telas por ano. Quando exponho uma
tela e ela integra uma coleção logo em seguida, ninguém mais a
vê. Quando participo de uma exposição organizada por um museu,
uma instituição ou uma bienal, é a oportunidade de mostrá-la de
novo. Obviamente não é sempre fácil pedir as obras emprestadas,
porque muitas vezes estão espalhadas pelo mundo.
Em Veneza não há ruptura, mas, ao
mesmo tempo, é a diferença que faz a história, entre
coerência e incoerência. Falando nisso, teu repertório
não é repetitivo porque é muito rico, mas ele se renova
constantemente?
Uso sempre os mesmos elementos, mas acrescento outros o tempo
inteiro.
Christian Lacroix:
Você faz coleções de pérolas, de
margaridas...?
Sim. [Risos] Como os moldes que servem para fabricar roupas,
tenho um repertório de motivos isolados que repito, como as rosetas. Posso usar um motivo hoje e só vir a reusá-lo daqui a cinco anos.
Posso também reutilizar um desenho mudando sua cor. Depende
da composição. Crio novos motivos o tempo todo, mas gosto de
desenvolver os ricos e incluí-los em novas composições. Outros,
mais pobres, são usados em algum momento, e depois abandonados.
Estes moldes só servem para uma parte da composição.
São criados somente porque você precisa
daquela forma específica naquele exato lugar?
Christian Lacroix:
Christian Lacroix:
Exatamente.
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“Muitas vezes dizem
que sou corajosa de
fazer o que faço.
Penso exatamente o
contrário, faço isso
porque tenho medo.”
Christian Lacroix:
O novo motivo pertence então a uma
nova família?
As rosetas e os buquês tornaram-se uma família.
Christian Lacroix: Existe
um lado lúdico no teu trabalho, com a
ideia da família que vem tirar fotos no teu pavilhão de Veneza
e, ao mesmo tempo, é fácil imaginar tuas telas na casa das
pessoas. Penso nesse espaço, nas casas tradicionais do Japão,
onde se mostra o que se tem de mais bonito. Pode ser uma
cerâmica, uma flor, um quadro ou uma estampa... Destacadas
dessa forma, essas coisas são um convite à meditação. Teu
trabalho é muito sólido. Consegue resistir a esse tipo de
meditação diária, porque contém muitos estratos. Desperta um
passeio em si mesmo e pelo universo. Mais cedo, estávamos
falando em cosmos, planetas e essa história de labirinto interno
do qual nunca saímos. É importante percorrê-lo o tempo todo.
As primeiras vezes que vi teus trabalhos, eles me evocaram a
ideia de uma planta carnívora. Você passa por eles e se sente
aspirado, hipnotizado. Você é obrigado a olhar e, quanto mais
você olha, mais gruda nele, mais você descobre pistas e mais
essas pistas te absorvem e te fazem ricochetear para outros
signos. Estamos no âmbito da arte e não no decorativo.
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Se tem algo de que gosto nas artes decorativas é sua maneira de
ecoar nas atividades humanas. Pode-se escrever a história da humanidade através das artes decorativas. Todos nós precisamos dessa
forma de expressão. Poderíamos obviamente viver num quadrado
branco, mas seria difícil sem essa sensibilidade. Acho que meu
interesse pelas artes começou com esta observação. O que existe
atrás da beleza? E por que precisamos fazer isso?
Antes do motivo em si, começa pela cor,
o quase desejo de comê-la, de ter uma relação física com ela.
Christian Lacroix:
A cor é o centro do meu trabalho. É por ela que começo e acabo
uma tela. Aliás, foi a primeira coisa que me atraiu no teu trabalho.
A primeira vez que vi fotos de um dos teus desfiles, tive um ataque
de vertigem! É como se um quadro tivesse ganhado um corpo tridimensional. A relação tão complexa e detalhada entre as cores, as
surpresas exuberantes que surgiam de um lugar específico da roupa,
uma rosa dourada com um contorno verde e pequenos apliques cor
de berinjela, tudo isso colocado em cima de uma renda off-white!
Ainda não falei do meu trabalho,
mas acho que está em constante contradição: é o que me
faz ficar em pé, como o funâmbulo no seu fio. É algo entre o
Christian Lacroix:
high and low, não para ir em direção ao zen, mas em direção
à meditação e ao universo. Este é um aspecto importante
do teu trabalho, há sempre os dois extremos: a Espanha e o
vodu, os católicos e os pagãos. Fui criado na religião católica,
uma religião estranha. No sul da França, as igrejas foram
construídas sobre antigos templos dedicados a Vênus.
Ainda existe algo muito sensual nelas. Mas não acredito
que possa haver espiritualidade sem sensualidade. Preciso
apreender a vida através do toque, preciso respirar, falo muito
em cheiros. Quando era criança, na escola maternal, eu
levava os potes de tinta à boca. Eu tinha vontade de amarelo,
de vermelho, eu queria me recarregar com elas, da forma
como imagino um caçador pré-histórico se abastecendo da
força do animal que matava e comia. Como não sou muito
violento, preferia engolir tinta. [Risos] É algo de que gosto
muito em você, este trabalho transatlântico e perpétuo que
fala da tua família, do teu povo, da tua tradição. Talvez seja
por isso que a gente se reconhece nos nossos trabalhos; eu,
com minha arte decorativa ou aplicada, não sei muito bem
o que faço. Acho que provocamos este mesmo processo de
encontros entre coisas que não têm nada a ver entre elas.
Tomar algo muito bruto e muito barroco, muito primitivo,
primário, repugnante, sujo, humano e esfregá-lo com ouro,
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pedras preciosas, coisas que brilham. É verdade que isso
diz algo para as crianças, e não se trata somente de um
trabalho de impulsão.
Portugal, que é um país mais calmo. Trabalhava então com mais
renda e crochê, e nas referências aos trajes. Esse interesse depois
desapareceu, e evolui para a abstração.
Todas essas contradições são fascinantes. Funcionam como motor,
assim como o medo, aliás. Tenho medo de muitas coisas. O carnaval,
a praia, a floresta, as artes decorativas, o kitsch, as igrejas e até as
cores me dão medo e também me fascinam. Muitas vezes dizem
que sou corajosa de fazer o que faço. Penso exatamente o contrário,
faço isso porque tenho medo.
Mantemos um cordão de segurança em
volta da gente. [Risos] Medo de afundar nas coisas, de ser
aspirado. É por isso que não olho para o vodu, nem para o
circo ou mesmo para a moda. [Risos] É algo que me dá muito
medo. É um universo no qual não me reconheço.
Mas, me diz uma coisa, você não tem vontade de alcançar
mais simplicidade? Tenho a sensação de que você se livra
cada vez mais de coisas discerníveis para avançar em direção
à abstração.
Christian Lacroix:
É verdade. No meio dos anos 90 mergulhei no México, no sangue, nas igrejas barrocas, nas cores dos trajes, a Espanha mais que
Eu tive a sensação de que você integrava
babados que você tinha bordado. Você me explicou que
começou pelo têxtil. Hoje você tem vontade de voltar ao
tecido através da fita.
Christian Lacroix:
É um retorno bem lento. No início, eu fazia colagens com tecidos.
Depois, desenhei em cima de tecidos já estampados. Estava muito
interessada nos bordados e nos trabalhos feitos à mão em geral.
Depois, em 1994, preparei uma exposição7 para o México e, quando
pendurei os quadros, tive a sensação de ter exagerado. Eu me dei
conta de repente de um contraste excessivo, e fui para a arte abstrata, a Op art, a geometria...
Passei por isso também, em 2000.
Fiz uma coleção na qual não havia tecidos estampados, só
linhas muito geométricas. As clientes fizeram encomendas
das coleções anteriores, porque nessa não havia renda, nem
bordados, mas sim plástico. Eu queria ver onde eu estava.
Funcionou muito bem com a imprensa e os profissionais,
Christian Lacroix:
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mas muitas pessoas não entenderam. Isso me levou a tomar
um novo rumo, e eu não teria sido chamado para trabalhar
para o TGV ou Pucci se tivesse ficado no kitsch que, aliás,
não é um termo pejorativo para mim. Meu pai me dizia,
quando eu era criança: “procure pelo gosto antes de dizer
que não gosta”. E faço tudo assim. Isso me lembra uma frase
de Théophile Gautier, que dizia que uma coisa é interessante
quando se começa a olhar para ela por muito tempo.
Eu queria te perguntar de onde vêm os tecidos que você usa.
Christian Lacroix: Depende
das coleções. Procuro descobrir,
identificar meus desejos, mesmo os mais difusos, e extrair
deles um tema, uma direção, uma tendência. Os materiais
são meu ponto de partida, que é determinante e muito
ligado à identidade da coleção. Hoje em dia é preciso ser
reconhecível no primeiro olhar, mesmo que isso possa
parecer redutor.
É cada vez mais difícil existir no meio de tantas outras
Maisons. Na realidade, cada vez menos Maisons fazem
coleções de alta costura. E cada vez mais recém-chegados
ou talentos emergentes aparecem no calendário do
prêt-à-porter. Mais uma razão para ser radical e visceralmente
você mesmo. Nos anos 1995-2000, a tendência era para
o minimalismo zen, less is more. Para mim, more is never
enough. Continuei então no maximalismo com a convicção
de que aqueles que gostavam do meu trabalho desde o
início continuariam a gostar dele, do sul do Loire até a
Flórida. Mas, voltando aos tecidos, para garantir a
exclusividade indispensável à alta costura, onde cada
modelo deve ser único, prefiro mandar fabricar tudo,
exceto os lisos: as sedas são pintadas à mão, os tweeds
são fabricados em teares manuais por artesãos de todas as
idades e horizontes, fiéis ou novos a cada coleção. Entregolhes um dossiê com os temas dos quais falei antes para que,
como no tênis ou no pingue-pongue, eles me mandem de
volta a sua interpretação, que pode me fazer bifurcar para
uma nova direção. Esses temas são, no início, meus “bancos
de dados”, porque todo dia remexo em dezenas de fotos,
desenhos, quadros, como um vampiro. Alimento-me das
imagens dos outros. Procuro fazer books de colagens. Um
dia, Patrick Mauriès, um amigo editor, viu esses scrapbooks
e me convenceu a publicar parte deles. Então, naquela
coleção (verão 94), mantive um diário muito sincero, desde
a primeira inspiração até o desfile finalizado. Meu ponto de
partida foi uma gravura que tenho em casa, que representa
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todos os monumentos de Arles no início do século XIX.
Adoro essas épocas transitórias, híbridas, quando se sente
uma gestação em direção a algo ainda indefinido. Na
moda, isso se traduzia por uma cintura alta, hesitante, entre
o quadril e os seios, dando ao traje “arlesiano” da gravura
uma proporção pouco conhecida. E a cada coleção preciso
revisitar essa visão da “arlesiana” que, por essência, continua
não se mostrando. Sempre vi nisso uma metáfora bonita
da minha profissão. Também sempre senti a necessidade
de confrontar esse traje a outros períodos ou países, como
quando se esfrega duas pedras para fazer fogo. E, para
essa coleção, eram os anos de guerra e da Ocupação que
me perturbavam de novo. Foram dramáticos para nossas
famílias. Nasci em 1951, seis anos depois da Liberação, mas
através das ruínas que ainda existiam e das coisas não ditas,
percebíamos a violência, as sequelas surdas da Colaboração
ou da Resistência. Uma criança sente isso. E, adolescente,
fiquei com essa fascinação que ainda me “ocupava”,
colecionando revistas e jornais, fotos da época, como Patrick
Modiano, que acabei encontrando por ter a mesma fantasia
que habita obsessivamente todos os seus romances. Yves
Saint Laurent também se inspirou nesse período para uma
coleção que fez bastante barulho, creio que foi em 1971.
Hoje, é mais o trabalho dos artistas contemporâneos que eu
confronto com o que me vem da Provence e da Camargue.
A arquitetura também. O Brasil teve grandes arquitetos.
Eles te influenciaram de alguma forma?
Sim, a ligação com o modernismo, as linhas, as curvas muito suaves
que fazem um desenho no espaço. Oscar Niemeyer e Roberto Burle
Marx desenharam jardins juntos. Interessei-me de perto pelo
trabalho de Burle Marx. Antes, minha relação com a natureza era
mais ligada à sua reprodução da natureza do que à natureza em si.
Agora, estou ficando mais atenta a essa relação. É como uma luz
natural que me lembra as igrejas.
Christian Lacroix:
Tem algo dos vitrais no teu trabalho.
Nunca fiz vitrais.
Pensei nisso em relação à luz quando eu
estava olhando algumas de tuas telas. E aí voltamos para um
tipo de espiritualidade e meditação. Sinto que você poderia
fazer coisas incríveis em arquitetura.
Christian Lacroix:
Já pensei nisso, mas ainda tenho muita coisa para fazer em pintura.
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É preciso fazer escolhas; mas a criação de
banners para o MoMA de Nova York te trouxe algo?
Christian Lacroix:
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Sim, foi fascinante, e eu gostaria de repetir a experiência. Mas me
dei conta de que eu precisava realmente fazer escolhas em função
do tempo que esse tipo de atividade me toma.
Christian Lacroix:
Para você não se espalhar demais?
Exatamente. Depois de Veneza, vou parar tudo e me concentrar
numa série de novas estampas nos Estados Unidos. Depois, em
Kerguéhennec, na Bretanha, só vou trabalhar com colagens de
papel. Mas é raro eu me permitir o luxo de fazer uma coisa de cada
vez. No ano passado, montei uma cenografia para o espetáculo de
dança da companhia da minha irmã, Marcia Milhazes Dança Contemporânea, fiz um livro de artista e um banner para o MoMA de
Nova York, e ainda desenhei uma joia para uma coleção particular.
Tudo isso além das pinturas para uma exposição em Londres10 e
para Mares do Sul no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio .
Sou péssimo nisso. Não sei dizer “não”.
Em 2003, trabalhei na concepção do interior do TGV
Atlantique (Trem de Grande Velocidade); dos futuros
Christian Lacroix:
uniformes de todo o pessoal da Air France, tanto de solo
quanto de bordo; acabei os figurinos de Il Re Pastore, de
Mozart, para o Teatro da Moeda em Bruxelas; emendei com
os figurinos de William Christie para Arts Florissants em
La Villette; e comecei os de Eliogabalo, uma ópera inédita
de Cavalli, também para o Teatro da Moeda de Bruxelas.
Sem falar das coleções Pucci e Christian Lacroix, e de umas
cinquenta letrinhas para o centenário do Larousse - 19052005. Só espero que todos esses trabalhos alcancem a mesma
qualidade e se alimentem uns dos outros. Acho também
que vou aceitar a missão de decorar alguns hotéis em Paris.
Estamos de novo falando em artes decorativas e arquitetura.
O vitral também (nunca fiz, mas me fascina): resolvi participar
de um concurso com um artesão formidável de Toulouse, o
ateliê Fleury, mas entregamos nosso dossiê de candidatura
alguns minutos depois do encerramento das inscrições: o
destino disse “não” por mim... Mas estávamos falando em
vitrais, arquitetura e arte decorativa...
Tem os jardins também. Minha galeria de Londres, a Stephen Friedman Gallery, dá para a rua, e os quadros podem ser vistos de fora.
Muitos artistas fecham a vitrine, mas gosto da possibilidade de leitura
dupla, de poder ver dentro quando estou do lado de fora e vice-versa.
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Imagino que o banner do MoMA se
movimente. É algo que te interessa?
Christian Lacroix:
Um vitral? Por que não!
Você vai expor as colagens que fará
durante a residência em Kerguéhennec?
Christian Lacroix:
É o que me fascina: trabalhar com o movimento das cores. A Rua
53 é visualmente muito poluída e eu queria que o banner dialogasse
com a paisagem. Fiz um desenho bastante simples, com cores que
poderiam ser chocantes: o ouro, o rosa e alguns verdes. Além do
movimento, as cores mudaram. Foi uma boa surpresa. O MoMA
resolveu manter o banner até o final do ano, enquanto a ideia no
início era deixá-lo somente no verão. Com a chegada do outono
e da chuva, o banner perdeu seu brilho e, sem o sol, mudou ainda
mais. Ele ganhou luz própria.
Se eu fosse arcebispo no Brasil, te
encomendaria vitrais para uma catedral barroca [Risos].
Vejo muito bem teu trabalho na luz.
Christian Lacroix:
Meu trabalho tem luz própria. Ele funciona com luz intensa, e acho
a luz natural a melhor possível. A superfície da tela muda com o
movimento dos corpos que passam em frente. Provoca contrastes
brilho/opaco, dourado/fosco, suave/áspero. Um dia, gostaria de
fazer uma exposição na penumbra. Tenho esta visão de entrar no
meu ateliê à noite e sentir algo como a iluminação de uma igreja.
Pretendo. Se elas funcionarem, porque nunca fiz colagens de
verdade.
Essas colagens seguirão o mesmo
processo que as pinturas?
Christian Lacroix:
Não, para as colagens sobre papel o processo será diferente. Vou
usar materiais de origem industrial: papel de chocolate e de bala,
papel de seda, transparentes e estampados, e até fitas...
Você faz pesquisa nos jornais? Onde você
recupera todos esses elementos? No lixo, nas papelarias?
Christian Lacroix:
No momento, estou fazendo uma verdadeira coleção de papéis
de embalagens, mas não de qualquer tipo. Prefiro não misturar as
embalagens, me limitar àquelas que expressam sedução, prazer
e exagero. O sentido seria completamente diferente se eu usasse
papéis de chocolate com embalagens de sabonete.
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Nos papéis de chocolate você tem ouro,
prata, metal; não são somente transparentes.
Christian Lacroix:
Tenho alguns papéis transparentes.
Christian Lacroix:
Você guarda as letras, os nomes, os
desenhos?
Sim, tudo!
Quando for a Kerguéhennec, você vai
chegar com coisas já preparadas?
Christian Lacroix:
Acabamos de olhar uma cor chamada
chartreuse. É a cor de um licor à base de plantas feito por
monges. Chartreuse é a cor amarelo-verde de algumas
plantas: algo entre anis e limão.
Christian Lacroix:
Prefiro o verde-limão. É uma cor que uso em várias tonalidades.
Combina muito bem com as outras cores nos meus quadros. Mas
muitas vezes me traz problemas, porque o verde é uma cor difícil
na pintura. Aliás, assusta muitos pintores. O uso do verde é uma
pergunta recorrente quando falo do meu trabalho com os críticos
de arte.
Você pode explicar por que o verde é tão
difícil para os pintores?
Christian Lacroix:
Não, só com embalagens e algumas ideias.
Christian Lacroix: Talvez eu esteja enganado, mas me parece
que você usa cores mais fluorescentes que alguns anos atrás.
Mais brancas e mais parecidas com o Stabilo.
Sim, elas se intensificaram com o tempo. As relações entre as cores
são muito complexas. As cores que eu usava no início eram mais
simples. Depois, comecei a intensificar a relação com a forma, os
motivos, as justaposições, e, claro, com os contrates entre as cores.
Como o marrom, acho que é uma cor que provoca confusão. Não
combina com as outras cores e, ao mesmo tempo, é uma amalgamação total. Incomoda, é um pouco suja. Mas é também a cor da
natureza, e certos pintores têm tendência a esverdear suas telas
quando em contato com a natureza. Trabalho ao lado do Jardim
Botânico e talvez seja por isso que o uso espontaneamente. Além
do mais, o Rio é uma cidade de contrastes violentos entre os verdes,
os azuis e os amarelos.
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Christian Lacroix: Você sabia que para os franceses, e sobretudo
para os profissionais do palco, é uma cor maldita, que dá azar?
Quando você faz figurinos de teatro ou de dança, precisa
perguntar antes se pode usar a cor verde. Em geral, é proibido.
O ator Alain Delon, por exemplo, não suporta trabalhar num
palco onde tenha verde, nem que seja a folha de uma árvore
ou de uma flor. Se tiver um buquê, ele pede para retirarem as
folhas para só ficar com as flores. Por outro lado, é a cor das
costureiras, que têm uma padroeira, Catarina, que é também a
padroeira das moças solteiras. As cores associadas a Catarina
são o amarelo e o verde, o que muitas vezes dá um amareloverde. Podemos dizer que o verde não é indiferente a ninguém.
Essa relação entre o verde e o palco é interessante, eu não sabia.
É uma pergunta que sempre me faço.
Uma de minhas clientes queria um vestido excepcional.
Depois de apresentar várias coisas para ela, mostrei o verde
chartreuse, bem mais verde que amarelo. Ela gostou, e
acrescentei uma renda dourada. Ela fez então um lindo
comentário que me lembra o teu trabalho. Ela me disse: “Com
o ouro e este verde, quero que você coloque uma terceira cor
que dê mais profundidade”. Ela tinha uma reflexão de pintor.
Christian Lacroix:
Ovo de Páscoa, 2003
Acrílica sobre tela
298 x 189 cm
Foto: André Morin
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O que é excitante com a pintura é este mistério. Trabalho com cores
constantemente, conheço-as, pensei e desenvolvi uma gama ampla
de cores, mas há surpresas sempre. Se você colocar um leve toque
de rosa, a tela inteira toma outra dimensão. É totalmente mágico.
E pode imediatamente destruir ou salvar um quadro.
diziam que nunca se podia misturar o verde e o vermelho.
Era a pior coisa que se podia fazer.
Para fazer um último paralelo
com a moda: acontece muito de eu ver uma roupa que
criei e pensar que deveria jogar tudo fora, que me
enganei. Lembro então que talvez outra cor possa salvar
o vestido.
É por isso que o verde é problemático para mim. Em si, não é difícil
de usar. Acho que todas as cores combinam bem com o verde. O
problema é que, quando fica fácil demais, se torna bonito.
Christian Lacroix:
De vez em quando, prefiro fazer ligações com tonalidades mais
próximas. Os degradês dão uma sensação de vibração e vertigem.
Em francês, se usa também a palavra
“desmaiar” para uma cor que desaparece num degradê.
De fato, tem muitas combinações de cores
que funcionam bem e são sedutoras. Eu sempre tive em mente
a imagem de uma planta carnívora que te atrai, te encanta e,
uma vez que te pega, não te faz mal, mas gera incômodo. É
sempre preciso ter uma sensação de perigo, de risco.
Christian Lacroix:
Acho sempre difícil usar o verde sem que fique bonito. De vez em
quando, procuro fazer uma inversão, torná-lo menos sedutor.
Christian Lacroix:
Mas isso pode também ser feito sem branco. Costumo brincar com
as cores complementares.
Para encerrar o assunto do verde,
lembro que, quando eu era criança, todas as revistas de moda
Christian Lacroix:
Christian Lacroix:
Você já fez um quadro sem verde?
Não creio, mas ele pode aparecer nas minhas telas em pequenas pinceladas, só para pintar uma pétala de rosa, por exemplo. O branco
e o preto, por outro lado, são cores que me trazem um verdadeiro
problema. Eu as usei juntas pela primeira vez em 2002. Prefiro
cores como o roxo, o verde e o azul muito escuros.
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Não há branco puro nos teus quadros, é
um branco que se move.
Christian Lacroix:
Às vezes mantenho a tela como é, como base para o branco, mas
ele nunca está puro. Penso muito no branco, mas raramente o uso.
No momento, o rosa e o laranja funcionam de maneira oposta para
mim. Este ano, quando eu estava quase acabando de preparar uma
exposição para a galeria Max Hetzler em Berlim, me dei conta de que
meu ateliê tinha sido invadido pelo rosa e pelo laranja. Obriguei-me
então a mudar de cor para o último quadro. Apesar de procurar constantemente mudar de paleta, às vezes a cor toma conta e me controla.
Os acidentes são voluntários ou são
acasos que você resolve manter na tela?
as cores estão equilibradas. Não posso mais passar para o estágio
seguinte, em que acrescentar elementos vira decoração. Quando
encontrei coisas que criam uma ruptura no olhar do espectador,
mas que são orgânicas, abertas, é aí que paro.
Há um lado meio inacabado
que é interessante no teu trabalho. Há sempre
uma área não coberta. E, de fato, se essa área fosse
pintada, a tela se tornaria papel de parede e não mais
uma pintura.
Christian Lacroix:
É exatamente isso, quero manter a ideia de composição.
Christian Lacroix:
Christian Lacroix:
Já aconteceu de você voltar a trabalhar
uma tela acabada?
Existem acidentes voluntários e involuntários, dos quais me sirvo
ou não. Eles são ligados à memória da folha de plástico usada, ao
que acontece quando a tiro da tela.
Em que momento você sabe que um
quadro está acabado?
Christian Lacroix:
Em geral, o ponto final acontece no momento em que sinto que
Sim, já aconteceu. Faço um quadro num lugar. Uma vez acabado, é
mostrado num outro lugar. De certa forma, saiu de sua estrutura,
e o resultado é às vezes diferente. Para minha última exposição
em Nova York12, eu tinha pintado uma pequena tela que não me
agradava plenamente. Chegando lá, resolvi não a mostrar, e vou
retrabalhá-la. Já aconteceu também de eu jogar quadros fora. Tem
até um período de meu trabalho, por volta de 1987, em que não
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fiquei com nenhuma tela. Duas ou três foram vendidas, mas dei as
outras para alguém na rua. Eu não podia guardá-las no meu ateliê,
eram como fantasmas monstruosos.
Claro. Tenho os mesmos amigos há muito tempo, e minha relação
com a cidade não mudou.
Já falamos da influência do cotidiano. Uma
das coisas marcantes do teu trabalho é a influência das joias.
Você se inspirou na Miriam Haskell? É uma coincidência?
Christian Lacroix:
Você se encontra com muitos artistas no
Brasil e nos Estados Unidos?
Christian Lacroix:
No Brasil tenho alguns amigos artistas, mas o trabalho deles não
é muito próximo do meu. Nos Estados Unidos e na Europa, tenho
mais relações com artistas que trabalham no mesmo sentido.
Para mim, é importante não ficar isolada. Philip Taaffe, um
pintor americano de quem gosto muito, usa também a noção
do decorativo. A inclusão de elementos das artes decorativas na
pintura abstrata é um assunto recorrente. Nos anos 70, Robert
Kushner lançou o pattern painting e, nos anos 80, as telas de
Philip eram, de maneira surpreendente, a melhor representação desse estilo. Estou também em contato com outros artistas
americanos e ingleses, como Polly Appfelbaum, Franz Ackerman,
Fiona Rae, Sarah Morris, Davis Reed, Fabian Marcaccio, para
citar alguns.
Christian Lacroix:
da tua família.
Mas você fica no teu ambiente pelo viés
Fiquei impressionada quando vi pela primeira vez um livro com o trabalho dela, por acaso, numa livraria. A sua história também é incrível.
O Museu da Moda da rue de Rivoli
organizou uma exposição que se chamava Demais, a partir
de uma coleção na qual havia coisas da Miriam. Expuseram
joias incríveis dos anos 40, em forma de fruta, pássaro,
inseto, era maravilhosa.
Christian Lacroix:
Isso é interessante, porque, nessa década, boa parte das clientes da
Miriam eram atrizes americanas. Foi nessa época que ela conheceu
Carmen Miranda, cujos figurinos a influenciaram. Olhar um livro é
uma coisa, mas desenhar e usar uma fonte de inspiração é diferente.
Já usei referências pop e primitivas, mas as formas de suas joias
não vêm somente de uma mistura de elementos. São composições
com formas orgânicas e harmoniosas.
Christian Lacroix:
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Tem também o trabalho da Bridget Riley...
Em 2000, o Dia Center de Nova York organizou uma grande retrospectiva de seu trabalho, que foi impressionante, pois é muito difícil
ter a oportunidade de ver as obras dela. A exposição me deu uma
sensação incrível de vertigem. Ela usa muitos tipos de listras e
linhas. É um trabalho muito físico. Foi a partir daí que pensei que
era possível fazer movimentos orgânicos com linhas. Você sabia
que ela praticamente parou de mostrar seu trabalho depois de
uma exposição no MoMA em 196513, porque a crítica foi de uma
virulência horrível? Entretanto, Riley resolveu insistir. É muito
intrigante: como fazer arte sem mostrar o que se faz?
Christian Lacroix:
Você trabalha com assistentes?
Faço a maior parte do trabalho, mas tenho dois assistentes que
não são artistas. Um cuida do acervo e da administração, o outro é
uma pessoa com quem troco ideias sobre meu trabalho. Em geral,
ele executa o que peço, mas, às vezes, lhe dou total liberdade. Nem
sempre uso o que ele faz. Ele não tem formação artística, mas tem
uma relação interessante com as cores.
Christian Lacroix:
Você não acha que ele foi impregnado
pelo teu trabalho e que, na realidade, a cor que escolheu
é a tua?
Não, ele tem uma noção muito pessoal das cores. É surpreendente,
porque é um rapaz simples. Às vezes, peço a opinião dele. Gosto
também de conversar com as pessoas que não têm nenhuma relação
com meu trabalho. Um amigo meu chegou ao meu ateliê um dia
e disse: “coloca isso aí”, e obedeci!!! [Risos] Às vezes funciona. E
você, pergunta a opinião dos teus assistentes?
Sempre, mas pergunto sobretudo à minha
mulher. Ela conhece meu trabalho, e preciso da opinião de
uma mulher. Não sei o que é um vestido. Nunca usei! [Risos]
É estranho os couturiers serem homens. Em geral, as mulheres
que trabalham com moda criam uma moda mais simples
e mais prática, como Agnès B., Sonia Rykiel, Chanel... Os
homens talvez façam uma moda mais misteriosa e enigmática
para as mulheres.
Christian Lacroix:
Geralmente, introduzo um problema para poder avançar no meu
trabalho. Você procede da mesma forma?
Christian Lacroix:
Um problema para avançar? Com certeza.
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Mesmo que eu não o defina de maneira consciente para ter
certeza de avançar. Sou, creio, muito concreto, ancorado à
terra e, é verdade, preciso encontrar um equilíbrio tangível
entre meus desejos viscerais e a demanda dos clientes, a
inspiração e a finalidade. Por outro lado, há também os
problemas que a gente cria. Penso na ideia do Sul que
animou a fundação da Maison que leva meu nome, porque
a noção de raízes apareceu para mim em 1987 como minha
principal diferença, minha individualidade, minha identidade.
Depois, ao longo das coleções e dos anos, fiquei preso a elas,
amarrado. Decidi mudar em 2000, com o milênio. Na noite
de 31 de dezembro de 1999, resolvi que precisava aperfeiçoar
meus conhecimentos em informática para poder desenhar
com o computador; resolvi não me forçar a trabalhar de novo
o tema da tauromaquia, da Espanha e de Arles. Um mês
depois a coleção estava pronta, gráfica, e misturava organza
com rhodoïd (plástico transparente), musseline com tranças
de sacos plásticos reciclados, sem renda, somente cores
primárias sobre um palco inacabado, como uma pausa na
imagem. Meus amigos e colegas reconheceram meu trabalho,
me deixaram seguro de novo, apoiaram a abordagem, o que
me ajudou a conscientemente limpar o supérfluo para então
reinsuflar, pingo a pingo, coleção após coleção, elementos
mais familiares, mas com uma leveza maior. Foram uma
coleção e um ano determinantes.
Em 1999-2000, um ano decididamente importante, precisei
também renegociar o contrato que me liga ao grupo LVMH.
E tomei a decisão de trabalhar como freelancer, de fundar a
XCLX, uma empresa através da qual a Maison de Couture
se torna um dos meus clientes, como qualquer outro: Emilio
Pucci, os teatros ou as óperas que encomendam figurinos para
mim, as editoras para as quais faço ilustrações, etc. Essas áreas
diferentes me permitem respirar, lidar com problemáticas
inesperadas que nutrem meu trabalho.
Para responder à tua pergunta, são provavelmente estes
desafios que me fazem avançar, como a futura decoração
do TGV Atlantique, que entrará em serviço em 2005. Isso
começou com um projeto para “vestir” o TGV Mediterrâneo e
anunciar que, em 1999, o trem alcançaria sua maior velocidade
entre Paris e Marseille. Para aquela ocasião, eu tinha criado
uma colagem gigantesca que cobria o trem. Eu queria que,
ao vê-lo de longe, ele desse a sensação de um cometa, com
todo o espectro de cores quentes nas composições viradas
para o Sul, e nas composições finais, em direção ao Norte,
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a continuação do espectro com as cores frias. Eu queria
também que pudesse “ser lido” de perto, da plataforma,
porque, para mim, a viagem é uma história de literatura, com
frases, palavras e citações. É também uma história de cinema
ou de teatro, em que somos tanto atores como espectadores,
estejamos olhando o trem passar ou aparecendo no
enquadramento da janela, de um lado ou do outro do vidro.
Havia também, portanto, entre cada janela, o retrato de
pessoas de que gosto, personagens famosos ou anônimos,
como meus avôs ou tataravós que tinham trabalhado no
P.L.M. (o trem rápido Paris-Lyon-Marseille). E tudo isso se
apoiava em ampliações gigantes de detalhes escaneados das
minhas coleções e roupas étnicas. Enfim, quando eu estava
almoçando para comemorar o sucesso desse projeto, o
presidente da S.N.C.F (empresa responsável pelo transporte
ferroviário francês) comentou que estavam organizando um
concurso para renovar o interior dos TGV. Resolvi participar
dele com um time de designers especializados em ferroviário
e um fabricante de assentos. Levou dois anos. Fomos
selecionados entre os finalistas autorizados a construir uma
maquete em tamanho real. E ganhamos em maio de 2004.
Para a primeira reunião de “defesa”, mostrei a foto de uma
vértebra sólida, tranquilizadora, articulada, que aguentava
a fragilidade de um ovo, alguns tecidos coloridos, efeitos
de reflexos aquáticos, e a ideia de leveza. Foi assim que
especialistas realizaram meu primeiro assento técnico, cujo pé
não se vê imediatamente, como uma concha flutuando no ar.
No teatro, trabalho muito com o diretor Vincent Boussard,
com quem tenho uma ótima relação, mas que tem um
universo bastante oposto ao meu, abstrato, intelectual,
cerebral, quase sem cor. Nessa posição também sou
confrontado com algo pouco comum, que não é fácil para
mim, menos óbvio que meu trabalho habitual. Eis então os
problemas que me estimulam e talvez me façam avançar:
estar onde não estou sendo esperado. Digo-me todos os
dias que eu gostaria de me dar o tempo de um ano sabático
para “juntar” todos os meus “pedaços”. Ou pelo menos um
verão para pensar no que sou, no que faço, na minha
relação com o mundo, através do meu universo pessoal e
do meu trabalho. Mas isso não é possível, e o improviso
acaba se impondo no cotidiano. Como negociar com a
realidade? Como juntar utopia e comércio? A necessidade
de vender e não desagradar a si mesmo? A globalização
niveladora, medíocre, e a riqueza que reside na diferença, nas
individualidades, na “contracorrente”? Falo muito em uma
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“altermoda”, como se fala em alterglobalização. Meus pontos
de vista sobre a época e o mundo no qual vivemos, meus
objetivos e minha filosofia são, na realidade, opostos àqueles
do meu “principal acionário”. No final das contas,
esse é o problema principal...
Na pintura, não somos obrigados a criar algo útil. Não é o caso da
moda ou do que você fez para o TGV, assim como o trabalho coletivo
é inevitável quando se concebe uma cenografia. A tela branca na
parede é um espaço de criação livre. Você cria objetos vivos que
habitam um corpo temporário e vital.
Não percebo muito bem a fronteira,
e é por isso que gosto da problemática do decorativo.
Existe o decorativo que é arte e a arte que é decorativa.
Conheci bem o Julian Schnabel, que expôs em Nîmes
na Maison Carrée, um templo romano muito bem preservado.
Ele queria que eu fosse o primeiro a descobrir a exposição.
Quando entrei naquele espaço, eu disse: “Você é um
grande decorador”. Acho que ele ficou muito magoado,
mas eu não quis ser pejorativo. Vejo mais o lado decorativo
do Schnabel do que qualquer outra coisa. Pessoalmente,
nunca pensei que pudesse ser pintor. Alimento-me do
Christian Lacroix:
trabalho e do discurso dos outros. Mas vamos voltar a
você: você me parece bastante tímida, tem um trabalho
um pouco tímido!
É verdade, este é meu problema com a realidade. Quando estou
no ateliê, crio um mundo meu através da pintura. E quando saio
do ateliê, é como se outra história fosse começar. Não sou muito
frágil, mas preciso fazer esforços. A comunicação com a realidade
não é fácil, apesar de eu geralmente estar à vontade. É por isso que
a pintura é um desafio. Os convites, as participações em projetos
variados, as cenografias, as joias são outra coisa, um outro mundo
que toma tempo da minha pintura. Esses projetos não me deixam
segura, e nem sempre tenho certeza de sua utilidade. Se os projetos
continuarem a aparecer, vou precisar pensar no que deverei fazer
para me organizar, dedicar tempo, tirar deles algo positivo. Mas
preciso de aberturas para avançar na minha pintura. E é por isso
que preciso parar de vez em quando, viajar, reencontrar energia,
colocar minha vida pessoal em ordem. Tudo isso é importante
para minha pintura.
Você reflete muito sobre o que acontece
no Brasil e no mundo? O 11 de Setembro mudou teu trabalho
nas tuas relações com os Estados Unidos?
Christian Lacroix:
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Os grandes questionamentos da vida, o mundo no qual vivemos,
fazem parte do meu trabalho de maneira subjetiva. Meu ateliê é um
universo fora dessa realidade. Meus sentimentos surgem das cores,
formas, símbolos... Desde o 11 de Setembro, o repertório dos anos
70 que me interessa está cada vez mais presente na minha pintura.
O símbolo Peace and Love, por exemplo, se tornou uma constante.
lúdicas, barrocas, resplandecentes, com tudo que estava acontecendo. Eu mostrava então as cartas que recebia, com seis meses de
atraso, de moças que escreviam dos porões das casas bombardeadas,
e que diziam: “Você não pode imaginar a esperança que nos deu
a revista na qual vimos fotos de seu trabalho. Organizamos um
concurso de beleza para nos sentirmos vivas”.
Pessoalmente, sinto esta angústia do fim
do mundo, do fim de algo.
Christian Lacroix:
Perdemos o sentido do respeito.
Precisamos lutar contra isso. Não se pode
trabalhar da mesma maneira, mesmo que seja no sentido de
um trabalho mais alegre, mais espiritual.
Christian Lacroix:
Claro. Acredito na vida, na beleza das coisas que trazem uma energia positiva. É também a arte que dá certo sentido à nossa época, e
que pode mostrar um caminho diferente. É por isso que não gosto
das exposições que parafraseiam o mundo ou o jornal da manhã.
Transcender o mundo para ir mais longe... Durante a guerra na
Iugoslávia, me perguntaram como eu podia continuar a fazer coisas
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Notas
Saiba mais
1. MILHAZES, Beatriz. Urubu, 2001. Acrílica sobre tela. 119 x 399 cm.
BEATRIZ Milhazes. Textos de Fréderic Paul, Simon Wallis. Entrevista: Beatriz Milhazes/
Christian Lacroix. Bignan:Domaine de Kerguéhennec, 2005. 136 p. Edição bilíngue
francês-inglês.
2. MILHAZES, Beatriz. Maresias, 2002/2003. Acrílica sobre tela. 300 x 267 cm.
3. MILHAZES, Beatriz. Mares do Sul. Apresentação: Francisco Weffort, Frances
Reynolds Marinho; Tradução: Izabel Murat Burbridge, Michael Asburg, Odile
Cisneros. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2002. 190 p., il. color.
4. 50º Bienal de Veneza, Pavilhão Brasileiro. Veneza, Itália.
5. MILHAZES, Beatriz. O Buda, 2000. Acrílica sobre tela. 191 x 256,5 cm.
6. MILHAZES, Beatriz. Para dois, 2003. Acrílica sobre tela. 298 x 189 cm.
____. Ovo de Páscoa, 2003. Acrílica sobre tela. 298 x 189 cm.
____. O sol em Londres, 2003. Acrílica sobre tela. 250 x 230 cm.
7. MILHAZES, Beatriz. Exposição individual realizada na Galeria Ramis F. Barquet ,
Monterrey, México, 1994.
8. MILHAZES, Beatriz. White Ball Projects 70, 2000. Banner, nylon costurado.
107, 5 x 300 cm.
9. Coisa linda - Livro realizado em 2002 e editado pelo Library Council do Museum
of Modern Art, de Nova York. Trinta serigrafias e uma colagem; 44 páginas mais
duas folhas de acetato e uma prancha solta; introdução de Clifford E. Landers, nota
da artista e letras de canções brasileiras; tiragem de 175 exemplares, numerados e
assinados pela artista.
10. MILHAZES, Beatriz. BEATRIZ MILHAZES. Exposição individual realizada na
Galeria Stephen Friedman, Londres, 19 de abril a 18 de maio de 2002.
11. MILHAZES, Beatriz. Mares do Sul. Exposição individual realizada no Centro Cultural
Banco do Brasil, Rio de Janeiro, 29 de outubro de 2002 a 26 de janeiro de 2003.
12. Polly Apfelbaum and Beatriz Milhazes. Exposição coletiva realizada na galeria
D’Amelio Terras, Nova York, 6 abril a 24 de maio de 2012.
13. The Responsive Eye. Exposição coletiva realizada no Museu de Arte Moderna da Nova
York, 23 de fevereiro a 25 de abril de 1965.
BEATRIZ Milhazes: pintura, colagem. Apresentação de Marcelo Mattos Araujo; curadoria
e texto de Ivo Mesquita; textos de Oswaldo Corrêa da Costa e Faye Hirsch; cronologia
comentada de Florecian Malbran. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2008. 200 p.
HERKENHOFF, Paulo. Beatriz Milhazes. Monterrey: Galeria Ramis Barquet, 1994.
HERKENHOFF, Paulo. Beatriz Milhazes: obras reunidas. Rio de Janeiro: Barléu Edições,
2006. 256 p.
MILHAZES, Beatriz. Mares do Sul. Apresentação Francisco Weffort, Frances Reynolds
Marinho; tradução Izabel Murat Burbridge, Michael Asburg, Odile Cisneros. Rio de
Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2002. 190 p.
MILHAZES, Beatriz; RENNÓ, Rosângela. Shattered Dreams: Sonhos despedaçados. São
Paulo: Fundação Bienal, 2003. 87 p., ilustrado; livro-catálogo da Bienal de Veneza.
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DA NIEL SENISE
Agradeço à Escola de Artes Visuais, por me convidar para falar sobre
o meu trabalho. Como vocês são estudantes, vou tentar ser bem
objetivo; vou falar de como meu trabalho se organiza, sobre a sequência dele – acho mais interessante ser breve aí – e, depois, quando
conversarmos, podemos estender mais algumas coisas. Eu acho que
isso interessa a quem está pensando sobre seu processo pessoal.
Quero só fazer uma notação: eu vim para o Parque Lage há muito
tempo, como aluno, depois de ter estudado engenharia. Eu não sabia
nada de arte. Minha formação não é uma formação tradicional.
Quer dizer, eu gostava de ver arte em livros. Meu contato com a
arte nessa época era por aí. Eu tinha muitos livros na minha casa,
alguns livros de arte. E a vida toda a representação da arte foi uma
coisa presente na minha vida.
Sem título, 1985
Acrílica sobre tela
230 x 190 cm
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Intuitivamente, eu fui fazer o que achava que estava a fim: vim aqui
para a EAV e fiz um semestre de aula com John Nicholson. Isso foi
no começo dos anos 80. Fiz também um semestre com o Luiz Áquila.
Encontrei um pessoal aqui, alugamos um ateliê em Botafogo, e foi aí
que eu comecei, e que as coisas começaram a acontecer para mim. E
foi relativamente rápido. Num período de quatro anos, eu passei de
um aluno básico, aqui da escola, a participante da Bienal de São Paulo.
meu ateliê ficou muito denso de material, a ponto das telas grudarem nas paredes. E essa operação se tornou uma das coisas que
eu passei a utilizar: a impressão do próprio espaço de trabalho.
No início dos anos 80, a pintura era a linguagem do momento – e
eu comecei um trabalho que tinha raiz no neoexpressionismo
dessa época, e em alguns artistas que eu gostava. E era uma coisa
muito dinâmica. Eu fazia dois, três trabalhos por semana, dividia
meu tempo entre trabalhar num escritório de programação visual
e pintar. Em 85, participei da Bienal de São Paulo.
Bem nesse momento eu senti que precisava entender melhor o que
era arte, pelo menos como isso funcionava para mim. Todos os meus
trabalhos até então eram feitos com tinta acrílica. Eu tinha achado
um método de, a partir de uma imagem, desconstruí-la – um processo
de embate com tinta, pincel. Comecei a incluir novos materiais. No
final dos anos 80 teve início a minha primeira crise com a pintura.
Eu comecei a usar tinta a óleo, e outras coisas foram surgindo. O
A tela aqui mostrada, sem título1, é de 88, quando eu dividia o ateliê
com o escultor Angelo Venosa. Tem uma escultura dele no final
da Praia do Leme, Baleia2. Nesse trabalho, eu usei um pedaço de
uma sobra do Ângelo – o espaço negativo de um trabalho dele foi o
tema dessa pintura. E é uma pintura de processo. Eu fazia camadas,
colando, descolando, não tinha hora para acabar.
Em outro trabalho3, imprimi o chão do meu ateliê, tem as marcas
das tábuas, e pintei algumas coisas por cima. O processo consistia
em imprimir o espaço de trabalho, depois pintar em cima e depois
imprimir o espaço outra vez.
Eu usava os pregos que tinha no ateliê como tema. Meu espaço de
trabalho era de certa maneira o tema de algumas telas. Agora vou dar
um pulo para 92, quando tentei avançar com a ideia da impressão
do chão. Aproximei-me da ideia do sudário, para mim, um objeto
que é representado com sua própria matéria. Uma metáfora de uma
das conquistas da pintura moderna, que é tornar a tela um objeto.
Ela deixa de ser uma coisa passiva.
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Arrangement in Grey and Black No.14 é a imagem de uma tela que
via nos livros da minha infância, cujo nome popular é “Retrato da
mãe do artista”, do James Whistler, e mostra uma mãe sentada de
lado. Eu fiz essa mãe só com preguinhos enferrujados5, na superfície. Isso é uma maneira de se pensar a ideia do sudário. O corpo
produzindo sua imagem com a sua própria matéria – no caso, os
pregos. Essa tela se desdobrou numa série que não foi projetada
inicialmente, mas foi saindo ao longo de dois anos.
eu também misturava um pouco de pigmento. Agora não uso mais,
essa mistura impregna o pano e o cola no chão. Toda matéria que
está no chão vem no pano, que fica mais grosso. Tem uma fisicalidade diferente do pano inicial, que é um lençol.
Em Despacho6, eu refletia a imagem da mãe, na área escura da imagem, eu usei pó de limalha de ferro e cola branca e não mais pregos.
Desde o final dos anos 80, optei por não usar mais a pincelada, a
marca do gesto na tela. Eu ia pintar de outra forma. E a pintura
inicial, em que usava a pincelada, durou apenas um ano e meio.
Ela que não está I9 é de outra série, de 1994. Ano em que – mais de
uns dez anos depois de começar a experimentar com pintura – as
coisas começaram realmente a se sintetizar de forma mais clara,
em termos do que me interessava como autor, como pintor. Essa
imagem faz parte de um grupo de cinco telas que eu fiz com a mesma
imagem. O tema dessa pintura é uma parte de um afresco do Giotto,
que está numa igreja em Florença, numa capela10. É uma parte que
está faltando no afresco do Giotto – essa parte central.
Sem título7 é uma sequência do trabalho da mãe do Whistler, sendo
que, no meio, há essa impressão de um ateliê que eu tinha na Lapa –
é um chão de mosaico muito bonito. Não dá para ver nessa imagem,
porque a reprodução não é muito boa, mas tem todo um desenho
de mosaico do chão que foi impresso.
Como é essa impressão? Coloco um pano muito fino de algodão,
como um lençol, e sobre ele aplico cola e água; nessa época, às vezes,
Uma tela foi gerando outra, e a última dessa série da “mãe do
artista”, – quer dizer, a mãe já foi embora há muito tempo – eu
chamei de Casamento8.
Eu pintei usando um verniz asa de barata, um verniz para lustrar
móveis, joguei álcool no verniz e depois água – e surgiu um branco.
Cada trabalho desses que estou mostrando foi um tipo de parto.
Eu fiquei seis meses trabalhando nisso, alguns acidentes aconteceram. Eu descobri que aquilo que estava faltando na pintura do
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Giotto estava no território da minha pintura, seria o meu tema.
Mas havia imagens muito curiosas, como a trajetória do voo do
bumerangue. Não sei como é que se afere isso. Eram três trajetórias, e eu desenhei três trajetórias com preguinhos. A ideia é contar
uma história através de pequenos registros, é uma história de um
evento invisível, contada através de registros que têm uma relação
com o tempo. Há várias maneiras de se ver esse trabalho, eu achei
que essas camadas de leitura eram interessantes.
Eu chamei essa série de Ela que não está. Nos anos 80, eu tinha
feito uma tela11 com esse título pensando em uma pessoa – e resolvi
usar o título aqui novamente, agora atribuindo o “ela” à pintura.
Em Ela que não está II12, pintei a ausência da pintura do Giotto
com pó de ferro, e, em cima desse pó de ferro, apliquei verniz asa
de barata, que se dissolve com álcool e quando se joga água ele fica
esbranquiçado, é bem interessante.
Passando para outra série que considero importante. Tudo isso é
um trabalho de um processo, eu faço alguma coisa e tenho uma resposta do trabalho assim: “Olha, isso é uma coisa que me interessa”.
Bumerangue13 também foi feito com preguinhos, e eles deixaram a
marca na superfície. Eu trabalho na horizontal, ponho água, com
um pouquinho de cola Cascorez, e sal sobre os pregos. Quando a
água seca, os desenhos dos pregos ficam impressos na superfície.
Como falei, o meu primeiro contato com arte foi através de imagens
de livros, eu tinha umas coleções antigas da minha mãe. Uma delas
chama-se Tesouro da juventude14.
E agora um salto bem largo no tempo: Cavalariças I15 já é de 2001.
Como falei, essas impressões de chão, de espaços, eu comecei a
fazer em 87 e 88, por aí. Elas sempre estiveram presentes no ateliê,
mas por algum tempo eu as abandonei.
A partir de 95 tem uma fase em que eu era casado com uma americana e a gente ia muito para Nova York, e eu, às vezes, tinha um
ateliê lá. E nas áreas de Nova York e Connecticut, nos lugares em
torno, há muitos imóveis de madeira. Sempre que eu estava por
lá, imprimia esses espaços. Eu punha esses panos enormes – e, às
vezes, tinha um prédio inteiro para fazer. Assim fiz uma fábrica
inteira, sozinho. Ficava uma semana, punha 300 m de pano por 2
m de largura, imprimia tudo, e tinha um monte de pano impresso.
Em 2000, fui morar em Nova York, e tinha muitos desses panos.
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Eu saí do Rio de Janeiro, onde tinha um ateliê muito confortável
com assistentes, e passava o dia por lá, ficava andando, às vezes, sem
saber o que fazer – e pensei: “Preciso começar a ser mais objetivo,
é outro espaço”.
parece pequena, nesse espaço tão grande. Mas ela também repercutia o espaço onde estava colada, por representar esse espaço.
E ela foi feita com a matéria do espaço. Isso era uma ideia que
me agradava.
Isso foi uma das razões pelas quais experimentei mais com esses
panos. Eu comecei a justapor partes dos panos para formar uma
imagem de um espaço. Essa foi a ideia inicial.
Um trabalho que quase me agradou, fiz no MAC de Niterói17. Quando
fui convidado para expor lá, o MAC estava com aquele carpete já
encardido e a ponto de ser trocado. E eu pedi para a diretora para
que quando ela o tirasse, que me desse o carpete para eu fazer o
trabalho com ele.
Aí, nesse caso, cada superfície ou cada plano é um pedaço de pano;
então tenho doze pedaços de pano colados em diferentes tamanhos
– porque esta impressão não é homogênea. Ela é irregular, uma
parte é mais intensa do que a outra.
Esse espaço que eu imprimi é o espaço das Cavalariças, no Parque
Lage. O chão era de madeira, e essa tela foi exposta na parede ao
fundo da imagem representada. Ela repercutia o próprio espaço. A
matéria que está nela é a matéria do espaço. Ainda tem um pouco
de pigmento nesse pano, mas toda essa irregularidade era sujeira,
era coisa que eu arranquei do chão. E a tela foi para a parede no
próprio espaço.
Em frente a Cavalariças I estava Cavalariças II16, com 4 m x 3 m, e
Ela não me deu carpete suficiente para que eu pudesse preencher
todas as paredes, e isso é o que lamento nesse trabalho, porque eu
queria fechar todo aquele círculo do MAC com os carpetes. Como o
carpete é muito homogêneo, apesar de estar deteriorado, não dava
para ajustar por pedaços diferentes de carpete para formar alguma
imagem. Então, eu representei um pássaro que voa por toda a região
aqui da Baía de Guanabara. E, na verdade, ele é simplesmente o
corte. Eu tirei o pedaço do carpete, e é a própria parede do museu
que forma a imagem do pássaro voando. Isso foi em 2003.
Em 2005, fiz Obra18, que é uma sequência desses trabalhos de colagem em que a coisa ficou um pouco mais obsessiva. Eu resolvi que
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essas impressões de madeira podiam voltar a representar madeira.
Ao invés de usar um pano para representar um plano, como estava
fazendo até então, usei um pedaço desse pano para representar
um pedaço de madeira. Nessa época já não uso mais pigmento
na mistura. Basicamente, é só matéria que está no chão, que está
impressa no pano e que está sendo vista.
Eu representei, basicamente, um plano com pequenos nichos
vazios. Essa tela é grande. Para mim alguns trabalhos devem ser
grandes para que o observador seja integrado ao que está sendo
representado. Ela tem 4,60 m de largura por 2,5 m de altura.
E cada linha é uma colagem diferente, e elas não estão superpostas,
elas são justapostas – e isso leva um tempo muito maior do que
aquela outra das Cavalariças, que eram cinco, dez panos colados.
Em Obra eu tenho um pano em cada linha. Nessa época, eu já trabalhava com assistentes, e era a única maneira de poder fazer esse
trabalho. É uma coisa, certamente, obsessiva.
Cada planozinho desse trabalho é um pano diferente. Nesse caso,
a ideia inicial era assim: como eu já tinha imprimido em vários
lugares do mundo – no Brasil e nos Estados Unidos, basicamente
– eu tinha pedaços de pano de um lugar em Connecticut, de um
lugar no Bronx, de um lugar na antiga Casa do Estudante aqui
do Rio, do meu ateliê. E eu tinha essa coleção de paninhos, então
imaginei fazer esse trabalho19, que eu posso chamar de escaninhos
ou prateleiras, ou uma fachada moderna – e com panos de todos
esses lugares por onde estive.
A virgem ainda20 é um trabalho que vem mais ou menos na mesma
época, é outra maneira de representar o espaço com essas colagens.
Comecei a juntar imagens de espaços de pinturas do Renascimento, para criar essa pintura com características mais pictóricas.
A sensação permanente, nessa época, é que, com esses trabalhos,
eu estava chegando a um modo de trabalhar em que planejava e
projetava o trabalho quase totalmente, antes de começar a fazê-lo.
O problema na execução era de valor, de cor, de pensar como é a luz e
o contraste. E, ao longo desse tempo, eu comecei a sentir um desejo
de retomar o embate de ateliê, que havia no início – de não ter a coisa
tão definida a priori antes de começar a executar. Não que isso seja
uma garantia de que o trabalho vai dar certo. Tenho um monte de
trabalhos lá no ateliê, um monte de coisas que não funcionaram.
Mas, de qualquer maneira, esse trabalho é uma resposta a essa
vontade de retornar a um processo mais de embate, que eu tinha
antes de morar em Nova York. Eu voltei para o Brasil em 2004,
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“Meu desejo sempre é
que o trabalho esteja
no reino da imagem,
que a comunicação seja
mediada pela pintura.”
e esses últimos trabalhos que eu citei – mais complexos e mais
fragmentados – foram feitos de 2004 para cá.
Outro motivo para eu escolher imagens do Renascimento para
representar, foi que imprimi um casarão lá na Lapa, que tinha
sido usado para algum tipo de filmagem e ficou com um pigmento
vermelho no chão, que só apareceu quando fiz as impressões. Esse
pigmento lembra muito o vermelho cardeal que está nos afrescos
e na pintura do Renascimento.
Nessas composições, usei pedaços de obras de alguns pintores do
Renascimento. O uso do vermelho era importante, para trazer a
sensação do ambiente da pintura desse período.
Ici et ailleurs21 é parte de uma série que eu estou fazendo, que chamo
de Reino – e meu desejo é fazer no ano que vem uma exposição só
com esses trabalhos. E é uma outra tela dessa série das estruturas
arquitetônicas, uma tela bem grande, tem 4,60 m por 5 m.
As aquarelas “...”22 são um trabalho que eu comecei a fazer, sem
saber bem por quê. Um dia, na minha casa, eu estava fazendo uma
aquarela para alguma ilustração que me pediram, e aí eu comecei
a fazer aquarelas a partir do chão da minha sala.
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Quando fui morar nesse apartamento, havia resolvido mudar a
posição dos tacos. Eu não gosto de tacos naquela disposição que
chamam espinha de peixe, me dá uma sensação triste.
esse trabalho voltei também a usar a tinta e a mão. O meu chão não
tem essa diversidade de madeiras. É de uma madeira só, peroba.
Mas aí comecei a inventar algumas e também a copiar outros tipos
de madeira.
Quando eu mudei a posição dos tacos, a principio não me dei conta,
mas eles começaram a se relacionar uns com os outros, como se
fossem pequenas paisagens. É muito interessante.
Essa imagem é a imagem da sala onde tenho uma televisão e um
sofá, onde eu fazia essas aquarelas. Eu ligava a televisão e ficava
fazendo aquarela. Eu comecei a fazer esses taquinhos, pensando:
“Uma hora, isso vai dar em um trabalho”.
Levou uns dois anos, até eu decidir que o trabalho seria a imagem
do espaço onde estava fazendo as aquarelas. E isso está na escala
real. Esse trabalho tem 4 m por 5 m. Essas são as saídas da sala.
Pena que esse trabalho se destruiu; depois de todo esse esforço, eu
mandei o trabalho para ser montado, num lugar que faz trabalhos
para artistas, e eles usaram uma cola dupla-face que não funcionou.
Com o tempo, as aquarelas começaram a se soltar e não tinha mais
jeito de colá-las de volta – então, o trabalho foi para o lixo.
Eu fiz outro, depois, com a planta do corredor da minha casa. Com
Havia o desafio de reproduzir as transparências de algumas madeiras – são várias camadas de tinta, que, às vezes, tenho que aplicar
quase ao mesmo tempo. Era muito divertido fazer isso. Algumas
vezes eu ficava um jogo de futebol inteiro fazendo uma só aquarela,
e em outras, numa tarde, eu fazia cinco. Eu comecei a fazer papéis
maiores de aquarela e a cortar. O objetivo não era sofrer, mas ter
um tipo de produtividade também.
Skira I23 é parte de uma série em que eu ainda estou trabalhando.
São telas feitas com páginas de livros de arte. Na minha casa,
quando eu era criança, haviam alguns livros de arte da editora
Skira, depois passei a comprá-los. Neles as reproduções das
obras são impressas em papel couchê que são colados às páginas
com texto ou informações. Eu usei as páginas de suporte, sem as
reproduções. Como são livros antigos, algumas páginas são mais
amareladas, outras menos. Nesse trabalho usei o contraste das
páginas de papel antigo, da mesma maneira que eu estava usando
as impressões de chão.
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No início não sabia muito bem o que fazer com esse material, como
acontece muitas vezes. Na época, tive uma conversa com um crítico
e curador – e ele achava que eu deveria tematizar essa imagem. Por
exemplo, ele falou: “Se você pegar Guerra e paz , você vai fazer uma
coisa diferente do que se pegar a Bíblia. Isso era a continuação de
uma conversa que tinha tido anteriormente, com esse crítico, em
que ele insistia que eu deveria politizar o meu trabalho.
Outra coisa no meu processo é que eu acumulo muito papel de convites de exposição e catálogos, essas coisas. Principalmente convites. E,
num determinado momento, resolvi reciclar esse papel para depois
desenhar nele. Eu comecei a pesquisar isso, acabou que eu não fiz esse
trabalho; e um dia, eu resolvi fazer tijolinhos24 de papel reciclado.
Meu desejo sempre é que o trabalho esteja no reino da imagem,
que a comunicação seja mediada pela pintura.
E os livros dessa editora Skira também estiveram sempre presentes na minha vida. Tem uma edição sobre os mosaicos de Ravena,
dessa editora, que é imbatível, porque, em várias reproduções,
eles têm até sete cores. Hoje, eu não sei como é, mas, nessa época,
você podia fazer toda uma impressão, um rolo inteiro só de uma
imagem – então, a regulagem era perfeita para aquela imagem, e
o livro tinha uma qualidade maior. Hoje é diferente.
Com uma aproximação é possível ver o detalhe da imagem – o
branco entre esses pedaços de papel é um suporte de alumínio,
onde eu colei os papéis, justapostos. Esses escritos pequenos são
os títulos dos trabalhos que estavam colados na página.
A ideia era fazer alguma coisa com papel que vem das artes, do
sistema das artes. Onde existe muita sobra. Eu recebo um monte
de convites toda semana, todo mundo recebe. Daí eu comecei a
fazer esses tijolos, resolvi fazer umas telas com eles. Mas antes de
fazê-las, fui convidado para fazer uma exposição no Centro Cultural
São Paulo e a proposta era utilizar o próprio lugar, o próprio centro
cultural como tema para o trabalho.
Lá no CCSP, há uma escultura do Brecheret, cujo título é Eva25. Eu
coloquei uma fabriquinha de reciclagem de papel nesse lugar. Com
os papéis que sobravam do Centro Cultural comecei a fazer tijolos
e ao longo do período da exposição fui empilhando-os em torno da
escultura26. A cada mês fui subindo meu muro em torno da Eva.
Como esses tijolos são só justapostos, eu precisei criar colunas para
que as paredes não caíssem. E eu acho que elas deram um desenho
mais legal para o volume que foi surgindo.
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Várias associações surgiram ao longo do trabalho. Muita gente
achava que o material do tijolo era o mesmo da escultura; outros
falavam que estava ocultando a nudez da Eva. Um cara, um escritor, disse que havia um embate entre o trabalho do Brecheret,
que é mais próximo à academia, com um trabalho contemporâneo. Eu discordei dele. Achava que, na verdade, estava até
chamando a atenção para o trabalho do Brecheret, que havia
uma comunicação.
Nos anos 80, aconteceu uma volta da pintura. O mundo todo começou a pintar, novamente. Teve um boom de grana no mundo, e
nesses polos de cultura e grana – tipo a Europa, os Estados Unidos
– surgiram mercados de arte muito fortes e uma arte muito rápida,
que era a pintura. Rápida no sentido de que pintores com cinco anos
de carreira já estavam mostrando trabalho, estavam com mercado.
O Centro Cultural São Paulo tem muitas atividades, passa todo tipo
de gente. E ficou um cara lá, trabalhando, fazendo esses tijolos; ele
conta histórias interessantíssimas de pessoas roubando tijolos,
outras batendo com tijolos na cabeça. Muita gente conversando
com ele.
Finalmente, agora estou fazendo telas com esses tijolos.
Gostaria de ouvir um pouco mais sobre essa decisão
de abandonar, de alguma forma, essa manualidade da pintura
– e, também, sobre a ideia de suporte, como é que isso
se relaciona dentro do seu trabalho. Eu já vi trabalhos seus
apoiados sobre material metálico e também sobre tela.
Como é que isso foi se construindo?
Aluno:
Ao mesmo tempo em que, na Alemanha, não eram tão jovens os
pintores que estavam começando a ficar fortes. Entre eles, estava o
Markus Lüpertz; Richter sempre esteve em evidência, mas estava
mais; Sigmar Polke e Anselm Kiefer.
Mas, na Itália, havia a transvanguarda italiana, que eram os caras
mais jovens, e era uma pintura muito ruim, muito gestual. Pior
ainda era o neoexpressionismo alemão – mas era a pintura que
se fazia no mundo.
A Bienal de 1985 foi dedicada à pintura – mas ela fez uma afirmação,
só que a curadora resolveu fazer uma intervenção meio discutível
em relação a isso. Ela criou “A grande tela”. Era uma parede que
ia e voltava, ia e voltava; eram três paredes ao longo do prédio da
Bienal, o que é longuíssimo, só de pintores, um ao lado do outro.
Eram pintores do mundo todo.
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Alguns discordaram, principalmente os alemães, que tiraram os
trabalhos da parede, e acabaram em salas separadas, ela meio que
reduzia tudo a quase que uma epidemia, um vírus mundial. Por
outro lado, existia esse aspecto, sim.
Quando comecei a pintar, comecei como muita gente que estava
no Parque Lage, que não sabia o que fazer e como fazer isso. Quer
dizer, tudo era variável. Eu achei que, se me ativesse a essa forma
moderna de pintar eu não ia conseguir descobrir nada sobre o meu
assunto. Além disso, eu tinha a sensação de que, para um trabalho
de arte ser potente, ele tinha que discutir ou problematizar a linguagem que estava usando.
Eu acho que esse foi o primeiro momento em uma Bienal em que
a curadoria teve um tipo de ação ativa, mais incisiva – de botar o
dedo na criação, e mostrar: “Olha, essa pintura coletiva aqui eu fiz,
e fiz com a pintura de todo mundo”.
Essa pintura era muito “pictórica”. De certa forma, era como se
tivesse deixado para trás todas as descobertas do período moderno,
como as pinturas mais de superfície, minimalistas. Era toda figurativa e tinha muito de embate.
E eu estava aqui no Rio, sofrendo influência desse momento. Para
mim, foi ótimo começar assim. Eu gostei muito do trabalho de um
pintor chamado Markus Lüpertz, que vi na Bienal de 1983. Quando
comecei a pintar à maneira dele, comecei a fazer o meu trabalho, que
não era exatamente o do Markus Lüpertz, mas que funcionou como
um lugar onde eu podia começar a pensar em pintura de uma forma
mais organizada. Foi um tipo de iniciação, que depois descartei. E
descartei porque vi que não ia ter futuro naquilo.
Eu acho que essa pintura dos anos 80 só lidava com um aspecto
do modernismo, que era o aspecto da expressão. A própria transvanguarda italiana, que veio do Bonito Oliva27, era uma ideia meio
requentada de maneirismo.
O Bonito Oliva dizia que o pintor contemporâneo estava num tipo
de platô, que a arte tinha chegado num tipo de esgotamento e que
ele poderia usar elementos de períodos que lhe interessassem. Mas
os artistas que ele apoiava eram todos muitos parecidos entre eles.
Tinham uma pintura figurativa, uma narrativa quase anedótica, às
vezes poetizada. Mas a pintura já tinha conquistado mais do que
isso no final do século XX.
Então, eu pensei que se ficasse na pincelada, ia ter que me dedicar
a inventar um tema psicológico, social, com figuras, imagens, e eu
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não queria fazer isso. Achei, então, no final dos anos 80, que o tema
do meu trabalho era a própria pintura. Como ela é mais ampla
do que o que eu fazia naquela época, eu estava numa bela crise, e
pensei: “Eu vou experimentar outras coisas”. Essa impressão do
espaço me ajudou a abandonar o pincel.
você vai ver um Van Gogh, pensa: “Essa pincelada foi feita pela mão
do Van Gogh, que esteve nesse espaço pertinho daqui”.
Quando você diz que abandonou o pincel, para mim
parece que seu trabalho se tornou mais manual do que antes.
Você fala também bastante sobre sofrer para fazer o trabalho,
e eu queria saber se essa parte do manual mais denso, do
sofrimento, te dá um prazer maior no final, quando você vê
sua realização.
Aluno:
Por que você acha que ele se torna mais manual?
Porque você está usando outra linguagem, que
não aquela da pincelada, você está realmente pegando em
materiais mais densos, diferentes.
Aluno:
Eu acho que o trabalho continua manual. Abandonar a pincelada
não é abandonar o contato pessoal com a obra. Eu acho importante
ter um contato, acho que uma das características que me agradam
nas artes é saber que o autor passou bem pertinho dali. Quando
Quer dizer, cria uma sensação de coisa única, na obra de arte, que, hoje
em dia, a gente não precisa mais ter. Uma obra de arte não precisa
mais dessa qualidade, mas isso é uma coisa que me agrada. Abandonar
a pincelada não é abandonar o embate que eu estava tendo na época.
Foi simplesmente porque essa pincelada representava uma parte do
que é pintura, mas a pintura é representada por mais coisas.
Ao longo do período moderno, a pincelada some várias vezes.
Pollock usa tinta, mas não usa o pincel pincelando, por exemplo.
Por eu estar tentando fazer uma coisa que eu não sabia o que era, e
nem sabia de que maneira fazê-la, era uma coisa angustiante em si.
Ao longo do tempo, tentei lidar com isso, tentei diminuir essa sensação de angústia, porque não é legal estar angustiado o tempo todo.
Mas é uma coisa que sempre esteve presente. Depois de 25 anos,
até Prometeu, na montanha, começa a gostar do abutre. Ao longo
do tempo, eu, obviamente, aprendi com meu trabalho e comecei a
selecionar as coisas que me interessam. Tanto o conteúdo, do que
ele trata, como a forma que vou trabalhar. Agora, eu lido com esse
desconforto de uma maneira mais racional.
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EVA, 2009
Tijolos de papel de catálogos e convites
de exposições, cola PVA e gesso
Vista da Obra: Centro Cultural de
São Paulo, 2009
Foto: João Mussolin
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Mas, no início, eu tinha uma ação angustiada, muito forte – porque eu estava num processo muito intenso. E era um contraste,
até. Na época, eu li uma matéria numa Flash Art ou Artforum
dessas, que dizia (é claro que eram os americanos que estavam
falando) que essa coisa angustiada já não tinha mais a ver com
a arte contemporânea, que era uma atitude romântica europeia
de antes da guerra e que, agora, não precisavam mais sofrer para
produzir. A pergunta era: por que os artistas não se matavam mais,
não se suicidavam como antigamente? Era verdade, se morria de
overdose, mas não por não aguentar o processo de vida integrado
à obra. E o que se dizia, mais recentemente, é que isso era uma
coisa ultrapassada.
Eu estava num embate no ateliê que era visto nas mostras que
eu fazia. Isso estava sendo mostrado quase todo ano em uma
galeria. Eu gosto de alguns trabalhos dessa época, porque eles me
indicaram várias coisas; mas tem alguns que não me agradam.
Fiquei um período de dez anos num estado intenso de especulação. Ainda acho que está tudo se formando. Às vezes, acordo
com essa sensação. Mas hoje tenho uma maneira mais saudável
de lidar com isso.
No meu caso, o começo foi um processo de muita internalização,
para eu tentar descobrir o que estava acontecendo – e levei pelo
menos dez anos para ter uma primeira organização clara, os primeiros sinais do que me interessava.
A coisa curiosa, pelas circunstâncias da época, é que comecei
a expor e vender meu trabalho logo no início desse processo.
Estava numa situação em que tinha que lidar com uma trajetória. Isso poderia ter me congelado, ou me colocado numa situação
de paralisia.
Eu queria que você falasse um pouco mais sobre a
técnica que você usa para fazer a impressão desses terrenos.
Você falou que usa cola, mas eu não consegui visualizar muito
bem como seria esse processo.
Aluno:
A primeira vez em que colei uma coisa no chão foi acidental e com
a própria tinta acrílica que estava do outro lado do pano. Ela o
atravessou, pois era um pano muito fino, colou no chão, e trouxe
a matéria que estava lá. Eu comecei a imprimir usando água, cola
Cascorez e um lençol fino, espalhando essa mistura no pano com
um rodo. O pano é tão fino que ele é encharcado por essa solução
de cola e água. Quando você tira o pano do chão, a matéria está
menos presa ao chão do que ao pano. Essa é a maneira que eu uso
para imprimir esses lugares.
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Você falou de trabalhos onde a sua relação já estava
definida a priori, e outros em que a obra vai se revelando no
processo. Eu gostaria que você comentasse um pouco mais
sobre essa diferença.
Aluno:
Desses trabalhos que eu mostrei, alguns me indicaram coisas que
me interessavam para formar aquilo que é o meu discurso, o meu
conjunto representativo, minha pintura.
Essas coisas foram acontecendo. Eu era – vamos dizer – o espectador privilegiado. Eu via o que saía e decidia se aquilo era uma
boa resposta ao trabalho. Esse acidente de ateliê é uma coisa
comum. Eu li uma entrevista ontem de uma pintora americana,
que já tem um trabalho estabelecido; ela comentava que em certa
ocasião, em Berlim, no final da noite, ela apagou uma coisa na
obra, voltou no dia seguinte e viu que esse gesto tinha resolvido
o trabalho.
Quer dizer: por mais que se tenha uma abordagem planejada nos
trabalhos, muitas vezes é uma descoberta, um acidente que faz o
trabalho se realizar. Ao longo do tempo, esses acidentes definiram
coisas importantes em relação à minha produção. E, a partir deles,
eu pude planejar mais a priori o trabalho.
Em 1993, eu estava numa viagem de carro, pensando: “Eu não
posso ficar um mês indo para o ateliê todo dia e não terminar um
trabalho”. Eu tinha acabado de ter um filho. “Eu tenho que definir
o que o meu trabalho é – para, a partir disso, produzir com menos
perda de energia, planejar o trabalho a priori”.
Eu cheguei a algumas ideias relacionadas a sudário, a memória, que
eu anotei, e depois guardei. Ao longo do tempo, esses momentos
fizeram com que eu criasse um tipo de intimidade com aquilo que
faço, com o que me interessa; e eu podia já planejar o trabalho
a priori.
Nesse momento, eu estou tentando trabalhar nesses dois estados.
Quais são? Um é fazer um trabalho em que não sei como é que vai
ser, como essa série de pinturas que eu chamo de Reino. O outro
é fazer um trabalho que eu sei exatamente como vai ser – como
esses de tijolos. A feitura desses trabalhos é quase uma produção
de fábrica. Eu tenho um liquidificador industrial, tenho as formas
de tijolo, um assistente que me ajuda – que faz isso para mim – e
estabeleço uma quantidade de tijolos por semana para cumprir.
Enquanto isso, ao mesmo tempo, estou fazendo essas telas de uma
forma diferente. Um trabalho de embate que começa a partir de
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alguns parâmetros que estabeleço, mas que não tem hora para
acabar. Eu acho que o artista está sempre falando a mesma coisa,
mas a forma como ele fala vai evoluindo, vai se transformando.
Eu quero falar essa coisa de uma forma muito projetada e de uma
outra não muito projetada.
boçal de tinta acrílica. Dessa forma, eu pintei para a Bienal de 85.
Na época eu tinha um marchand muito provocador, em São Paulo,
chamado João Manuel Sattamini – primo do colecionador João Leão
Sattamini. Ele trabalhava com uns artistas em São Paulo, como o
Nuno Ramos, e me falou: “O Nuno disse que você não sabe pintar
com tinta a óleo”. E era verdade, eu nunca tinha usado tinta a óleo.
Mas essa forma “não muito projetada” é mais projetada do que
era no início. Hoje eu posso usar alguns esquemas para fazer esse
trabalho da série Reino. Algumas superposições de imagens de
trabalhos do Renascimento, eu uso o computador, coisa que não
tinha naquela época. Enfim, mas é processo, ainda é embate.
Você falou, em determinado momento, sobre os
materiais, como era seu processo com tinta acrílica, da
dificuldade que teve no uso da tinta a óleo. Gostaria que você
comentasse mais sobre isso.
Aluno:
Como falei no início, comecei com tinta acrílica, e trabalhava de
uma maneira simples; eu usava poucas cores, elas mal se misturavam, era quase como desenhar.
Eu comprava tonéis de um medium acrílico chamado Movilit e
misturava pigmento nele. Era uma coisa assim, uma quantidade
Então eu comecei a usar tinta a óleo e, realmente, eu, literalmente,
comecei a patinar nela. Toda aquela rapidez do acrílico sumiu. Não
só porque a tinta era diferente, mas porque eu tentei usá-la de uma
maneira diferente, também. O meu ateliê virou um lugar insuportável, estava coberto de tinta em todas as superfícies. Aquele cheiro de
tinta a óleo me intoxicava. Eu não abandonei a pincelada por conta
disso, mas esse material me fez também usar a tinta de outra maneira.
Posteriormente, com essas impressões, eu comecei a misturar
tinta acrílica com tinta a óleo; eu imprimia chão com cola, que é
uma coisa à base d’água, e depois eu pintava em cima, às vezes com
tinta a óleo, mas às vezes com tinta industrial. Agora, eu quase não
tenho mais tinta no ateliê.
Voltando para essa mudança no seu trabalho, eu
queria saber como foi que ela aconteceu. Você começou
Aluno:
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muito cedo, com um trabalho que estava em voga na época.
Como você foi tomando essa decisão de seguir outro
caminho? Foi uma coisa solitária, uma decisão sua, ou havia o
apoio de outro grupo de pessoas que estavam querendo sair
dessa discussão?
Isso é interessante. Eu estava falando hoje, com uma amiga, que
quando comecei a pintar eu tinha muita vontade de realizar algo.
Em 1982 fiz um curso aqui na Escola, e depois, em 1983 fiz outro.
Fui à Bienal de 1983 e foi muito legal. Tinha o Jorginho Guinle,
umas pinturas enormes. Tinha esse cara, o Markus Lüpertz, com
quem eu fiquei muito impressionado. E, dois anos depois, eu estava
na Bienal. Em 83 eu não tinha um trabalho. Em 85 eu já tinha “um
trabalho”, e além de estar lá, fui dar uma palestra para os orientadores da Bienal sobre o meu trabalho. Quer dizer, é ridículo,
não é? Eu tinha dois anos de trabalho, nem sabia direito o que eu
estava fazendo.
Eu tinha 24, 25 anos e tinha me formado em Engenharia. Eu sabia
que se não começasse a pensar direito sobre isso, no final dessa
década, eu estaria trabalhando de novo com programação visual.
Era um problema meu, eu tinha que me aprofundar nessa história.
Eu só tinha tido a sorte de estar fazendo isso já como artista, o
que dá um grande alento. É melhor fazer isso sendo reconhecido do que estar no seu ateliê batalhando até você descobrir
um grande trabalho sem que ninguém veja. Estar sozinho, nessa
hora, é muito chato.
A exposição que teve aqui no Parque Lage, Como vai você, geração
80?28, tinha 180, 200 pessoas, muita gente. Eu tinha certeza de que
dali não ia ficar nem 10% disso. E foi o que aconteceu.
Existia toda uma coisa, naquele momento, que não era para permanecer, não tinha como se sustentar. Não importa o que estava
acontecendo nessa época, agora é outro território, outro momento.
A pintura como linguagem vai existir sempre. Temos trabalhos
que juntam linguagens distintas, até fica difícil classificar qual
é a linguagem principal. Mas o que sustenta uma obra é a sua
qualidade, independente da linguagem do momento. E, naquele
momento, eu tinha essa sensação de que, se eu não mudasse, se
continuasse naquele ambiente expressionista, não ia conseguir
ir adiante.
Mas você conseguiu fazer essa transformação de
uma maneira que não envolveu riscos financeiros?
Porque você já estava, provavelmente, vivendo do seu
Aluno:
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trabalho anterior, que era típico da geração 80, e fazer essa
transformação pedia um período. Foi uma coisa que você foi
fazendo racionalmente, você foi largando seu trabalho antigo
para continuar dentro do meio, ou foi de um salto que você
trouxe um trabalho diferente?
Não. É porque eu mostrei poucas imagens. Mas na verdade nunca
teve uma ruptura muito grande no trabalho. Quando comecei,
eu trabalhava em um escritório de programação visual dentro de
um banco e saí de lá porque já estava na Bienal de 85. Fazia mais
sentido ficar pintando, porque eu poderia me sustentar. Mas até
meados dos anos 90, minha vida era muito simples.
Eu não precisava de muito dinheiro, então o risco financeiro era
sempre baixo, porque eu não ganhava muito. O mercado começa
a ficar forte do meio dos anos 90 em diante. Não só para mim, mas
acho que o mercado em geral começou para todo mundo nessa época.
Mas, no meu processo, sempre tirei a pressão financeira da expectativa do trabalho. Eu acho isso um problema. Porque é uma maneira
de você ficar sendo mal influenciado. Quer dizer, se você tem vontade de fazer uma coisa que tem pouco potencial de mercado, pode
ser que você a descarte, por questões de grana.
Você falou daquele trabalho: Ela que não está, que
é sobre uma parte que está faltando do afresco do Giotto.
Eu queria saber como é que você lida com essa informação.
Pois eu, pelo menos, ao ver o trabalho, não saberia
identificar isso sem esse dado. Eu queria saber como
é que você insere essa informação no trabalho, se isso é
uma preocupação.
Aluno:
Meu desejo é fazer um trabalho em que o espectador não precise de
uma informação a priori. Eu gosto também da ideia de um trabalho
que não fale de uma coisa só. Que, para você, ele fale uma coisa, e,
para outra pessoa, fale outra. Mas é inevitável hoje em dia – no
momento que a gente vive – as obras terem referências. Não da arte
apenas, mas terem um território em que, se você tiver algum tipo
de informação, pode se relacionar de uma maneira mais intensa
com esse trabalho, pensar mais nele.
Por isso, os tijolos de Tijolos para EVA são feitos com livros, com
material de arte. Seria diferente se eles fossem feitos de cimento,
gesso e cola. Ou se fossem feitos com papéis do Diário Oficial.
Teriam um outro significado. Quer dizer, me interessa uma arte
que chame o olhar, uma obra que chame o olhar. Você pode dizer
que ela pode ser bonita, pode ser atraente, pode ser barulhenta.
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Mas eu acho que isso é uma maneira de entrar num ambiente, e a
forma como você lida com esse ambiente é pessoal, é sua.
dentro?”. Eu pintei só chapado, e ficou chato, então eu provoquei
uns acidentes de verniz com água, que deram um efeito pictórico
naquele espaço contido, que se expandiu um pouquinho também
para fora do espaço, mas principalmente dentro daquele espaço –
que era a forma que faltava no Giotto.
A falta do Giotto é uma coisa assim: eu fui para Florença para ver o
Giotto. Aí, você está lá olhando, é uma capela, a igreja tinha umas
capelas e tinha a capela da família Bardi, onde estava ilustrada a
vida de São Francisco de Assis. Há um guia mostrando o que está
acontecendo na pintura, fala da qualidade nas expressões, fala da
qualidade da cor do Giotto.
Há uma tremenda mancha muito interessante, lá, que tem uma
história, mas sobre a qual o guia não fala. O seu olho vai através
daquela mancha, apesar dela estar te atingindo visualmente da
mesma forma que o afresco. Ambos estão no plano físico, o mesmo
plano de apreensão, mas ela não está sendo comentada.
E eu achei interessante esse tipo de exclusão que o olho tem que
fazer, às vezes, para que se veja alguma coisa. Claro que isso é apenas
uma das maneiras de se pensar nisso. Então, eu pensei em fazer
umas telas onde o meu campo de trabalho seria exatamente o que
está faltando no painel do Giotto.
Eu fiquei uns seis meses pensando: “como é que eu vou pintar lá
Visualmente, o trabalho Ela que não está tem uma
forma interessante. Mas, quando você tem essa informação
de que aquilo ali é a parte que falta do afresco do Giotto, isso
acrescenta outro tipo de interpretação, ou um outro tipo de
dimensão na fruição de quem está vendo o trabalho. Então,
era isso que eu queria saber, se você acha essa informação
fundamental ou se ela é simplesmente uma coisa a mais.
Porque eu vejo isso em muitos trabalhos seus. Em A trajetória
do bumerangue: quando você fica sabendo que aquilo ali é
a trajetória invisível do bumerangue, parece que o trabalho
ganha muito mais força.
Aluno:
É, mas na verdade, como eu já disse, eu não espero que todo mundo
veja o trabalho do jeito que eu vejo. Eu gosto de um trabalho que
tenha um apelo visual forte, inicialmente, e se você tiver mais informações sobre esse trabalho, tudo bem, isso aumenta a capacidade
de você fruir em relação a ele.
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“eu tinha a sensação
de que, para um
trabalho de arte
ser potente, ele
tinha que discutir
ou problematizar a
linguagem que ele
estava usando.”
E eu acho isso inevitável, na arte contemporânea: a informação
é parte do trabalho. Me incomoda só quando, sem a informação,
não há nenhum tipo de comunicação com o trabalho. Por outro
lado, tem um artista contemporâneo que diz: “Eu me preocupo
com todas as instâncias do trabalho, eu tento tratar de todas as
instâncias do trabalho”. Eu não acho que isso seja possível, a não
ser alguns trabalhos do período da arte conceitual, onde a possibilidade de um devaneio é quase zero. Mas, hoje em dia, eu acho
isso uma pretensão.
Eu não consigo tratar todas as instâncias do meu trabalho, e acho
muito legal, eventualmente, que alguém traga uma nova instância
de ver um trabalho meu. Porque o trabalho também é uma mediação
sua com alguma coisa que você não conhece. É a materialização
dessa mediação. Eu gosto de me sentir o observador privilegiado
do trabalho. Eu não tenho o domínio de todas as leituras dele, mas
acho que não tem como se fazer um trabalho hoje sem referências.
Ter múltiplas referências é muito interessante. Eu
queria falar um pouco desse trabalho dos tijolos no CCSP.
Quando você estava falando da série Skira, você mencionou
uma prática de não tematizar a pintura, de não trazer temas
de ordem social e política para o trabalho de pintura.
Aluno:
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Mas esse trabalho dos tijolos tem uma lógica de interdição.
Isso, em algum aspecto, fala sobre sociabilidade, sobre o
acesso à arte. Aí, eu queria saber: Como você descola essas
dimensões da vida do trabalho? E por quê?
Aquela frase foi rápida; é legal você trazer isso, porque é uma questão. Eu acho que não tem como separar a vida do trabalho – e eu
acho que, hoje, a arte contemporânea que mais me interessa é
a que volta a tratar das questões da vida e que não se preocupa
simplesmente com a sua especificidade, a arte pela própria arte.
Esse é, em geral, o encaminhamento da arte hoje. Existe uma tendência, também, de uma arte engajada politicamente e socialmente,
num nível maior do que me interessa, principalmente quando ela
tematiza uma questão social. Sem espaço para nenhuma transcendência. Eu não tenho interesse nisso.
Gosto da ideia de uma arte que possa permanecer depois que seu
contexto muda. Claro que você tem que se reportar ao contexto do
Fra Angelico para ver melhor o trabalho dele. Mas tem especificidades do período Fra Angelico que não são mais relevantes hoje.
O que eu quero dizer é que não há como um trabalho, hoje, não
se comunicar por uma via da nossa vida social. Esse trabalho dos
tijolos, à medida que eu fui fazendo, fui descobrindo vários níveis de
apreensão. De como é que se pode olhar para ele por outro caminho
que não o que eu tinha – essas coisas das instâncias, que eu tinha
pensado a priori.
Por exemplo: a estátua da Eva está olhando para um lado, e por
acaso eu botei a fabriquinha do tijolo no andar de baixo, e o olhar
dela ia direto para lá. Então, alguém falou: “Há uma relação de
uma pessoa que está sendo aprisionada com seu carcereiro, ela
está vendo os tijolos que vão envolvê-la.” Eu não tinha pensado
nisso. Eu pensei mais na ideia de construir um volume de caráter
escultórico – foi a primeira vez que eu fiz uma coisa assim – em
torno de uma escultura muito interessante, que tem formas macias
– enquanto meu objeto tinha formas duras, arestas. Essa Eva não
tem arestas, é um corpo.
Essa foi a minha chegada principal a esse trabalho – mas, obviamente,
tem outro nível de leitura, que é: em todo o material publicado por
esse espaço e por outros centros culturais, eu tirei a informação
dessas publicações. Eu zerei as publicações, em termos de conteúdo
informativo, e transformei em material. Isso é uma coisa política,
uma afirmação política, uma crítica ou uma intervenção.
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Eu peguei um material que fala da arte e retirei o que está sendo
falado, o que é uma operação inversa àquelas impressões de espaços
vazios. Nesta, eu pego a informação que está no espaço e coloco na
parede. Aqui, eu estou tirando a informação que está no material
e botando na parede. Isso está falando de coisas além do que simplesmente a minha vida interior abstrata. Tratando da ligação, da
questão desses materiais com a vida em torno.
isso, ainda existia toda uma operação em cima da ideia da pintura,
principalmente, ou do objeto. A Leda Catunda, que ainda lidava
com a superfície pictórica; o Leonilson, a Bia. O Angelo Venosa,
que é um escultor – mas que também trabalha no plano. Esses são
os meus companheiros de geração. A Cristina Canale, que tem um
trabalho mais pictórico; o Luiz Zerbini, que hoje tem uma produção
muito interessante, em que ele circula de materiais prontos para
uma pintura mais virtuosa. Eu acho que o que caracterizava esse
grupo era a diversidade de soluções.
Claro que há um ambiente político, que é inevitável. Toda arte é
conceitual. Existe sempre um percentual de conceito na arte. E
toda arte é política. O que não me interessa é quando ela é tematizada, e isso é tão predominante que o fato da visualidade fica
secundário.
Como você vê sua relação atual com outros artistas
contemporâneos? Da geração que te marcou no início da
carreira, com outros artistas brasileiros da geração 80, e
também no panorama internacional. Você vê semelhanças,
proximidades com algum grupo, ou existe uma independência
muito grande entre os artistas?
Aluno:
No passado, eu já conversei com alguém que o que unia os artistas
da geração 80 era a diversidade de soluções. Mas, quando falei
Cada um fazia do seu jeito, inventou a sua cozinha – a partir ou de
uma poética pessoal ou de uma preocupação pessoal com a arte.
Isso, logo ao final dos anos 80, se expande com outros artistas que
saem do plano, como o Ernesto Neto, a Rosângela Rennó e outros
que vieram depois e que também têm essa característica.
Eu acho que, hoje, a gente não tem mais essa proteção da marquise
moderna, em que você começava a discutir uma questão a partir
de algumas regras formais estabelecidas a priori. Hoje você pode
usar qualquer coisa e aquilo funcionar. Eu não sei se responde a
sua pergunta, mas eu acho que, às vezes, um artista plástico pode
ter uma conversa mais interessante com um cientista do que com
outro artista plástico.
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C A DER N OS EAV
DAN I EL S EN I S E
Como estava falando, eu uso a arte para resolver um problema
pessoal de viabilizar minha vida nesse mundo, mas isso não quer
dizer que vá me entender, no sentido de ter uma troca profunda
com uma obra de um determinado artista, porque a arte, hoje, se
tornou um campo muito amplo de expressão.
Na verdade, depois eu não gostei de ter mostrado esse trabalho no
MAM. Eu lamentei tê-lo colocado no MAM, porque ele foi feito
para o MAC. Esse é o tapete do MAC, esse era o céu em volta do
MAC. O espaço do MAC é circular, então, era como se eu tentasse
eliminar as paredes do museu. Quer dizer, se eu tivesse tapete para
todas as paredes, que não foi o caso. Mas é o início da ideia de que
o pássaro é a própria parede do MAC.
Inclusive existe uma crise de limites, e eu acho que esses limites,
ao longo dos próximos tempos, vão se redefinir. O que é arte, o que
não é arte. A relação da arte com o mundo comercial, essas coisas
que estão sendo tão presentes na nossa vida. Eu começo a partir
desse meu problema pessoal de expressão, e existem alguns artistas
que me interessam. Não necessariamente são pintores ou amigos
meus, mas é com essas obras, eventualmente, que eu convivo – e
vejo as coisas se desenvolverem. Mas é um campo muito amplo.
Hoje, acho que não tem mais como você formar um grupo em torno
de uma ideia. Para começar, isso dá certo – mas, depois, cada um
vai ter que seguir o seu caminho.
Aluno: A
respeito daquele trabalho dos pássaros no MAC,
que depois foi remontado no MAM29: a versão do MAC eu
não tinha visto, mas no MAM você optou por uma outra coisa,
por deixar aquele resquício do corte do pássaro ali presente no
trabalho. Eu queria que você comentasse o porquê dessa escolha.
Quando eu exibi no MAM, eu não tinha essa distância, eu não
tinha todo esse ambiente. E resolvi colocar as sobras dos bichos,
desses pássaros, penduradas. Mas achei que o trabalho ficou
muito sujo, perdeu a sensação de imagem pura. Por exemplo,
nessa foto, você não consegue identificar o que é isso. Só se você
chegar mais perto que vê que é um tapete pregado na parede
com pushpin.
Por isso que, no MAC, resolvi não deixar os corpinhos das aves
penduradas. No MAM, eu coloquei de volta, mas acho que não foi
uma boa solução.
Você usa muito a fotografia no seu processo de
criação? Por exemplo, aquele trabalho das Cavalariças tem
uma relação de expor um trabalho criado a partir de uma
Aluno:
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C A DER N OS EAV
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imagem do local no próprio local, criando várias projeções,
como se houvesse uma profundidade expandida. Eu vi no seu
site trabalhos daquele mesmo processo de retirar o chão, e
dizem respeito à arquitetura de uma galeria ou então de um
museu. Eu queria que você comentasse isso, se existe esse
mediador fotográfico, ou não.
gravura, em que se faz uma tiragem, o impressor imprime, você vai
lá e assina. Isso me dá uma sensação de suvenir. Eu acho que até
por eu gostar de pensar na ideia do sudário, na presença da coisa
na frente do observador, da coisa mesmo na frente do observador,
a ideia de peça única, para mim, é muito mais atraente.
Há alguns trabalhos seus em que o título parece ser
muito importante. Eu queria saber sobre essa relação entre a
palavra e a imagem, para você.
Aluno:
Na verdade, eu nem uso fotografia para isso, em termos técnicos. Eu
faço uma transferência de desenhos mesmo. Eu desenho o espaço,
ponho um ponto de fuga e faço o espaço. Eu fiz uma série, quando
comecei a fazer esses trabalhos com espaços, em que representei
alguns espaços de museus.
Eu escaneava essas imagens, depois desenhava as linhas, fazia
um acetato e projetava na parede. Essa é a relação técnica com
a fotografia, não é? Eu não sei, talvez não tenha muito a dizer, a
desenvolver, aqui, uma ideia sobre como esse trabalho se relaciona
com fotografia.
Tem uma coisa que acho que me interessa e que eu gosto, em arte,
que é a peça única. Eu fiz alguns trabalhos com fotografia, mas
cada uma delas tem uma intervenção, que faz com que uma não
seja igual a outra da mesma série. Eu não gosto muito da ideia de
Eu tenho trabalhos que acho que se resolvem pelo título. Mas tem
trabalhos em que eu não consigo achar o título. Eu adoraria ter
mais facilidade para títulos, como, por exemplo, o Arthur Omar,
que eu considero o melhor autor de títulos do Brasil. Ele tem um
livro chamado Antropologia da face gloriosa, que já é grande um
título. E ele escreveu um texto sobre meu trabalho chamado O
chão andaluz.
Tem alguns trabalhos que se eu tivesse tido um bom título eu teria
colocado. Eu acho o título importante. Quando não consigo, ou
acho que o título vai atrapalhar, deixo sem título. Mas existe um
trabalho meu que se sustenta principalmente pelo título, um que
não citei aqui, mas o título é O beijo do elo perdido30, que tem uma
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DAN I EL S EN I S E
metáfora com a ideia do retorno da pintura, sempre. O trabalho
ficou terminado e passou a existir depois que achei esse título.
Notas
1. SENISE, Daniel. Sem título, 1988. Acrílica, óleo e esmalte sintético sobre tela.
245 x 201 cm.
2. VENOSA, Angelo. Baleia, 1989/90. Aço Corten. 600 x 350 x 250 cm.
3. SENISE, Daniel. Sem título, 1988. Acrílica e óleo sobre tela. 185 x 135 cm.
4. WHISTLER, James Abbott McNeill. Arrangement in Grey and Black No.1: Portrait of
the Artist’s Mother, 1871. Óleo sobre tela. 144,3 x 162,4 cm.
5. SENISE, Daniel. Portrait of the Artist’s Mother, 1992. Acrílica e óxido de ferro sobre
cretone. 202 x 207 cm.
6. SENISE, Daniel. Despacho, 1993. Acrílica, pó de ferro e verniz poliuretânico sobre
cretone. 207 x 304 cm.
7. SENISE, Daniel. Sem título, 1993. Acrílica, pó de ferro e verniz poliuretânico sobre
cretone. 207 x 355 cm.
8. SENISE, Daniel. Casamento, 1994. Acrílica, pó de ferro e verniz encáustica sobre
cretone. 160 x 190 cm.
9. SENISE, Daniel. Ela que não está I, 1994. Verniz poliuretânico, pó de ferro e laca sobre
tela. 193 x 305 cm.
10. BONDONE, Giotto di. A morte de São Francisco, 1325. Afresco da capela Bardi, S.
Croce, Florença.
11. SENISE, Daniel. Ela que não está, 1988. Acrílica e betume e pigmentos sobre tela.
247 x 212 cm.
12. SENISE, Daniel. Ela que não está II, 1994. Verniz poliuretânico, pó de ferro e laca
sobre tela. 193 x 305 cm.
13. SENISE, Daniel. Bumerangue, 1994. Esmalte sintético e óxido de ferro sobre tela.
14. Coleção de livros editada por W. M. Jackson Inc. Obra originalmente inglesa publicada
no Brasil em 1920 e reeditada em 1958. Cada edição, composta por dezoito volumes,
aborda assuntos científicos, históricos, resumo de livros clássicos e biografias.
15. SENISE, Daniel. Cavalariças I, 2001. Acrílica em colagem sobre madeira.
300 x 300 cm.
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16. SENISE, Daniel. Cavalariças II, 2001. Acrílica em colagem sobre madeira.
300 x 400 cm.
17. SENISE, Daniel. Quase infinito. Exposição individual realizada no Museu de Arte
Contemporânea, Rio de Janeiro, 22 de fevereiro a 1 de junho de 2003.
Saiba mais:
http://www.danielsenise.com
18. SENISE, Daniel. Obra, 2005. Acrílica em colagem sobre madeira. 300 x 400 cm.
19. SENISE, Daniel. Soft and Hard, 2007. Acrílica em colagem sobre alumínio. 250 x 465 cm.
20. SENISE, Daniel. A virgem ainda, 2006. Acrílica em colagem sobre madeira.
Dimensões: 200 x 300 cm.
21. SENISE, Daniel. Ici et ailleurs, 2007. Acrílica em colagem sobre alumínio. 465 x 500 cm.
22. SENISE, Daniel. “…”, 2007. Aquarelas em colagem sobre madeira. 400 x 500 cm.
23. SENISE, Daniel. Skira I, 2009. Papel colado sobre alumínio. 200 x 150 cm x 2.
24. SENISE, Daniel. Tijolos para EVA, 2009.
25. BRECHERET, Victor. Eva, 1919. Mármore polido. 1,17 m de comprimento.
26. SENISE, Daniel. EVA, 2009-2010. Instalação em progresso. Centro Cultural São Paulo.
27. Achille Bonito Oliva reconhecido crítico italiano de arte contemporânea, com vasta
produção, nas décadas de 70 e 80, sobre o maneirismo. Atuou também como professor
de História da Arte Contemporânea na Universidade La Sapienza em Roma e como
curador.
28. Como vai você, geração 80?. Exposição coletiva que reuniu trabalhos de 123 artistas,
realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro, aberta em 14 de
julho de 1984.
29. SENISE, Daniel. Vai que nós levamos as partes que te faltam. Exposição individual
realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 6 de junho a 20 de julho
de 2008.
30. SENISE, Daniel. O beijo do elo perdido, 1991. Acrílica e óleo sobre cretone. 139 x 203 cm.
Iovino M., María; FERREIRA, Glória. Vai que nós levamos as partes que te faltam:
Daniel Senise. São Paulo: Pinacoteca, 2011. 335 p., il.
MESQUITA, Ivo. Daniel Senise: ela que não está. Textos de Ivo Mesquita, Dawn Ades
e Gabriel Pérez-Barreiro. São Paulo: Cosac & Naify, 1998. 220 p., il. Edição bilíngue
português-inglês.
SENISE, Daniel. Daniel Senise — 34–01 38 AVE, LIC/S.R. 34, RJ/W.L. 140, RJ.
Salvador: Paulo Darzé Galeria de Arte, 2008.
SENISE, Daniel. XXIX Bienal de São Paulo. Textos de Marco Silveira Mello e Luiz
Camilo Osório. São Paulo: Casa da Imagem, 2010. 88 p., il.
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EDUA R DO COIMB R A
Vamos começar esse encontro, com um vídeo1 sobre a obra
Passarela2, uma instalação permanente do Museu do Açude.
[ Áudio do vídeo O azul do céu não existe]
O azul do céu não existe
A paisagem só existe quando alguém a olha. É a partir desse ponto de
vista que deve ser pensada a paisagem, uma coisa compreendida como
extensão do espaço visual, a paisagem como um grande côncavo que
nos abarca, onde se misturam vibrações contínuas, luzes, distâncias,
caminhos e deslocamentos. Uma concha enorme que só existe até ao
alcance da nossa visão, é uma superfície que está longe, mas se aproxima
Natureza da paisagem, 2007
Grama, copos de plástico e madeira pintada
Dimensões variáveis
Vista da Instalação: Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro, 2007
Foto: Eduardo Coimbra
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EDUARDO CO I MB RA
e chega a nos tocar, olhar uma paisagem é também ser olhado por ela,
feito de um seguido de vinte e sete e zero átomos. Falta muito, mas...
é estar nela na direção de inúmeros pontos que se alinham ao nosso
O azul do céu não existe.
olhar em várias perspectivas.
O horizonte é uma linha, uma fenda, uma possibilidade de mergulho em
direção ao fundo da imagem. Nadamos em busca do ponto de repouso,
o silêncio, onde toda a memória do percurso se torna presença ativa.
Eu gostaria de inicialmente agradecer à Escola de Artes Visuais pelo
convite e a todos vocês pela presença. Imagino que seja interessante
falar um pouco da minha trajetória e comentar alguns trabalhos que
fiz e que me levaram às questões em que estou trabalhando agora.
Dali, de onde nasce a paisagem, talvez um duplo de nós esteja também
em busca do seu próprio olhar, a ricochetear entre linhas e luzes. Ver
não é uma atividade linear, contínua e consequente. Uma paisagem
não é algo onde alguém possa se excluir. Olhar uma paisagem é fazer
parte de um fenômeno.
Qual é a forma da paisagem? Ela é a forma de todos os movimentos
do olhar, os seus ecos e recortes. Percorrer uma paisagem é andar no
plano e no tempo, é contornar as formas e instante vibrar na profundidade. Por mais que voemos, atravessamos sempre as camadas de
um mesmo plano. Estamos comprimidos entre a dimensão infinita
daquilo que não enxergamos e a impossibilidade de penetrar além
da superfície do olhar. O teletransporte é o limite para a existência
de paisagem. Cientistas conseguiram teletransportar um feixe de raio
laser durante dois segundos, e reproduziram em outro local do laboratório. Em poucos anos querem teletransportar um átomo. Somos
Pra falar um pouco das minhas raízes, tenho formação em Engenharia Elétrica e trabalhei oito anos na General Electric. Depois
fiz o curso de pós-graduação de História da Arte e Arquitetura
no Brasil, na PUC do Rio. Passei raspando pela geração 80, andei
frequentando a EAV, enquanto ainda era engenheiro, um ano
antes da geração 80, e por pouco não participei. Fui fazer outras
coisas, voltei a trabalhar em ateliê em 88, 89, e a partir daí comecei a expor, de 90 em diante. Me entendo, assim, fazendo parte
de uma geração de artistas que vieram imediatamente após a
geração 80. Essa produção, podemos entender como uma resposta ao que era praticado na geração 80, principalmente na
questão da quebra do uso do suporte tradicional que, particularmente através da pintura, era muito presente. A escultura,
também, era uma categoria bem específica, e nossa geração
começou a fazer trabalhos multimídia, no sentido de que não
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EDUARDO CO I MB RA
era a especialização em um determinado meio de expressão
que identificava o trabalho, mas sim a poética de cada um. De
certa maneira foi uma retomada de experiências presentes na
arte experimental dos anos 70, de um modo diferente, mas que
partia para uma prática que não tinha o meio como categoria
pré-determinada do fazer artístico, a estratégia do trabalho é
que fazia o artista preferir determinada pesquisa de material,
o uso de um determinado objeto, um ou outro tipo de acabamento. A importância da realização manual da obra, do gesto,
como marca do artista, foi abandonada completamente. Era
uma geração que partiu mais para a questão do objeto, usou
muito a apropriação e a ideia das instalações, ambientações, o
uso da fotografia, mesmo não sendo fotógrafo, uso de vídeo e
performance. Dessa geração, em que me incluo, vou citar alguns
nomes: o Ricardo Basbaum, que foi meu parceiro em vários projetos, Raul Mourão, João Modé, Carla Guagliardi, Brígida Baltar,
Marcos Chaves, Valeska Soares, Tatiana Grinberg e vários outros,
José Damasceno, Ricardo Becker. Salvo alguns que começaram
antes, a maioria desses artistas começou mesmo a trabalhar nos
anos 90, que, na realidade, foi a época em que a arte brasileira
começou a ganhar evidência no cenário internacional. Uma
característica dessa geração, diferente da geração 80, foi sua
relação com o mercado. Na geração 80, o mercado foi um dos
grandes agentes legitimadores daqueles trabalhos, e na nossa
geração demorou um tempo até o mercado assimilar a produção.
Hoje, vários de nós temos galerias e situação no mercado, mas
isso demorou um pouco para se estabelecer.
Outra característica presente nessa geração era a criação, por iniciativa dos artistas, de muitos grupos de estudo. Nós fizemos um
grupo chamado Visorama, vários desses nomes que eu citei participaram dele. Começamos em 1989 como um grupo de estudo
que se reunia em casa, líamos textos de arte e filosofia, e, depois de
um tempo, resolvemos partir para a rua. Fizemos várias palestras,
aqui na EAV foram diversas, também em outros lugares no Rio, São
Paulo e Minas. Fizemos um banco de imagens de mais de duas mil
imagens em slides, que utilizávamos nas palestras, recolhidas em
revistas, catálogos e livros, e também através de doações de artistas,
juntando arte contemporânea brasileira e internacional. Essas
atividades duraram uns quatro, cinco anos, e acabaram gerando a
revista Item. Eu, o Basbaum e o Raul fizemos o primeiro número,
a partir de um texto do Basbaum sobre a exposição Escultura
carioca3, os nomes que eu citei estavam quase todos lá também.
A revista Item durou seis números. Era uma revista que tinha por
ideal colocar a arte, o pensamento da arte, junto a outras formas
de pensamento, como psicologia, história, antropologia, filosofia,
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EDUARDO CO I MB RA
música, história da arte, crítica de arte. Os textos eram sempre
acompanhados por imagens de arte contemporânea e a ideia era
apresentar essa multidisciplinaridade, que é uma característica
do pensamento contemporâneo e por conseguinte da atividade
artística. Em seguida, eu, o Basbaum e o Raul, novamente, criamos
o Agora – uma agência para produção de eventos artísticos, não
só nossos mas também de artistas convidados. Em parceria com
o Capacete, do Helmut Batista, ocupamos um espaço na Lapa e
durante dois anos e meio apresentamos vários projetos. A prática
dos coletivos de artistas estava ainda começando no Brasil e podemos dizer que fomos um dos projetos pioneiros.
coisa que tem um funcionamento, que tem uma otimização prática
para sua realização. Uma característica marcante na minha produção, não só nos trabalhos iniciais como até hoje, é que quando eu
penso um trabalho, quando a ideia surge na minha cabeça, surge
também a maneira como ela vai ser executada. A forma final do
objeto, ou da intervenção, está ligada à condição técnica dele existir
como realidade. Isso com certeza é uma herança, ou melhor, é uma
característica do lado engenheiro.
Como falei, trabalhei como engenheiro, foram sete anos num centro de desenvolvimento de equipamentos para uma fábrica de
medidores de energia elétrica. O que eu fazia não era o produto a
ser comercializado, eram equipamentos a serem usados na fábrica,
quadros de calibração, equipamentos para o controle de qualidade, etc. Havia uma oficina onde eu e os engenheiros que estavam
comigo desenvolvíamos protótipos e construíamos aparelhos. A
rotina de fazer esses objetos, esses protótipos, me deu a aptidão
para fazer o que eu faço hoje e, de certa maneira, definiu como eu
iria conduzir o meu trabalho de artista. Acho que tem muito dessa
experiência a ideia de fazer um objeto no mundo real, pensar uma
Penso que uma obra de arte é o resultado de um trabalho intelectual que realiza uma coisa ou uma situação nova no mundo, uma
coisa que, de alguma maneira, transforma o mundo – há o antes da
existência da obra e o depois. O trabalho científico faz uma coisa
semelhante, mas a ciência busca respostas para as indagações da
civilização e busca o que a gente chama de progresso da civilização.
A arte, não. A arte quer fazer perguntas, a arte quer criar rupturas,
incertezas, quer abrir lacunas. A arte serve para isso, para fazer
com que coisas que estão instituídas como certas possam ser, de
alguma maneira, repensadas e daí surgir uma nova possibilidade,
uma resposta nova para uma situação nova. Acho que o trabalho do
artista é desenvolver uma linguagem própria dentro de uma poética
que ele se propôs a aprofundar, e que estabeleça um campo para a
ação de uma inteligência compartilhada com a instância pública. O
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trabalho do artista é esse, e as perguntas que o trabalho dele suscita
vão engrossar o caldo cultural que caracteriza o lugar onde ele vive.
Acho que toda obra de arte é universal, mas está totalmente ligada
ao lugar onde ela foi pensada e produzida.
fora de um pedestal, em relação com o tamanho da sala, com a
luz do ambiente, que ele se misture com tudo isso, esse é o lugar
onde eu pretendo que ele apareça.
Voltando a falar de meus trabalhos, tenho interesse que eles
revelem, tornem explícito o mecanismo que usamos para compreender e perceber as coisas. Através de paradoxos e desvios
da percepção, a ideia é provocar a necessidade de um realinhamento para a compreensão de uma situação nova. A mim interessa
operar esse realinhamento, propor esse desvio, e que o trabalho
seja o dispositivo que faça a bússola voltar a sua posição original depois de ter passado perto de um imã. O resultado formal
do trabalho está a serviço da eficiência, para causar o desvio e
o realinhamento que pretendo, a forma, portanto, pode ser de
uma coisa já existente como, por exemplo, uma foto. Gosto de
trabalhar com um vocabulário acessível de coisas e referências do
cotidiano, reconhecíveis e facilmente elaboradas pelas pessoas,
justamente para ter uma eficácia nessa interjeição que o trabalho
pode causar. Acho que o trabalho deu certo quando ele, trabalho,
não se entende como uma obra de arte, que ele até possa passar
despercebido, que ele possa ser como um armário ou uma janela.
Que ele tenha a postura de estar no mundo real, ali, para viver
Meus primeiros trabalhos eram trabalhos que funcionavam como
se fossem aparelhos, tinham aparência de objetos comuns, mas
através de mecanismos elétricos, luminosos e motores, propunham
relações temporais e espaciais com o entorno onde eles estavam
inseridos. Como, por exemplo, a Cabine4, um armário de ferro
onde através de uma janelinha pode ser visto um campo infinito
de LEDs em seu interior, ou no Espelho5, onde um contador digital de tempo, variando de 00 a 99 segundos com os números do
mostrador formados por números menores, se confronta com a
imagem refletida do espectador.
Durante a década de 90 realizei várias exposições onde criava
um espaço cenográfico e alguns objetos eram colocados como se
fossem elementos de uma narrativa. A primeira dessas exposições
chamava-se Istmo6. Constava de três malas com movimentos respiratórios, gerados por motores em seus interiores, e uma janela
com uma imagem de céu em backlight. Foi a primeira vez que usei
uma imagem fotográfica, e a imagem de céu começou a ser uma
constante em várias situações. Meu interesse surgiu do fato de
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“Gosto de trabalhar com
um vocabulário acessível,
composto de coisas e
referências do cotidiano,
reconhecíveis e facilmente
elaboradas pelas pessoas,
justamente para ter uma
eficácia nessa interjeição que
o trabalho pode causar.”
uma imagem de céu ser uma imagem peculiar, é a imagem da virtualidade por excelência. O azul do céu não existe, não há um plano
cromático no fundo da imagem, é a refração da luz nas camadas
da atmosfera que gera essa cor. E os densos volumes brancos das
nuvens não são mais que acúmulos de gases. A imagem do céu, uma
coisa tão emblemática e sedutora, tão presente no nosso imaginário,
em várias iconografias da arte, passei a achar interessante como
índice de infinito, a visão de um lugar inalcançável, já apontando
para o interesse que eu teria em trabalhar as relações de espaço
interior e exterior.
Em meados dos anos 90 realizei uma série de trabalhos, que chamei
de Paisagens. Eram trabalhos com uma qualidade escultórica acentuada, onde eu juntava a imagem de céu, em backlight numa caixa
de acrílico, e terra, matéria física. Foi a partir desses trabalhos que
comecei a me interessar pela ideia de paisagem. Tenho trabalhado
principalmente três questões em meu interesse pela paisagem: sua
qualidade híbrida de imagem e matéria, a noção de horizonte e a relação de mútua presença entre quem vê e o que é visto. Como sabemos,
a ideia de paisagem surgiu na Renascença a partir do interesse do
“novo” homem em compreender e representar o seu entorno. Portanto, a paisagem já surgiu como sendo ao mesmo tempo a realidade
física e a representação dessa realidade. A paisagem é aquilo que se
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vê, a paisagem só existe se alguém vê. Os elementos físicos estão lá,
as árvores, os prédios, mas a paisagem está diretamente ligada ao
ato de ver. É o real através de um recorte da visão, é, portanto, uma
construção ligada à materialidade e à imaginação. Outro elemento
que começou a me interessar a partir desses trabalhos, o que parece
evidente, é a noção de horizonte. O que é horizonte? O horizonte
é uma linha que separa o palpável do não palpável, o visível do não
visível, aquilo que está na frente daquilo que está por vir ainda, que
está ali atrás da terra. O horizonte é um limite entre o material e
o virtual, entre o agora e o porvir. Essa linha que determina esse
contorno é o fundo da paisagem, ela separa a realidade da ficção. O
terceiro ponto de interesse é a qualidade da experiência do contato
com uma paisagem. A paisagem é uma concha que te abarca, e você
está ali em seu lugar olhando e sendo alvo de inúmeros pontos de
vista que se intercruzam a sua frente. Ver uma paisagem é fazer
parte de um fenômeno.
muitas vezes se junta com questões da arquitetura, mas que também se utiliza da imagem fotográfica em experiências que conjugam
imagem e tempo e imagem e espaço. Invenção da paisagem7 foi o
primeiro trabalho de grande porte que realizei em diálogo direto
com a arquitetura. O MAC de Niterói tem em sua concepção arquitetônica uma relação explícita com o entorno geográfico, achei
oportuno fazer um comentário sobre essa relação sobrepondo as
diferentes situações do primeiro e do segundo piso do prédio. Após
percorrer o perímetro circular do primeiro piso, onde as paredes
envidraçadas expõem completamente a paisagem no entorno do
museu, o visitante chega ao segundo piso, onde o contato com o
exterior é totalmente vedado. Aí, no ponto diametralmente oposto
à entrada, instalei o trabalho – um monte de aproximadamente
7 m3 de terra encostado na parede externa, onde através de quatro
aberturas pode-se ver uma paisagem contínua em backlight. Essa
imagem fotográfica foi tomada de um ponto no exterior do museu
exatamente atrás da parede onde está o trabalho. O efeito é como
se através da terra existissem quatro janelas para o exterior. Em
diversas ocasiões meu trabalho faz referência a Magritte, e essa,
evidentemente, é uma delas. Esse trabalho, além do confronto da
materialidade da terra com a imagem fotográfica, provoca, devido
à sua escala, um embate entre o elemento natural bruto e a pureza
da arquitetura.
Do final da década de 90 até agora, nos últimos 13 anos, tenho trabalhado basicamente em duas frentes, que várias vezes se juntam,
porque na realidade são a mesma coisa. Uma são os trabalhos com
elementos da arquitetura, tanto em nível de projeto, com desenhos
e maquetes, como também em objetos e realizações em espaços
arquitetônicos, e a outra é uma reflexão sobre a paisagem, que
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EDUARDO CO I MB RA
Em Asteroides10 realizei pela primeira vez trabalhos exclusivamente
com fotografia. Essas colagens foram feitas com fragmentos de
registros fotográficos de paisagens realizados em seis dias e locais
diferentes. O material foi captado em algumas horas de caminhada em
cada um desses locais, com uma câmera analógica, e posteriormente
analisado no estúdio. Essas imagens, somente vistas após a revelação
dos filmes, apresentavam por vezes os mesmos acidentes geográficos
tomados de diferentes ângulos e distâncias. A ideia era criar uma
nova paisagem a partir da diversidade de imagens captadas em cada
uma dessas experiências. A operação aqui realizada transforma a
sensação de concavidade presente na apreensão de quem visualiza o
entorno que o circunda em um elemento convexo, um corpo maciço
cercado de áreas de céu. Essa inversão de orientação da paisagem,
quase como uma dobra sobre si, redireciona a evidência para o plano
da visão. Ao mesmo tempo, a imagem dessa nova paisagem é dotada
de materialidade, pois é composta por pedaços de fotografias visivelmente identificados em seu corte e justaposição. Nessa sucessão
de dobras, por fim, o que vemos é a fotografia dessa colagem. Aqui a
fotografia age conceitualmente na fronteira entre imagem e matéria,
remetendo a uma condição intrínseca da paisagem.
Colagem10 , era uma parede de fita adesiva transparente, trançada
de alto a baixo entre vários postes estruturais, num local próximo
ao pano de vidro do museu, voltado para a baía e o Pão de Açúcar. Ao longo da exposição, várias impressões foram deixadas na
fita, poeira, marcas de roupas, digitais, adicionando um registro
temporal à apreciação da paisagem. Nesta mostra, entre outras
obras, apresentei pela primeira vez trabalhos em maquetes. Penso
esses trabalhos não como obras a serem construídas na escala real,
são objetos finalizados que sugerem exercícios de pensamentos
espaciais, e, cada um a seu modo, tecem relações entre arquitetura,
paisagem, percepção e deslocamento. A aparente funcionalidade
dessas propostas arquitetônicas está sempre ligada à experiência
espacial que elas sugerem, assim também é na série dos Estádios11.
Essas formas arquitetônicas, pensadas para jogos específicos, são
definidas a partir da dinâmica espacial de cada jogo. São jogos pensados por mim tendo sempre o futebol como referência, mas com
regras e formatos próprios. Assim, o movimento do jogo, o desenho
de como é jogado, se reproduz no desenho da arquibancada. A
ideia é que a audiência vivencie espacialmente o jogo, o espaço da
contemplação é contaminado pelo espaço do movimento.
Na exposição Paisagem local9 aprofundei várias ideias que lidavam
com a relação entre arquitetura e paisagem. Um dos trabalhos,
Outro trabalho em maquete que lida com arquitetura e deslocamento é o conjunto das Escadas (2006). O trabalho, formado por
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módulos, permite a criação de aglomerações variadas, admitindo
inúmeras possibilidades de expansão, relevos e caminhos. Os elementos arquitetônicos são apenas degraus e portas nas paredes
laterais dos degraus. As portas são aberturas que sugerem espaços
protegidos sob os degraus, formatados pelo desenho ondulante dos
caminhos. Essa maquete apresenta um objeto arquitetônico onde
os espaços habitados e os caminhos que os conectam são formalmente complementares – não há sobra de espaço. A economia de
elementos, aliada à homogeneidade do branco, transforma a visão
frontal do conjunto numa experiência ótica onde se evidencia o
ritmo das linhas dos degraus e os diversos planos que eles atingem.
de São Paulo, no Vale do Anhangabaú. Oito câmeras foram posicionadas em pontos distintos no entorno do Viaduto Santa Ifigênia.
Próximos ou distantes, comum a todos os enquadramentos era a
presença do viaduto e seu guarda-corpo amarelo como elemento
gráfico marcante na paisagem. A intensa diversidade de fluxos de
pedestres e veículos e a profusão de elementos arquitetônicos e
equipamentos urbanos, aliadas às várias possibilidades de visualização no posicionamento das câmeras, davam riqueza de detalhes
a um lugar saturado de acontecimentos. Sob um único comando as
oito câmeras foram disparadas simultaneamente (17:05 do dia 1º
de abril de 2004). Em conjunto, as oito fotos apresentam um instante expandido, um instante que pode ser percorrido e vivenciado
lentamente. As ações percebidas de diferentes ângulos compõem
a realidade do instante, sua densidade e permanência. A outra
etapa do projeto, Nível do mar, era uma proposta de fotografar o
horizonte marítimo a partir de vários pontos na costa brasileira.
Através de fotos de satélite, foram escolhidos onze pontos ao longo
do litoral, de maneira que a interseção lateral do campo de visão
dos pontos adjacentes estivesse dentro das quinhentas milhas,
limite do território brasileiro. O percurso teve início no Norte do
Pará e terminou na fronteira de Santa Catarina com o Rio Grande
do Sul. No processo de realização das fotos, houve o cuidado de se
registrar o limite lateral da imagem com um acidente geográfico
Trabalhar o espaço arquitetônico, as relações de escala e proporções, a dinâmica dos ambientes, os possíveis caminhos e ocupações,
a separação entre interior e exterior, o espaço aberto natural ou
urbano, e, portanto, as relações com a paisagem, a percepção e
vivência da paisagem, esses são assuntos recorrentes em meus
trabalhos recentes. No desenvolvimento das pesquisas sobre a
paisagem, a imagem fotográfica é um suporte que utilizei diversas
vezes. Como no projeto Paisagem-Fenômeno, desenvolvido com o
apoio da Bolsa Vitae de Artes, onde a questão era a experiência da
paisagem como um acontecimento no espaço e no tempo. O projeto
era dividido em duas etapas. Aqui foi realizado no centro da cidade
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terrestre. Desta maneira, ficava claramente definido o ângulo do
alcance da visão e seu correto posicionamento no mapa. A proposta
é que, vistas em sequência, essas onze fotos retratem a fronteira
lateral do Brasil. A ideia do horizonte como o lugar do infinito, um
lugar além, cria um abismo para essa lateralidade, mas em termos
de medidas e posicionamentos técnicos temos sim a visão dessa
fronteira, embora não saibamos identificá-la. Aqui é um conjunto
de fotos que registra vários lugares distintos olhando para o mesmo
instante. Nível do mar é um conjunto de fotos que registra vários
instantes distintos olhando para o mesmo lugar.
Aluno:
Foi uma escolha, pegar o tempo bom?
Eu escolhi onze fotos, mas eu fiz várias outras. Aquela do Pará, no
Norte do Pará, Atalaia, eu fiquei um tempo até ter uma situação
boa. Do Pará para Fortaleza eu fui de avião, quer dizer, nos pontos
que estavam determinados pelo mapa, eu fiquei esperando a coisa
funcionar, eu fui preparado para ficar um tempo. Nos pontos do Sul
eu fui de carro, então eu fotografei bem mais do que está aí. Acabei
escolhendo essa quantidade de fotos porque achei mais interessante.
O infinito lateral. Você disse que tira várias fotos e
depois as seleciona conforme, por exemplo, o tempo bom.
Aluno:
Estádio, 2011
MDF pintado e miniaturas de plástico
134,5 x 142,5 x 23 cm
Foto: Eduardo Mattos
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Por que não a escolha de um determinado tempo, ou um
instante determinado mesmo?
pulverizados pelo afastamento entre os vasinhos. Esse elemento,
típico microcosmo ou unidade de paisagem, remete à ideia da paisagem como construção de significado, como produto cultural. E o
plano de grama é o chão da paisagem, um elemento vivo homogêneo
que se estende sobre as superfícies. Que se pode pensar infinito, que
se alinha perfeitamente ao horizonte. A instalação contava ainda
com a presença de três esferas negras de madeira pousadas sobre o
gramado em três locais no espaço. Essas peças funcionavam como
pesos visuais que equilibravam a apreensão da paisagem no espaço
arquitetônico. Únicos elementos acima do plano de grama, eram
presenças remotas mas pontuais, silenciosos mas atuantes em
sua “ausência” no espaço. Manter um elemento vivo no museu, a
grama, no claro embate entre natureza e cultura proposto por este
trabalho, exigiu uma rotina de cuidados com ações especializadas a
serem realizadas nos horários complementares – poda, iluminação
solar suplementar, rega, adubação, tratamento de pragas, troca de
vasinhos e reposição de áreas de grama. Foram operações periódicas
durante um mês e meio que mantiveram a grama viva e garantiram o
retorno integral à fazenda de origem, onde foi inteiramente replantada. A paisagem visitou o museu e retornou ao seu lugar de origem.
Poderia ser, mas, na realidade, o que importava para mim nesse trabalho é que eu queria que ficasse visível o limite lateral do horizonte.
Em todas as fotos o horizonte termina visualmente numa porção de
terra. Isso é o que determina o ângulo no mapa. O importante era a
foto conter um registro geográfico para eu saber de que largura era
o leque, para que um leque encostasse no outro antes das quinhentas milhas. Então, agora com relação a essa coisa da escolha, de ser
bonito ou não, bom, eu acho que qualquer um era bonito. Eu escolhi
uns lugares em que havia uma boa visibilidade, onde eu pudesse
fazer um recorte em que o nível do mar ficasse no meio da foto.
Para finalizar essa apresentação, vou mostrar três trabalhos de
grande escala que expõem de maneiras diversas algumas relações
entre paisagem e arquitetura. O projeto Natureza da paisagem12,
realizado no MAM Rio, se constitui da transposição de um plano
de grama de uma fazenda de plantio para o interior do museu. O
gramado ocupou uma área de aproximadamente 600 m2 no chão
do museu e foram utilizados em torno de onze mil vasinhos com
grama plantada. Os visitantes percorriam o interior do trabalho
através de espaços abertos no plano de grama, cujos limites eram
Em outro trabalho, Passarela, em vez da natureza visitar a arquitetura, a proposta foi inversa; consistiu da construção de um objeto
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arquitetônico no meio da floresta. Foi um projeto realizado no edital
Arte e Patrimônio, em conjunto com o Museu do Açude, na floresta
da Tijuca, no Rio. É um trabalho permanente que, como todas
as obras que estão expostas nesse espaço do museu, foi pensado
para conviver com a natureza, a proposta já incluía esse desafio. A
ideia da Passarela é ser um meio para uma experiência de imersão
no espaço aéreo da floresta, proporcionar uma visão do entorno
somente possível através de seu percurso. Obviamente todas as
instâncias necessárias foram percorridas para que tivéssemos a
permissão para construção do trabalho, inclusive a avaliação de
que árvores seriam capazes de suportar o peso das estruturas. A
opção era que a passarela só se apoiasse nas árvores, não deveria
ter outro tipo de apoio, portanto o desenho do trabalho, a forma
final que ele teria, seria determinado pelas condições do local. A
trilha no interior da mata que dá acesso a esse local corre junto a
um barranco. Minha ideia era que a passarela partisse da trilha e se
lançasse rumo ao alto das árvores, num sentido contrário ao piso
descendente do terreno, chegando a atingir 14 metros de altura
na extremidade do percurso. Neste projeto o embate natureza
e cultura também exigiu determinadas especificidades – a escolha dos materiais (maçaranduba, aço Corten, aço inoxidável) e
o desenvolvimento de um projeto de sustentação da estrutura
garantindo que as partes metálicas não encostassem diretamente
nas árvores, evitando assim o risco de transmitir ferrugem para o
interior dos troncos.
Um último trabalho que eu gostaria de apresentar, Nuvem13, foi uma
intervenção que realizei num espaço público urbano, na Praça XV,
aqui no centro do Rio. Era um conjunto de cinco caixas de luz, com
imagens em dois lados, medindo cada uma 5 m de altura por 5 m de
largura, com espessura de 50 cm. Elas eram posicionadas em paralelo
com um intervalo de 2 m entre elas. O conjunto todo media pouco
mais de 10 m de comprimento. As faces maiores eram cobertas por
imagens fotográficas de uma nuvem impressas em lona translúcida
e as faces laterais eram cobertas por espelhos. Olhado de lado, o
conjunto sugeria a visão do volume de uma nuvem fatiada, e durante
a noite a luz intensa das caixas criava um casulo luminoso que dava
mais unidade ao conjunto. As laterais de espelhos, mais perceptíveis
de dia, davam leveza ao conjunto, uma vez que subtraíam a presença
e o peso das caixas. Era um trabalho numa escala que interagia com
os elementos da praça e do entorno, sendo visível também para
quem cruzava pelo alto o viaduto da Perimetral. A experiência de
criar uma obra que ocupasse um espaço com um intenso movimento
de pedestres, das mais variadas camadas da população, e ao mesmo
tempo fosse visível pelo entorno movimentado dos veículos, me deu
a dimensão do que é uma intervenção num espaço público.
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Achei interessante terminar a apresentação com esse trabalho, pois
aqui posso reafirmar o que penso ser realmente interessante em
fazer arte. Toda arte é pública. Toda arte exerce uma atitude crítica
num ambiente cultural. É certo que os espaços convencionais para
abrigar as obras de arte, os museus, instituições e galerias, têm seu
lugar garantido na dinâmica expressiva da produção artística. Mas
acredito que a esfera pública é o campo de ação da obra de arte, é
ali que se potencializa sua qualidade universal. Sem o respaldo da
instituição que de antemão legitima e sugere uma disponibilidade
prévia para que se entenda aquele objeto como um objeto especial,
a obra no espaço público conta apenas com sua presença viva. Digo
viva pois é na vida das pessoas, no fluxo da cidade, que ela interfere. O espaço público é o lugar do convívio de uma infinidade de
individualidades anônimas, é o espaço da liberdade para que essas
individualidades interpretem e façam seu próprio entendimento
dos fatos. É o canal mais direto para o exercício do que penso ser
a tarefa do artista.
No blog do Raul Mourão há um espaço em que ele
pede para que artistas escolham cinco imagens de trabalhos
que sintetizam sua obra. Você, no blog, escolheu entre alguns
trabalhos o Nuvem, que coincidentemente é um dos trabalhos
que mais me impressionou pela força e potencial simples.
Aluno:
Você citou também a Passarela, que, em minha opinião, é
um trabalho que também conduz o olhar do público para a
paisagem de uma maneira muito simples. Gostaria que você
enumerasse algumas noções ou aspectos que precisam ser
pensados pelo artista quando ele coloca o seu trabalho na rua,
ao invés da galeria ou do salão, se há algo a ser pensado que
diferencia o que você faz quando expõe na rua ou numa galeria.
Primeiramente tem o ponto de vista da chamada neutralidade que
um espaço convencional tem. Na realidade não tem neutralidade
nenhuma, porque cada instituição tem suas características, mas
de alguma maneira um trabalho no cubo branco, vamos chamar
assim, tem uma proteção da própria situação dele estar ali. Ele está
ali para quem foi ver uma obra de arte. É um espaço protegido. Na
rua, o trabalho está ali do lado do pipoqueiro, ele vai ter que dar
conta de estar ali, ele tem que dizer a que veio – em uma galeria
ele não precisa dizer a que veio, você vai apreciá-lo dentro de uma
moldura. Na rua, o trabalho tem que se impor de uma maneira
diferente, ele até pode ser silencioso, pode ser quase imperceptível,
existem várias estratégias. Na rua, ele tem que lidar com vários
vetores, são diversas as situações que ele tem que avaliar, o tempo
de estar exposto, de ser perecível, do espaço que ocupa, das pessoas
poderem reagir de um jeito ou outro.
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“O horizonte é um
limite entre o material
e o virtual, entre o
agora e o porvir. Essa
linha que determina
esse contorno é o
fundo da paisagem,
ela separa a realidade
da ficção.”
Eu queria saber se essa diferença influencia de alguma
maneira as suas escolhas, da escala. Você acabou de falar
que escala não importa, poderia ser uma escala pequena,
mas ainda assim você acompanha os trabalhos de longe para
ver como as pessoas reagem, não é? Essa questão não te
influencia mesmo?
Aluno:
Eu acompanho na medida do possível, sim. Agora, a questão da
escala depende da situação, um trabalho silencioso é uma coisa,
um trabalho como esse da Nuvem é outra. Era uma escala para que
a nuvem fosse atravessada. Estava ali do lado do Paço Imperial.
Achei interessante ser vista de longe, de cima, do chão. Fiz testes
de escala no local, pensei o ângulo para uma pessoa na Primeiro de
Março ver o volume da nuvem, chequei a inclinação do conjunto,
coloquei uns moldes de madeira no chão, fui na Perimetral olhar,
falei para meu assistente virar mais para cá, virar mais para lá, e
com uma estrutura de tábuas em pé visualizamos a altura do trabalho em relação ao entorno. Através de uma maquete, estudei os
melhores ângulos de visibilidade, mas você tem que checar tudo no
local pra dar conta do que o trabalho vai fazer ali. Você perguntou
se eu vou ver o que as pessoas falam, uma das coisas que mais me
emocionou foi o que um boy me falou. O garoto passou olhando e
eu estava com um fotógrafo. Ele chegou e falou: “O que é isso aí?”
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Eu respondi: “Isso é uma obra de arte”. Aí ele falou: “Ah, é tua?”
“Sim, é, fui eu que fiz, eu sou o autor.” Ele olhou e falou: “Pô, cara,
que interessante, você pousou uma nuvem na praça, e através
dos espelhos você enfiou a praça na nuvem.” O cara fala isso e vai
embora. Isso daria um texto maravilhoso. Queria o nome dele pra
fazer uma citação...
Aluno: Você falou que tem assistentes, não é? Eu queria
saber como funciona o seu processo de produção, se você
desenvolve um conceito, faz um planejamento e deixa o
trabalho braçal para outras pessoas, ou se você participa de
todo o processo.
Como eu falei no início, quando eu penso o trabalho eu já penso
uma possível execução. Quer dizer, com a experiência que eu tenho
de utilizar diversas técnicas e materiais, tenho um certo know-how
de saber como as coisas podem ser realizadas, se é melhor ser feito
dessa maneira ou da outra. Então, o trabalho já é concebido assim,
já tem um trajeto de como ele deve/vai ser feito. Agora, o fazer
em si, eu delego a pessoas para fazerem e acompanho o processo.
Tenho sorte de ter ótimos assistentes, que trabalham comigo há
muito tempo. Eu falo sempre que se não fossem eles eu com certeza
faria coisas diferentes.
Você falou sobre o começo da sua carreira, até
citou o Basbaum e alguns outros artistas, dizendo que havia
uma dificuldade de inserção no circuito de galerias, mas ao
longo da sua fala você também foi descrevendo uma série
de trabalhos, dos projetos que foram realizados através do
sistema de bolsas, instituições. Eu queria saber, para você,
qual é o papel da instituição, você acha que teria conseguido
realizar esses trabalhos sem esse suporte institucional, já que,
por um caminho de circuito de mercado o trabalho não fluía?
Aluno:
Uma boa pergunta. Realmente tive sorte de ganhar bolsas para executar esses trabalhos. Foi uma pena a bolsa Vitae acabar. A minha
foi a última para as artes plásticas. Tem havido alguns editais. É
interessante aplicar, porque realmente ajuda, e tem sido uma possibilidade de realizar trabalhos que de outro modo são inviáveis.
Por exemplo, um trabalho desses como a Passarela, se não fosse
esse edital, não tinha como fazer. É muito difícil a galeria bancar
fazer um trabalho desses. Por mais que aquilo vire um canal por
onde você possa vender outros trabalhos, isso não acontece, pelo
menos aqui. O papel da galeria é comercializar trabalhos que o
mercado consome, mas ela pode te ajudar a viabilizar várias coisas
do seu trabalho, a divulgação, a inserção e tudo mais. Acho que a
galeria tem um papel fundamental para a coisa funcionar, mas pra
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trabalhos de grande porte você tem que procurar patrocínio de
empresas ou via editais. A experiência faz com que você saiba o que
é oportuno para todos pra que a coisa aconteça. É você entender
que quem vai dar a grana está dando a grana para a marca estar
ligada em um negócio certo, em uma hora certa, em um lugar certo.
É assim mesmo que funciona. Então, se você sabe esse caminho,
se a produtora que trabalha contigo sabe esse caminho, se tem os
contatos, a possibilidade da coisa deslanchar é grande.
dessa ação, dessa jornada no lugar, fotografar, revelar as fotos,
escolher os cortes, botar tudo na mesa, ficar olhando, parar, voltar
no dia seguinte, olhar novamente. Resolver o tamanho dos asteroides para criar um conjunto homogêneo, dos seis serem uma série.
Então, tudo isso tem um tempo. Outro trabalho é outro tempo. O da
Nuvem, por exemplo, não é o tempo da criação que é o mais longo,
é o tempo da execução. Nos Asteroides, até o fim, até eu colocar o
último pedaço colado, a imagem poderia ser outra coisa. A Nuvem
não poderia ser outra coisa, desde que o projeto saiu do ateliê e
o serralheiro começou a fazer as caixas de ferro, o trabalho já ia
ser aquilo. Eu poderia estar trabalhando em outra exposição, em
outro lugar, e não acompanhar a execução do trabalho, já estava
tudo definido. Foi um engenheiro quem calculou a fundação para
estruturar o trabalho no chão, e a espessura do ferro, não tinha nada
a resolver na montagem. Meu envolvimento foi com a preparação
das fotos, aprontei os arquivos, vi a prova e mandei executar. Portanto, os tempos são diferentes, dependendo da concepção de cada
trabalho, de como é que você quer encaminhar aquela sua ideia.
Tudo é definido pela ideia que move o trabalho. Cada trabalho tem
o seu tempo, e grau de envolvimento do artista na sua realização.
Aluno: Na maioria dos seus trabalhos você fala sempre do
projeto, pegando o exemplo do Asteroide e o da Nuvem. Em
Asteroide você fala: “eu passo um dia fotografando e a partir
disso eu vou juntar...”. Tem um caminho, você poderia fazer
uma lista de bolo de como fazer o trabalho do Asteroide, e
tem a lista de bolo de como preparar o projeto da Nuvem.
Eu queria saber como é que funcionam esses tempos. Esses
tempos do trabalho menor, onde é você que está lá nesse
embate, no ateliê, desenvolvendo a obra, e o tempo do
projeto gigantesco que vai para dimensão pública. Como
você lida com isso?
O tempo de estar envolvido, de realizar o trabalho, varia de acordo
com a lógica que constitui o trabalho. Os Asteroides são resultado
Aluno: Como você lida com os prazos? Tem um prazo x
para desenvolver uma obra, e à medida que o prazo vai
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terminando, como é a questão da ansiedade? Nesse trabalho
das caixas, por exemplo, você tem um limite com o serralheiro,
o tempo dele de executar, e vocês têm que trabalhar em
conjunto, como lida com isso? Porque essas limitações são o
meu desespero, às vezes quando o prazo acaba é que a ideia
surge, e é uma ideia perfeita.
A única coisa que eu tenho para te dizer é: “Rala aí que você vai
chegar lá”. Acho que é uma coisa de experiência mesmo, com o
tempo você vai entender como a coisa funciona. Tem situações
mais folgadas e situações menos. Na Passarela, por exemplo, pra
inauguração, apesar de toda a complicação pra construir, deu tudo
certo, mas para o catálogo não deu. Eles queriam fazer as fotos do
trabalho finalizado para o catálogo ser lançado na inauguração. Foi
uma questão institucional que não deu para cumprir. Pra mim, a
meta era o trabalho ficar pronto no dia que ia inaugurar, obviamente
se ficasse pronto antes as fotos sairiam no catálogo, mas não deu
tempo. Assim, quanto mais experiência você tem, mais você ganha
confiança pra saber se aquilo vai dar, ou não, ou até mesmo mudar
o procedimento ou a expectativa para a conclusão do processo.
Aluno: Exato, então o projeto já está ali esperando alguém
para te ajudar a iniciar, um incentivo, um edital... Agora,
quando alguém chega e fala, do nada: “quero uma coisa
inédita, nos meus parâmetros”, e você tem que criar com
aqueles parâmetros, e não tem a ideia inicial, você só
tem o prazo.
Então, mas os parâmetros que você fala são assim, tipo: “A grana
sai tal dia...”
O tema como, por exemplo, “Ah, o banco vai
comemorar o ano da França no Brasil”.
Aluno:
É um desafio tentar dar conta disso, com relação ao lado criativo
eu não posso opinar em nada, acho que é uma questão de você ter
um insight, uma coisa que, à medida que o tempo passa, você vai
tendo mais controle, usar coisas que você já pensou. Um conselho
que eu dou para todo mundo é: rabisquem bastante, mesmo coisas
que vocês não usem na hora, eu já fui buscar coisas lá atrás e que
deram supercerto, na época eu não...
Aluno:
É, isso salva muito.
Totalmente. Esse trabalho da Nuvem, eu pensei há cinco anos
em uma outra situação, para ser uma coisa dentro de um espaço
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“O espaço público é o lugar
do convívio de uma infinidade
de individualidades anônimas,
é o espaço da liberdade para
que essas individualidades
interpretem e façam seu
próprio entendimento dos
fatos. É o canal mais direto
para o exercício do que penso
ser a tarefa do artista.”
institucional, que não aconteceu, ficou a ideia. Quando apareceu essa possibilidade para um espaço público, fui lá, peguei a
ideia, pensei o tamanho e realizei o trabalho. Portanto, primeiramente guardem as ideias, vocês têm que gerar um arsenal
de ideias, quando estão andando de ônibus, ou dirigindo, você
rabisca, depende do processo de cada um, madrugada adentro,
na cerveja do bar, sei lá onde, você lê uma poesia, você vê um
filme... O outro lado é o ponto de vista prático de você, tendo a
ideia, estar amarrado a um programa com prazo apertado. Aí é só
mesmo a experiência que vai te dizer se dá pra pegar ou não. Se
teu processo começa a virar uma coisa mais profissional, assim,
no sentido de você já ter aquelas pessoas com as quais você conta,
que entendem o que você está querendo, você fica mais seguro
pra correr riscos.
Aluno: Eu percebi que o seu trabalho tem um acabamento
muito bem feito, bem executado, e houve um momento que
você falou das fotos do trabalho Asteroides, com a faca olfa.
Nesse contexto, existe algum limite no seu processo criativo
em relação à manipulação da imagem?
Hoje em dia, eu diria que é impossível não manipular uma imagem. Eu acho que qualquer imagem é manipulada. Mas, quando
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eu falei da faca olfa, foi na realidade para não tirar do trabalho o
processo que o revelou. Já fiz trabalhos com fotos manipuladas,
totalmente manipuladas, inclusive trabalhos com paisagens. Não
é uma bandeira da não manipulação, não é nada disso. É uma coisa
da estratégia do trabalho, especificamente. Nesse trabalho dos Asteroides, está lá a colagem, a colagem existe, está lá no meu estúdio,
nunca mostrei a colagem porque o trabalho é a imagem fotográfica
da colagem. Eu escaneei a colagem, ora, se ficou um grão lá no
scanner que não interessa, lógico que você limpa, o que eu estou
falando é que a evidência da faca olfa é reveladora da constituição
da imagem, a imagem foi construída por pedaços de imagens, então
isso faz parte do trabalho.
no espaço. Então, para esse trabalho, a escolha das imagens da
nuvem foi a partir de arquivos que eu tinha, de nuvens em expansão e redução. Fiz o recorte para um formato definido e a nuvem
ficou assim. Essa nuvem nunca existiu. O que existia eram imagens
de uma nuvem em mutação. Ao colocar as imagens em sequência, criei um casulo espacial – que era a ideia do trabalho. A outra
questão que você colocou, a respeito do céu, é como eu te falei lá
no início: o céu para mim é uma imagem sedutora pela raiz dela
mesmo, pelo que é o céu, além de tudo, como você mesmo falou, a
presença na história da arte, onde sempre se vincula a uma coisa
onírica, um caráter apolíneo, são variadas as referências ao céu.
A mim interessa muito, por ser essa coisa tão presente e ausente
ao mesmo tempo, porque no céu nem o azul nem esses volumes
existem realmente como a gente concebe os outros volumes, as
cores e as coisas. Aluno: Eu gostaria que você falasse um pouco da sua
escolha da nuvem como representação de desenho.
Pergunto pois, em minha opinião, a nuvem é já uma
coisa muito visual e simbólica, inclusive se analisamos
a representação do céu na história da arte, com uma
variação de dimensões, formatos e sentidos...
Eu tenho um arquivo imenso de céus. Eu sempre fotografo e renovo.
Como eu falei, esse trabalho da Nuvem já estava na gaveta há um
tempo, a ideia de fazer uma coisa fatiada que junto criaria um corpo
Eu queria perguntar sobre a grama, o gramado.
Qual é a sua referência, o verde? Porque você falou
sobre nuvem, céu, mas e a grama, que aparece em vários
trabalhos seus? Por que você não usa grama sintética,
por exemplo, já que a natural demanda mais cuidado,
você teve que se preocupar com a incidência de
luz e etc.
Aluno:
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O interessante do gramado é ser um plano vivo, de alguma
maneira, numa referência de paisagem um gramado está sempre
presente, muitas vezes como plano infinito, rumo ao horizonte.
Então, o fato de ser plano, de ter uma homogeneidade, trazia
uma pureza formal que me interessou bastante no diálogo com
a arquitetura. Ser um plano e poder dissipá-lo, pulverizá-lo em
copinhos e continuar na mesma altura, era como ser uma pele
que se abria para o surgimento do chão do museu. Me interessou
mexer um pouco com uma coisa que a arte faz o tempo todo, que
é o confronto entre natureza e cultura. E que momento especial
de nossa cultura é aquele espaço do MAM. Vivi vários dias ali
dentro, e o MAM é um lugar muito especial, é uma felicidade
inacreditável aquela obra arquitetônica. Gostei de fazer o gramado naquele espaço com aquele pé direito enorme, o cheiro da
grama, e o trabalho atuar só no nível do chão. De não ter excesso
de elementos, e deixar o espaço ser o assunto. Na floresta, no caso
da Passarela, por exemplo, foi uma intervenção dentro de um terreno vivo, numa coisa viva também, mas de outra ordem. Ali, pra
dialogar com aquele espaço, eu tive que subir, dar volta na árvore,
descer, ter escada. Foi uma outra experiência, e, como falei antes,
uma experiência de certa maneira inversa na relação natureza
e arquitetura. Quanto à questão do sintético ou não sintético, a
ideia era trazer a paisagem e levar a paisagem de volta. Eu não
queria ilustrar um fato, eu queria fazer o fato. Foi a transposição
de uma paisagem e um retorno dela ao lugar de origem, passando
pela bênção do MAM.
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Notas
Saiba mais
1. O azul do céu não existe. Direção de Gustavo Rosa de Moura e edição de Bernardo
Barcellos. São Paulo: Mira Filmes, 2008. Documentário (12 min) son., color.
http://projetonuvem.wordpress.com
2. COIMBRA, Eduardo. Passarela, 2008. Instalação permanente no Museu do Açude.
Madeira e aço. Dimensões: extensão 32 m.
3. Escultura carioca. Exposição coletiva realizada no Paço Imperial, Rio de Janeiro, 1994.
4. COIMBRA, Eduardo. Cabine, 1989. Ferro, espuma, espelhos, circuito luminoso com
LED’s. 165 x 46 x 35 cm.
5. COIMBRA, Eduardo. Espelho, 1991. Madeira folheada a ouro, espelho, circuito
eletrônico luminoso. 140 x 100 x 12 cm.
6. COIMBRA, Eduardo. Istmo, 1992. Janela: madeira pintada, policromia em duratrans,
caixa de luz de madeira e acrílico. 35 x 151 x 38 cm; malas com movimentos respiratórios:
pele de vaca, tecido sintético, motores elétricos. 66 x 84 x 23 cm, 46 x 70 x 26 cm,
18 x 42 x 30 cm.
7. COIMBRA, Eduardo. Invenção da paisagem, 1998. Terra, policromia em duratrans,
caixas de luz de madeira e acrílico. Dimensões: extensão da terra: 22 m; altura da
terra: 1,90 m; cada foto: 60 x 90 cm; conjunto das fotos: 60 x 460 cm. Obra realizada
por ocasião da primeira edição do programa Artista Pesquisador no Museu de Arte
Contemporânea de Niterói.
8. COIMBRA, Eduardo. Série Asteroides, 1999. Fotografias.
9. COIMBRA, Eduardo. Paisagem local. Exposição individual realizada no Museu de
Arte Moderna, Rio de Janeiro, 2000.
10. COIMBRA, Eduardo. Colagem, 2000. Fita adesiva. 353 x 1350 x 8 cm.
11. COIMBRA, Eduardo. Série Estádios, 2000-2011. Maquetes em MDF.
12. COIMBRA, Eduardo. Natureza da paisagem. Exposição individual realizada no Museu
de Arte Moderna, Rio de Janeiro, 27 de maio a 15 de julho de 2007.
13. COIMBRA, Eduardo. Nuvem, 2008. Estrutura de ferro, impressão em lona
translúcida, lâmpadas fluorescentes, espelhos. Dimensões: cada elemento: 470 x 470 x
48 cm; conjunto: 470 x 470 x 1180 cm.
DO CONCEITO ao espaço: Eduardo Coimbra, Regina Silveira. São Paulo: Instituto Tomie
Ohtake, 2003. 87 p.
EDUARDO Coimbra. Textos de Glória Ferreira, Adolfo Montejo Navas, Ligia Canongia e
João Modé. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2004. 144 p.
EDUARDO Coimbra: Passarela. Rio de Janeiro: Museu do Açude, 2008. 15 p.
164
ELIZ A BETH JOBI M
Vou começar minha apresentação, exibindo dois DVDs sobre o
meu trabalho mais recente. O primeiro é sobre um trabalho1 que
fiz em 2005 para a Bienal do Mercosul2.
[ Áudio do vídeo Aberturas3 ]
Aberturas
Neste trabalho, começo definindo formatos, procuro pensar a divisão
em partes de tal modo que a continuidade do todo se dê simultaneamente a uma relativa autonomia de cada parte. As telas se estendem
em sequência, como cartas de baralho que, unidas, fazem um jogo. As
linhas formam figuras, volumes, letras. A tinta a óleo é aplicada com rolos
de espuma utilizados na pintura de parede. A cor vibra com a variação
Maquete para projeto de exposição, 2010
Foto: Elizabeth Jobim
166
C A DER N OS EAV
das camadas de tinta e a indefinição dos contornos das linhas. Depois
de traçar as linhas, escolho algumas para variar a grossura, e algumas
áreas são cobertas de cor, criando massas. Me sentei no chão rodeada
de pedras e de pequenos papéis cortados e ordenados proporcionalmente ao tamanho das telas. Olhando para as pedras, desenhei um risco
contínuo para toda a sala. Depois passei o risco para as telas e pintei.
Acho que somos uma construção. O espaço nos vem em partes, e dessas
partes formamos um todo que nos permite ser unidade e não um monte
de fragmentos. Meu trabalho quer nos lembrar disso, de como partes
se juntam e como elas formam um todo. A possibilidade de juntarmos
partes, imaginarmos um todo articulado e aberto ao fora nos permite
167
EL I ZAB ET H J O B I M
Nessa instalação, para a Bienal do Mercosul, foi a primeira vez que
fiz um trabalho de pintura com o caráter de ocupar um espaço, uma
sala inteira. Em um trabalho anterior, eu já havia ocupado o espaço
de uma sala, mas não com pintura. Em 2008, fiz um outro trabalho4,
mais ou menos nos moldes do de 2005, mas o projeto se modificou
bastante. Este foi feito no Bronx, em Nova York, e pensado especialmente para lá. Fiz um planejamento aqui, mas executei as telas lá.
Desse trabalho, foi feito um vídeo, em inglês, sob a direção de Thomas
Piper. Infelizmente, não há tradução do vídeo para o português, mas
dá uma visão geral do trabalho, por isso gostaria que vocês vissem.
Espero que entendam o meu incrível inglês com sotaque. (Risos)
existir e nos relacionarmos com o que há fora de nós, partes ou todos,
universos construídos por teorias ou observados em uma noite sem
[ Exibição do video An Introduction to Elizabeth Jobim’s Work5 ]
lua. Os fragmentos se articulam em uma unidade que se desdobra e
inclui o branco de fora. O branco do trabalho quer ser a parede. Não é
a pintura como uma janela, nem um acontecimento localizado na tela.
Há uma vontade de se expandir, de tornar a parede uma parede e um
lugar onde as linhas se afinam e engrossam, onde a cor vibra, como
também vibram as nossas retinas quando vemos as coisas. As linhas
vão se conectando umas com as outras, de tela para tela, e essa ligação
se dá em um jogo de fluência e corte, continuidade e ritmo, legato e
staccato, como na sucessão de notas musicais tempo. Aqui tropeçam,
ali gaguejam, quase perdem o rumo. E acabam se encaixando.
Preparei algumas imagens dos meus trabalhos, assim como algumas
imagens também sobre o meu processo de produção, embora eu
ache que esses vídeos esclareçam bastante essa parte. Pensei em
dar seguimento a nossa conversa traçando um percurso desde o
início da minha carreira, quando eu comecei a expor, no início dos
anos 80. Participei inclusive da exposição da geração 806, aqui no
Parque Lage. Este foi um período bastante inicial do meu trabalho,
mas para vocês – eu soube que muitos de vocês estão fazendo um
curso de iniciação também –, achei que seria interessante.
168
169
C A DER N OS EAV
Quando comecei, fazia trabalhos gestuais abstratos, principalmente
sobre papel. Fiz uma série de cursos com artistas como Anna Bella
Geiger, com Frederico Morais, na PUC, onde eu fazia Programação
Visual, além de um curso com o Ronaldo Brito. E depois, também
fiz cursos com Eduardo Sued e Aluísio Carvão no MAM.
Os primeiros trabalhos que mostro aqui para vocês são pequenos,
menores, mas apresentam bem o clima da época. Nesse período,
eu também viajei para fora e lá eu tive a oportunidade de ir a muitos museus e galerias, o que foi como uma formação para mim,
porque aqui no Brasil não víamos muita coisa. Aqui, em geral, eu
via os trabalhos a partir de fotos de revista ou copiava textos que
me interessavam. Não era como hoje em dia, em que se tem mais
acesso a exposições que vêm de fora e eventualmente também
exposições de artistas brasileiros que, naquela época, você tinha
que ir à casa das pessoas para ver. Ainda hoje, há um pouco desse
caráter, não há, no Brasil, tantos museus interessantes para se ver
arte brasileira.
EL I ZAB ET H J O B I M
há algum tempo eu não via seus trabalhos reunidos e fiquei muito
impressionada com a força emocional daqueles trabalhos e com o
frescor que eles ainda mantêm. Porque, com a passagem do tempo,
alguns trabalhos perdem muito do interesse, se transformam. E os
trabalhos dele continuam muito intensos, muito cheios de energia.
Ele também escrevia sobre arte, era generoso e informado. Para
o período, seu trabalho já estava maduro, enquanto o de muitas
outras pessoas estava apenas começando, como era o meu caso.
Cito, então, um trecho de um texto de Jorge Guinle para que vocês
tenham uma ideia do que se pensava na época:
No meu caso, por motivos emocionais, estéticos, se encontra uma
mescla do expressionismo abstrato gestual do Willem De Kooning e
do Matisse, até um surrealismo automatista. Mas cada apropriação de
um estilo, de um pensamento inicial, é desviada do propósito inicial da
escola escolhida justamente pela inclusão de uma outra escola que seria
sua negação. Por exemplo, o lado decorativo, joie-de-vivre matissiano
das cores, seria negado pela construção ritmicamente exacerbada do
expressionismo abstrato. Por outro lado, a tragédia dessa mesma pince-
Nesse período da geração 80, houve um retorno da pintura, havia
muita influência do neoexpressionismo e da transvanguarda, e eu
aproveito para citar aqui um trecho de um texto de Jorge Guinle
sobre isso. Aliás, sua última exposição7 me impressionou muito. Já
lada abstracionista é negada pelo otimismo da cor e pela ambiguidade
cômica da operação. A possibilidade e o prazer de sempre alargar
e nutrir essas contradições formam a base da minha práxis artística.
(Guinle, 20098)
170
171
C A DER N OS EAV
Já no final dos anos 80, comecei a fazer trabalhos que trazem
ainda muitas referências do meu trabalho inicial, mas com uma
diferença fundamental: passei a utilizar um modelo, como no caso
do trabalho9 baseado no Rapto das Sabinas10, uma escultura do
maneirista Gianbologna, artista italiano. Ao utilizar os modelos,
eu desenhava com técnica similar aos meus trabalhos abstratos
anteriores, mas a partir da observação dessas esculturas. Outra
característica é que eram feitos com duas folhas de papel. Um
outro exemplo dessa fase é o trabalho11 baseado na escultura do
Laocoonte12 . Ao ser chamada para participar de uma exposição13
na Funarte, que ficava no Museu de Belas-Artes, fui observar o que
havia lá, e encontrei cópias de esculturas clássicas, bem feitas, em
gesso. Lá estava Laocoonte, uma escultura grega. E então, fiz os
trabalhos no local. Sobre eles, Ronaldo Brito escreveu um texto,
nos anos 80, que citarei a seguir:
Os estudos de Elizabeth Jobim seriam assim compulsoriamente temáticos, reabilitando a disciplina da cópia de museu, e intempestivos,
registros pessoais mais ou menos passageiros; repetições acadêmicas, pedagógicas, e repetições reflexivas quase sistemáticas. Tomados
inocentemente por transes, logo afirmam sua dimensão pensada e
distanciada; analisados como estratégias de desconstrução acusam
prontamente o caráter de improviso, assumem a incerteza básica do
EL I ZAB ET H J O B I M
presente. E a referência direta à história da arte revela mesmo um toque
de astúcia: uma vez explícita, permite o trânsito franco e desinibido.
(Brito, 198814)
Essa citação aborda várias questões. Quando comecei a utilizar o
modelo, eu utilizei um que já fazia parte da história da arte e apresentava a ideia de reprocessamento, discutida por Jorge Guinle e
bastante corrente nos anos 80. Mas eu também acredito que é uma
característica do meu trabalho: gosto de partir de coisas extremamente simples, de falar de algo bem primário, desse momento em
que você observa algo e faz um desenho a partir dessa observação,
de como é essa operação. No período em que eu comecei a utilizar
essas esculturas, a fazer questão do modelo, e comecei também a
utilizar a fragmentação do suporte, criaram-se os elementos bem
básicos no meu trabalho, como a ligação, a continuidade com o
modelo, entre a observação de alguma coisa que existe e que eu
gosto de observar, até mesmo para evitar que o meu trabalho
seja uma composição puramente da minha vontade. Quando se
está em frente ao papel, você pensa “O que vou fazer? O que vou
botar nesse papel?”. Se você não está se referindo a nada, tem
uma tendência a fazer uma composição nos moldes da abstração
europeia, e isso era algo que eu queria evitar. No meu processo, ter
um modelo, algo que eu olho e, entre aspas, copio, é uma maneira
172
C A DER N OS EAV
“Os estudos que eu
faço para os meus
trabalhos são mais
gestuais do que o
trabalho final, que
tem sido cada vez
mais simplificado.”
173
EL I ZAB ET H J O B I M
de não ter que resolver para onde se direciona a minha linha, a
mancha, a forma, o arabesco. Eu tenho algo que está ali, fora de
mim, para que eu não tenha que ser puramente a minha vontade
ou a minha expressão. Além disso, quando eu faço essa observação, surge uma certa geometria, a espacialidade, a profundidade
que há nas coisas e que a pintura também tem, na sua origem e
em toda a sua tradição.A pintura é aquele lugar em que você vai
reproduzir a visão, como a gente vê as coisas, como a gente vê as
coisas no mundo e no espaço, na profundidade; a pintura fala disso
na bidimensionalidade.
Voltando aos desenhos, nos anos 90 eu passei um período sem
trabalhar e, ao retomar, não sabia bem o que faria. Eu me voltei,
então, para os objetos do meu ateliê, como um exercício, para fazer
desenhos de observação que eu já fazia, mas, dessa vez, sem me
basear em outra obra de arte. Comecei a fazer desenhos de tubos
de tinta e, dos menores, passei a fazer desenhos maiores. Posteriormente, passei a fazer pequenas pinturas de naturezas-mortas, que
são justamente os objetos que estavam no ateliê, como os tubos de
tinta... E depois disso, acrescentei as pedras. Esses desenhos são
como paisagens também, têm um clima um pouco morandiano,
até mesmo metafísico, e aproveito para citar aqui um trecho de
um texto de Paulo Venâncio sobre esse trabalho.
174
C A DER N OS EAV
Como é possível, hoje, um desenho que se pretenda natureza-morta se
a desatenção com as coisas se intensifica cada vez mais? O pouco que
resta daquele interesse prolongado – interesse que diverge cada vez
mais das tendências atuais da arte – não é capaz de emprestar suprema
importância à representação de um arranjo prosaico de objetos comuns.
É preciso uma insistência obsessiva na presença das coisas; investir
nisso todo o esforço de um fazer artístico elaborado, para que daí,
despretensiosa e casualmente, resultem, como neste trabalho, “estudos”
compulsivos do mesmo tema e pinturas com ar de “fim de semana”.
Tal é a paradoxal missão poética desse trabalho: empenhar o alto saber
histórico da pintura na irrelevância banal de uma coisa qualquer que se
quer ter para si, desenhando sem parar. (Venâncio, 199715)
Nesse mesmo período, 1997-1998, tenho uma outra série de desenhos,
maiores, feitos com tinta a óleo, na horizontal, e que passei a fazer em
têmpera, colocando o trabalho na parede na vertical, deixando a tinta
escorrer. Em um desses desenhos, por exemplo, o trabalho vem da
observação de pedras, feito em acrílico, com quatro folhas de papel
de 1 m x 0,70 m. Fiz também pequenos desenhos de nanquim com
as pedras. Nos desenhos menores, é possível ver a figura claramente.
Muitas vezes, as pessoas veem o trabalho como um trabalho abstrato,
mas o trabalho é todo feito com base na observação. Para mim, não
há uma separação entre o trabalho abstrato e o trabalho figurativo.
175
EL I ZAB ET H J O B I M
Em um trabalho que realizei em São Paulo para o Maria Antonia16,
tive pela primeira vez a ideia de ocupar a parede do espaço; não eram
desenhos individuais. Fiz trabalhos de observação com quatro, seis
ou oito folhas, tirei-os da sua ordem e os rearranjei de maneira um
pouco aleatória; em algumas partes, eles mantêm a configuração,
em outras não. Desse trabalho, veio todo o sistema que utilizo até
hoje com as telas, mas, atualmente, os projetos são bastante planejados. No caso do Maria Antonia, fiz alguns estudos, mas, na verdade,
resolvi como o trabalho ficaria ao chegar no espaço, com uma pilha de
papéis debaixo do braço. Depois disso, fiz uma exposição no Espaço
Sérgio Porto17 e modifiquei a configuração inicialmente proposta no
Maria Antonia. São os mesmo desenhos, mas eles foram organizados
de uma outra forma e ocupam todas as paredes.
Em 2008, fiz uma exposição na galeria do Lehman College, no Bronx.
A ideia inicial era fazer todo o planejamento aqui e simplesmente
executar e montar o trabalho lá, nos EUA, o que não foi possível, de
modo que, ao chegar lá, havia uma parte já pronta e planejada e outra
parte por planejar. Comecei, então, a executar as telas grandes e, ao
mesmo tempo, tive que finalizar o planejamento. Peguei pedras da
região, o que é muito interessante, porque cada lugar tem a sua pedra,
cada lugar tem a sua geologia, um tipo de pedra diferente, um brilho,
uma luz diferente. São vários desenhos que levarão ao trabalho final:
176
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C A DER N OS EAV
há um desenho de linha feito a partir da observação de uma série
de pedras, há outros esboços que faço recortando cada pedaço já no
tamanho proporcional das telas, imaginando como passar de uma
tela para outra. Hoje em dia, acredito que meu trabalho adquiriu
essa característica do encontro das partes. Isso me interessa cada vez
mais e procuro fazer de tal modo que as partes sejam praticamente
independentes e adquiram sentido apenas quando se conectam
com as outras, e não ao contrário. No início, se eu desejava fazer uma
determinada forma, ela se estendia pelas várias telas ou pelos vários
papéis. Cada vez essa passagem de uma tela para outra é pensada de
tal forma que tenha fluência, que vá acontecendo de uma tela para
outra. Há uma narrativa, algo de temporal nessas instalações, o que
faz com que o público tenha que percorrer o espaço para vê-las.
Eu chamei o trabalho de Endless lines lá em Nova York e Sem Fim
aqui no Rio; eram exposições casadas, com o mesmo sistema. Na
exposição Sem fim, na Lurixs, utilizei uma espécie de volume, que
são algumas telas mais largas que as demais. Assim, é possível ver a
lateral das telas fazendo parte do trabalho. Nesse caso, só é possível
ver o trabalho ao percorrê-lo, porque é preciso olhar o trabalho de
um lado e seguir andando para conseguir visualizar a outra parte.
Conforme o espectador anda, partes do trabalho vão aparecendo
e outras vão desaparecendo. Essa mesma ideia foi usada em uma
EL I ZAB ET H J O B I M
exposição18 que realizei na Frederico Sève. Nela, o conceito de
volumes também está presente, mas são trabalhos individuais
feitos com várias partes.
Seu trabalho tem, no início, características
expressionistas no traço, mas, aos poucos, vai se tornando
geométrico. Sabe-se que havia uma ‘birra’ entre os
expressionistas informais, no abstracionismo informal, e os
geométricos, e parece que você consegue reunir essas duas
características. Gostaria que comentasse mais sobre essas
características na sua obra.
Aluno:
Isso é bastante curioso, porque quando eu comecei a estudar, procurei uma formação bastante diversificada: fiz cursos com Anna
Bella Geiger, que fazia trabalhos bem conceituais, também com
Sued e Carvão, que tinham trabalhos bastante geométricos, mas,
naquela ocasião, nem mesmo eles sugeriam que eu fizesse trabalhos
geométricos. E essa parece ser uma característica da arte brasileira.
Nós tínhamos muita admiração pelos artistas da década de 70, e,
evidentemente, os princípios teóricos que regiam esses modos de
trabalho eram diferentes, mas havia bastante diálogo, e eu, hoje em
dia, acho muito curioso o fato de o meu trabalho finalmente ficar
próximo ao trabalho de Sued, porque, quando estudei com ele, não
178
C A DER N OS EAV
179
EL I ZAB ET H J O B I M
havia nenhuma similaridade. Os professores não nos forçavam
a seguir em uma ou outra direção. Ao contrário, eles eram muito
abertos e apoiavam aquilo que estávamos fazendo. Os estudos que
eu faço para os meus trabalhos são mais gestuais do que o trabalho
final, que tem sido cada vez mais simplificado. Eu costumo dizer
que, no começo, você tem milhões de ideias do que quer fazer e
você faz todas aquelas coisas. Quando você é jovem, produz uma
quantidade enorme. E com o tempo, quando você desenvolve seu
trabalho, o trabalho vai acontecendo, e você segue aquela linha.
Assim, eu tento acompanhar o trabalho. Em 2008, dei início aos
projetos com os volumes, porque, ao fotografar as telas na maquete,
percebi que a lateral que havia pintado parecia enorme e a linha
seguia para a lateral. Naquele momento, eu pensei: “eu tenho que
fazer esse trabalho”. Mas eu nunca quis fazer esse trabalho; foi assim,
aconteceu. O trabalho tem seu percurso e, no meu caso, acho que
as coisas se comunicam. Mesmo em um Mondrian você encontra
espacialidade. Se você faz uma pequena diagonal na linha que não
é ortogonal, é possível reconhecer uma movimentação. No caso
do meu trabalho, acredito que ele se comunica: as pinturas com o
esboço de linha e o desenho aguado...
Ao observar o seu trabalho, percebo nele muita
filosofia, a questão da relação do todo com as partes e, por
Aluno:
Laocoonte, 1988-89
Paintstick sobre papel
140 x 100 cm
Foto: Pedro Oswaldo
180
181
C A DER N OS EAV
ser professora de Estética, me pergunto sobre a relação com
a pedra, o ser da pedra... Os pré-socráticos, por exemplo,
falam da questão do ser da pedra; para eles, era um mistério
por que as pedras ficam juntas. Conectado a isso, gostaria
de ouvir seus comentários sobre a Bienal deste ano, que terá
como tema a arte política e o retorno de uma narrativa política
nos trabalhos de arte contemporânea. Eu gostaria que você
falasse um pouco sobre a relação do seu trabalho com a
questão mais política.
Eu li Merleau-Ponty e acho que tem muito a ver com a meu trabalho.
Tanto nos desenhos de observação quanto na instalação, onde a
percepção se dá por partes, no percurso, com o corpo. Eu acho que
existem vários tipos de trabalho e um bom trabalho é um trabalho
que é bom, não porque é um trabalho que é de pintura, ou de política,
ou de fotografia, ou de vídeo. Existem muitas formas de se pensar o
trabalho e existem muitas formas de o trabalho ser político também.
Hoje em dia, reflete-se muito sobre como os conteúdos se apresentam. Quando eu comecei, não se falava muito sobre o trabalho
e, principalmente, não se explicava o trabalho. Os trabalhos eram
bastante herméticos, o que era particularmente duro para o jovem
que gostava de arte contemporânea. Mas agora parece haver uma
tendência, que vai além do trabalho político – ou não político –, que
EL I ZAB ET H J O B I M
é o trabalho explicado, o trabalho que vem acompanhado de uma
bula. É possível encontrar todo tipo de abstração, mas cada uma
delas está acompanhada de uma explicação de como aquilo veio a
ser, surge uma longa história para que tudo se conecte.Há um lado
bastante interessante nisso de que as coisas, todas elas, vêm de algum
lugar. Eu não acredito que exista trabalho puramente formal, porque
as coisas se conectam e há muitas poéticas, mas acho complicado
alguns trabalhos em que parece que não há uma distinção entre a
explicação do trabalho e o trabalho: não existe nada que você não
compreenda e quase basta a explicação do trabalho, ele praticamente
não precisa ser visto pessoalmente. Mas nós todos somos seres no
mundo e tudo tem seu aspecto político. E até mesmo a Bienal deste
ano parece ter um sentido de política bastante aberto, que não se
atém a algo muito radical de um único tipo de trabalho.
Em um de seus vídeos, em que se apresenta um
trabalho seu em um espaço aberto, esse céu aberto vai se
transpondo para um céu fechado para, então, dar lugar à
imagem do Rio ao fundo. Eu já tinha visto esse vídeo no
YouTube e me impressionou muito a diferença que o espaço
aberto faz na mesma obra. Eu revi essa cena várias vezes. Eu
gostaria de saber qual é a influência desse espaço aberto, se é
que você acredita que há diferenças entre esses espaços.
Aluno:
182
C A DER N OS EAV
As fotos desse trabalho foram tiradas de maquetes. Eu estava realmente planejando essas exposições dentro de espaços fechados, mas
como eu estava fazendo a maquete, coloquei-a ao ar livre, porque eu
achei que seria bonito. Uma coisa bastante espontânea, sem muito
planejamento, mas eu fiquei muito impressionada com essas imagens, porque o trabalho, de fato, adquiriu uma outra dimensão. Meu
trabalho está, até hoje, dentro desses limites de espaços institucionais
e galerias onde tenho oportunidade de expor, mas eu acredito que
essas fotos são quase um projeto de um trabalho. Eu tenho vontade,
inclusive, de executar esse trabalho, ou algum outro similar, ao ar
livre, porque essa experiência também me impressionou bastante.
No início da sua carreira, você trabalhou bastante
com duas folhas de papel, o que eu acredito levar a essa
combinação de telas que você usa hoje. Muito da sua
produção, pelo menos os que eu vi, têm essa proposta de
combinar duas telas, duas folhas. Eu gostaria de saber de
onde surgiu a ideia de trabalhar dessa forma.
Aluno:
Eu comecei a usar duas folhas de papel porque achei que uma folha
era pequena, e aqui no Brasil não existia uma folha de papel maior
do que 1 m x 0,70 m. Eu utilizava também rolos de papel Canson de
péssima qualidade, que não eram muito adequados à tinta. Havia
183
EL I ZAB ET H J O B I M
um tamanho padrão e, um dia, eu quis fazer um trabalho maior e
utilizei duas folhas. Ao utilizar duas folhas, percebi que havia esse
aspecto da serialidade, mesmo que o trabalho fosse um trabalho
contínuo, gestual. Então, comecei a fazer a linha pensando nessa
divisão e passei a observar o momento dessa passagem para que
houvesse uma fluência, que não ignorasse totalmente aquela divisão, porque você pode fazer um trabalho com milhões de partes
ignorando-as completamente. Surge daí essa questão que cada
vez mais me interessa. A pintura de uma única tela não é o meu
trabalho, meu trabalho só se dá em duas ou três telas, porque o
trabalho feito em uma tela é diferente do trabalho feito com mais
telas. Essa junção das partes e o fato de que cada parte adquire seu
significado pelo fato de estar com a outra parte e, se você virá-la em
outra posição, ela também adquire outro sentido. Esses elementos
são combinados por características, vertical/horizontal, cheio/
vazio, positivo/negativo, leve/pesado, baixo/alto. Há uma série
de elementos que se podem combinar e o meu trabalho passou
a ter essa característica, isto é, uma temporalidade, porque, para
entendê-lo, é preciso percorrer o trabalho. Desse modo, ele se
assemelha à escrita. No começo, realmente havia um esboço que
compreendia tudo, hoje em dia eu não trabalho dessa maneira: eu
tomo as partes, baseada no momento e na observação, quase como
se fossem um ideograma, com partes que vão sendo combinadas.
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C A DER N OS EAV
“Se você reúne um trabalho
vinho, um trabalho azul, um
trabalho cinza, eles passam
a se relacionar uns com os
outros, enquanto que, quando
você entra e vê apenas uma
cor, trata-se da vibração
daquela cor, naquele espaço,
o que é bastante diferente de
quando aquela cor dialoga
com outra.”
EL I ZAB ET H J O B I M
Observei que o seu trabalho se desenvolve muito
melhor em um espaço amplo e você mesma disse que, às
vezes, dentro do seu ateliê, você não consegue configurar o
trabalho da maneira como ele vai ser exposto. Como se dá a
sua relação com a instituição? Eu imagino que você não tem
a preocupação se vai caber ou não futuramente. Você produz
sob encomenda ou a partir de um projeto que você propõe
para a instituição?
Aluno:
Eu faço trabalhos no ateliê, eu vendo trabalhos em galerias, comercialmente, normalmente. Já os trabalhos de instalação, realmente,
não sei como eu poderia fazê-los se não tivesse algum lugar para
mostrá-los. Eles são feitos para o lugar, são planejados para o
lugar, mas, pelo fato de serem feitos em partes e terem todo esse
raciocínio, eles podem ser adaptados para uma outra instituição
também. O grande problema dessas instalações é saber o que fazer
depois que a exposição termina. Não há como mantê-las, como
seria possível preservá-las? Eu já acompanhei vários artistas que
fazem os trabalhos, desmontam-nos e estes não existem mais. Há o
campo da arte pública, pouco comum no Brasil, mas mais corrente
em outros países, em espaços como o metrô. Em Nova York, por
exemplo, existe um projeto em que cada grande prédio deve ter
um trabalho público no hall.
186
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C A DER N OS EAV
Percebi que no começo da sua carreira você usava
muitas cores e, hoje, você tem obras mais limpas, usando
basicamente o azul e o branco. Existe algum motivo para isso?
Aluno:
Quando eu era mais jovem, trabalhava mais com papel, então, meu
foco era o desenho. Mas meu desenho sempre foi muito pictórico,
especialmente depois que comecei a usar aqueles escorridos. E
eu me perguntava se deveria tentar fazer aquilo também em uma
tela. Mas, na verdade, eu já trabalhava com poucas cores. Quando
comecei a trabalhar em tela, tentei o acrílico, bastante aguado,
com escorridos, mas não funcionou. Então, passei a usar o rolo,
com óleo, e a técnica foi totalmente diferente. Nesse momento, o
trabalho se tornou muito mais simplificado. Eu fazia basicamente
as mesmas formas, mas, em vez de executá-las com um grande
pincel sobre papel, passei a executá-las com rolo sobre a tela; com
isso, elas ficaram mais rígidas, mais retas. Com o tempo, desenvolvi
o meu trabalho e o que aconteceu? Eu passei para a tela, cheguei
à pintura a óleo, mas meu trabalho se tornou bastante gráfico. O
trabalho é quase um desenho. E ele é gráfico não só porque é de uma
cor só, mas porque é feito sobre o branco e o branco não é pintado
da mesma maneira; ele é a base, apenas a cor é pintada em óleo.
Se você reúne um trabalho vinho, um trabalho azul, um trabalho
cinza, eles passam a se relacionar uns com os outros, enquanto
EL I ZAB ET H J O B I M
que, quando você entra e vê apenas uma cor, trata-se da vibração
daquela cor, naquele espaço, o que é bastante diferente de quando
aquela cor dialoga com outra.
Você comentou sobre o arranjo das partes e uma
possível serialidade, mas, nas imagens apresentadas, não
parece haver uma repetição nas telas. Por mais que elas
tenham um arranjo de acordo com o local em que são
expostas, cada tela parece ser um desenho único. Você
eventualmente tem alguma repetição de elementos, uma
mesma tela em diversas situações em uma instalação, ou
realmente cada tela é diferente, independentemente do
arranjo? Você exporia um mesmo arranjo em outro espaço?
Interessa a você repetir ou, por serem partes, em cada local
você rearranja essas telas?
Aluno:
Não, a princípio, eu procuro manter, ao menos parcialmente, a
ordem. Basicamente, o que eu faço é adaptar ao espaço, tentando
manter essa ordem. O meu trabalho tem muito disso, porque eu
faço pequenininho, aí, às vezes, eu faço médio, faço grande, e faço de
uma cor, de outra cor. Os elementos se repetem, mas dificilmente
o resultado se repete, porque há muitos elementos para serem
combinados. No trabalho a que me dedico atualmente, algumas
188
189
C A DER N OS EAV
partes repetem outras, dentro da mesma obra, mas em uma outra
posição. Há uma tela totalmente branca e uma outra totalmente
azul. Aliás, há duas telas azuis, que se repetem também. Mas isso
é uma característica do trabalho. Eu acho que, às vezes, é possível
conseguir mais variações usando a mesma coisa de uma forma
diferente do que produzindo uma quantidade enorme de coisas
diferenciadas.Porque, se uma pequena mudança é feita, a diferença
aparece mais, porque se tem a referência do outro.
Aluno: Eu observei que você usou o azul na maioria das suas
telas. Há alguma explicação para isso ou seria só uma escolha?
Ah, isso é bem pessoal, eu gosto muito dessa cor. O azul é uma
cor que tem uma série de referências. Eu uso principalmente
vermelho, vinho ou azul. E o vermelho e o vinho são cores mais
corpóreas, mais sólidas, menos transparentes. Eu uso sempre
cores transparentes. O meu trabalho não é opaco e também não
tem um acabamento industrial, é um trabalho de velatura com
transparência, e esse azul traz uma luz que vem do fundo, e é bem
artesanal. Eu poderia fazer um chapado com acrílica, mas eu opto
por deixar uma série de marcas. A cor mostra a luz do fundo, é bem
escura, mas tem uma luz por trás. As cores que são mais interessantes para esse tipo de trabalho são bastante escuras, no sentido
EL I ZAB ET H J O B I M
de terem um contraste grande com branco e, ao mesmo tempo,
serem vibrantes, luminosas. O azul tem essa característica. Além
disso, o azul é o azul do céu, o azul da água, é o azul da sombra, é a
cor que tradicionalmente dá a distância na pintura. E na técnica
antiga as cores que estavam próximas eram pintadas em tons
quentes, e as cores distantes em tons azuis. Então, quando você
faz uma forma como as que eu faço, que têm uma ambiguidade
espacial, em azul, imediatamente a pessoa vê aquilo como uma
forma em profundidade.
Você tem muitos trabalhos de desenho e pintura.
Você já experimentou outras linguagens, como a fotografia, a
gravura, a colagem?
Aluno:
Não exatamente. Eu fiz algumas fotos das maquetes e tenho vontade
de fazer um trabalho fotográfico com elas. São fotos das pinturas,
e eu estava em um momento de bastante envolvimento com o
trabalho, fazendo essas maquetes, eu as coloquei diariamente ao
ar livre, de manhã, à tarde... E foi tomando forma um trabalho que
é quase um diário dessas maquetes, dos lugares onde elas puderam ir, e como poderiam se tornar diferentes em cada situação.
Em parte, o trabalho está feito, mas, tecnicamente, ainda não fui
capaz de executá-lo.
190
C A DER N OS EAV
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EL I ZAB ET H J O B I M
O que eu teria mais vontade de fazer seria escultura. O problema
é a falta de tempo. No caso do meu trabalho, para cada um dos
projetos que imagino, tenho que desenvolver, pessoalmente, uma
técnica especial, e o projeto vai se transformar conforme a técnica.
Não é um trabalho que eu pense, chame um técnico e consiga fazer.
Embora eu trabalhe com vários assistentes – eles me ajudam muito
–, o trabalho é mais medieval do que algo que pudesse ser feito assim
tão objetivamente. Eu acho que poderia fazer outras coisas como,
por exemplo, um plotter. Mas ainda não tive essa oportunidade.
Você falou do início da sua carreira, de uma geração
que ficou conhecida nos anos 80 como uma geração de
pintores, embora muitos artistas fizessem outros tipos de
trabalhos. E houve um momento, especialmente aqui no
Parque Lage, em que um grupo de artistas se debruçou sobre
a pintura. E você, no início da sua fala, contou essa história e
citou, inclusive, um texto de Jorge Guinle. Como você vê hoje
a pintura, especialmente no Brasil?
Aluno:
Eu a vejo mais intuitivamente. O Brasil tem muito disso: nos anos
90, eu escutava pessoas dizendo “A pintura acabou, agora é o vídeo,
a fotografia”. A pintura pode não ser a coisa mais interessante no
momento, mas ela não desaparece. E eu acredito que, no Brasil,
Sem título, 2003
Tinta acrílica sobre papel
170 x 200 cm
Foto: Cesar Barreto
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C A DER N OS EAV
o modismo pesa mais. Se a pessoa está fazendo um trabalho que
não é moda no momento, parece que aquilo não tem mais interesse algum. A pintura é algo lento, que demanda mais tempo. Esse
tempo é dificilmente entendido pelas pessoas, porque, hoje em dia,
o tempo tem um peso muito grande na carreira do artista. Eu vejo
artistas muito jovens que têm de expor em milhares de lugares,
têm que ter o trabalho divulgado, ter um trabalho que possa ser
mostrado em vários lugares. E na pintura, é preciso tempo para
fazer um trabalho com qualidade, é preciso conhecer a tradição
da pintura, o que não é tão fácil. É preciso ir ao MASP, no mínimo,
para entender o que aquilo é. E é preciso pintar muito até o trabalho
amadurecer, o que parece bastante difícil para um artista suportar
hoje em dia. Esperar todo esse tempo. Passar tanto tempo sem
fazer sucesso como seus amigos estão fazendo, desenvolvendo
trabalhos que se resolvem mais rapidamente. E há ainda a questão
de a pintura ser política ou atual ou qualquer coisa assim. Mas o
que eu percebo e acho bem interessante é que, agora, enfim, há
muita pintura sendo feita aqui no Rio de Janeiro e em São Paulo,
e em Nova York também. Por artistas muito interessantes. Cito,
por exemplo, Sarah Morris, que tem trabalhos de vídeo, de pintura e de pintura de instalação interessantíssimos e muito atuais.
E não se trata da pintura no sentido do artesanato, de algo que
se está guardando e mantendo vivo, como se fosse um reduto de
EL I ZAB ET H J O B I M
humanidade diante desse mundo tão descaracterizado. Existem
muitas formas de pinturas que se relacionam com o minimalismo,
com novos materiais. Eu vi recentemente a tese de Hugo Houayek,
que trabalha comigo e fez uma tese sobre isso. Ele faz trabalhos
ótimos de pintura com lona. Para ele, a pintura pode sair da pintura e entrar no mundo também. Eu acredito que o interessante,
hoje em dia, é que há espaço para muitas formas e, depois desse
momento em que parecia que a pintura morreria, passou a existir
muito diálogo entre a pintura e outros meios. Por exemplo: eu vi
a exposição19 de Andy Warhol na Pinacoteca. Ele tem um vídeo20
do Empire State que me lembrou muito as catedrais do Monet21.
Então, será que aquele vídeo vai acabar com a catedral de Monet, ou
a catedral de Monet está vivendo naquele vídeo também? Mas essa
história da pintura, essa espacialidade da pintura, essa convenção
final do quadro e da tinta sobre a tela, tudo isso me parece muito
atual e vivo, de muitas formas. Até mesmo com impressões sobre
tela feitas em computador. Afinal, por que você precisa imprimir
essa imagem gerada em um computador em cima de uma tela?
Deve haver algum motivo para isso.
Eu já ouvi de alguns escritores e roteiristas que,
no meio do livro, do roteiro ou das próprias filmagens, o
personagem acaba assumindo uma vida própria, a história
Aluno:
194
C A DER N OS EAV
segue por um rumo que você nem imaginou a princípio. Eu
queria saber se no seu processo isso também acontece. Se
algum projeto já tomou um rumo que você não esperava, se
existe essa relação de vida própria também com a obra.
Sem dúvida. Por exemplo, no caso da instalação22 em que estou trabalhando atualmente. Eu queria fazer uma instalação nos moldes
da minha última exposição e pensei, inclusive, em trazê-la para
colocar junto com minha instalação atual e fazer, talvez, uma complementação. Quando executei o trabalho, não havia mais linhas,
só manchas, e eu dizia: “não, eu quero linha, este trabalho não está
andando” e fiquei numa luta com isso. Você tem que conseguir fazer
o que quer, mas, ao mesmo tempo, você tem que escutar a obra. O
meu trabalho é feito de uma forma espontânea, e o problema é que,
quando se passa a querer fazer um trabalho em uma sala enorme
com muitas pinturas, é preciso planejar muito. Mas eu acredito
que o básico do meu trabalho é ainda um improviso.
Você costuma expor fora do Brasil, e disse que as suas
últimas referências têm vindo dos Estados Unidos... Eu me
lembrei, então, de vários artistas brasileiros, como Eduardo
Kac e Vik Muniz, que moram, trabalham e expõem fora do
país. E aí eu queria saber qual o espaço do Brasil, ou da sua
Aluno:
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EL I ZAB ET H J O B I M
formação, que aconteceu aqui no Brasil, no seu trabalho
hoje, que é um trabalho tão globalizado, tão internacional.
À medida que o artista sai do Brasil e produz fora, a partir
de referências que ele vê lá fora, esse trabalho se torna um
trabalho, de fato, não vinculado a nenhum lugar específico,
ou vocês continuam tratando de questões e reflexões que
nascem a partir do que viveram aqui no Brasil, mas com uma
outra perspectiva?
Eu não vejo o meu trabalho como tão globalizado assim, e eu ainda
estou morando aqui. Acho que os trabalhos dos artistas brasileiros
são muito bem recebidos lá fora. As pessoas estão encantadas com a
arte brasileira neste momento. Até me surpreendeu, porque, há um
tempo atrás, eu sentia bastante dificuldade, como se o meu trabalho
não fosse visto como um trabalho diferenciado do trabalho de fora,
ou brasileiro. O que aconteceu é que meu trabalho, neste momento,
se aproximou muito do neoconcretismo. É uma coisa que não foi
pensada, mas esses volumes têm uma relação com o objeto ativo do
Willys de Castro no uso da lateral da tela como parte do trabalho.
Eu sempre tive muito interesse nos artistas brasileiros. Quando
comecei, eu tinha muito interesse no Goeldi, no Iberê. E acho que
o meu trabalho ainda tem muito a ver com Goeldi. Já o Iberê foi
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C A DER N OS EAV
muito importante para mim porque ele era um artista que tinha
um trabalho muito bacana e, nos anos 80, fez um trabalho muito
atual, que dialogava com o trabalho de Jorge Guinle e com esse
momento. O trabalho do Volpi também. Eu tive muitas influências,
inclusive da pintura americana dos anos 50, e do minimalismo.
Mas acho que meu trabalho só poderia ter sido feito aqui. E ele tem
muita referência. Eu acho que, hoje em dia, a arte brasileira já tem
uma conexão com ela própria, e perdeu essa característica de que
não havia história, não havia de onde as coisas virem e, com isso,
as referências de fora adquiriam um peso muito grande. Agora,
há muita conexão. E existe uma coisa legal aqui, que é por causa
do pequeno tamanho do meio de arte, você tem oportunidade de
conhecer e conviver, de fato, com os artistas mais velhos e ter uma
vivência. Eu conheci artistas e críticos que já estavam atuantes na
década de 70 e foi uma troca muito rica. Não estou me referindo a
uma homogeneização forçada, carnavalizada. Claro que há alguns
trabalhos que são mais passíveis de ter esse tipo de leitura, uma
leitura tropical, excessivamente limitadora, mas eu acredito que
há um tipo de inteligência que está passando de um trabalho para
o outro aqui no Brasil, o que é muito interessante. Eu acho que os
jovens estudantes deveriam se ater a isso.
EL I ZAB ET H J O B I M
Notas
1. JOBIM, Elizabeth. Aberturas, 2005/2006. Óleo sobre tela. 2 m de altura e largura variável.
2. 5ª Bienal do Mercosul. Exposição coletiva, com trabalhos de 169 artistas, realizada em
Porto Alegre, 1º de outubro a 4 de dezembro de 2005.
3. ABERTURAS. Direção de Luiza Nazareth e edição de Giovanna Giovanini. 2009. DVD
(6’12’’) son., color.
4. JOBIM, Elizabeth. Endless lines. Pintura-instalação realizada na Lehman College Art
Gallery, Nova York, 18 de setembro a 1o de novembro de 2008.
5. AN INTRODUCTION TO ELIZABETH JOBIM’S WORK.Direção de Thomas Piper.
2008. DVD (6’12’’) son., color.
6. Como vai você, geração 80?. Exposição coletiva que reuniu trabalhos de 123 artistas,
realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage - EAV/Parque Lage, Rio de
Janeiro, aberta em 14 de julho de 1984.
7. Jorge Guinle – Belo caos. Exposição individual póstuma realizada no Museu de Arte
Moderna, Rio de Janeiro, 18 de setembro a 8 de novembro de 2009.
8. GUINLE, Jorge. A pintura contra a parede. In: Conduru, Roberto. Jorge Guinle. Rio
de Janeiro: Barléu, 2009.
9. JOBIM, Elizabeth. Rapto das Sabinas, 1988. Bastão a óleo s/ papel. 133 x 96 cm.
10. GIAMBOLOGNA. O Rapto das Sabinas, 1581-1582. Escultura em mármore. 410 cm de
altura. Florença, Loggia dei Lanzi.
11. JOBIM, Elizabeth. Laocoonte, 1988. Paintstick e óleo sobre papel. 95 x 133 cm.
12. Laocoonte, séc. I d.C. Escultura com autoria atribuída a Hagesandro, Atenodoro e
Polidoro de Rodes. Mármore. 213 cm de altura.
13. Desenho contemporâneo brasileiro. Exposição coletiva organizada pela FUNARTE e
realizada na galeria Rodrigo de Melo e Franco de Andrade, Rio de Janeiro, 1988.
14. BRITO, Ronaldo. Improvisos reflexivos. In: Elizabeth Jobim, desenhos. Rio de Janeiro:
Galeria Paulo Klabin, 1988.
15. VENANCIO FILHO, Paulo. Desenhos que desabam. In: Elizabeth Jobim. São Paulo:
Gabinete de Arte Raquel Arnaud, 1997.
198
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16. JOBIM, Elizabeth. Elizabeth Jobim. Exposição individual realizada no Centro
Universitário Maria Antonia, São Paulo, 22 de novembro de 2001 a 22 de janeiro de
2002.
17. JOBIM, Elizabeth. Desenhos. Exposição individual realizada no Espaço Cultural
Sérgio Porto, Rio de Janeiro, 29 de outubro a 1o de dezembro de 2002.
18. JOBIM, Elizabeth. Voluminous. Exposição individual realizada na Frederico
SèveGallery, Nova York, 12 de novembro de 2009 a 16 de janeiro de 2010.
19. Andy Warhol, Mr. America. Exposição individual realizada na Pinacoteca, São Paulo:
20 de março a 23 de maio de 2010.
20. WARHOL, Andy. Empire. Filme de 16mm transferido para vídeo, 1964. Mudo, p&b.
(8h e 5 min. em 16 frames por segundo). O filme consiste num plano-sequência do
edifício Empire StateBuilding, realizado das 20h06 às 2h42 de 25 de julho de 1964.
21. Entre 1892/1893, Claude Monet realizou uma série de cerca de 50 telas da catedral de
Rouen, situada na antiga região da Normandia, no noroeste da França, reproduzindo
a incidência da luz sobre a arquitetura da igreja em diferentes horários.
22. JOBIM, Elizabeth. Em azul. Instalação realizada na Pinacoteca, São Paulo, 19 de junho
a 1o de agosto de 2010.
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EL I ZAB ET H J O B I M
Saiba mais
Elizabeth Jobim. São Paulo: Gabinete de Arte Raquel Arnaud, 1997
200
VIK M UNIZ
Começar uma discussão, uma palestra, uma conferência, é sempre
difícil, porque eu sempre acho que estou no lugar errado, sabe?
Eu devia estar sentado aí, com vocês, escutando alguém. Muitas
vezes, eu não me vejo no direito de estar falando para um número
grande de pessoas.
Às vezes, as pessoas me perguntam: “O que o levou a ser artista?
Como é que você começou a ser artista?” Geralmente, a minha resposta é que não fui que eu que comecei – foi todo mundo que parou
de ser num determinado momento, e eu continuei sendo. Acho que
quando você está falando com um grupo de estudantes, a pergunta
mais pertinente é: “Como você começa a fazer arte? Como você
acaba vivendo de arte, vivendo de ideias que você materializa?”.
Valentina, a mais veloz, 1996
Cópia fotográfica de emulsão de prata
35,60 x 27,90 cm
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VI K MU N I Z
Quando eu era jovem, nunca pensei que isso fosse possível. Eu
tinha 18, 19 anos quando pela primeira vez um jovem artista me
disse: “Eu sou artista plástico: eu trabalho, eu vivo de vendas de
pinturas.” Esse artista foi o José Leonilson, na época em que eu
ajudava a trupe do Asdrúbal Trouxe o Trombone1. Isso foi em 79,
e foi a primeira vez que eu falei: “Como assim, você vive de arte?”
Ele falou: “Eu vendo quadros”. Eu falei: “Isso é possível? Pensei
que só gente morta vendia quadro”.
você ter se tornado um artista, é uma atividade muito empírica,
muito experimental.
O caminho que me trouxe aqui, para estar falando com vocês
hoje, é bastante sinuoso. Quando a gente explica uma carreira,
tudo parece fazer parte de uma linha muito direta, reta, que leva
esse momento que eu estou falando aqui com vocês de volta até o
primeiro desenho que eu fiz, quando tinha quatro anos de idade.
Parece que não faz nenhuma curva, porque, olhando em retrospecto, tudo parece fazer sentido – mas, na verdade, era justamente
o contrário.
Eu nasci em uma família muito humilde; meu pai foi garçom
a vida inteira, a minha mãe foi telefonista, na época que tinha
aqueles botõezinhos de apertar. Eles trabalhavam o dia inteiro;
minha mãe trabalhava o dia inteiro, o meu pai tinha dois empregos. Eu pouco via o meu pai quando era criança, e fui criado pela
minha avó.
Quando você está começando a fazer alguma coisa, você tem um
funil, uma infinidade enorme de possibilidades à sua frente; e quais
são aquelas que vocês vão decidir pegar, que vão te levar aonde
vocês vão querer estar – a questão é que você não sabe onde você
vai querer estar, porque muito da prática de arte, ou até do fato de
Eu não tinha a menor ideia de que um dia eu estaria falando com
vocês sobre arte com a autoridade que eu estou falando hoje; e o
que me levou a ser artista tem pouco a ver com a minha educação
como artista, também. É até meio irônico falar isso para um grupo
de estudantes de artes.
Minha avó era uma pessoa incrível. Ela se ensinou a escrever,
ninguém sabe como ela aprendeu a ler; porque ela nunca foi à
escola, ela aprendeu a ler de tanto olhar para os livros dos seus
filhos – ela teve quatro filhos. E da mesma maneira que aprendeu
a ler sozinha, ela me ensinou a ler. Uma das primeiras memórias
que eu tenho é de estar sentado com ela num sofá, com o dedo
apontando para cada palavra, ela falando a palavra e eu repetindo.
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VI K MU N I Z
A gente tinha uma enciclopédia – o meu pai ganhou, num jogo de
bilhar, uma enciclopédia Conhecer – e eu me lembro que a gente lia
aquilo direto. Acontece que ela me ensinou a ler de uma maneira
completamente errada, ela me ensinou como se ensina pessoas
que tem deficiência. Eu lia me lembrando da forma total de cada
palavra, eu decorava essas formas. Uma criança de quatro, cinco
anos tem uma capacidade incrível de memorizar a forma de uma
palavra inteira. Então, quando eu entrei na escola, com sete anos,
eu já estava lendo A ilha do tesouro com ela, o livro do Júlio Verne.
a inventar uma maneira de fazer os desenhos, mais rápido. Por
exemplo: carro era uma bolinha com dois pontinhos, era um sinal,
como um hieróglifo. Eu me lembro de carro, me lembro de mesa,
de casa. E isso foi até o segundo ano – não sei como eu passei do
primeiro para o segundo, porque eu não sabia ler – não da maneira
que eles estavam me ensinando.
Mas eu não conseguia escrever, e não conseguia ler letra de forma,
porque eu memorizava cada palavra. A maneira como eu aprendi
a ler foi puramente visual, eu era como um autista, uma pessoa
que tem Asperger.
Então, até na minha dislexia, eu sou autodidata; porque aprendi a
ser disléxico. Então, quando tive que reaprender a ler pelo sistema
fonético silábico, eu não conseguia ler nada. Os meus cadernos
pareciam a ala egípcia do Museu Metropolitano de Nova York;
parecia hieróglifo, quando eu não sabia escrever.
Nos ditados, metade era desenho, metade eram palavras. As pessoas ficavam furiosas, e falavam: “O que é isso?”. E eu comecei
Eu tomei uma aversão incrível por sinais, por exemplo. Eu detestava matemática, porque era outro sistema de símbolos. Para mim,
parecia muito simples, naquela época. Eu aprendi a ler da maneira
que todo mundo aprendeu, mas uma coisa ficou; nessa prática de
ficar fazendo esses desenhos pequenos, eu comecei a desenhar
compulsivamente. E aí, lá pelos oito, nove anos, eu passei a ser
aquele garoto que sentava lá atrás na classe para ficar fazendo
caricatura de professor.
Eu era o cara que desenhava, e aí já era. Você é “o cara que desenha”; “me faz um desenho aí”, “desenha isso”, “desenha aquilo”.
Você começa a desenhar para impressionar as meninas, e, daqui a
pouco, você já tem aquilo acoplado à sua personalidade – aquela
informação – e aquilo passa a ser uma coisa importante.
Quando eu tinha mais ou menos 13 ou 14 anos – eu sempre estudei
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VI K MU N I Z
em escola pública – houve um concurso. Na época da ditadura se
faziam umas coisas superbem-organizadas, no Parque do Ibirapuera, no prédio da Bienal, que não era bem um concurso, era um
encontro interestadual de escolas públicas de arte.
Eu já tinha passado daquilo, e eu comecei a imaginar outra dimensão para o desenho, quase para fugir daquele momento em que o
progresso fica cada vez menor. Eu comecei a imaginar outro lado,
um lado mais conceitual da prática do desenho, que era justamente:
como a gente consegue ver profundidade em uma imagem, como
é que a gente consegue? O que nos levou a ter essa relação com o
mundo das imagens, que nos permite simplesmente entrar e viajar
numa imagem? De onde vem isso?
Um professor de matemática me mandou. Eu me lembro desse dia
inteiro; eu fiz colagens, eu fiz um montão de coisas, eles adoraram
tudo, e eu ganhei um prêmio, no fim. Eu nem sabia que tinha prêmio,
mas me deram um ano de bolsa numa escola – era a Escola Panamericana de Artes, em São Paulo – para estudar desenho acadêmico.
É lógico que meus pais acharam ótimo; eu tinha 14 anos, e para
mim era a coisa mais incrível. Desenhar mulher pelada na escola
era uma grande motivação. “Uau!”. Eu não tinha visto ninguém
pelado na minha vida, só eu mesmo, até então. Quando eu vi, pensei: “Nossa, eu adoro desenhar!”. (Risos) Eu desenhava muito, eu
queria assistir todas as aulas de desenho acadêmico. Inclusive eu
vivi disso, uma época, ensinando desenho acadêmico.
Eu comecei a procurar e encontrar – em algumas traduções muito
rudimentares da época – os primeiros estudos, alguns eram feitos
por psicologistas, outros por cientistas, sobre cognição visual. Na
época, eu acho que havia um cara que se chamava William James
Gibson, que era um dos pioneiros da pesquisa visual. Eu não vou
falar que ele era o pioneiro da pesquisa visual, porque pesquisa
visual vai desde os pré-socráticos, a gente tem mais de mil anos
disso, mas, na linguagem técnica do século XX, esse cara foi um
dos primeiros a ver isso de uma forma cientifica.
Mas quando você começa a desenhar, tem uma hora em que você
começa a ficar muito frustrado. Num momento você começa a fazer
bastante progresso, mas aquele progresso vai ficando cada vez
menor, menor – e aí há o momento: ou você continua ou você para.
No século XIX, você tem Helmholtz, um pouco antes Berkeley. A
visão é uma coisa que ninguém nunca conseguiu entender direito.
E eu acho que, como artista, como em qualquer profissão, você tem
que entender com o que você está mexendo.
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Primeiro: o que é ter um aspecto físico? O que é luz? Ou até um
aspecto fisiológico: como é que o olho vê? E tem ainda o aspecto
psicológico, quando você vê essa coisa, é uma informação muito
crua, muito pequena; e como a gente completa isso com o córtex
visual, lá na parte de trás do nosso cérebro?
“Eu não vou ser psicólogo.” Eu mexia com teatro, na época, adorava
a ideia de representação. Eu tinha vários interesses: em psicologia,
em filosofia, principalmente; mas todos giravam sobre a ideia de
representação.
E esse cara, William James Gibson, começou estudando percepção
numa encomenda para a Força Aérea americana, porque eles estavam começando a desenvolver jatos – e, obviamente, o indivíduo
vai numa velocidade muito maior do que a normal. E ele tem que
se adaptar perceptualmente para sair. Então, ele começou a tentar
descobrir como as pessoas viam profundidade; a visão periférica,
todos esses elementos da visão começaram a ser estudados, porque
eles queriam melhorar a interface, o mecanismo do avião, para
ajudar o piloto a conduzir.
O Gibson tem um livro fantástico – depois eu descobri como era
ruim a tradução. Nessa época eu comecei a estudar isso e me interessei por psicologia. Só que eu era muito mau aluno, então eu
tentei o vestibular para a Escola de Psicologia em São Paulo duas
vezes e não passei.
Eu consegui uma bolsa, ou meia bolsa para a FAAP. Aí, eu pensei:
Eu fiz um curso vocacional uma vez, em que todos os alunos da
minha escola receberam a resposta: um ia ser enfermeiro, outro
médico, outro era isso, o outro era aquilo, e eu não recebia. Aí,
fui até a diretora e falei: “Dona Clotilde, eu não recebi a resposta,
eu não sei o que eu vou ser – por favor!” Ela falou: “Então, deixa
eu ligar para lá.” Ela achou engraçado receber um outro papel:
“Um outro questionário, para você”. E o questionário era assim:
“Você tem algum parente que trabalhou nessa companhia que
desenvolveu o teste?”, “Você conhece alguém que já fez esse
teste?”, “Você já fez esse teste antes?” E eu respondi, “Não, não,
não.” Eu voltei, e aí me mandaram uma carta explicando que
havia 16 anos que eles tinham desenvolvido o teste, e eu era a
primeira pessoa a responder as 150 perguntas para a mesma
profissão. Era Direito.
E hoje eu entendo por quê. Porque você está lidando na ideia, no
domínio das impressões, você está tentando provar que uma coisa
é uma coisa, outra coisa é outra. O advogado, na verdade, como o
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artista, é uma espécie de mediador entre o real, o que acontece, e
como você vê o que acontece. Eu poderia ter sido um ótimo advogado, não é? Não, eu sou um ótimo advogado do diabo, e ele não
paga bem. (Risos)
você tem que ser um bebê que dirige e lê muito rápido de trás para
frente para comprar aquele brinquedo. Impossível!
A segunda opção era Publicidade; e isso, para mim, foi incrível,
porque eu comecei a cursar e já no primeiro mês estava imaginando
todo o meu futuro como uma pessoa que ia ganhar dinheiro criando
coisas. Até então nunca havia imaginado isso, ser artista. Eu nunca
imaginei que ia ser um artista plástico, isso não existia. Se eu falasse
isso para o meu pai, ele ia rir da minha cara. A gente não conhecia
artista plástico. A primeira vez que os meus pais foram num museu
foi para ver uma exposição minha. E nisso, eu já comecei a pensar
um monte de coisas.
E algo que comecei a perceber foi que, em São Paulo, naquela época,
eu não conseguia ler nenhum cartaz de rua, nenhum. Eu dirigia
pela Cidade Universitária, perto da Hípica, e lembro que havia
uns outdoors paralelos à Marginal Pinheiros, mas do lado oposto.
E eles eram sobre brinquedos. Então, uma vez, eu passei e pensei:
eu sabia vagamente que era sobre um brinquedo, que tinha um
brinquedo ali, mas é incrível. Era do lado do motorista, paralelo à
estrada, num lugar de alta velocidade, um negócio cheio de texto,
Então eu falei com uma namorada que eu tinha: “Vem cá, você consegue ler aquilo?” Ela falou: “Não.” Aí, eu dei a volta no quarteirão,
fui mais devagar: “E agora?” Ela falou: “Não.” Eu fui mais devagar...
Você precisava ir a 15 km/h para conseguir ler o que estava escrito
ali. Aí eu fiz uma anotação. O que eu fiz, durante três meses, foi um
estudo independente de como melhorar o desenho dos pontos de
vendas. É incrível como as pessoas não ligavam para isso nos anos
70. Hoje em dia é muito melhor.
Havia duas empresas que trabalhavam nisso; hoje em dia tem
a Clear Channel aqui, que faz coisas incríveis – veio um know-how americano, desde os anos 40 fazendo esse tipo de coisa.
Mas naquela época, no Brasil, não tinha isso. Então eu cheguei
numa das empresas e falei: “Vem cá, eu sei como melhorar os seus
pontos de vendas, os seus outdoors, e eu posso fazer ficar muito
melhor. Se você não me empregar, eu vou procurar a competição”. Então, ele viu o que eu estava fazendo e falou: “Eu te dou
um emprego”. Eu saía num carro, comecei a distribuir percurso
de mídia, uma coisa também que não se fazia, nessa época. E
comecei a ganhar dinheiro.
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Um dos meus clientes me deu um emprego numa agência, numa
sucursal da Thompson. Eu fazia as duas coisas e aí logo abandonei
a escola. Eu pensei: “Eu já tenho um emprego.” Eu já vi que podia
pegar, dali, uma coisa mais prática. Eu vendia uns licores que ninguém bebia. Eles queriam aumentar a idade das pessoas que bebiam
esses licores horrorosos, então bolei uma campanha; e eu adorava
fazer isso, não vou dizer que não gostava. Eu não sabia que havia
algo melhor do que isso, nessa época.
que eu era o agressor, então, ele tinha pego um revólver e estava
atirando em mim: “Pum, pum, pum, pum.”
Aí aconteceu uma coisa superinteressante: eu ganhei um premiozinho da Associação de Publicidade de São Paulo. Pela primeira
vez na vida eu aluguei um black-tie – um tuxedo, uma roupa lá – e
fui para a cerimônia. Eu não conhecia ninguém, entregaram os
prêmios, e me deram um negócio feio de acrílico. Eu peguei, tomei
uns dois martinis e fui embora. Na hora que estava indo para casa,
uma mulher parou o meu carro e falou: “Estão matando o meu
namorado!” Eu saí do carro – eu tinha um Fusquinha azul-claro –
fui lá, e apartei a briga: era um cara batendo num outro, com um
soco inglês.
Eu comprei uma passagem para ir para os Estados Unidos. Quer
dizer, se não tivesse levado um tiro, provavelmente não estaria
falando com vocês hoje. E aí, cheguei nos Estados Unidos com
uma ideia fixa. Eu pensei: “Me liberei da publicidade”. Eu tinha
uma ideia muito fixa de estudar teatro, fazer direção, escrever; eu
também pensava em fazer cenografia.
Quando eu estava voltando para o meu carro, escutei uma explosão,
e quando vi, eu já estava no chão, olhei para trás e vi o cara que eu
tinha salvado; como estava todo mundo vestido de preto, ele pensou
E eu falei: “Nossa!”, engatinhei até o meu carro, fui até o hospital e
desmaiei. Eu acordei dois dias depois, com o meu agressor – com a
cara toda enfaixada, parecia uma múmia – me pedindo desculpas
e me oferecendo dinheiro para eu não mandar ele para cadeia, o
que eu aceitei, lógico: eu era pobre.
Mas comecei a ver que isso não era a minha onda. Porque o que
eu chamava de teatro, aquilo que estava gostando de fazer, aqui no
Brasil, tinha a ver com o fim da ditadura, com a classe intelectual.
Eu não aguentava mais a arte política; ninguém aguentava mais
o discurso político permeando todo tipo de atividade artística.
Então o escracho começou aqui no Rio: o Circo Voador, a Blitz, o
Asdrúbal Trouxe o Trombone.
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A minha geração não aguentava mais, sabe? Falar em Geraldo Vandré? Todo mundo falava em Geraldo Vandré, me dava arrepios:
“Caminhando e cantando...” (Cantarolando) Parecia um bando de
zumbis, eu não aguentava mais aquilo.
pobre, cheio de artistas, pois artista você sabe como é: primeiro os
ratos, depois os artistas. Lugar que é barato, com aluguel barato,
atrai artista – então é sempre bacana. Tinha muito rato, também.
Mas, naquela época, era incrível. Eu ajudava a fazer anúncios para
clubes, com um amigo que se chamava Fernando Nataliti.
Era muito tempo ouvindo aquilo; eu acho legal, é muito bom que
tinha gente fazendo isso. Mas eu era jovem nessa época e estava
de saco cheio de tudo isso. E eu pensava: “Pô, vamos ser felizes!”
Quando cheguei aos Estados Unidos, ainda havia um compromisso
muito grande com o avant garde2. Um dos caras – um tal de George
Foreman – eu fui numa peça dele, e eram quarenta homens feios,
de mais 40 anos, pelados num palco, gritando obscenidades, um
deles segurando um rato na mão. Não dá...
Eu falei: “Não: isso é pior do que Caminhando e Cantando...” E
tinha isso, e tinha Cats, A Chorus Line , Broadway; nego dançando e
sapateando, então, eu fiquei vagando intelectualmente num limbo
cultural durante quatro anos e meio, cinco anos – porque eu fiquei
sem saber o que ia fazer, e foi a melhor época da minha vida.
Eu estava no lugar errado, na hora errada – era ótimo. Eu estava no
East Village, a cidade tinha acabado de sair da crise da OPEP3, no
começo dos anos 80, e tudo estava acontecendo ali. Era um lugar
Eu saía todas as noites, a gente via tudo: os Ramones, o Talking
Heads no CBGB. Tinha clubes incríveis, na época, e a classe das artes
visuais era muito ligada com a poesia, com os escritores. Víamos
esse pessoal o tempo todo, a música, era tudo muito relacionado.
Era uma época em que, por exemplo, a música do subúrbio
começava a permear, começava a descer para Manhattan, principalmente, para o sul da ilha de Manhattan. Tinha o Bronx, o
Brooklyn; a produção da ideia de você pegar pedaços de coisas e
refazer era uma coisa de que eu já gostava, eu sempre gostei de
reggae, por exemplo, que era uma manifestação desse tipo: de você
reassimilar coisas, reciclar ideias.
O hip-hop era uma coisa que bombava muito, nessa época, tinha um
clube que se chamava “The World”, aonde eu ia quase toda terça-feira,
eu vi Afrika Bambaataa tocar, Kraftwerk. Eu via mundos muito distantes convergindo por causa de tecnologia, e era muito interessante
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o que estava acontecendo. Na parte das artes visuais também tinha
uma coisa incrível, em que começaram a aparecer galerias.
filosofia do que ela. Eu entendia muito mais sobre o que eu estava
falando do que ela; ela tinha ido a uma escola melhor, ela tinha ido
para a escola que eu não tinha ido, e ela não sabia desenhar.
Uma garagem, do tamanho desse palco em que estamos (2 m x 3
m), era uma galeria; aí, só dava para botar duas obras por vez. Eu
achava ótimo, porque você não tinha que ver tanta coisa, era mais
econômico, mas tinha galerias em toda parte, em que o pessoal
tinha um orçamento mínimo, botava lá uma obra. E eu comecei a
visitar e ficar amigo desses caras que tinham galerias.
Eu também trabalhava num negócio como moldureiro e restaurador de pinturas vagabundas; e comecei a pintar, também, para
vender, para ganhar dinheiro. Eram batalhas navais, sabe? Com
galeões espanhóis e fragatas inglesas – eu adorava pintar a fumacinha dos canhões, e eu vendia por duzentos dólares. Fazia uma
pintura a cada duas semanas e ia levando a vida assim.
Comecei a imaginar uma profissão como artista plástico quando eu
comecei a sair com uma artista plástica, uma namorada minha que
era recém-formada da Yale, uma universidade americana muito
chique e prestigiosa. Ela era muito metida, eu saía e ia ver muitas
exposições com ela. E ela era muito pretensiosa, sempre achava que
eu era um brasileiro que não sabia nada – e eu sabia mais de arte e
E então fui pegando raiva dela, porque ela me tratava mal. Eu era,
assim, o “amante latino”. Eu pensava: “Pô, que pretensão, não é?”
Eu comecei a ficar com bronca, e aí teve um dia que ela disse uma
coisa, e eu falei: “Não, eu não concordo.” E ela respondeu: “Ah,
você não sabe nada, você não estudou nada – lá no Brasil, naquela
selva? – Você não entende nada. Eu fui para Yale, eu sou artista,
você não é”.
No outro dia, fui procurar um estúdio para alugar. O único lugar
que eu achei era no Bronx, uma hora de trem. Eu comecei a tentar
fazer, eu falei: “Eu vou virar artista de marra, só para mostrar para
essa pessoa”. Eu agradeço a ela, até hoje, por isso. E como é que a
gente vira artista? Eu pintei de branco uma salinha, achei uma
cadeira bonita no lixo, botei lá, tinha uma mesinha. Eu sentei e
fiquei: “Vou fazer arte. Eu vou fazer uma arte aqui – você vai ver,
danada, maldita – eu vou fazer uma arte”.
É lógico que não é bem assim. Eu acho que arte não é uma coisa que
a gente faz assim; eu tenho uma dificuldade incrível de imaginar
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“E o que o espectador
sabe? O espectador
sabe muita coisa, ele
está vendo desde que
nasceu. Então, você
começa a trabalhar a
partir de princípios
visuais primitivos.”
artistas que ainda vivem no estúdio, todo dia, não é? A arte não é
uma coisa em si, é uma espécie de veículo, uma espécie de funil,
uma espécie de filtro por onde as coisas passam.
Se você não tem uma vida, você nunca vai ser um bom artista – se
você não faz outra coisa além do que você faz. É verdade que, por
mais que a gente insista na possibilidade de uma educação de arte,
eu acho que ela tem sempre uma espécie de coisa paralela. Eu vejo
artistas que viram artistas porque estudaram Arquitetura, porque
foram advogados, porque eram torneiros mecânicos, qualquer
coisa. Mas é difícil, o pessoal que estuda arte acaba trabalhando
com educação, trabalhando em museu.
Quando eu comecei a pensar: “Do que eu gosto?” Eu gosto de
teatro, eu gosto de representação, eu gosto de filosofia, mas tinha
uma coisa que eu gostava, adorava. Eu adorava a ideia de mídia
– eu sou daqueles caras que viam muita televisão. Eu estou sempre acompanhando tudo que sai, assim, eu jogo videogame, sou
viciado em Wii. (Risos)
E, ao mesmo tempo, eu leio os clássicos, eu não discrimino mídia
de forma nenhuma, para mim tudo é bom, principalmente arte
comercial. Eu acho que tem uma coisa muito elitista de falar: “Ah, é
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artista comercial.” Existem duas indústrias que estudam imagens,
hoje em dia, de uma forma direta e objetiva; e isso é muito claro na
minha cabeça. Uma delas tem dinheiro e tecnologia. Publicidade e
marketing; esse pessoal tem dinheiro, tem tecnologia, a pesquisa,
eles têm como pegar feedback do público.
E essa arte, sobre a qual a gente fala, essa arte da qual eu vivo, que
são os museus, são as galerias, para mim é mais secundária ainda;
porque eu acho que a arte mesmo está no momento, independente
do contexto. Um momento em que as pessoas se encontram, a arte
é o momento onde ela é feita.
E tem também outra classe de pessoas, que são pessoas como eu;
que não têm dinheiro, não têm tecnologia, mas têm liberdade,
sabe? Eu posso fazer; eu não preciso vender nada, eu não estou
amarrado por um cliente ou por uma proposta. Eu posso fazer o
que eu quiser – então, eu acho que é justamente um pouco dessas
duas coisas que funciona. Eu, até hoje, assino Advertising Now. Eu
estudo, eu vejo – eu começo a ler o jornal pela parte de economia,
não pelo segundo caderno.
Eu estou repensando essa coisa toda, ultimamente, e acho que
essa exposição que eu fiz aqui no Rio de Janeiro4 tem muito a ver
com isso. Eu comecei a imaginar: e se eu tivesse uma carreira em
publicidade? Eu adoro isso, porque publicidade é uma maneira
de se inventar ou dar forma e identidade para coisas que não têm
identidade ou forma, a princípio.
Eu acho que tenho uma relação com o mundo. A minha relação
com a arte é natural, instantânea; ela é a maneira como as coisas
passam por mim. Às vezes, estou em Paris e se eu tiver que ir ao
museu de ciência ou ao museu de arte moderna vou ao museu de
ciência. Eu sei que é engraçado eu falar que tenho pouco interesse
em arte – mas o meu interesse em arte é secundário ao meu interesse na vida, nas coisas, sabe, você poder viver, poder aprender
as coisas de uma forma mais direta.
Você, por exemplo, pega um líquido que é feito para lavar roupa
– então, bota em uma embalagem que parece uma mulherzinha,
faz ele cor de rosa, para dizer que é bom para as suas mãos. Já o
mesmo líquido, se você quer dizer que é forte para tirar manchas,
faz a embalagem parecer um revólver; pinta ela de vermelho, ou de
azul – todas essas considerações. E isso, tem tudo a ver com arte,
esse pessoal está pensando de uma forma artística.
E eu comecei a pensar: “E se a pessoa que faz a imagem do objeto
também fosse a pessoa responsável por fazer o objeto?” Isso é tema
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de uma exposição5 que vai acontecer; são os primeiros trabalhos
que eu fiz, e ela vai estar na Laura Alvim. São apenas objetos, não
tem fotografia. Vocês estão todos convidados a ver, mas os primeiros trabalhos eram uma coisa mais ou menos assim: o Esqueleto
do palhaço6, que é um fóssil de uma classe de apresentadores de
muito tempo atrás; e tem o Ashanti Joystick7, que é um negócio
para controlar videogame, africano, poderoso.
fotografar as minhas obras para documentação e divulgação. Esse
cara chegou com uma câmera enorme, dois assistentes, luzes; eles
iluminaram o trabalho, eu achei que aquilo ficou tão bonito, sabe?
Parecia a apoteose, que a razão que eu tinha feito o trabalho era
só para tirar uma foto.
Tem o Podium de balanço8. Agora, com esse negócio de doping,
nego não está muito seguro do primeiro, do segundo, do terceiro
lugar. Tinha o Máquina de café pré-colombiana9, Melitta, o Bonsai
Table10, uma mesa bonsai; a Enciclopédia Britânica11 inteira em um
volume só, e a Meia tumba12, para quem ainda não morreu. (Risos)
E eu comecei a imaginar, ao mesmo tempo; fiquei pensando que,
uma vez que eu não queria fazer imagens, eu queria fazer objetos,
mas aí um dia apareceu um cara na galeria... Deixem eu voltar um
pouco a história. Eu consegui uma exposição de grupo – eu consegui
uma pessoa para me representar, em Nova York, fiz uma exposição,
mandei aquela namorada chata embora, arrumei outra, e comecei
a mostrar o meu trabalho.
E aí, na primeira exposição, eles trouxeram um profissional para
E eles fizeram uns cromos, de 4 x 5”, uma coisa incrível, tudo focado,
tudo bem iluminado, mas eu olhei para aquilo e falei: “Isto está
errado, tem alguma coisa errada neste negócio”. E eu fiquei com
isso na cabeça durante semanas olhando aquilo. “Tem alguma coisa
errada nessas fotos.”
Então, para tirar a teima, eu fui numa lojinha e comprei minha
primeira câmera. Isso foi em 88, tirei dinheiro, fui a uma lojinha
vagabunda – loja errada. Eu comprei a câmera errada, botei o filme
errado na câmera, tirei a foto com a luz errada e levei em um lugar
errado para revelar. A foto estava uma porcaria, mas eu olhei a foto
e ela estava certa; tinha alguma coisa a mais do que egocentrismo
para falar que a minha foto era melhor que a outra foto. Eu as olhei
por muito tempo, até que me ocorreu uma coisa.
Na medida em que a gente vai envelhecendo, vai perdendo a capacidade de rotar, de rodar objetos no nosso campo visual mental;
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Começamos a mentalizar objetos visualmente e não podemos girar
eles na cabeça. Autistas e crianças fazem isso com muito mais facilidade do que a gente, e quando a gente imagina um objeto, antes
de fazer o objeto, a gente imagina de um ponto de vista específico.
“Mas que forma essas imagens têm?” Eu tinha esse livro, o primeiro livro que eu comprei, que se chamava O melhor da revista
Life; é um livro que muita gente tem, com todas essas imagens
que as pessoas estão carecas de conhecer e que já viram milhões
de vezes. Mas, de vez em quando, elas têm que olhar de novo, para
refrescar a memória daquelas imagens – da mesma maneira que
a gente tem que, de vez em quando, olhar um álbum de família,
para se lembrar dos tios e tias. E eu comecei a pensar nessa coisa
da imagem dentro da cabeça.
Se constrói o objeto e, uma vez que está feito, a gente anda em volta
dele até encontrar aquele mesmo ponto de vista de onde havíamos
imaginado esse objeto mentalmente, antes de fazê-lo. E quando
conseguimos esse encaixe, esse match, o artista fica satisfeito por
ter produzido uma coisa que era simplesmente mental, e que ele
conseguiu dar uma forma material.
O que é essa imagem que você não roda? Eu comecei a imaginar:
“O que é isso? O que é essa imagem na sua cabeça, que você tenta
conectar com alguma coisa que está lá fora?” Ao mesmo tempo,
tinha um anúncio da Nikon que descrevia quatro das fotos mais
importantes do século XX; era o John-John Kennedy quando o
Kennedy morreu, fazendo continência; tem a mulher chorando
em cima de um corpo, quando a guarda-civil americana atirou
contra os estudantes, lá em Ohio; tem o Richard Nixon levantando
o cachorro dele pelas orelhas; e um estudante na frente de tanques.
Essas imagens estão todas na minha cabeça, e eu comecei a pensar:
Eu perdi esse livro e comecei a desenhar as imagens de memória.
Eu fazia sem pensar que isso fosse virar arte; eu me lembrava de
alguma coisa, algumas das imagens eram fáceis, pois eu já havia
desenhado elas. Por exemplo: o homem na Lua era bico, porque
eu já tinha desenhado, eu me lembrava da reflexão. Lógico, o meu
reflexo era muito maior do que na imagem original, o resto eu
disfarçava um pouquinho.
Para quem desenha é engraçado; expressão visual é muito
difícil de fazer, mas a coisa mais importante para mim, é o
punctum13. À medida que eu ia desenhando – foram dois anos
–, eu ia mexendo, ia cobrindo ou apagando. E os desenhos foram
ficando cada vez melhores.
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O meu galerista pediu para eu fazer uma exposição com os desenhos.
Eu não queria fazer. Ao mesmo tempo em que os desenhos eram
muito parecidos com as fotos, eles eram horríveis como desenhos,
eu tinha vergonha deles. E eu gostava muito dos desenhos nos quais
eu estava trabalhando há muito tempo. Então eu tive essa ideia diabólica: “Eu fotografo o desenho, vendo a foto e fico com o desenho.”
exatamente no meio. Quando você olha as imagens dessa série, se
lembra disso; você lembra como aconteceu, parece que você está
vendo a fotografia quando ela aconteceu.
Boa ideia, não é? Mas, na hora em que eu fotografava o desenho,
eu fazia um pouco fora de foco, para tirar a marca da minha mão,
e também as falhas, a coisa de apagar. Porque eu desenhava com
caneta, desenhava com o que tivesse à mão, para não esquecer a
ideia. E quando imprimi, eu imprimi com a mesma linguagem, essa
coisa de bolinha, de halftone, que era a linguagem com que eu tinha
visto essa foto, pela primeira vez.
Essa retícula é a maneira como a fotografia chegou a nós; desde o
fim do século XIX até hoje, temos essas bolinhas. Quando eu fiz
essa exposição14, ninguém questionava a veracidade da foto, eles só
achavam que as impressões eram muito mal-feitas, falavam: “Mas
a qualidade da foto está muito ruim, não é?” Eu falava assim: “É, é”.
Mas era engraçado. Porque o que eu quis realmente fazer foi partir de uma coisa puramente mental e desenvolver ela até chegar
Outra coisa que eu descobri é que tenho uma capacidade muito
grande de inverter as fotos na minha cabeça, e isso foi exatamente o
que fiz. Por isso, eu nunca fui processado pela Life, pela Associated
Press, nenhuma dessas agências de fotografia; porque as imagens
realmente são muito diferentes, mas elas são metade, elas chegam
na metade do caminho.
Essa coisa de chegar até a metade do caminho é interessante, porque eu comecei a imaginar isso: o artista só chega até a metade do
caminho. Ele tem que trabalhar com um tipo de imagem que tem
um apelo, ele tem que colaborar com o espectador, tem que usar
o espectador como parte do processo. E o que o espectador sabe?
O espectador sabe muita coisa, ele está vendo desde que nasceu.
Então, você começa a trabalhar a partir de princípios visuais primitivos. A partir daí, no momento em que você consegue assegurar
uma comunicação primitiva, uma comunicação física perceptual
com o espectador, você pode construir o que quiser, você pode
falar de história da arte, pode botar a erudição que você quiser
ali em cima, contanto que aquilo chame a atenção da pessoa. E
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essa pessoa tanto pode ser uma pessoa que vive no museu como
uma pessoa que nunca foi no museu; pode ser uma criança ou uma
pessoa adulta, idosa.
sabe foi, recentemente, o que eu comecei a apresentar para ela.
E Caravaggio não estava somente pensando no patrocinador, no
mecenas dele. Ele estava pensando em uma arte que ia atravessar
séculos, ia atravessar todo tipo de barreira humana, seja etária,
social ou intelectual; eu acho que a grande ambição do artista é
poder se comunicar com a humanidade, não só com a sua classe.
Contanto que ela tenha um par de olhos, isso tem que funcionar.
Eu nunca fiz arte com um grupo específico de pessoas, sabe? Eu
nunca fiz arte para curador, nunca fiz arte para colecionador, nem
para crítico. Também nunca fiz arte para mim mesmo; eu faço arte
para dividir isso com as pessoas. E, logicamente, você tem que fazer
arte que é inteligente e, ao mesmo tempo, você tem que pensar em
acessibilidade, e isso é difícil de fazer.
Você pode ser extremamente inteligente naquilo que faz com um
grupo mínimo de pessoas – é muito fácil fazer isso. Mas ter um
apelo que atinge o curador, o escultor, o colecionador, o curador
de museu e aquela pessoa que nunca foi a um museu – é um desafio
muito grande. E acho que vejo arte com essa ambição.
Nisso, sou muito ambicioso. Durante toda a história, a arte relevante sempre teve esse poder. Eu não conheço ninguém que não
gosta de Caravaggio. Outro dia eu levei a minha mãe ao museu, ela
olhou um Caravaggio e começou a chorar; porque aquilo é forte.
Minha mãe não sabe nada de arte, ela sabe muito pouco, o que ela
Uma coisa que eu comecei a notar, também, partindo dessas coisas
muito básicas: quando você olha as nuvens, você tem uma capacidade incrível de projetar coisas que você quer ver nessas nuvens,
reconhecer objetos nas nuvens. Eu sempre faço uma coisa com a
minha filha. Eu falo: “Olha lá, Mirna, aquilo parece uma foca.” Aí, ela
fala: “É, aquela também é foca, outra foca, todas as nuvens parecem
foca”. E ela fala: “Chato, não é, pai?” Vira tudo foca.
Mas uma coisa que você não consegue fazer é ver dois significados
na mesma coisa. Nós somos equipados com uma limitação cognitiva
muito perversa. O mundo inteiro está na nossa frente, mas para a
gente perceber ele em uma razão de tempo e espaço, a gente tem um
handicap, uma limitação que se chama atenção, e a atenção faz com
que a gente só perceba um fator temporal e espacial de cada vez, a
gente não consegue assimilar dois significados simultaneamente,
é como se fosse uma ampulheta, um grão de areia cai a cada vez.
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E o que impossibilita a gente de ver tudo ao mesmo tempo, o tempo
todo – que seria o universo de uma pessoa com autismo – é aquilo
que faz a gente poder não apenas perceber as coisas de uma forma
linear, como uma narrativa, mas, também, organizar isso na cabeça
da gente, e ter uma razão de tempo e de história, e poder comunicar
esses fatos com todo mundo.
A partir da obra Duas vacas17, eu comecei, também, a imaginar a
ideia do acidental. Acho que o homem, antes de poder produzir
imagens, teve que adquirir a capacidade de ver uma imagem dentro
da outra. Na verdade, a arte começou há muito tempo, no fim do
mesolítico. Um homem primitivo entrou em uma caverna e, ali,
observando os rachados na parede daquela caverna, de repente,
ele viu uma coisa que parecia um animal, um bisão, talvez.
É justamente a nossa inabilidade de perceber tudo ao mesmo tempo
que faz com que a gente possa viver e conviver como responsável
por todo o desenvolvimento da nossa civilização. Quando você
olha a obra Nuvem e o remador15, ou você vê um cara remando ou
vê um algodão ou vê uma nuvem; mas, no momento em que você
vê a nuvem, perde o cara remando e o algodão; no momento em
que você vê o cara remando, perde o algodão e a nuvem, e daí por
diante. Você não consegue ver a coisa de mais de um jeito.
Eu não sei se vocês conhecem uma ilusão de ótica que se chama
o Cubo de Necker16. É uma coisa que parece um cubo, e você consegue vê-lo ir para a frente e para trás, mas você não consegue
ver dos dois jeitos. A boa notícia é que você consegue controlar
o que quer ver. Você escolhe se vê a nuvem ou o remador. E isso
foi uma das primeiras séries que eu fiz só com fotografia, a partir
do Best of Life.
E, naquele animal, ele começou a ver um animal específico, um animal que ele tinha caçado no último inverno com os companheiros
dele. Ele começou a observar, naquela forma, a caçada; começou a
se lembrar do gosto do animal, quando o matou, da festa depois da
caçada e ali, de repente, tudo apagou e aquilo virou um rachado,
uma forma acidental na parede de uma caverna.
Para recuperar aquela sensação, ele pegou num objeto pontiagudo,
foi lá e desenhou um olho que faltava naquela forma – e então, toda
aquela imagem voltou. Esse homem foi o primeiro artista; e ele
criou, ali, uma forma que não existia até então, e não só uma forma
– mas a capacidade de trazer o espírito de uma coisa que não está
aqui, no presente, e poder transmitir essa coisa que aconteceu antes,
não só para você mesmo poder ter a experiência daquilo novamente,
mas também para poder transmitir aquilo para outras pessoas.
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A invenção da representação talvez seja a maior conquista humana,
depois do controle do fogo. A partir do momento em que você se
deixa enganar por uma forma, por uma coisa que não está ali, em
função de outra, você começa a estabelecer todo um sistema de
trocas simbólicas – que nos permite, hoje em dia, ter uma estrutura
política, ter uma economia, ter religião, tudo que exige crença exige
essa troca, você se deixar enganar um pouquinho.
O desenvolvimento da representação tem esse padrão muito persistente. Acontece que você tem essa coisa muito crua, muito primitiva,
e, no momento que alguém começa a falar “Eu acho que isso aí não
é animal, isso aí é um rachado na caverna”. o cara tem que melhorar
um pouco aquela imagem, para continuar enganando, continuar
enganando, continuar enganando; então, tem essa corrida entre o
cinismo, o pragmatismo de quem está vendo contra o cunning – a
esperteza e a tecnologia daquele que está produzindo as imagens.
Imaginar que o som das palavras que estão saindo da minha boca
tem significado; se eu desenho um círculo e faço linhas no radiano
desse círculo, qualquer pessoa, uma criança de dois anos vai falar:
“Isso é o Sol.”.
O Sol é uma bola de fogo imensa, há oito minutos-luz daqui. O
Sol é uma coisa que não dá para trazer pra dentro dessa sala; mas
qualquer pessoa imagina. Isso é mágica: você imaginava isso, dentro
de um plano onde não tinha virtual reality, onde não tinha Wii,
não tinha televisão.
Imagina esse homem primitivo vendo esse animal, nessa caverna.
Era que nem cinema; era incrível, ele vendo que o animal estava
ali, de novo, era como 3D, hoje em dia tem 3D que você fica: “Oh!”.
(Risos)
No meu caso, acho que a gente chegou a um nível de tecnologia no
qual eu não consigo mais competir, no campo da ilusão – e nem é o
que eu quero fazer. Em vez de fazer uma ilusão muito incrível – que
o Steven Spielberg pode fazer, a animação da Pixxar pode fazer – eu
estou mais interessado em falar da ilusão no seu nível mais básico.
Eu estou mais interessado na pior ilusão possível, uma ilusão que
você olha e fala: “Como é que eu caio em uma coisa dessas?”.
Eu não estou interessado em iludir a pessoa, mas em oferecer a esse
espectador uma perspectiva da necessidade que essa pessoa tem
de viver, da ilusão da vida prática dessa pessoa. Então, para isso,
eu acho que você pode usar todo tipo de ferramenta. O artista não
pode ter preconceito. A pior coisa que pode acontecer na vida de
qualquer intelectual é o preconceito.
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Por isso, quando o intelectual começa a falar muito de política,
eu já fico meio assim, porque já está dividindo o mundo em duas
partes. Acho que, sobretudo, você tem que usar todas as ferramentas possíveis para fazer o que você quer fazer ou dizer o que
você quer dizer.
Humor é uma coisa legal em arte, porque humor é uma coisa que
pode ser usada de uma forma muito profunda, ilusão é uma coisa
que também é importante, essas são estratégias de trabalho que eu
fui desenvolvendo com o tempo. Eu não tinha nada para fazer na
França, estava nos Alpes, estava muito aborrecido, e pensei: “Não
tem nada para fazer aqui”.
Eu não estava trabalhando e não consigo ficar parado. Então, perguntei para um fazendeiro lá se eu podia pintar nas vacas dele. A
ideia era pintar, nas vacas, os mapas da recém-formada Comunidade Europeia: Itália, França, Portugal, Espanha.
Era para um projeto, na cidade de Münster, para deixar essas vacas
andando lá na cidade. Então, quando o cara visse assim, Chipre,
Grécia, ele não ia pensar que era um mapa, porque o mapa da Grécia
ninguém conhece direito, mas aí veria a Itália e pensaria: “Espera
aí, essa vaca aí...”
Duas vacas, 1997
Cópia fotográfica de emulsão de prata
35,60 x 27,90 cm
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Então, falei para o cara: “Eu sou de São Paulo, eu não cresci em volta
de mamíferos maiores que eu mesmo; então, eu morro de medo de
cavalo, de vaca. Posso pintar nas suas vacas?” Ele falou “Não.” Eu
falei: “Eu pinto o mapa da França, faço uma foto e dou para você.”
E ele: “Está bom, pega aquela vaca ali”. Eu falei: “Aquela?” Ele
respondeu: “Não, a mais feia – aquela do lado ali – pega ela, pinta,
aí você lava e pinta de novo os outros países”.
tem a capacidade de usar o que aprendeu dentro de um tipo de
trabalho para um próximo. Então, eu não vejo só como um trabalho. Geralmente, eu vejo a série e a obra, porque ali tem toda uma
narrativa que é quase cinemática; você vai vendo um trabalho, vai
aprendendo, vai aplicando aquele conhecimento.
Eu falei: “Ah, está bom.” Aí eu fui lá para a cidadezinha, comprei
tinta, que era para ser lavável. (Risos) Era para ser lavável... Eu
amarrei a vaca no pasto, em um toquinho que tinha lá e, muito
idiota, comprei um mapa rodoviário da França. A tinta era muito
rala e estava uma ventania, soprava o vento e a vaca adorou ser
pintada, ficava vindo para o meu lado.
Naquela performance maluca, a tinta começou a escorrer, a França
começou a estragar, a degringolar; eu comecei a tentar fazer a
Espanha, a Turquia, Paraguai, não deu certo; a única coisa que eu
consegui desenhar foi uma vaca na vaca. Aí eu fui lavar, e a tinta não
saiu. A vaca está desse jeito até hoje, foi a série mais curta que eu fiz.
Eu trabalho em série; eu acho que é uma coisa interessante, porque
gera um número muito grande de trabalhos. É legal, porque você
É uma trabalheira. Mas eu nunca pensei em fazer uma obra-prima;
não tem um Guernica18, não tem um Demoiselles d’Avignon19 no
meu trabalho, são sempre coisas pequenas que vão avançando. É
uma progressão muito pequena.
Comecei a pensar a ideia de desenho, você vê um desenho do sol e
a mágica do desenho; muitas vezes ela nos escapa, porque a gente
está pensando na qualidade, na verossimilhança. Se eu faço, por
exemplo, o retrato de um de vocês, vocês vão olhar para mim, vão
julgar aquele desenho pelo nível de verossimilhança que o desenho
apresenta com o meu modelo. Esse desenho está bom, esse desenho
não está bom; parece com o modelo ou não parece. Vocês vão julgar
o desenho só por isso, não vão pensar na relação do desenho com
a imagem do modelo; e nem pensar sobre o que é o desenho – essa
coisa que traz o sol para dentro de uma sala.
Agora, se eu fizer o mesmo desenho no melado e botar formiga
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andando em cima, você vai falar: “O que é isso? O que aconteceu?”
Então, ao invés de você usar um ator, existe toda uma gramática na
linguagem visual que é muito parecida com a linguagem escrita. Um
desenho, uma representação, exige um ator e um personagem. No
caso de Uma rosa é uma rosa20, é o arame fazendo uma flor, no caso
do lápis é a mesma coisa: é um traço de grafite que se transforma
naquilo que ele está desenhando.
ver Anthony Hopkins. Aquele rei eu já conhecia; eu já tinha visto
a peça, já sabia de cor o texto. O ator vira o personagem e você só
tem o personagem.
E eu me vejo como um diretor de teatro. Eu ensaio bastante, mas
a minha performance é só por uma fração de segundo, para a lente
da câmera. E eu sempre escolho maus atores. Os meus atores não
são bons, não são como um lápis que faz uma representação e vocês
quase não veem, ou como um bailarino que pula quase um metro
e meio de altura e você nem dá bola, nem parece que pulou um
metro e meio de altura.
Tem uma história interessante. Uma vez, eu fui ver o Anthony
Hopkins – vocês conhecem: o ator inglês, muito famoso, muito
bom? Fui assistir o Rei Lear, de Shakespeare, no Central Park – e
eu paguei 45 dólares para ver aquele grande ator fazer esse personagem de Shakespeare. E eu achei que fui roubado. Na hora
em que ele começou a viver o personagem, ele desapareceu como
Anthony Hopkins, e era só o rei, que estava ali. E eu paguei para
Numa outra ocasião, eu paguei três dólares para ver uma produção
mambembe do Otelo, em uma casa abandonada, lá no Queens, um
bairro de Nova York. Um encanador chamado Joey Grimaldi fazia o
mouro, o general, e era tudo muito mal feito. Aí, nos primeiros cinco
minutos, o Joey Grimaldi, esse grande ator-encanador, entrou com
força; ele era o grande general mouro, falava forte, com um sotaque
do Brooklyn, e convencia. Com cinco minutos de performance, ele
foi virando encanador de novo; aí foi virando general, encanador,
general, encanador, general.
Por três dólares, eu assisti a duas tragédias pelo preço de uma.
(Risos)
O melhor, o Sir Anthony Hopkins me trouxe o personagem do Rei
Lear, mas o Joey Grimaldi, na sua incapacidade dramática, me
trouxe o teatro. Ele me trouxe exatamente o momento em que uma
coisa se transforma em outra; em que o encanador vira general e o
general desce para a condição de encanador. Não é o general e não
é o encanador: é esse momento onde esses dois mundos colidem.
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Outro exemplo que eu dou sempre – eu já devo ter feito isso tantas
vezes – vou ter que levantar para fazer isso, é uma performance mais
física. As pessoas vão para museus – você, artista, tem que fazer
isso. Tem que ir e olhar as pessoas, como elas andam no museu,
porque o museu tem uma coreografia.
Por que acontece isso? Porque, no momento em que a pessoa chega
naquele ponto onde ela está vendo a paisagem, ela parece que está
dentro da paisagem ou fora da paisagem; ela se aproxima daquela
imagem, e aquela paisagem se perde, vira tinta, ela observa só o
material. Toda aquela imagem, aquela coisa ideal, ela se dissolve
em uma forma material, uma coisa primitiva, uma coisa que sai
da terra. Tinta é uma coisa que sai da terra, sabe? É óleo, tem óleo
feito de banana.
Então, você pode ver. As pessoas chegam ao museu e fazem uma
coisa assim: elas andam e aí elas param. Vamos dizer que tenhamos uma pintura de uma paisagem exposta. As pessoas andam
em direção à paisagem, param ali, como se tivesse um pedaço
de fita no chão; todo mundo para no mesmo lugar. Por que elas
param ali, não param mais aqui? Por que elas não olham de longe,
por que param ali? É óbvio: elas param ali porque é o momento
onde a pintura, a paisagem, preenche o campo visual da pessoa,
mas ainda te dá a possibilidade de ver as arestas, o fim, o limite
daquele quadro.
A pessoa que está vendo consegue entrar dentro daquela paisagem,
mas ela tem ciência de que aquilo é só uma imagem. Aí, a pessoa
faz uma coisa incrível, que todo mundo faz: ela faz assim (o artista
se movimenta para frente e para trás). Todo mundo vai e volta, vai
e volta, parece retardado. Ninguém percebe, mas todo mundo fica
assim; às vezes dá uma disfarçadinha, dá uma olhada.
As pessoas falam: “Você usa materiais inusitados”. Eu respondo:
“Você sabe o que é tinta? Tinta é um material inusitado também,
você não sabe nem o que tem dentro; foi usado até um pó de múmia
para fazer tinta, no século XVIII”.
Então, a pessoa se aproxima e vê o material, se afasta e vê o mental.
Entre o material e o mental tem um momento em que clica, a coisa
se transforma, e você, então, percebe que não é o material nem o
mental, é exatamente aquele ponto onde uma coisa se transforma
em outra.
O objeto de arte – a pintura, a fotografia – nada mais é do que uma
membrana que separa o nosso mundo mental, cognitivo, idealista, intelectual, do mundo pobre, e às vezes perverso, das coisas
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materiais. Tudo o que está além daquilo é material, é substância,
é primitivo; e são coisas que, na verdade, não têm nenhum valor
até o momento que a gente começa a ver elas como coisas de valor.
que você dá em alguém. Aquilo lá, quando tudo pode virar, quando
tudo pode se transformar, é a coisa mais importante.
Outro dia, eu estava pensando nisso, tem esse telescópio Hubble21
que consegue ver objetos – ou trazer imagens de objetos – que estão
já próximos do event horizon. Eles estão se distanciando do centro
do universo, já quase na época do Big Bang, em uma velocidade, em
uma aceleração de ¾ da velocidade da luz, a gente ainda consegue
enxergar isso.
Construímos um negócio que nos possibilita ver o começo do tempo
– e todas as partes desse telescópio foram tiradas da terra. Tudo é
feito de terra: o metal, o plástico, o computador que está ali dentro.
Tudo é feito de terra. Nós somos incríveis, para falar a verdade, às
vezes eu até me orgulho de ser um ser humano, porque fazer um
negócio desses...
Mas, voltando àquele momento de transformação, eu acho que é
o sublime na arte e é o sublime em tudo. Quando uma palavra te
toca; eu até comparo com coisas mais simples: quando o jogador
de basquete arremessa a bola; ela saiu da mão dele e ainda não
chegou no aro. Aquele “ahhh”, um segundo antes do primeiro beijo
A gente não percebe esse momento como algo que está acontecendo o tempo todo; e precisa “objetificar” ele de uma forma
intelectual, para poder vivê-lo – e é isso que a gente chama de
arte. A série Imagens de linha22 tinha um pouco a ver com falar
de uma coisa muito simples, que é o desenho; as pessoas olham e
falam: “Ah, é um desenho a lápis”. Aí, quando chega perto, vê que
não é um desenho a lápis, que é uma escultura de arame. Aí, você
não sabe o tamanho, não sabe quanto tempo levou para fazer, não
sabe onde foi fotografado.
A ideia de se fotografar uma representação cria toda uma ambiguidade em torno dela, que cria uma possibilidade de diálogo. A
pessoa – o espectador, o público – olha, e fala: “Como é que isso foi
feito? Quanto tempo levou? Que tamanho tinha? Onde foi feito?
Por que está amarelo?”
Você faz coisas, por exemplo: arame representando arame no
filamento da lâmpada. O meu trabalho é muito organizado, eu
começo com linha, depois vai da linha e começa a tomar mais
forma; e é uma coisa que eu pensei: “Com a linha, não dá para fazer
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paisagem.” Eu sempre quis fazer paisagem, e a ideia de paisagem
tem a ver com distâncias.
mim; para ficar perto de mim, para eu os olhar, porque os pais
estavam trabalhando, e eu fiquei amigo deles.
Eu me lembro que, quando eu empinava pipa, eu comprava carretel
de 200 jardas, 300 jardas. E eu imaginava a distância em jardas, e
aquilo, a linha com a distância, para mim, tinha uma coisa muito
forte. E eu comecei a fazer alguns desenhos com linha. Quando você
olha, eles parecem uma gravura antiga, mas quando você chega
perto, vê que tem duas dimensões; e elas são muito ambíguas, tem
a dimensão da linha em si e a dimensão do desenho.
Todo dia ia brincar com eles; e, depois de duas semanas que eu estava
lá, a Valentina, uma das meninas, me convidou para ir almoçar com
os pais dela, bem no dia em que eu estava vindo embora. E os pais
dela eram pessoas tristes, pesadas, cansadas, sem nenhum humor;
a vitalidade das crianças que moravam naquele lugar lindo, paradisíaco, tinha desaparecido completamente. E eu ficava imaginando:
“Como uma criança daquelas se transforma em um adulto desses?”
Eu comecei a imaginar o pontilhismo, que é uma coisa quase fotográfica. O que é fotografia? São cristais de prata e gelatina: a partir
daí, eu estava começando a mexer também com a ideia do negativo.
Mas eu acho que foi numa viagem, voltando ao assunto de você ser
artista e viver mais do que trabalhar.
Quando voltei para Nova York, eu só tinha as fotos pequenininhas.
E comecei a pensar num poema que se chama O açúcar, do Ferreira
Gullar, que fala justamente disso. De onde vem o açúcar? E ele acaba
dizendo: de vidas amargas e pessoas amargas é que eu adoço o meu
café nessa manhã maravilhosa em Ipanema – alguma coisa assim.
Eu tirei umas férias – minha carreira estava indo para lugar
nenhum –, aí, eu troquei com um cara umas férias em um hotel
por uma obra de arte. Eu passei duas semanas no Caribe, em uma
ilha que se chama Saint Kitts. E lá, eu conheci uns meninos que
não sabiam nadar – eles moravam na ilha, mas não sabiam nadar.
Então, cada vez que eu entrava na água, eles vinham em cima de
E eu pensei: “É o açúcar. Você tira um produto dessas pessoas, e
vai tirando a doçura da criança, com o trabalho.” Eu decidi fazê-las com açúcar, nessa série23; para mim, o que mais ajudou foi
que esse trabalho foi feito nas férias, sem intenção nenhuma de
se tornar um grande trabalho – mas foi feito com sinceridade, e
eu acho que tem muito a ver com isso. No fim de cada trabalho, eu
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usava a fonte mais e botava o açúcar que eu tinha usado para fazer a
foto dentro desses vidrinhos, que eram parte da exposição, com só
seis fotografias. Na verdade, era para serem sete, só que eu bati no
pedestal, no tripé da câmera; depois de trabalhar seis dias fazendo
a foto, eu dei uma cacetada, e a sétima foi embora.
do tamanho da linha de verdade. Agora você aumentou o tamanho
e ficou esquisito, não gostei”. Eu falei: “Eu não tenho escolha; já
está emoldurado e vai para exposição, hoje, lá na galeria Robert
Miller. Porque eu errei: mas artista erra menos que entregador de
UPS”. Aí, ele falou: “Você vai se danar com isso”. Eu mostrei essa
foto, no dia, e fui jantar com um crítico de arte americano muito
famoso, um cara superimportante. Ele sentou na minha frente e
falou: “Eu tenho acompanhado o seu trabalho e gosto muito; mas,
esse trabalho seu, eu não gostei, não”. Eu perguntei: “Por quê?”
Ele falou: “Por causa da linha: naqueles primeiros, você a usava
fininha, e a linha era do tamanho igual ao da linha grande.” Aí, eu
falei: “Você tem que estar certo, porque o meu entregador de UPS
falou a mesma coisa que você!” O cara nunca mais falou comigo.
Dessa época tem uma história engraçada, também: tinha um cara
que entregava pacotes lá em casa. Ele se chamava William, era um
jamaicano grandão. Uma vez, ele me ajudou com uma caixa, aí ele
viu uma dessas fotos, e falou assim: “O que é isso aí?” Eu falei: “É
o meu trabalho”. Ele perguntou: “Isso é uma arte?” Eu respondi:
“É, é arte”.
Ele falou “Mas espera aí, uma arte como esse negócio aí, é uma
foto?” Eu falei: “Eu não vou falar, você tem que ver: o que você acha
que é?” Ele não soube dizer. E eu falei para ele: “Açúcar”. Aí ele
ficou encantado, adorou: aí toda hora, quando levava um envelope,
chegava lá em casa: “O que você está fazendo, lá em cima? Posso
subir para ver?”
E ele começou a virar um palpiteiro no meu trabalho. Um dia,
ele chegou e falou: “Esse trabalho de linha aí está muito grande,
antigamente você fazia pequenininho, e a linha da fotografia era
Mas o William, quando a filhinha dele nasceu, foi lá na minha casa
e perguntou se eu podia emprestar uma câmera; ele nunca teve
uma câmera na vida dele. E eu falei: “Não, eu vou com você e tiro a
foto”. Ele falou: “Vai mesmo?” Eu disse: “Vou.” Aí, eu fiz uma foto
da filha dele, que havia nascido há dez dias. E a sétima criança de
açúcar, eu refiz, com o retrato da filha dele, que se chama Agnes.
E, engraçado, a loucura é que, quando eu fiz isso, eu ganhava dois
mil dólares por cada set, cada fotografia que eu vendia. E eu vendia
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“Eu nunca fiz arte com um
grupo específico de pessoas,
sabe? Eu nunca fiz arte para
curador, nunca fiz arte para
colecionador, nem para
crítico. Também nunca fiz
arte para mim mesmo; eu
faço arte para dividir isso
com as pessoas.”
uma aqui, outra ali. E essa série, outro dia um colecionador comprou e vendeu, por duzentos mil dólares, o jogo inteiro delas. Fico
imaginando que o William, algum dia, vai vender aquela foto da
filha dele, que é única, e vai pagar a universidade dela inteira em
Harvard.
Logo depois dessa experiência, o New York Times fez uma resenha
do meu trabalho, e eu entrei na exposição24 que se chama Nova
fotografia, do MoMA – e minha carreira como fotógrafo deslanchou e tem sido o que é, até hoje. E eu devo tudo a essas crianças.
Eu tive uma retrospectiva25, dois anos depois, no International Center of Photography, o Centro Internacional de Fotografia, em Nova
York; e, para mim, foi muito importante essa exposição, porque veio
todo mundo: todos os curadores, os críticos, o pessoal de museu,
de fotografia. Estavam todos lá, e estavam falando “Você é um
grande fotógrafo”.
Para quem nunca imaginou que fosse ser fotógrafo, isso era muito
importante: aquilo me deu bastante segurança, mas eu estava:
“Nossa, está todo o pessoal, a elite da fotografia nova-iorquina
ou americana está aqui.” O pessoal até do Getty; Weston Naef
estava lá.
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Aí de repente, entra o William com a mulher; com uma Polaroid da
casa dele, mostrando a minha obra na casa dele. E eu chorei, nessa
hora, porque eu pensei que consegui fazer um negócio incrível: eu
consegui estar aqui e estar na casa do William, ao mesmo tempo.
Para mim, isso foi fundamental, quando ele falou: “Olha, está lindo,
lá em casa”. Aquele cara gostava do meu trabalho – e o Peter Galassi,
que é o curador de fotografia do Museu de Arte Moderna, estava
falando a mesma coisa. Acho que para vocês que estão pensando
em fazer arte, isso é muito importante.
tem que abrir esse discurso; trazer pessoas para dentro disso, porque quanto mais gente melhor. E, até hoje, isso influenciou minha
produção de uma forma incrível. Eu acho que, hoje em dia, eu não
penso em outra coisa. Isso aí, fazendo o açúcar, e a ideia de se colocar o maior número possível de camadas, para retardar um pouco
a apreensão da imagem de forma instantânea. E o gosto é uma
coisa interessante; você se lembra de um gosto e começa a associar.
Eu tenho uma agenda, sou até muito previsível: tenho essa coisa
que eu acho que a arte tem que ser para todo mundo. Encheram o
meu saco porque eu fiz uma abertura de uma novela, ultimamente,
mas eu falei: “Para começar, não ganho dinheiro fazendo nada
disso. Eu faço tudo através da ONG com a qual trabalho e faço
por causa da ONG. Mas, de uma forma ou de outra, você ter arte
contemporânea na casa de cinquenta milhões de pessoas, todos
os dias: o que você pode falar disso? Você não consegue fazer isso
em lugar nenhum do mundo. Você não consegue fazer isso com o
YouTube, é um fenômeno puramente brasileiro”.
Tem que ser para todo mundo. Arte contemporânea é uma coisa
legal, é importante; e é direito, não é privilégio. Eu acho que a gente
Eu levava duas semanas para fazer uma imagem de linha, e as Imagens de chocolate26 eu tinha que fazer em uma hora, senão o negócio
secava. Então, em vez de produzir uma imagem, eu produzia muitas.
Era como fazer pesquisa genética: eu comecei a aprender, também,
muito dessa relação entre o material e o tema, através dessas imagens de chocolates, das quais eu fiz muitas. Eu fiz gente morrendo,
eu fiz gente se beijando. Freud podia explicar por que todo mundo
gosta de chocolate, e ele foi o primeiro cara que eu fiz. Era como
Jackson Pollock, aquela melequeira que ele fazia.
Tinha uma coisa, porque o chocolate é uma invenção cultural e uma
invenção industrial. O chocolate tem tantas referências, ele é tão
carregado; fala de obesidade, culpa, escatologia, tem tanta coisa que
tem a ver com chocolate. Sujeira – você se melecar de chocolate – e,
por isso, ele é muito ambíguo. Então, você usa uma coisa ambígua.
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Diamante é a mesma coisa. Eu trabalhei com diamante; o diamante
é uma invenção: a indústria do diamante foi salva, nos anos 30, por
causa de um slogan: “Diamantes são para sempre”. Granito é para
sempre, não é? Tem esses chicletes, que você põe embaixo de mesa,
e vão ficar ali pra sempre.
Quando a diretora do Whitney me ofereceu essa exposição28, eu
comecei a lembrar de uma exposição que eu tinha ido dez anos
antes, no Centro Pompidou, em Paris. Francês, talvez vocês não
saibam, adora fazer greve – eles fazem greve o tempo todo.
Eu fiz uma série de imagens com poeira27. A gente fala assim:
“Puxa, se eu tivesse uma ideia...”. A pior coisa que há é você ter
uma ideia, a pior coisa que pode acontecer, porque aí você vai ter
que fazer aquilo. A diretora do Museu Whitney, de Nova York, me
ofereceu uma exposição, e eu falei “Pô, legal”. Por exemplo, eu não
desenho, eu não anoto nada. Se eu anotar, o negócio murcha, não
é? Vai caindo...
O meu sistema de trabalho é assim: eu olho alguma coisa, eu percebo
aquilo e eu a deixo ali. Eu não anoto, porque, no momento em que
você anota, interrompe o processo de evolução natural daquela ideia
na sua cabeça. Então, a minha cabeça é uma sopa de letras; aquilo
fica boiando, vão juntando umas com as outras, vão formando umas
palavrinhas. De vez em quando elas afundam, eu nunca mais as vejo.
Eu não me lembro; e se você se esquece de uma ideia, talvez seja
uma coisa boa. Elas vão para algum outro lugar, de vez em quando
elas voltam. Eu acho que isso tem funcionado para mim.
Eles tinham uma exposição que era de arte minimalista – móveis do
século XX. Teve uma greve e eles ficaram dois meses sem limpar o
museu. A arte minimalista é feita para significar só aquilo, mesmo.
É quase o que eu estou falando: esse exercício de você colocar o
mental e o material juntos. Quando você pensa em minimalismo, ele
se transforma em um esforço heroico, porque você tem uma forma
supersimples, ela está falando apenas da sua própria existência,
e toda a poética você tem que inserir ali dentro. É obvio que uma
obra do Donald Judd – que é esse americano –, do Robert Morris,
para aquilo existir, e significar só a si mesmo, tem que ter alguém
limpando aquilo.
Se alguém deixar aquilo sujo, passa a ter outro significado. E eu
fiquei pensando na ideia do modernismo, em todas essas utopias
que nós fizemos no século XX, que nós realizamos no século XX.
Brasília, esses prédios do Mies van der Rohe, todas essas superfícies
novas, lisas, que requerem constante manutenção, então tem que
ter sempre gente limpando, limpando, limpando.
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Você vê um castelo medieval – não precisa limpar; aquilo está sujo?
Ótimo, já está velho mesmo, é bonito que esteja sujo, que esteja
velho. Então, acho que a gente cria essa ideia do presente constante;
e comecei a pensar em poeira, a poeira como material. A poeira
que a gente não quer que esteja na obra – e depois fazer uma coisa
de poeira. Geralmente, o contrário da coisa costuma funcionar.
gama toda, vou fazer em branco e preto”. E, em uma semana, eu
fiz a exposição.
Um dia eu liguei para a curadora; eu estava no Havaí, fazendo uma
exposição. Eu liguei e falei: “Silvia, eu tive uma ideia: vou precisar
de uma coisa. Você guarda todos os sacos de aspirador de pó do
museu, tá? Guarda para mim, eu estou chegando aí na segunda-feira”. Ela guardou. E, como boa museóloga, tinha um montão de
sacos, em cada um estava escrito, exatamente, a sala de onde tinha
saído a poeira. “Sala 21”, “Sala da família não-sei-o-quê”; tinha até
o horário em que tinha saído a poeira, o que era ótimo. A poeira do
primeiro andar tinha monóxido de carbono; todo mundo entra no
Museu vindo da Madison Avenue e leva para dentro aquela poeira
preta dos carros que estão ali, na avenida.
No último andar, eles tinham tirado uma exposição – que era a
Whitney Biennial – e nos Estados Unidos eles usam muito Sheetrock, que são paredes de papelão, então tinha muito branco. Aí
eu falei: “Está perfeito, eu tenho o branco, tenho o preto, tenho a
O que eu queria fazer é o seguinte: usar fotografias do museu, de
exposições do museu, com obras do museu, usando a poeira do
museu. O que eu não percebi, na hora, é que você não põe a poeira ali,
a poeira tem que cair ali. Então eu passei um ano e meio trabalhando
12 horas por dia, fazendo uns stencils em cima de linhas; eu misturava a cor da poeira, eu soprava a poeira dentro de uma sacolinha de
plástico, essa poeira subia e descia durante três horas e era o tempo
em que eu fazia todo o circuito de doze obras e voltava nela, eu fazia
isso doze horas por dia, só porque eu tive uma grande ideia, não é?
Foi a coisa mais difícil que eu fiz até hoje, e muita gente não percebe.
Para mim, foi uma das exposições mais bonitas que eu já fiz; ela foi
pensada desde o começo até o fim, é uma exposição muito legal.
E, engraçado, sabe o que é poeira? Aqui, no Brasil, as casas são
muito abertas; mas nos Estados Unidos as casas são fechadas, no
inverno fica tudo fechado, e tem muita poeira. Como é que a poeira
entra? A poeira não entra, nós trazemos a poeira, a poeira é pele:
75% da poeira que está na sua casa é você. Você vai soltando a pele
– você solta quilos de pele, anualmente, dentro da sua casa – e você
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imagina que, dentro dessa poeira, você ia ter partículas de todos
os visitantes do museu, se você faz um scan, escaneia o DNA desse
material, isso dá uma lista de imprensa incrível.
E é muito complexo – imagina! Olha como eu estou vestido: eu só
me visto assim porque eu não tenho que decidir nada. Eu ponho
preto e acabou, se eu tivesse alguma roupa de outra cor, eu ia ficar
pensando: “Será que combina?”.
E tinha muito pelo de cachorro – como é que tem tanto pelo de
cachorro no museu? (Risos)
Na série Imagens de tinta29, eu vou botando a tinta gota por gota.
Essa ideia de você ter que se afastar da imagem, para poder ver ela
melhor, é uma coisa que me interessava bastante, acho que muitos
de vocês já conhecem, eu não vou ficar revisitando.
Eu comprei um computador, e no manual constava que tinha 16
milhões de cores, no display, na tela. A primeira coisa que eu pensei foi: “Quem contou?” Pensando nisso, eu me toquei: “Eu nunca
trabalhei com cor”. Eu trabalhei com coisas que tinham cor, mas
a ideia da cor? Eu não trabalhava com cor; cor é uma coisa que
ninguém sabe o que é: você não sabe se é uma propriedade inerente
da matéria ou simplesmente uma coisa que você faz na sua cabeça.
Ninguém, até hoje, conseguiu dar uma explicação definitiva do
fenômeno da cor. E desde Aristóteles, desde Platão, as pessoas
discutem isso. É incrível, com toda a tecnologia que nós temos,
ainda não sabemos explicar isso.
Duas cores é você sair de casa, ou não; três cores é um Mondrian.
Você já tentou fazer um Mondrian? Tem um site na Internet que
eles deixam você mexer um pouquinho. Toda vez que você mexe
estraga, você nunca consegue botar no mesmo lugar, não é? E quatro cores? Aí, já se danou. Aí, é um Rafael; você não consegue – a
complexidade de se criar uma composição dinâmica, cromática,
é tão grande, tão superior.
Por isso que eu digo: tem que ensinar desenho na escola, tem
que ensinar pintura na escola; porque, aí, as pessoas vão dar
valor. Quem nunca tentou pintar na vida não sabe como é difícil
fazer isso.
Outra coisa: em 2001, 2002, foi a época em que a tecnologia digital
estava começando a despontar, e as vendas de câmeras digitais ficaram maiores do que das câmeras convencionais. Os meus amigos
fotógrafos começaram a ficar desesperados: “E agora, vai acabar
o filme?” E a coisa que mais desesperava os fotógrafos era o pixel;
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bastava ouvir a palavra pixel, todo mundo ficava arrepiado: “Está
pixelada a fotografia!”.
é ritual, você está indo em direção à imagem, não é à imagem que
vem em direção a você. E isso é uma prática que deveria ser comum,
mas somos bombardeados por imagens o dia inteiro, a vida inteira
– e não fazemos nada.
E eu pensei: “Vou fazer fotografia pixelada, já que está todo mundo
reclamando”. Eu sempre sigo na contracorrente; eu falei “Eu vou
fazer fotografia com pixel, mas extremamente nítida.” Então, eu
uso uma câmera enorme – um trambolho, uma 8 x 10” gigantesca
– para fazer essas fotos que, na verdade, eram feitas de pixels, e
eram fotos enormes.
Não dá para ver; se vocês não foram à minha exposição, não vão
conseguir ver isso em uma projeção, não faz justiça ao trabalho. Eu
sou um artista de parede, não sou um artista de projeção e nem de
página. Isso tem que ser bem claro quando a gente faz arte, você
vê o seu trabalho em um livro ou em uma parede?
Em um livro, você está limitado ao tamanho do braço da pessoa, se
a pessoa tem o braço curto, ela vê maior, se tiver o braço longo, vê
menorzinho. Você tem a vantagem da narrativa, mas, na parede,
você vê de longe, você se aproxima – desde que você sai de casa,
toma banho, lava a cabeça e põe uma roupa legal, pega o ônibus.
O caminho que você faz até a imagem é muito importante, porque
Em Cárceres30 trago uma outra ideia. Eu tinha feito aqueles trabalhos
de linha, e ninguém impede que você volte às ideias. Eu comecei a
pensar; eu estava em Ipanema e vi duas menininhas fazendo cama
de gato, e pensei: “Sempre quis fazer desenho de arquitetura”. E
há essas prisões do Piranesi31, que eu sempre sonhei em refazer, de
alguma forma, então comecei a usar alfinete e passar linha.
E você vê tudo nelas: são as prisões imaginárias, são uns exercícios
de perspectiva superinteressantes. Aí, tem alguns detalhes que
são muito grandes, na cabeça de cada alfinete você vê a câmera,
e às vezes você me vê fazendo a foto, também: são autorretratos.
Luiz32 não é campanha política, não! Quando eu passei a vir para o
Brasil com mais frequência, eu comecei a ver Caras, sabe? Você vai
ao médico e vê as revistas de celebridades. A ideia de você aparecer
na revista – e eu, também, comecei a aparecer na revista... Minha
mãe adora isso. Eu digo: “Mãe, compra – apareceu na Contigo. Tem
lá, vai lá ver: a menina tirou uma foto”.
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Eu acho engraçado, pois sempre me sinto um penetra: “Olha, apareci na revista”. Tem gente que acho que já pertence à revista, eu
nunca pertenci à revista. Você vê a pessoa na revista e você vê uma
fração de segundo daquela pessoa. Você pega outra revista e pega
outra fração de segundo. Quando você está dirigindo, você vê esses
rostos que estão em tudo quanto é lugar, desses políticos. Agora eu
estou começando a lembrar do nome de alguns – dos mais feios – e
você lembra por razões contrárias.
Eu sou artista de mesa, o tempo todo – de natureza-morta. Porque
eu sempre fotografo com coisas na mesa, e nunca fiz natureza-morta. Então eu fiz uma série que saiu daí e se transformou em
naturezas-mortas36.
Então, eu comecei a pensar: a gente acha que conhece essa pessoa,
se a gente tem esses fragmentos minúsculos. A partir disso, eu tentei
refazer a coisa pela fragmentação, com pedaços de revista – e eu
fotografei todos eles. E quando eu fotografei o Lula, eu já tinha feito
outros dois ou três, ele perguntou: “Você vai fazer a minha camisa,
como?” “Você está com uma camisa meio verde, então eu vou fazer
com revista de golfe.” Ele disse: “Como assim?” Eu expliquei: “A do
João Ubaldo33, eu fiz com revista de surf, porque a camisa dele era
azul.” Ele perguntou: “E a pele, você faz com quê?” “Com revista
pornográfica.” (Risos) Ele não gostou muito, não.
JOÃO I34 é do Joãosinho Trinta. A obra é grande, você vê cada bolinha. Fiz também o Seu Jorge35. E você põe carinha, põe um monte de
coisas, é bonito de se ver, é lindo – acreditem em mim, é muito legal.
Eu me mudei para um estúdio maior e comecei a lembrar o que o
William tinha me falado: “Você perdeu a razão de ‘um para um’,
da escala”. E eu comecei a fazer coisas grandes e a fotografar elas
em espaços maiores. Uma rosa, eu tenho uma roseira lá em Nova
York que dá umas rosas lindas, enormes – mas sempre tem bicho
na rosa. Então, eu fiz a rosa37 toda de bichos – e deixei a rosa, sem
bicho, no meio.
Comecei a mexer com brinquedos, brinquedo é como um meio,
como uma mídia; porque antes de se começar a dirigir, brincamos
com carrinho; antes de cozinharmos, brincamos com panelinha.
A ideia que dá é dessa coisa de o brinquedo ser um intermediário
entre você e a sua vida como adulto. E usar isso como material
parece interessante, também; não só o brinquedo que tem a ver
com a imagem, mas também o brinquedo como um meio, usar
o brinquedo como um material. E é uma coisa feia – plástico,
por que tanto plástico? Colorido – eu fico imaginando de onde
sai tudo isso.
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Autorretrato (Estou muito triste para te contar, a partir de Bas Jan
Ader) 38 é um autorretrato com dor de cabeça, baseado no Bas Jan
Ader, um artista holandês, tem muito a ver comigo.
diamantes. O Drácula40, o Frankenstein41. Caviar é que nem diamante, não é? É uma invenção. Imagina: o diamante vale o que vale
porque é raro – porque isso, porque aquilo – mas é todo mundo
controlado, e o caviar é a mesma coisa.
Os trabalhos da série Imagens de diamantes39 são feitos com diamantes de verdade. Um louco de um amigo meu, que é vendedor
de diamantes, me perguntou se eu queria fazer isso. E eu fiquei
pensando: “O que eu vou fazer com diamantes? “Ah, eu vou fazer
alguém sendo assaltado, fazer um cachorro fazendo xixi.” Coisas
feias. Mas me ocorreu: “Todo mundo faria isso. Não – eu vou fazer
exatamente o que o diamante quer dizer: vou falar da eternidade”.
Aí, eu peguei algumas divas de Hollywood.
Eu comecei – primeiro no Cais do Porto, depois, em Parada de
Lucas – num estúdio grande, a trabalhar com sucata. O Narciso42
está na coleção do MoMA. De Parada de Lucas para o Museu de
Arte Moderna de Nova York.
E é bacana, porque eu estou lidando com coisas do tamanho natural
– então, você tem uma relação ergonômica com os objetos. Em O
Saturno43, do Goya, você vê que tem um piano, à direita da imagem
– para vocês terem uma ideia da escala em que essas coisas são
feitas. O Atlas44, do Guercino.
Dá até vergonha; o pessoal compra foto de alguma coisa e acha
que está comprando a coisa. Quando você fotografa um diamante
minúsculo com uma câmara enorme, a resolução é tão grande que
parece um diamante de verdade, muito grande; então, tinha gente
que olhava, e falava: “Esse diamante é impossível, esse diamante
tem cem quilates, onde você achou isso?”.
O WWW45 eu fiz com o CDI, Centro de Democratização da Informática: é um mapa-múndi de computadores velhos, que eu fiz
com o pessoal.
Eles esqueciam que aquilo era uma ampliação, porque era muito
nítido. Aí é que está o jogo dessas obras de diamante, elas são falsas. E eu fiz monstros de caviar, para casar com as mulheres dos
Voltando ao assunto da cor: a cor, que você não sabe o que é, é
pigmento e meio, ela tem um veículo – que pode ser óleo, água, ou
têmpera (que é ovo). E eu estava com um amigo que falou assim:
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“Na fotografia, você muda, entre uma coisa e outra. Na pintura
não: a pintura você tem o que tem”. Eu respondi: “Não; porque,
quando você pinta a cor molhada é diferente da cor seca, você
nunca vê a cor de verdade.” Aí, eu falei: “Você só ia fazer se você
pintasse a seco. No desenho você tem isso, no pastel, você tem a
cor como ela é.”.
A série Quebra-cabeças górdios48 é feita com quebra-cabeças. A
ideia do quebra-cabeça é que você junta as partes – fisicamente
– e elas formam uma imagem. Nesse caso, elas formam a imagem de um jeito ou de outro. O que eu faço? Eu imprimo trinta
quebra-cabeças e faço como se fosse um acidente; faço baseado na imagem, não na colocação das peças. A única coisa é que,
mesmo se você tiver quinze quebra-cabeças – que eu acho que
é o limite – você sabe quais são as peças que vêm do mesmo set,
da mesma caixa, por quê? Pela orientação. Mesmo que a peça de
um quebra-cabeça seja uma abstração orgânica, a gente tem uma
capacidade incrível de saber orientação, de saber se essa peça
veio da mesma folha que outra peça. Elas são difíceis, porque é
difícil fazer uma coisa parecer um acidente. Mentir, às vezes, é
mais difícil do que falar a verdade. O Mark Twain falava que a
ficção é muito mais difícil do que a realidade, porque ficção tem
que fazer sentido.
E eu fiquei pensando nisso: fazer uma coisa só com pigmentos. Eu
uso instrumentos odontológicos e vou manipulando-os. Um Fontana46, por exemplo: feito grão por grão, sendo mexido ali. Isso está
tudo solto, se eu der uma espirrada nesse negócio, vira uma poeira.
Alguns desses trabalhos levaram uma semana para ficar prontos,
outros demoraram muito mais, como A japonesa47, que levou seis
meses e meio para ser feita. Então, por seis meses e meio, eu trabalhei o dia inteiro com uma máscara; porque o pigmento vermelho
é cádmio, é veneno. Se eu respirar isso por seis meses, eu morro
– e também para eu não respirar na obra, porque se eu respirar
na obra, ela desaparece. Essa é a obra que levou mais tempo para
ser feita – depois das de poeira, obviamente. O legal é que você faz
uma coisa que leva três horas para ser feita e uma coisa que leva
seis meses – não tem a menor diferença. Também não faz diferença
a escala da coisa.
Eu sempre gostei de umas obras que foram feitas nos Estados Unidos, nos anos 70, e se chamavam earthworks. E aí, eu tentei fazer
no estúdio; porque, para mim, a maior fonte de informação, no
meu trabalho, do ponto de vista conceitual, são os anos da minha
própria formação como indivíduo – são os anos 60 e os anos 70,
principalmente na Europa e nos Estados Unidos.
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Nessa época, eu não tinha muito contato com arte brasileira e por
isso eu acho que ainda sou muito influenciado pela arte europeia
e americana dessa época. E eu pensei: “Fazer isso no estúdio não
tem graça, o legal é fazer lá, mesmo.” Então, eu convenci o pessoal
da Vale do Rio Doce. Durante quatro anos, eu fiz essas obras49, que
podem ser vistas do Google Earth. E algumas delas são tão grandes
que podem ser vistas por aviação comercial – outro dia, eu vi uma,
a caminho de Brasília.
arrumo um sponsor, alguma pessoa para pagar para eu fazer, eu contrato um cara para desenhar nuvens no céu. Como um cartoon, uma
coisa meio Disney – e aí, fotografo as nuvens. É engraçado, porque você
imagina uma nuvem no céu, mas você nunca a imagina na forma de
um desenho; elevar a ideia de desenho a uma coisa de broadcast, sabe?
Algumas delas têm cerca de 600 m de comprimento. E elas foram
todas fotografadas de um helicóptero; a ideia é de você também
elevar os limites do que pode ser um desenho, o que pode ser uma
representação. E o legal é que, embora essas sejam coisas imensas,
as fotos são pequenas. Você pega uma coisinha minúscula e faz uma
foto grande; pega uma coisa grande e faz uma foto pequena, é legal
lidar com essa ideia de oposto.
Tesoura50 é uma das pequenas: tem uma pessoa andando ali, na
parte de baixo da tesoura, aquela coisa de advogado – assine aqui,
não é? O Alvo51 é imenso, você vê a paisagem, feita toda de verdade,
não tem Photoshop aí, não.
Uma coisa que eu tenho feito há mais de dez anos, sempre que eu
Olhar alguém desenhar é uma coisa muito gostosa, se a pessoa
desenha bem. Tem uns filmes sobre Picasso em que ele desenha no
livro; aquilo é fascinante, porque você não sabe o que vai acontecer
– e eu acho que é o mesmo, você fazer um desenho que milhões de
pessoas podem ver ao mesmo tempo.
Nuvem nuvem52 foi feito em Nova York em 2001, logo antes das
Torres Gêmeas caírem. Não se pode mais fazer isso. Ninguém,
nunca mais, vai pegar um aviãozinho e fazer desenho em cima de
Manhattan – acabou. E eu consegui fazer umas cinco; foi um mês
inteiro fazendo essas nuvens.
Fiz uma imagem53 da ponte, em Nova York. A ideia era fazer uma
nuvem que não representava nada. Eu queria que fosse só uma
nuvem, mas aí eu recebi uma carta de uma mulher falando assim:
“Querido Vik Muniz, eu queria me apresentar, eu sou madame
fulana de tal, você não me conhece, nem ao meu marido, mas eu
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queria falar sobre o nosso filho. O nosso filho era um cara muito
popular na comunidade de beisebol americana aqui de Nova York.
Ele era técnico de um time infantil muito popular, e também jogou
beisebol – ele era um catcher (apanhador) – e era um cara muito
envolvido com beisebol, que tinha dois restaurantes sobre beisebol
em Manhattan. Ele morreu de câncer, e no dia que o cortejo funeral
dele estava passando, no West Side Highway, todo mundo olhou
para cima e viu uma luva de beisebol”.
desenhar que se chamava “câmara lúcida”, que é um prisma que
lhe permite ver o que está acontecendo na sua frente, projetado no
papel – e você só traça. Eu usei isso para desenhar vários castelos
– eu levo comigo quando viajo, para fazer desenhos. Eu tinha um
monte de desenhos de castelos e falei: “O que eu vou fazer com
esses desenhos? Eu vou colocar eles em grãos de areia.”.
Eu falei: “Mas senhora, eu não quis fazer uma luva, eu só queria
fazer uma nuvem”. Ela respondeu: “Mas eu vou falar uma coisa; o
vento mudou, e a nuvem ficou parecendo uma luva de beisebol”.
Assim como em Miami: a nuvem54 ficou bastante fálica, na praia
gay de Miami, você vê o que você quiser.
Ainda estou desenvolvendo, aos poucos, um projeto com o MIT –
com o Media Lab –, que é de fazer castelos em grãos de areia, há
uma máquina que faz. Em um grão de areia, você consegue colocar
um desenho detalhado de um castelo do Vale do Loire. Esse castelo
fica na Escócia – eu desenhei o castelo.
O legal é que isso é uma interseção de mídias e tecnologias; porque, antes da fotografia, as pessoas usavam um instrumento para
Aí, eu peguei um cara que tem um robô fantástico que faz chip.
Pequenininho. E eu descobri que sílica e silicone são a mesma
coisa, mesmo material; então, é fácil você colocar esses desenhos
em um grão de areia e fotografar com um microscópio eletrônico.
A dificuldade, agora que eu estou estudando com eles, é criar uma
imagem digital, através do microscópio eletrônico, com uma resolução superior a 500 megapixels. Quero fazer uma imagem bem grande,
que eu vou transformar numa fotogravura imensa – esse é outro
método do século XIX, então, entre a escala e a tecnologia, eu estou
cruzando o tempo todo – fazendo uma coisa velha a partir de uma
coisa moderna e uma coisa grande a partir de uma coisa pequena.
Eu queria fazer um desenho em que você corta o papel e é só sombra – na época, eu estava fazendo os trabalhos de arame. Só que eu
estava fazendo os de arame e ia ficar muito parecido. Aí, eu pensei:
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“vou fazer em cinzas, não é?” Mas, se eu estou de cinza numa parede
preta, aquele cinza vai ser diferente do que se eu estiver na frente de
uma parede branca. Não existe o cinza absoluto; porque, no nosso
cérebro, para aumentar o contraste e diferenciar o fundo da frente,
existe um fenômeno que se chama inibição lateral. O olho, ele vai
se ajustando ao contraste das coisas que estão na frente em preto,
de branco. Isso quer dizer que por isso não existe cinza absoluto;
você vê um cinza diferente, dependendo do contexto onde ele está.
em São Paulo. Eu falei: não pode ter preconceito. Você tem que
ser livre, e eu comecei a trabalhar há uns 41 anos. Olha, eu estava
falando de dez anos atrás, que uma ideia voltou – há 41 anos eu era
um menino, um garoto de oito anos de idade, e eu fui pela primeira
a um museu, e era o Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Obviamente não dá para você cortar uma imagem simplesmente
a observando, o cinza dessa imagem, não ficava legal. Mas com
Photoshop é ótimo, você divide, quebra aquela imagem numericamente, e em incrementos de cinza – e você simplesmente corta
aquilo. E aí, o que você tem é incrível, você tem uma coerência
numérica. Em Imagens de papel55, olhando de perto, as imagens são
incrivelmente grotescas, horríveis. Você não vê a cara da criança,
mas você vai ver de longe e elas são perfeitas – você completa todo
o meio, sabe? Você consegue completá-lo com perfeição. De perto,
é quase uma monstruosidade, mas elas são muito interessantes
do ponto de vista cognitivo, a diferença entre de longe e de perto
é incrível.
Versos56 é uma série que eu estou fazendo e acabei de mostrar,
Naquela época, a Lina Bo Bardi tinha feito o museu de uma forma
completamente diferente; você não tinha a narrativa das obras em
volta da parede do museu. As obras eram colocadas em painéis de
vidro, todos virados para você. Quando você entrava no museu,
estava a coleção inteira virada para você. Você fazia o percurso
que você quisesse; e era muito mais orgânica a impressão do que
você estava olhando, o que minimizava a ditadura da narrativa da
parede. E dava, também, para um garoto de oito anos de idade ver
a parte de trás da pintura.
Crianças de oito anos não estão nem aí para pintura, mas a parte
de trás era legal: tinha teia de aranha, tinha bichinho, tinha sujeira,
e eu me lembro da parte de trás das pinturas. Trinta e tantos anos
depois, eu estou andando com a diretora do Guggenheim, em Nova
York, e a pintura que eu mais gosto da coleção é um Picasso que é a
Mulher passando57. Aí, eu falei para ela: “Aquilo ali é a passadeira?”
Ela falou: “É.” Eu perguntei: “Eu posso virar, para ver atrás?” Ela
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“Eu trabalho em série; acho
interessante, porque gera
um número muito grande de
trabalhos. É legal, porque
você tem a capacidade de
usar o que aprendeu dentro
de um tipo de trabalho para
um próximo.”
falou “Pode”. Viraram. Eu falei: “Eu posso fotografar?” Ela falou:
“Pode”. Eu tirei o meu telefone e fotografei. “Eu posso trazer a
minha câmera grande, para fotografar?” “Pode”. “Quando eu vier
fotografar essa daqui, eu posso fotografar algumas outras?” “Pode.”
Aí pensei: “Eu devo estar ficando famoso mesmo, porque eu estou
podendo”. Aí, eu fiz no Guggenheim, depois cheguei no MoMA,
falei a mesma coisa: “Eu posso pegar Demoiselles d’Avignon e tirar
da parede?” “Pode.”.
Eu não sabia o que ia fazer com essas fotos, mas comecei a fotografar
a parte de trás das pinturas. Eu consegui tirar o Domingo no parque, que há 16 anos não saía da parede do Art Institute of Chicago;
consegui fotografá-lo.
Durante quatro anos, eu fiquei com essas fotos, sem saber o que
fazer com elas. Aí, eu falei: “Eu não vou mostrar só as fotos, é meio
besta”. Então, tive uma ideia: todo mundo falsifica a parte da frente
do quadro, ninguém nunca falsificou a parte de trás. Aí, eu comecei
a pesquisar falsários, conservadores de museu, todo mundo que
entendia da parte de trás do quadro.
O que é a parte de trás do quadro? A parte de trás do quadro é só para
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gente de museu e para artistas. Quando você mostra um quadro,
a parte de trás está virada para você. A parte de trás parece com
um estúdio; ela é suja, ela é furada, ela é maltratada – a parte da
frente, não: ela é sempre limpinha, bonitinha. O que está na parte da
frente do quadro é exatamente a mesma coisa, através da história.
novo, não tem nada velho. A única coisa que eu não consigo controlar é o grão na madeira. O resto, cada marca, cada furo, cada
arranhão é exatamente igual. A noite estrelada59, nós colocamos
no MoMA, ao lado do quadro do Vincent Van Gogh. E ninguém
soube dizer qual era uma e qual era a outra. A única coisa é que
uma era um pouquinho mais escurinha do que a outra, porque
na fotografia, você ia ter que ter uma fotografia exatamente com
a mesma tonalidade da outra. Mas você não sabia qual era o original, você perde.
O que você vê num quadro do Cézanne – sabe, Mont Sainte-Victoire 58–
aquilo que você vê no museu é exatamente o que ele viu, naquela
tarde do século XIX, quando acabou de fazer a pintura, em que
ela ainda estava cheirando a óleo. Agora a parte de trás, não. Na
parte de trás, a cada vez que ela foi exposta no museu, tomou uma
etiqueta; a cada vez que foi colocada nos stretches – não sei como
se chama isso – ela foi pregada novamente, teve uma marcação,
criou diferentes marcas nas bordas, ela sofreu diferentes atitudes
de conservação através dos anos.
A parte de trás é a parte viva da obra, é a parte que documenta
a própria vida da obra. E o que eu fiz? Eu voltei para fotografar
todas as obras com a câmera digital, fazendo incrementos de mais
ou menos doze polegadas, o que me permitiu fazer uma cópia
fotorrealista, física, da parte de trás desses objetos. Eu reproduzi
e expus objetos, não são fotografias – e são exatamente iguais aos
originais. Mas a parte da frente é novinha, é tudo completamente
No festival de cinema, a série Imagens de lixo60 está muito bem
documentada; se chama Lixo extraordinário61 e é um trabalho que
eu venho desenvolvendo há mais de três anos com os catadores do
Jardim Metropolitano de Gramacho.
Quando fiz a exposição no Rio, há dois anos, aquilo era uma confluência de várias coisas que eu já estava pensando há muito tempo;
eu estava passando por uma crise pessoal, negócio de separação,
e aí você fica pensando em tudo ao mesmo tempo.
Estava fazendo um livro62 com a minha carreira inteira, então
você começa a pensar. Eu falei do cara que tinha começado, estou
falando do cara que está acabado; o cara que fez um livro grosso,
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da obra, até fez uma exposição retrospectiva imensa, você começa
a pensar e começa a ficar com medo, não é?
Entrego lá o cartão, a mulher me dá o meu descontinho. Aí eu fui
comprar outra coisa, e a mulher fala no microfone, quando a pizza
está pronta: “Vik Muniz, Vik Muniz”. Aí, quando eu fui chegando,
já tinha uma velhinha dizendo: “Você, ah, adorei o seu trabalho”.
Aí a menina da pizza olhou para mim, e falou: “Eu adoro o seu
trabalho”. E me deu a pizza. “Ahhhh!” Sabe? Teve também o cara
que não me cobrou o táxi, para mim isso aí é tudo que eu queria.
Será que acabou, será que isso aqui é o fim? E agora, o que eu vou
fazer depois disso? Mas, nesses questionamentos, você descobre
que é daí que vai saindo o material para onde você pode conseguir
trabalhar; e uma das coisas que, até a exposição no Rio de Janeiro
– a exposição começou em Nova York – me provaram, é que era
um público imenso que ia ver a exposição, e todo mundo gostava.
Crianças gostavam; velhos gostavam – e eu tinha conseguido fazer
exatamente o que eu queria. Durante vinte anos, eu fiz arte para
todo mundo, mas aí eu fazia uma exposição, e só as mesmas pessoas que iam.
Aquele pessoal ia lá e tomava aquele champanhe, aquela coisa;
tinha um artigo legal no jornal e, naquilo tudo, parecia que estava
faltando alguma coisa. Quando essa exposição começou, há uns
cinco anos, aquilo começou a me completar. E eu comecei a ver,
a voltar àquela ideia do William, do meu entregador. Eu acho que
culminou num dia; eu compro pizza ali no Zona Sul da Pacheco
Leão e eu sempre vou comprar pizza. Aí, eu dou o meu cartão
Zona Sul, em que está escrito o meu nome – meu nome é Vicente,
não é Vik.
Você poder ter essa coisa completa, mas eu precisava de uma prova.
E, há três anos, eu decidi: “Eu vou fazer um projeto com gente que
nunca entrou num museu, não tem a menor ideia do que é a arte; eu
vou procurar essas pessoas do outro lado da sociedade de consumo”.
Isso foi justamente durante a bolha econômica americana, em que
você vendia tudo que fazia, estava tudo uma beleza. E aí, eu comecei
a trabalhar com essas pessoas. Eu fui para Gramacho, e a primeira
coisa que eu percebi foi o elemento humano.
As pessoas ali são incríveis, não só pela vontade que elas têm de
sobreviver, mas também pela maneira como elas conseguem, com
humor. Você vai para Gramacho, pensa que é uma coisa dura, sofrida;
mas, muito pelo contrário, as pessoas têm uma relação com o trabalho que é muito mais sadia do que em muita repartição pública.
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Elas estão sempre rindo e tirando sarro uma da outra, é um ambiente
muito civilizado, inclusive. É muito físico, as pessoas estão sempre
se atropelando, mas quase não tem briga, quase não tem discussão.
Eu comecei a fotografar essas pessoas, também levando a ideia do
trabalho, que é muito forte, ali. Então, os temas eram geralmente
ligados ao trabalho, no caso isso é um Atlas63, novamente.
tinham, tanto que até a banheira era achada, o pano era encontrado65
– quando eles começaram a se ver nessa escala de 30 x 20 m, a vida
dessas pessoas começou a mudar e a minha também. Então, esse
documentário traça muito até o meu próprio preconceito, a minha
mudança de atitude com essas pessoas, minha surpresa, e a relação
delas com a própria imagem e com as imagens em geral.
Em um Millet, O semeador64, a ideia é você semear, porque nasce
muita coisa em Gramacho. Porque a gente joga coisa fora, no lixo
orgânico tem semente, e como ali é um terreno extremamente fértil,
então lá tem melancias gigantes, é incrível. E, no caso, o Marat fez
isso, eu fiz porque eu achei uma banheira e fotografei essas pessoas.
E aí, eu as convidei para dentro do meu estúdio, para trabalhar nos
seus próprios retratos.
Vocês têm que ver, ficou muito legal. Eu não esperava nada disso,
mas o documentário ganhou Sundance, ganhou Berlim. É o documentário mais premiado no circuito internacional, hoje em dia,
e está entre os 17 filmes com possível nominação para Oscar. Ele
vai ser exibido, a partir do dia 29, no Festival de Cinema do Rio, e
a distribuição nos cinemas eu acho que é a partir do ano que vem.
Uma coisa que descobri, e que não tinha pensado antes, é que essas
pessoas têm uma relação muito diferente da minha com a própria
imagem. Muitas dessas pessoas não têm o retrato de si mesmos, e
começaram a ter fotos de si mesmos, através de imagem de telefone
celular, que é uma imagem muito diminuta, muito pequenininha.
Quando essas pessoas começaram a se ver em uma escala monumental, no estúdio – em fotos feitas com o mesmo material que eles
[ Apresentação de vídeo ]
O lugar em que a gente chega com o que a gente faz é surpreendente em mais de uma maneira. Quando eu comecei trabalhar
com essas pessoas, sabia que ia me envolver com elas, que eu ia
querer fazer alguma coisa pela vida delas. Há dez anos eu saí do
Brasil um menino pobre; e esse menino pobre ficou comigo esse
tempo todo nos Estados Unidos, mesmo com a minha carreira se
desenvolvendo de uma forma positiva e tudo.
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Parecia que eu tinha que voltar e encarar essa pessoa aqui. Esse
meu retorno implicava ter que lidar com isso: e a primeira coisa
que eu procurei foi uma forma de trabalhar e me inteirar dentro
da cidade como um todo. O meu estúdio fica em Parada de Lucas.
Eu estou envolvido com três ou quatro ONGs, agora. Por exemplo, com a Louis Vuitton, com outras marcas – porque tem muita
companhia, muita empresa que chega para mim pedindo trabalho
comercial, eu disse muito: “Não, não posso fazer. Eu não faço, eu
sou artista”. Mas depois, eu pensei: “Poxa, que besteira, cara; eu
tenho dinheiro nisso, por que não?”.
ter a princípio – o envolvimento com o meu nome – mas eles têm,
também, uma ferramenta de marketing para poder dizer que estão
trabalhando no terceiro setor, com uma ONG.
Aí, com a L’Oréal, eu falei: “Olha, eu não posso fazer isso sozinho,
mas eu sei quem vai fazer comigo”. Então, eu passei isso direto para
uma ONG –que geralmente são ONGs que trabalham com jovens.
Eu trabalho a ideia de cenografia ou de artes visuais com os jovens
sob a minha orientação, e a gente realiza um produto que é o que a
empresa quer. E é incrível, por que os jovens têm o curso, têm uma
experiência que não é uma simulação. E eu tenho a oportunidade
de participar disso, sem manchar o meu nome com um projeto
comercial, mas também não deixando de fazer, porque eu também
gosto de fazer isso. E a empresa ganha muito mais, porque eles
pagam menos do que eu iria cobrar deles, na verdade – porque o
meu tempo custa caro. E eles têm não apenas o que eles queriam
Então, isso tem funcionado: é uma ideia que se chama Centro Espacial, e ela existe há cinco anos. No caso do Jardim Gramacho, eu
comecei vendendo essas obras. Por isso que o Tião está tão nervoso
no vídeo, porque aquele dinheiro é dele, ele queria que vendesse
por muito mais, na verdade, e todas as obras nas edições numeradas
elas foram, eu vendi, e todo o dinheiro foi para a ACAMJG, que é a
Associação dos Catadores de Jardim Gramacho.
Chegou uma hora em que eles não estavam mais precisando do
dinheiro, porque já estava tudo certinho: e eu comecei a perceber
que, se eu ficasse dando dinheiro, ia criar uma relação de paternalismo muito ruim. O que estava faltando ali, realmente, era uma
estratégia de negócios, porque quem mexe com lixo geralmente não
mexe com dinheiro, e quem mexe com dinheiro não mexe com lixo.
Mas essa coisa está mudando, porque tem muito dinheiro no lixo.
E eu estou começando a descobrir formas de fazer essa ponte entre
o lixo e o dinheiro e fiz uma parceria com o Instituto Coca-Cola e
com a Firjan. Através de uma ONG que se chama Doe Seu Lixo, a
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gente desenhou modelos de negócios, de empreendimento, para
companhia de catação.
Sabe, talvez no início você precise de certa disciplina para se firmar
ou para estabelecer uma linguagem. Mas, depois que você fez isso,
o legal é “despirocar”, fazer um montão de coisas loucas. E você
se sente capaz de fazer. E o pior que pode acontecer é ficar ruim,
o padre Cícero não ser muito bom, mas você fez – você tentou.
Isso deu tão certo, aqui no Rio de Janeiro, que agora esse projeto está
sendo lançado em âmbito nacional; teve um relatório de sustentabilidade da Coca-Cola na ACAMJG, lá em Jardim Gramacho, uns
dois meses atrás, e o projeto está impactando milhares de pessoas.
A gente começa uma ideia boba de fotografar pessoas no lixo, e de
repente... Agora, eu brinco com o Tião, toda vez que falam de lixo
me chamam para falar alguma coisa – eu entendo mais de lixo – e,
toda vez que é para falar de arte, eles chamam ele. A gente está
trocando de papéis, e temos feito muita coisa legal.
Outro dia, eu estava em um jantar e um cara falou: “Estou fazendo
um filme sobre o padre Cícero”. E aí, ele olhou para mim: “Você
não quer ser o padre Cícero?” Eu respondi: “Eu até quero, acho
que eu quero sim”. Aí a Malu, minha mulher, falou assim: “Você
está ficando louco?” Eu respondi: “Cara, eu sou artista, eu quero
ser tudo; eu quero ser padre Cícero, eu quero trabalhar com lixo,
eu quero fazer novela, eu estou escrevendo um livro de criança, eu
estou escrevendo um roteiro de cinema – quem vai falar para mim
o que eu posso e o que eu não posso fazer?”.
Eu acho que, quando a gente começa a ser artista, está sempre
tentando mostrar quem nós somos – e a gente não é ninguém, até
aquele momento. Desculpe dizer para vocês, bem jovens, vocês
ainda não viveram o suficiente para ter aquela relação tão dura com
a sua própria personalidade. O bacana de ser jovem é que você está
experimentando; você é extremamente inseguro e também tem
esse leque de possibilidades na sua vida inteira, você pode fazer o
que quiser e tem tempo para isso também.
Eu me lembro que, nessa época, eu queria mostrar que eu desenhava
bem, que discutia filosofia, discutia desenho, história da arte. Com
o passar do tempo, você começa a aprender a escutar, começa a ter
assistentes, a escutar o assistente, escutar as pessoas que estão à
sua volta, escutar o galerista. Daqui a pouco, você está escutando
todo mundo, e aí eu acho que é a maturidade do artista.
Às vezes, eu me vejo nessa posição – e é uma posição muito legal,
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é muito bom chegar nesse momento, em que você também tem
essa generosidade, essa relação de abertura do seu trabalho que
um jovem não teria, os jovens não são tão generosos assim. Eu
não era – pelo menos.
Outra coisa que eu queria dizer, para quem está começando, para
quem está pretendendo fazer alguma coisa com arte: a coisa mais
difícil é ter uma relação de gerenciamento de criatividade. Você não
imaginar que está fazendo uma coisa que é para convencer alguém;
a princípio, você tem que convencer a si mesmo, mas pensar nisso
como um projeto de vida.
E o que é bacana – e de que tenho muita saudade – é da minha
insegurança. Eu estava falando: se você não é inseguro, você não
sente as coisas direito, é como sexo com Viagra: “Está tudo certo,
vamos fazer aí”. A coisa é que, quando você tem que prestar atenção
em cada momento – porque a sustentabilidade daquele momento,
daquela progressão é baseada em uma troca – você está muito
mais atento.
Quando você tem uma carreira, você tem um nome, e eu acho que
você não tem mais essa coisa de falhar. Eu faço exposição em museu
e não tenho mais essa insegurança, eu sei que vai dar certo, o pessoal vai vir. Vou vender algumas coisas, já aconteceu um milhão
de vezes, já está tudo certo.
Eu lembro quando eu fiz uma exposição numa cidadezinha minúscula
– vieram 15 pessoas, e eu tremia: “Será que eles vão gostar? Será que
eles vão gostar?” E isso era muito legal, porque eu tinha uma relação
muito mais estreita com o que eu estava fazendo naquela época.
Eu me lembro que estava começando a mostrar, começando a ter
uma galeria, e aí minha ex-mulher, minha primeira mulher – eu
estava saindo com ela há três meses – chegou, olhou para mim e
falou: “Eu estou grávida e vou ter esse filho”.
Eu não falei nada para ela, mas peguei o telefone, liguei para o meu
patrão, na época, e falei: “Eu não vou vir mais, amanhã.” E desliguei.
É como Cortez: eu botei fogo nos barcos, eu falei, eu vou ficar aqui,
nesse lugar, eu vou ser artista: porque como moldureiro eu não vou
conseguir criar essa criança.
Daí para a frente, eu assumi isso e fui em frente: mas eu imaginei já
toda uma vida como artista. Então, há tempo para fazer as coisas,
para quem começa agora. Não tente dizer tudo em um trabalho só,
imagina que isso vai mudar, vai desenvolver, vai ser incrível, você
tem que acreditar nisso, de uma forma ou de outra.
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E isso vai ser bom não só para você, mas vai chegar um momento
em que isso vai ser bom para todo mundo; porque a imagem do
artista, como essa criatura marginal – quase um parasita da sociedade – tem que acabar. Tem que acabar porque isso não é real e
isso é uma degeneração da classe que se desenvolveu no sistema
de valores da segunda metade do século XX, que colocou o artista
nessa posição paralela.
Na escola o sistema de educação ainda está ligado ao fim do século
XIX e ao começo do século XX, quando existia a maturação da
Revolução Industrial, que criou uma demanda muito grande para
cargos técnicos e cargos burocráticos. Então, era importante que
as pessoas aprendessem matemática, aprendessem a ler e escrever
e a ter a letra boa. Até hoje é a mesma coisa: só que, com a queda
das utopias do modernismo, a escola parou de formar técnicos e
burocratas – e começou a formar consumidores.
Todo mundo adora falar de Van Gogh: ele é louco, ele nunca
vendeu, ele cortou a orelha – e aquilo virou o modelo do artista.
Ninguém gosta de falar de Velázquez, que era muito rico, ou de
Rubens, que conseguia mediar guerras entre nações. Ninguém
gosta de falar de Leonardo, um cara que inventava milhões
de coisas.
Lembra daquele cara que entrou naquela caverna e que inventou
o sistema, ou a possibilidade de a gente se desenvolver como uma
civilização? Ele não inventou só a representação, ele inventou a
história. Foi um artista que fez isso; e, hoje em dia, a gente fala de
coisas, têm objetivos, mas a nossa razão em relação a esses objetivos
está completamente deturpada, porque nós não temos mais um
sistema de organização dessa quantidade imensa de informação
que está presente o tempo todo.
Uma falta de responsabilidade muito grande; a gente fala do meio
ambiente, mas não fala dos nossos filhos. Vocês não têm filhos,
mas vão ter – e o futuro começa a ser visto de uma forma diferente.
Existe uma coisa que me preocupa muito, é o trabalho “daquele
cara que inventou a história” ser jogado fora, por uma pequena
falta de atenção nossa, da nossa geração.
Em 1992, foi inventada uma tecnologia que completamente acabou
com a ideia do documento visual. Aquela ideia do “ver para crer”
não funciona mais, a partir daí. Se chama Photoshop. Todo mundo
sabe, sempre houve a possibilidade de uma imagem ser manipulada,
desde o início da fotografia – mas isso era uma coisa que era feita
por técnicos. Hoje em dia, qualquer criança de sete anos consegue
mexer com essa tecnologia, e muda tudo.
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Por exemplo: o perfil no Facebook de muitos de vocês, vocês deram
uma arrumadinha; apagaram aquela espinha no nariz, você imagina
que tem gente que está tirando rugas, e daqui a 60 anos elas vão
ter a mesma cara que elas tinham no ano passado. Elas vão olhar
para a foto delas do perfil do Facebook e vão falar assim: “O que é
que aconteceu, nesse tempo?”
A fotografia não vai ser capaz de ser um representante fiel ou um
marco fiel do desenvolvimento do tempo através da nossa história
pessoal, e muito menos da nossa história coletiva. Se você imagina
que isso já é louco, do ponto de vista pessoal, imagina como história.
Em 1839, foi inventada a fotografia; e a partir daí, nós paramos de
desenhar, paramos de fazer um monte de coisas. E a gente colocou
toda a nossa história dentro desse receptáculo, desse meio que é a
imagem fotográfica, e agora ela não significa mais nada.
Onde a gente vai colocar a nossa história pessoal e a nossa história coletiva, a partir daí? Como o sistema de história vai se
desenvolver sem provas – porque a gente aprendeu mais a mentir
do que a dizer a verdade, nos tornamos cínicos além da possibilidade de apreender o mundo factual como ele se apresenta. E
– muito preocupante – nós não conseguimos mais organizar de
uma forma ordenada e taxonômica a informação que chega até
Multidão em Coney Island, 32°C,
Eles chegaram cedo e ficaram até tarde,
julho de 1940, a partir de Weegee, 2009
Cópia fotográfica digital de emulsão de prata
121,90 x 154,90 cm
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nós, pela diversidade e complexidade dos meios com que essa
informação nos atinge.
Por exemplo: eu estou completamente desmemoriado; meu hard
drive já encheu, e eu não sei como jogar fora a informação. É uma
coisa incrível, e todo mundo da minha idade tem isso. Até meu filho
tem – ele não lembra mais de nada; porque, também, não precisa
lembrar, está atrofiada a memória, você acessa o Google, pega o
telefone. Google, eu já estou assim.
Todo mundo aqui tem essa experiência ou já teve: você pensa em
alguma coisa – e não sabe se você sonhou, se leu, se você viu em um
filme, no teatro ou se alguém te falou. Por quê? Porque isso está no
limbo, aqui dentro, completamente confuso.
Somos uma geração estragada pelo excesso de mídia. Eu acho
que, com o fim do documento visual e com a impossibilidade de
criarmos uma história baseada em evidência visual, só temos uma
saída, que é a educação. Só a partir do momento em que existe um
consenso muito forte do que é uma imagem e o que são as implicações da imagem dentro da nossa sociedade; o que é feito, como
existe, como acontece, talvez uma estrutura ética vá despontar,
vá emergir desse consenso, desse sistema. Sem essa educação
diferente – que eu acho que a gente tem que começar a promover
– isso não vai ser possível.
Eu acho que a meta principal dessa educação nova seria a organização da informação visual; ou então, a implementação de métodos
nos quais a gente possa oferecer ferramentas às novas gerações
para lidar com essa informação visual rica.
Mas eu acho que não é porque não existe capacidade. A possibilidade de sinapses do cérebro humano – a qualquer hora, a qualquer
momento – é superior ao número de partículas positivas do universo. O cérebro humano é uma das coisas mais incríveis, com as
estruturas mais complexas que existem dentro da natureza. Isso
quer dizer que existe espaço para a informação – só que ela tem
que ser bem administrada.
Eu estou com um projeto que se chama Escola do Olhar, que é
justamente para criar ferramentas pedagógicas para uma educação do século XXI. E eu queria que fosse jogada essa pilha aí, que
vocês pensassem sobre isso, porque é uma coisa muito importante.
A gente vai ter que lidar com coisas muito importantes; o meio
ambiente, a ecologia do mundo e a nossa ecologia mental.
Eu acho que se a gente conseguir ver um mundo melhor, de uma
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maneira mais eficiente, a gente vai poder salvá-lo. Isso não é só
material, é mental também: e a gente tem que aprender a razão
pela qual a gente faz isso, quando vai ao museu.
de levar amigo lá; eles olham, veem aquela bagunça, aquele lixo
todo, aí olham para aquilo. “O que eu vou falar para esse cara? Será
que isso é o trabalho do cara?” Quando ele sobe lá e vê que aquilo
forma uma imagem. “Ufa.” Dá um alívio.
Eu gostaria de saber se você projeta, depois de tirar
a foto, se faz uma projeção de slides e desenha, e depois vai
montando?
Aluno:
Geralmente, coisas pequenas eu nunca projeto, porque eu desenho
bem; então, ao projetar alguma coisa, às vezes você perde um pouco
a naturalidade do desenho. Os chocolates, eu sempre olho e faço.
Eu copio bem, eu não sei dizer se eu desenho melhor, porque eu
já parei de desenhar, eu me curei do desenho.
Mas, para essas coisas maiores, quando você trabalha com assistente, a dinâmica expande. Você tem pessoas lá embaixo, você
tem que estar com um laser daqueles, falando: “Faz aqui, faz ali,
mexe aqui”. Você não sabe o que está fazendo; sem falar que esses
desenhos são projetados em um ângulo de 45 a 60 graus – o que faz
com que a imagem, lá embaixo, seja uma distorção anamórfica. Ela
vira um trapézio alongado, largo lá atrás, fininho e bem comprido.
E quem vai ao estúdio geralmente não vê o desenho. Eu já cansei
Posso falar que isso é alguma coisa, mas, como você não vê o que
está fazendo, e como de onde eu estou fotografando é o único lugar
que se vê a imagem daquele jeito, é preciso marcar o ponto visual.
Mas você tem que saber fisicamente a posição do projetor. Pois o
projetor sai, e entra a câmera 8 x 10”, e só daquele ponto que dá
certo, porque o desenho não é feito de objetos, ele é feito da sombra,
a gente sempre vai até onde a sombra do projetor chega, então só
tem um jeito de fazer isso.
Tentamos fazer marcando no chão e não deu certo, porque você não
sabe onde está a sombra. O projetor, na verdade, joga a informação
como ela tem que ser apreendida pela câmera. Só tem esse jeito
de fazer. Você vai mudando; esse é um caso que a gente projeta, na
maioria dos outros casos é feito direto.
O negócio, também, é que você faz tudo para fotografar. As pessoas
falam: “E depois, você desmancha?” “Desmancho, preciso do lugar”.
“Não te dá nada, desmanchar essa trabalheira toda?” Eu digo: “Não,
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eu jogo tudo fora, quebro e jogo tudo fora, depois tudo vai para o
lixo”. Só que eu tenho que picar bem picadinho – porque tem um
pessoal que começou a olhar o meu lixo para pegar coisas do lixo,
lá no Brooklyn, para vender em leilão.
de monge, então ele me contou uma história do Buda. Eu falei:
“Um pouquinho, vai, só um pouquinho?” Fiquei empesteando ele
por uns 15 minutos, até ele enfiar a mão naquele robe laranja dele,
tirar uma câmera do bolso e falar: “Eu tirei umas fotos”. (Risos)
Certa vez, eu estava no dentista e vi, na revista do dentista, que os
monges tibetanos estavam fazendo uma mandala de areia – não
sei se vocês sabem o que é isso. Os caras fazem uma coisa que é
muito complexa. Eles fazem com uns caninhos de areia colorida;
é lindo, parece um tapete, demoram semanas para fazer aquilo. E
depois, assim que eles acabam de fazer, eles já começam a varrer
para jogar fora, porque é uma ideia do budismo.
Então, essa coisa de no fim tudo ser feito para ser fotografado;
como você chega lá, em termos do processo, às vezes é a parte mais
interessante. O que é legal desse trabalho é justamente você poder
incorporar esse elemento humano. Se você começar a trabalhar
e fizer sucesso, invariavelmente você vai ter que ter assistentes:
todo artista na história da arte trabalhou com assistente. Não há
um que não tenha tido um aprendiz, um pupilo, alguém que fazia
alguma coisa.
Eu li aquilo – a revista de dentista, geralmente, é muito velha – e
pensei: “Vou lá ver”. Eu fui ver – com a cara toda anestesiada – e
quando eu cheguei lá eles já estavam varrendo o negócio, para
jogar fora. Eu olhei, e tinha um monge do meu lado, e eu falei:
“Seu monge, você trabalhou nesse negócio aí?” E ele: “Trabalhei”.
“Quanto demorou?” Ele disse: “Duas semanas”. “Mas você não fica
nem um pouquinho chateado de estar desmanchando?” Aí, ele me
deu aquela história de monge toda: “O caminho é melhor do que
o destino”, aquela papagaiada lá. Aí eu falei: “Está bom, nem um
pouquinho?” Ele respondeu: “Não”. E não dava mais umas histórias
Como você usa o assistente, varia; tem gente que usa o assistente
como uma espécie de escravo – ele vai ficar ali, trabalhando, não
sei o quê. Eu acho muito mais interessante você interagir com o
assistente, pois ele começa a fazer parte do seu trabalho – mas tem
que assumir, não tem jeito, é que nem ruga. Você tem que assumir
o assistente.
O meu estúdio em Nova York, por exemplo, não é mais um negócio
– está mais para uma seita, porque eu nunca consegui despedir
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ninguém. Então todo mundo vai para lá; e quando eu não estou
lá, eles ficam tristes – porque eu conto piada, eu fico mais fazendo
bagunça em torno deles do que trabalhando mesmo, mas a gente
tem uma dinâmica de trabalho de poder sempre mudar, o tempo
todo. Eu digo que ser artista é a melhor profissão do mundo, porque
você pode se empregar e se demitir todo dia.
Outra coisa que é muito importante é nunca jogar nada fora, não
fisicamente, materialmente, mas na cabeça. Nunca descarte nada,
porque, se você erra, em termos de processo, agora, vai ver daqui a
dois, três anos, você vai lembrar daquela coisa que não deu certo;
e vai ser o momento certo para usar aquilo, e vai dar certo naquela
hora, isso tudo é muito relativo. Mais alguma pergunta? Do jeito
que ele levantou a mão rápido, vai ser uma pergunta difícil.
Aluno: Não, imagina – não vai ser, não. Você falou da questão
da percepção visual e da nossa percepção e funcionamento
do cérebro, da educação visual; coisas que são muito
importantes e presentes nos seus trabalhos. E, em outro
momento, você falou da sua relação com artistas dos anos
60 e 70 – que você encontrava uma identificação muito
maior com que acontecia nos Estados Unidos e na Europa.
Eu queria saber se, de alguma maneira, existe alguma relação
de referência com artistas dos anos 60 e 70, no Brasil, que
trabalhavam também com essa questão da percepção do
fenômeno do olhar, como o Cildo Meireles. Eu queria saber
se algumas obras do Cildo te influenciaram ou não.
Numa escala diferente. Eu me lembro de visitar o MAM de São
Paulo uma vez. Tinha uma exposição de concretismo, que é parte
da coleção do Leirner, me lembro de ver toda uma gama. Tinha
Hélio, tinha Lygia; eu não lembro direito, era concretismo mais
alguma coisa. E depois, eu lembro de pegar um ônibus lotado, e lá
para o Jardim Panamericano teve uma briga feia dentro do ônibus.
E eu fiquei pensando, assim: o que tem a ver onde eu fui com onde
eu estou? Parece que tem momentos na sua vida que você vai estar
aberto a tipos diferentes de imagens, e, naquele momento, abstração
para mim era uma impossibilidade, porque eu vivi um momento
físico muito real, de desconforto, de dor, de incerteza – e eu não
consegui entender abstração.
O Cildo, por exemplo, é um artista que sempre me impressionou
muito, porque, na época, você não podia dizer o que queria dizer.
E o que você escutava não era necessariamente a verdade. Eu sou
um produto da ditadura, e, graças a Deus, eu sou um bom aluno;
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porque eu não fui influenciado diretamente, não fui torturado, não
fui preso, mas eu sou um produto do ambiente intelectual durante
uma ditadura militar. Você vive numa espécie de mercado negro
semiótico; a informação é negociada o tempo todo, você fala de
política através de metáforas, através de canções de amor, através
das flores, através de uma festa junina.
desenvolvimento profissional – e até intelectual do ponto de vista de
onde eu comecei a falar “eu vou ser artista” – se deu lá, e as minhas
influências são predominantemente europeias e americanas.
Você escuta a informação e aquilo não é verdade. Tem a marchinha, de Dom e Ravel, Eu te amo meu Brasil, eu te amo.66 Que ama
o quê, rapaz? A informação é negociada, o que cria, no indivíduo,
uma espécie de cinismo muito grande, um pragmatismo ferrenho
de: “O que quer dizer esse negócio, aí?” Ao mesmo tempo em que
você cria esse pragmatismo e essa desconfiança em relação à informação, você também desenvolve uma abertura, uma elasticidade
metafórica muito grande. Nós temos isso, e a gente reclama que
os portugueses não têm, por exemplo.
Para nós, uma palavra pode significar milhões de coisas, a gente usa
a metáfora de uma forma muito natural. Até a entonação da palavra
já tem aquele elemento de metáfora; e a ideia que permeia o nosso
discurso normal do dia a dia é que uma coisa pode significar outra.
Às vezes, eu falo que sou um artista americano, porque o meu
Eu não vou negar algumas influências da arte brasileira que eu
conhecia da época; principalmente três, eu acho: o Tunga, o Waltercio e o Cildo. São artistas que falavam muito forte para a minha
geração, o Cildo, principalmente, porque ele era tipo um herói cultural, ele era muito corajoso. Ele fazia coisas, e o discurso político
dele era muito aberto, questionar valor numa época onde isso tudo é
muito falso era uma coragem muito grande desse artista, enfrentar
esses assuntos na época em que ele estava fazendo.
O Waltercio é um cara que sempre me impressionou muito – eu
sempre gostei do trabalho. E o Tunga, principalmente; porque eu
acho que o Tunga tinha uma coisa que escapava a qualquer regra – ele
sempre foi o meu artista preferido. Porque a ideia de desenvolver
mitologias pessoais é uma coisa muito antiga da arte, tem um pouco
a ver com a disciplina de alguns artistas que eu sempre gostei e que
também eram os ídolos dele. Você pensa em Beuys, por exemplo.
Eu estou mais para Warhol do que para Beuys. Eu acho que a ideia
é você desmistificar o esoterismo de achar que a arte “é uma coisa
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do espírito”. O espírito está aqui, está no visível, está no cotidiano,
você tem que ver beleza nisso, porque é isso que você tem. Ficar
imaginando, eu acho que está certo, tudo bem – vida após a morte,
ótimo, você pode acreditar nessas coisas, para curtir o negócio.
Mas, para entender melhor o lugar onde você vive, com as pessoas
com quem você vive, você tem que observar, fazer arte sobre isso.
A gente observa muito as tendências em torno quando estamos
começando a fazer arte, porque a gente quer a segurança de que
aquilo que estamos fazendo está dentro de um contexto contemporâneo atual e que aquilo tem algum valor. Mas no momento em
que você começa a ficar observando muito, você para de fazer, se
perde, se desvirtua na sua direção.
Eu acho que muito da arte que me influenciou, influenciou também alguns artistas que estavam trabalhando um pouco antes de
mim, aqui no Brasil. Esses três, que citei, eram os artistas que eu
admirava e acompanhava o trabalho, e acabei fazendo amizade
com eles, com o passar do tempo, mas, assim, engraçado, hoje
em dia, qual o tipo de arte contemporânea que você gosta? Eu
não sei dizer.
Então, hoje em dia, eu não sei dizer para você: arte contemporânea? Não tenho muito interesse em arte contemporânea como
uma ferramenta, como um elemento dentro do meu trabalho. Eu
tenho um interesse paralelo, assim, como qualquer pessoa que não
é artista tem. Eu vou ao museu: acho bom, acho ruim, mas aquilo
não influencia, eu brindo àquilo, não observo muito, não.
Eu trabalho muito como curador, eu estou fazendo uma curadoria
de um evento enorme, aqui no Rio de Janeiro. Desde que comecei a
ser artista eu já fazia curadoria, e eu não sei dizer; porque quando
você dirige, você olha para frente, para o para-brisa, e o retrovisor.
Você não fica olhando para os lados – se você ficar olhando para os
lados bate o carro. Então, quem está fazendo o mesmo que você,
você sente ali na visão periférica, mas isso não vai influenciar o seu
destino. Você tem que ir para onde quer ir.
Eu fico pensando muito mais em coisas que não tem nada a ver com
arte. Uma vez, fizeram uma exposição de motocicletas no Museu
Guggenheim e a mídia caiu de pau – mas eu adorei a exposição de
motocicletas. Eu ficava injuriado: “Poxa, devia ter mais exposição
de motocicletas no museu, eu adoro motocicletas”. Por que não
pode ter?
Eu fiz uma exposição agora, no MoMA67, em que eu misturei o
departamento de design. Então você tinha uma pá de Duchamp, e
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do lado tinha um balde do departamento de design; um balde verde
que não era arte – era um balde. Mas não tinha etiqueta, então você
tinha que lidar com aquilo pelo que era, o valor era todo, você tinha
que negociar cada vez.
O negócio de influência é uma coisa muito difícil, pois para começar
a falar de um artista que me influenciou, é mais fácil falar dos que
não influenciaram, porque você está aberto a tudo, eu acho que
essa é a melhor política.
Não é bem uma pergunta, mas algo que eu queria
que você falasse um pouquinho mais. Eu li numa entrevista
sua, uma vez, você dizendo que todo curador gostaria que
a arte fosse tão popular quanto o futebol – e isso é um
grande desafio.
pouquinho mais disso, dessa coisa de atingir um grande
público e de apreciar.
Eu acho que o importante é você não permitir o que, às vezes, é
um fenômeno: que a arte se torne uma espécie de ferramenta de
elitismo cultural; deixar acontecer um pouco como na advocacia,
no Direito, onde há uma linguagem tão difícil, tão complicada que
quem não é advogado precisa contratar um advogado. Eu acho que
se criou, ali, uma linguagem, um jargão tão complicado para lidar
com coisas tão simples.
Aluno:
Eu acho que você atinge todos, na arte, quando o seu tema
é universal ou quando há um decantamento da ideia que
chega a uma questão simples que todos possam identificar
ou apreciar – e eu vejo isso no seu trabalho, principalmente
por esse elemento da visualidade, da percepção, que é uma
coisa que está ao alcance de todo mundo. E é uma coisa
que impressiona; então, eu só queria que você falasse um
Estamos falando de coisas visuais, que têm uma instantaneidade,
uma espontaneidade, naquilo que está na sua frente, que vai contra
a ideia de um texto. Vai até contra a ideia de uma interpretação
absoluta; e, aquilo que o texto traz – a ideia que arte tem que ser
explicada – é muito ruim. Não tem que ser explicada, a arte é uma
coisa para você sentir, não é para você entender.
E sentir é uma coisa que todo mundo é capaz. É óbvio que, se você
entende uma coisa um pouco melhor, você vai sentir ela de formas diferentes, mas isso é uma consequência daquele momento
em que você começa a sentir aquilo que o Waltercio chama de
curadorismo.
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Existe isso: às vezes, parece quase uma necessidade daquilo ser um
pouco mais do que é; porque, às vezes, é tão pouco, é tão simples
e óbvio, e tão primitivo. Então, aquilo é embalsamado e decorado
com uma aura de importância, de erudição. Mas isso só serve para
afastar as pessoas.
o público. Como? Não tem por que ser assim. Eu, justamente, acho
que conseguir essa comunicação direta é o mais importante. E aí,
o artista começa a dar essa abertura para certos parasitas virem
se acoplar e sugar o sangue da produção artística.
Eu fico imaginando, porque as pessoas que estão envolvidas com
arte são bastante inseguras, na maioria dos casos – eu tenho que
confessar isso. Mas o que é esse negócio de arte? Tem muita gente
que não gosta, tem muita gente que acha que não serve para nada,
tem muita gente que quer acabar, não quer dar dinheiro, não quer
fazer museu.
Então, isso está sendo o tempo todo questionado, desde que arte é
arte, e aí, para se blindar, para se proteger desse questionamento,
começa a se criar uma estrutura. “Você não entende, você não gosta
porque você não sabe, porque você é burro.” Aquela história de
artista falar: o colecionador é um idiota, o público não sabe nada,
eu estou além do meu tempo – isso é tudo besteira.
Eu acho que o cerne desse problema é o artista: ele mesmo. O
momento em que o artista começa a imaginar que existe uma necessidade de interpretação do trabalho e um intermediário entre ele e
Eu não vou falar que curadores e críticos são parasitas – mas muitos
deles são, sabe? Contudo, tem muita gente que realmente tem a
intenção de abrir o diálogo, ou pessoas que agem como uma espécie de meteorologista cultural; que pegam tendências e tentam
aglomerar, até para dar mais sentido. Tem crítico e curador que
me ensinou muita coisa, me fez ver coisas. Mas outros ficam só
tentando criar discurso para si mesmo.
E existe essa coisa do curadorismo, dessa criação de discursos que
servem para criar uma espécie de diferencial entre quem vive no
mundo da arte e os demais. A gente faz isso o tempo todo, quando
compra um carro caro, quando põe uma roupa chique – é ostentação
isso, e ostentação intelectual não é pior do que ostentação material.
Se você se cobre de ouro, anda num BMW ou tem a sua bolsa Hermès, sabe? Aquela mulher é vulgar, mas também existe vulgaridade
em começar a falar difícil só para parecer mais importante ou mais
inteligente, isso também é vulgar. Eu acho que a gente tem que
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“Então, a pessoa se aproxima
e vê o material, se afasta e vê
o mental. Entre o material e
o mental tem um momento
em que clica, a coisa se
transforma, e você, então,
percebe que não é o material
nem o mental, é exatamente
aquele ponto onde uma coisa
se transforma em outra.”
saber disso; aliás, não só nós, todo mundo tem que saber disso, que
existe essa vulgaridade, é horrível. E isso é uma coisa muito predominante: você está no mundo da arte de uma maneira muito feia.
O que é legal do Brasil não é só essa promessa grande que o país
está vivendo, hoje em dia, esse ufanismo – até um pouco exagerado, às vezes –, mas a ideia de arte contemporânea no nosso país,
nesse momento, ainda é um conceito em formação. Não está tão
engessado dentro dos parâmetros, vamos dizer, europeus ou norte-americanos. Ali tem todo um mercado, tem toda uma estrutura
muito mais poderosa em torno da produção artística, que limita
um pouco a sua capacidade de expandir ou de mexer com esses
conceitos da maneira que você desejar.
Aqui, no Brasil, por ser um conceito em formação, a gente tem
muita responsabilidade e muita influência nisso. Eu vou fazer 49
anos, agora, eu sou mais velho que o governador. E eu vivi tanto
quanto ele, e o que é legal de ficar velho é que você fala e as pessoas
escutam. Você fala com pessoas mais novas: “Respeite os mais
velhos aí, governador”. (Risos)
Eu acho que o que também é legal é que você começa a enxergar
a possibilidade de se engajar em discursos que vão além da sua
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produção como artista. Eu acho que o que está acontecendo no Rio
é muito legal – eu estava comentando isso –, tem uma secretaria
de educação que é engajada, estão vendo a produção artística do
ponto de vista positivo e isso pode até vir a ser um fator de desenvolvimento econômico, mesmo.
minha filha não sabe quem é o Frank Gehry – que é um arquiteto
famoso –, mas se o Homer Simpson amassa um papel, joga no chão,
e o cara vai lá e faz um prédio daquilo, todo mundo dá risada. Quem
conhece o arquiteto sabe: mas quem não conhece, acha graça em
fazer um prédio de um pedaço de papel.
Mas isso não pode ser feito a partir de uma plataforma elitista. Eu
acho que a gente tem que abrir a cabeça, ao fazer arte, pois para um
trabalho ser inteligente, ele tem que ser inteligente em vários níveis.
Eu chamo isso de “fenômeno dos Simpsons”. Eu tenho um amigo
que é professor de Literatura em Harvard – uma das pessoas mais
inteligentes que eu conheço. Tenho um outro que fazia pesquisa
para o Michel Foucault e que dá aula na Brown. Esses dois amigos
têm toda a coleção dos Simpsons – eles adoram os Simpsons. Minha
filha de quatro anos e meio adora os Simpsons.
Então, eu acho que arte inteligente tem que ter consciência da
capacidade de atingir pessoas de diferentes níveis – intelectual,
social e econômico. Eu acho que, primeiro, a gente tem que tomar
muito cuidado, se policiar muito em relação a elitismos intelectuais.
Ostentação intelectual é algo muito feio.
Eu acho incrível você criar um produto que consegue atingir a elite
intelectual do país e também uma criança de quatro anos e meio.
Tem tudo ali, tem humor que é mecânico, que é pastelão, que é
besta, que é nonsense, e também tem coisas como o Bart Simpson
citando Nietzsche outro dia.
O Jasper Johns e o Frank Gehry já participaram dos Simpsons. A
Tem uma coisa engraçada: parece que o artista sabe mais de política
do que o padeiro, o policial, ou o enfermeiro, não é? Uma onda de
arte política invadiu os Estados Unidos, no começo dos anos 90, por
exemplo, uma coisa horrível; todos os artistas falando da Somália,
falando disso, falando daquilo.
Cara, você não sabe nada. Eu acho que o artista está muito no
mundo da Lua, ele sabe menos do que o padeiro, do que o policial.
Não é que ele saiba mais – ele sabe menos. Por isso eu acho que, para
ser um bom artista, tenho que ir para Parada de Lucas, tenho que
ir na Maré, tenho que sair desses túneis daqui. Eu não vou negar:
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eu adoro a Zona Sul, adoro comer num restaurante caro, adoro
viajar de business, adoro ficar em hotel legal – todo mundo gosta.
Não vou ser hipócrita, hipocrisia é outro problema. Eu sempre quis:
eu fui pobre, eu não tenho problema nenhum com isso. Essa coisa
de fazer apologia da miséria é coisa de intelectual, quem falou isso
foi o Joãosinho Trinta, mas não dá.
A gente não sabe mais do que ninguém. Talvez a gente, por achar
que sente mais as coisas que os outros, tenha essa autoridade. Mas
não sente, isso é outro tipo de ostentação intelectual do artista, eu
acho que temos que sempre partir do principio de que somos seres
humanos como quaisquer outros. Somos iguais, a mesma coisa, e
é a intensidade da experiência que a gente vive, na nossa relação
com a sociedade, na nossa relação no mundo, que vai produzir
coisas, objetos ou mensagens mais importantes. E não o quanto
nós somos melhores que os outros.
Notas
1. Grupo de teatro formado no Rio de Janeiro em 1974, com um trabalho que se definia
pela desconstrução da dramaturgia, a interpretação despojada e a criação coletiva. 2. Termo francês que significa “aquilo que está à frente”, e que foi adotado por uma série
de movimentos artísticos e políticos do final do século XIX e início do século XX.
3. OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo). Grupo formado na década
de 70 pelos principais países produtores de petróleo, para unificar o preço do produto,
organizando um cartel internacional.
4. MUNIZ, Vik. Vik. Exposição individual realizada no Museu de Arte Moderna, Rio de
Janeiro, 28 de janeiro a 22 de março de 2009.
5. MUNIZ, Vik. Relicário. Exposição individual realizada na Sala de Cultura Laura
Alvim, Rio de Janeiro, 13 de outubro a 5 de dezembro de 2010.
6. MUNIZ, Vik. Caveira de palhaço, 1989. Plástico moldável, tinta, base de madeira e
metal. 25,40 x 20,30 x 20,30 cm.
7. MUNIZ, Vik. Suvenir 18 (Console Ashanti), 1989. Madeira, fios elétricos, gesso.
40,60 x 27,90 x 27,90 cm
8. MUNIZ, Vik. Sem título (Pódio Balançante), 1988. Madeira laqueada.
61 x 139,70 x 93,20 cm.
9. MUNIZ, Vik. Cafeteira pré-colombiana, 1989. Cerâmica. 27,90 x 20,30 x 20,30 cm.
10. MUNIZ, Vik. Mesa Bonsai, 1990. Vaso de cerâmica, madeira, musgo, pedras.
35,60 x 35,60 x 15,20 cm.
11. MUNIZ, Vik. O grande livro, 1989. Enciclopédia inteira encadernada em couro.
86,60 x 27,90 x 21 cm.
12. MUNIZ, Vik. Meia lápide, 1991. Meia lápide de mármore.
13. Conceito criado por Roland Barthes, que define um fenômeno no qual sujeito e
fotografia se afetam. É utilizado para nomear um “detalhe” na fotografia que chama a
atenção daquele que a observa.
14. MUNIZ, Vik. The Best of Life. Exposição individual realizada na galeria Wooster
Gardens, Nova York, 1996.
15. MUNIZ, Vik. Nuvem e o remador, 1993.
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VI K MU N I Z
16. Figura idealizada pelo cristalógrafo suíço Louis Albert Necker. Publicada pela
primeira vez em um artigo de 1832, mostra um cubo se alternando em profundidade,
essa sensação é provocada por uma ilusão de ótica.
17. MUNIZ, Vik. Duas vacas, 1997. Cópia fotográfica de emulsão de prata. Edição de 5.
35,60 x 27,90 cm.
18. PICASSO, Pablo. Guernica, 1937. Óleo sobre tela. 350 x 782 cm. Museo Nacional Reina
Sofía – Madrid.
35. MUNIZ, Vik. JORGE, 2003.
36. MUNIZ, Vik. Série Imagens de revista, 2003.
37. MUNIZ, Vik. A rosa branca, 2003.
38. MUNIZ, Vik. Autorretrato (Estou muito triste para te contar, a partir de Bas Jan Ader),
2003.
39. MUNIZ, Vik. Série Imagens de diamantes, 2004.
19. PICASSO, Pablo. Les Demoiselles d’Avignon, 1907. Óleo sobre tela. 243,9 x 233,7 cm.
MoMA, Nova York.
40. MUNIZ, Vik. Drácula, 2004.
20. MUNIZ, Vik. Uma rosa é uma rosa, 1995. Cópia fotográfica de emulsão de prata com
viragem. Edição de 5 com 3 PAs. 45 x 45 cm.
42. MUNIZ, Vik. Narciso, a partir de Caravaggio, 2005.
21. O Telescópio Espacial Hubble é um satélite astronômico artificial não tripulado que
transporta um grande telescópio para a luz visível e infravermelha. Foi lançado pela
agência espacial estadunidense (NASA) em 24 de abril de 1990.
44. MUNIZ, Vik. Atlas, a partir de Giovanni Francesco Barbieri, 2007.
22. MUNIZ, Vik. Série Imagens de linha, 1995.
23. MUNIZ, Vik. Série Crianças de açúcar, 1996.
24. New Photography 13. Exposição coletiva realizada no Museu de Arte Moderna de Nova
York, EUA, 1997.
41. MUNIZ, Vik. Frankstein, 2004.
43. MUNIZ, Vik. Saturno devorando um filho, a partir de Francisco de Goya e Lucientes, 2005.
45. MUNIZ, Vik. WWW (MAPA-MÚNDI), 2008.
46. MUNIZ, Vik. Conceito espacial, Attesa, a partir de Lucio Fontana, 2008.
47. MUNIZ, Vik. A japonesa, a partir de Claude Monet, 2006.
48. MUNIZ, Vik. Série Quebra-cabeças górdios, 2008.
49. MUNIZ, Vik. Série Earthworks, 2002.
25. MUNIZ, Vik. Seeing is Believing. Exposição individual realizada no Centro
Internacional de Fotografia em Nova York, EUA, 1998.
50. MUNIZ, Vik. Tesoura (desenhos de Sarzedo), 2002.
26. MUNIZ, Vik. Série Imagens de chocolate, 1997.
52. MUNIZ, Vik. Nuvem nuvem, Manhattan, 2001.
27. MUNIZ, Vik. Série Imagens de poeira, 2000.
53. MUNIZ, Vik. Nuvem nuvem, 59th Bridge, 2002.
28. MUNIZ, Vik. The Things Themselves: Pictures of dust by Vik Muniz. Exposição
individual realizada no Whitney Museum of American Art em Nova York, EUA, 2001.
29. MUNIZ, Vik. Série Imagens de tinta, 2000.
30. MUNIZ, Vik. Série Cárceres – a partir de Piranesi, 2002.
31. PIRANESI, Giovanni Battista. Carceri d’invenzione, 1749-1750.
32. MUNIZ, Vik. LUIZ, 2003.
33. MUNIZ, Vik. JOÃO II, 2003.
34. MUNIZ, Vik. JOÃO I, 2003.
51. MUNIZ, Vik. Alvo (Fazendão, Mina de ferro), 2005.
54. MUNIZ, Vik. Nuvem nuvem, Miami, 2006.
55. MUNIZ, Vik. Série Imagens de papel, 2008.
56. MUNIZ, Vik. Série Versos, 2008.
57. PICASSO, Pablo. Passadeira, 1904. Óleo sobre tela. 116.2 x 73 cm.
The Solomon Guggenheim Foundation, Nova York.
58. CÉZANNE, Paul. Mont Sainte-Victoire, 1885-1887. Óleo sobre tela
59. MUNIZ, Vik. A noite estrelada (Van Gogh), 2008. Objeto em técnica mista. Edição de 2
com 2 PAs. 73,70 x 92,10 x 30,50 cm.
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VI K MU N I Z
60. MUNIZ, Vik. Série Imagens de lixo, 2008.
61. LIXO EXTRAORDINÁRIO. Direção de Lucy Walker e codireção de João Jardim e
Karen Harley. Londres: Almega projects e O2 filmes, 2009. Dvd (99 min) son., color.
62. MUNIZ, Vik; LAGO, Pedro Corrêa (Org.). Vik Muniz: Obra completa | 1987-2009. Rio
de Janeiro: Capivara, 2009. 712 p.
63. MUNIZ, Vik. Atlas (Carlão), 2008.
64. MUNIZ, Vik. O semeador (Zumbi), 2008.
65. MUNIZ, Vik. Marat (Sebastião). 2008.
66. INCRIVEIS, Os. (intérprete) Dom e Ravel (Compositores) “Eu te amo meu Brasil”.
Portugal: RCA Records, 1970.
67. MUNIZ, Vik. Artist’s Choice: Vik Muniz, Rebus. Exposição individual realizada no
Museum of Modern Art (MoMA), Nova York, 11 de dezembro de 2008 a 23 de fevereiro
de 2009.
Saiba mais
http://www.vikmuniz.net/
MUNIZ, Vik; LAGO, Pedro Correa do. (Org). Vik Muniz: obra completa 1987-2009. Rio de
Janeiro: Capivara. 2009. 712 p.
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WALT ERCIO CA LDA S
Quando me coloco na situação de conversar sobre meus trabalhos,
vejo dois desafios. Primeiramente tenho a certeza de que quem
vai falar com vocês não é exatamente o artista, porque um artista,
fala através da sua obra, isto é, prefere um determinado tipo de
linguagem para, através dela, expressar suas ideias. Mas, segundo
desafio, quando me proponho a falar de minhas ideias, isto já é uma
outra linguagem. Essa pessoa que fala de suas ideias não necessariamente é a mesma pessoa que dispõe e delibera, como artista,
da linguagem plástica e dos meios físicos para realizar uma obra,
e já que não estou aqui simplesmente para mostrar minhas obras
de arte, começo deliberadamente evitando passar para vocês uma
informação visual através de qualquer projeção, Power–Point ou
outro tipo de reprodução eletrônica, e isto tem um motivo: uma
das questões fundamentais do trabalho que realizo é , justamente,
preservar esta dúvida, e por que não dizer, certa crítica das imagens
representadas. E o que eu quero dizer com isso? Se não é possível
apresentar o trabalho através dos meios físicos que o justificam e
da linguagem própria dessas obras, suas representações são inadequadas e estão imediatamente sob suspeita. Aceito, com muitas
restrições, as fotografias, que reduzem a superfícies planas objetos
tridimensionais, pois creio que a experiência plástica se dá através
da relação das pessoas com os objetos físicos, sejam estes esculturas ou pinturas. Essa relação é fundamental para a explicitação da
linguagem que está sendo deflagrada. Digo isto porque, pela forma e
frequência como atualmente as informações nos são apresentadas,
tendemos a confundir a representação com a realidade, aceitando
as imagens que interpretam o fato como se fossem o fato mesmo.
Mas elas são, na verdade, um outro fato, outra forma do real, com
significações que moldam novas afirmativas próprias da linguagem.
Lembro que o cineasta Jean-Luc Godard certa vez, tarde da noite,
telefonou aflito para um fabricante de câmeras cinematográficas,
propondo a construção de uma máquina que pudesse atender às
exigências do novo filme que planejava, pois este não era possível
com as câmeras que existiam no mercado. Essa história parece
estar na contramão do que acontece hoje, quando o normal é escolhermos ou nos adaptarmos às inúmeras e infinitas opções que
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C A DER N OS EAV
WALT ERCI O CAL DAS
nos são oferecidas. A tecnologia estaria nos vendendo, portanto,
suas limitações como se fossem vantagens. Dentro de ambientes
tecnológicos essa ilusão pode ser aceita, mas não acho que deva ser
admitida por pessoas que trabalham de forma criativa, por artistas
que têm a prerrogativa e as vantagens da invenção. Acredito que
a autonomia da arte se dá, na prática, exatamente por esta insistência em escapar dos limites pragmáticos de sua aplicação, e isto
em beneficio de sua própria liberdade. O que entendo como arte
é muito diferente da arte aplicada, a mesma diferença que vejo
entre ciência e tecnologia. A tecnologia é hoje um fetiche e não
pode haver dúvida de que ela é realmente útil em grande parte
das atividades humanas, mas vejo nisto, também, um problema e
este assunto é complexo demais para ser tratado aqui, de forma tão
rápida. Uma de minhas suspeitas deve-se ao fato de negligenciarmos uma conquista em nome de uma crença moderna na eficácia
da vida vertiginosa. Conquistado arduamente em cada decisão ou
dúvida humana, este tesouro é a subjetividade, esta capacidade que
determina o grau de sobrevivência das obras de arte e que, parece,
está sendo esquecida até mesmo por nós, os artistas. É que muitos
daqueles que trabalham com cultura tentam nos fazer acreditar
que tratamos o mesmo material. Talvez seja necessário estabelecer
agora a diferença entre o que é sistematização do conhecimento,
um esforço meritório da cultura, e a imaginação das hipóteses
desconhecidas, que impulsiona e justifica as experiências artísticas.
Tenho certeza que os artistas não trabalham apenas com coisas que
conhecem, mas com novas situações, ainda mais desconhecidas, e
a qualidade desse novo desconhecimento irá produzir ainda mais
arte, mais linguagem artística. Vimos anteriormente que a presença
inequívoca da tecnologia se dá de tal forma a confundir os fatos
com suas versões. Façamos um rápido exercício especulativo sobre
um dos aspectos que relaciona as gestões culturais e a atividade
artística: as mostras de arte. No primeiro dia de uma exposição em
uma galeria, abrem-se as portas para o público. Neste momento, a
obra dos artistas, suas pinturas, suas esculturas e desenhos ficam
disponíveis para venda. A partir daí, o artista corre o risco de vender
ou não a sua obra. Se achamos que a questão começa aí estamos
enganados, algo já está acontecendo e é esclarecedor: dezessete
outras atividades, profissões, já ganharam dinheiro com esta mesma
exposição. Vejam que aqui importa pouco a qualidade da obra, o
mérito dos trabalhos expostos, e o que está em jogo é a quantidade
de empregos que a situação indiretamente propiciou: o profissional
que fez as molduras, o crítico que escreveu o texto, a loja que vendeu os materiais utilizados na mostra, os anúncios nas revistas, a
impressão dos catálogos e seu respectivo projeto gráfico, tradutores
e revisores, divulgadores e fotógrafos, e o staff da galeria, para citar
apenas alguns. E todos esses profissionais já teriam recebido suas
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WALT ERCI O CAL DAS
remunerações, não correndo o risco do artista, que pode até mesmo
não ter a sorte de ver o seu trabalho vendido. A situação, que aparece
aqui como um exemplo, sugere que o mercado de arte opera hoje
numa sequência, digamos, automática de eventos e isto é um fato da
cultura que está relacionado diretamente à produção dos artistas.
Mas estou convicto de que os artistas não podem simplesmente
aceitar ser mais uma profissão nesta lista, afinal podem exercer a
liberdade de pensar criticamente e não confundir eventos culturais
com o seu trabalho realizado anteriormente, com liberdade de
linguagem, no silêncio do atêlie. Através de obras que pensam esta
e outras situações semelhantes, se faz necessária uma linguagem
plástica inovadora e profundamente crítica, não apenas voltada
para uma audiência e para as “vantagens da interatividade”. Mais
do que nunca, é necessária uma defesa radical das poéticas pessoais,
capazes de desafios imaginários efetivos, onde as exceções – e tudo
no mundo é exceção – desqualifiquem com humor toda e qualquer
operação que utilize a máscara arrogante dessa “cultura de resultados”. Essa atitude, essa defesa intransigente da subjetividade,
lutando contra as limitações da realidade, é fundamental para a
construção de uma arte autônoma e atenta aos desafios da época.
E que os artistas se dediquem menos à produção de “cultura” e
mais às possibilidades desconhecidas. Estas sim serão a razão e a
justificativa de um embate estimulante e criativo com a realidade.
Era o que queria dizer. Talvez, a partir daí, possamos desenvolver
alguma coisa, começar uma conversa.
Gostaria que você discorresse um pouco
sobre o tema “arte e política”.
Aluno:
Existem várias formas de se pensar a relação entre arte e política, como existem várias formas de ver as relações entre arte e
sociedade, e receio que abordemos este assunto de uma forma
viciada, sob o estigma moral do compromisso. É óbvio que todo
artista, como profissional, amador ou cidadão, participa de alguma
maneira do que habitualmente chamamos de “relações sociais”.
Mas o que vemos hoje é uma constante ideologização da forma de
ver estas relações e algumas delas parecem não reconhecer na arte
sua qualidade de linguagem autônoma. É como se algumas pessoas
estivessem achando que política é uma atividade e arte outra, e
que a relação entre elas estaria automaticamente estabelecida
através dessa palavra mágica chamada “social”. Na realidade, há
uma diferença muito grande entre a maneira como a política trata
a coisa pública, e a arte, que, por sua vez, é um produto da sociedade. Há uma diferença considerável entre as qualidades artísticas
de um quadro de Matisse e a forma como um museu apresenta
sua interpretação curatorial e a política cultural na mostra onde
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WALT ERCI O CAL DAS
estão esses mesmos quadros. A experiência de visitar um museu,
experimentando novas significações e relações propostas pelas
curadorias, acrescenta um novo fato. Por outro lado, se dissermos
apressadamente que não há qualquer relação entre arte e política,
como é possível que uma linguagem inventada por humanos não
tenha nada a ver com a realidade que os cerca? Mas se a arte pode
ser praticada, questionando até mesmo seus parâmetros artísticos
e ideológicos, já temos aí um fato muito interessante: será sempre
necessária e eficaz uma linguagem que trata criticamente, e com
liberdade, de sua própria inserção no código social, alterando-o.
Portanto, como você vê, são várias as formas de abordar esta questão
e a mais pobre dessas formas relaciona política e arte mecanicamente, pois não nos permite ver o quanto de criatividade existe na
política e o quanto de política existe na arte. E, nesses assuntos,
receio que algumas respostas sejam bem desapontadoras.
Se eu não me engano, você começou
a estudar com Ivan Serpa, não foi isso?
Aluno:
Sim.
Relacionando com essa última pergunta que foi
feita, sobre a relação de arte e política, o MAM tem uma
Aluno:
história, o surgimento do neoconcretismo que se deu ali,
e eu imagino que você deva ter convivido com os artistas
que participaram desse processo, não é? Eu queria saber
qual foi a sua relação naquele momento com aqueles artistas,
como era produzir nesse contexto, se o seu trabalho tem
alguma proximidade com as questões daqueles artistas,
como essa relação de arte política naquele momento, em sua
opinião, acontecia, e como pode ser comparado com o que
você estava falando agora sobre essa relação dicotômica e
maniqueísta de arte e política.
Bom, existia certa dependência entre conseguir fazer arte e sobreviver como cidadão. Na realidade, estávamos todos lutando pela
liberdade, artistas inclusive, e éramos todos cidadãos; a relação
entre arte e política, como você vê, era real e não, exatamente,
conceitual. A luta para sobreviver física e intelectualmente numa
situação adversa é muito mais do que uma ideia, estávamos lutando
para poder fazer o que quiséssemos, não necessariamente nos
orientando por uma vertente ideológica em direção a isto ou aquilo.
Alguns artistas seguiram, até mesmo, esse caminho, mas essa não
era a única opção. Havia que se inventar novas formas de luta. Um
outro aspecto que marcava essa diferença era o fato de que havia
uma maior interdependência entre as várias artes e seus artistas.
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O Museu de Arte Moderna era um lugar de confraternização para
artistas plásticos, músicos, poetas, cineastas. A Cinemateca do
MAM era importantíssima, os encontros no bar eram frequentados
por artistas de várias áreas, afinal era a expressão como um todo
que estava em risco, não é? E cada conquista era um avanço, mais
uma possibilidade liberada. Hoje, vistas de longe, parecem temas
quase abstratos, mas as conquistas e esforços moldaram o nosso
estímulo, surgiam como condições da prática artística. Particularmente, optei por pensar a política da arte e seus significados ao invés
de praticar a política dos partidos. Em arte podemos confrontar
a linguagem e usar muitos materiais, inventar mais linguagem é
muito mais estimulante do que nos submeter a ela.
Você falou sobre a tecnologia, sobre a ideia de se
vender uma limitação como se fosse uma vantagem.
Vejo isso no cinema, que é a minha área, estamos chegando
num limite em que se tem tantas possibilidades que talvez
ultrapassar as barreiras dessas tecnologias seja exatamente
diminuir a quantidade do uso delas. Por exemplo, o uso
cada vez mais frequente do 3D acaba mudando o cinema
de uma maneira que ele deixa de ser o “cinema” antes
conhecido. Hoje, optar por filmar em película é usar opções
que não necessitam dessa tecnologia toda, ao invés de tentar
Aluno:
ultrapassá-la. Gostaria que você comentasse um pouco mais
sobre isso.
Você toca em um problema muito interessante. Há uma perda de
linguagem na situação descrita, ou você se submete a essa perda de
linguagem como se isto fosse uma vantagem ou continua a buscar
na linguagem novas alternativas, evitando a visão estreita do entretenimento. Na realidade, o que você está dizendo é que esperamos
mais da arte do que a celebração da eficiência da tecnologia, não é?
E que nós artistas teríamos a responsabilidade utópica, mas neste
caso urgente, de “desoperacionalizar” o mundo, acrescentando
esforços para que este mundo desconstruído se torne, ao mesmo
tempo, mais possível e menos provável. Nesse sentido, não nos
interessaria a transformação da realidade em expressão, o que seria
impossível, mas que a expressão fosse uma prerrogativa humana
tão absolutamente fundamental, infinita, e que não seria domínio
de ninguém. Talvez estejamos perdendo a noção dessas amplitudes,
seduzidos num mundo hoje tão cercado de possibilidades. Não me
esqueço da primeira vez em que fui apresentado ao computador;
alguém disse: “Esta maquina é fantástica, pode reproduzir cinco mil
cores”. E perguntei, quase imediatamente: “Mas só cinco mil cores?”
A razão de minha pergunta estava na lembrança de uma aula de Ivan
Serpa em 1963, na qual ele nos informava que, num estudo das cores
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utilizadas por Matisse, haviam sido encontrados cinco mil tons de
amarelo. Vejo aqui mais um motivo para que os esforços artísticos
estejam sempre voltados para a produção de novas possibilidades,
e não apenas para as representações de significados. Nos cabe uma
reivindicação que nunca foi feita, nos cabe uma reivindicação que
temos que inventar. Melhorar a qualidade do desconhecido talvez
seja a grande aventura da subjetividade artística.
decido encontrar a melhor forma possível para o que pretendo.
E a forma encontrada pode, até mesmo, alterar o que pretendia
inicialmente. Deixe-me acrescentar que quando entro em uma
exposição qualquer e percebo o artista querendo me bajular com
suas intenções, isto me incomoda muito. Ou se ele pretende que
posso sentir algo relativo ao que ele espera, a situação fica ainda
mais desconfortável. Em momentos como esse, estamos diante
do mais ingênuo populismo estético. Já a minha intenção, devo
esclarecer, não é criar uma empatia com o espectador, nem ter
a pretensão de tentar identificá-lo com a obra, mas apresentar
o que penso de forma clara para que, aí sim, na liberdade de sua
disponibilidade, ele possa estabelecer, ou não, uma relação com
aquilo que está sendo visto. Essa é a minha maneira de respeitar o espectador. Talvez tenhamos uma versão muito restrita do
que possa ser compartilhar sentimentos, mas a sensibilidade é
traduzida diferentemente de pessoa para pessoa, e seus interesses também. Lygia Clark disse em uma oportunidade que o
cérebro também é uma víscera. E Einstein, com a língua de fora,
nos lembra que pensar também é uma sensação... e boa. Talvez
tenhamos sempre uma versão muito incompleta do que é sensação. Certamente, me emociono no processo de realizar uma
exposição, tenho meu sentimento colocado ali, mas também não
tenho dúvida: faço o que sinto, mas, também, o que penso, o que
Eu queria fazer uma pergunta sobre o seu trabalho
Salas e abismos1. Eu fui ver a exposição, que me causou um
impacto psicológico muito grande, a predominância do
branco e a assepsia dos materiais... Eu achei bastante árido,
me deu uma coisa de vazio, de solidão, e queria saber como
é que você pensa nesse efeito psicológico no espectador
quando você conceitua sua instalação, as instalações espaciais,
como você imagina que quem vê vá refletir sobre a sua obra
ou vá viajar em cima dela ou o
que vai sentir.
Aluno:
Nunca me preocuparam ideias de pureza, limpeza, ou qualquer
dessas profilaxias. Por outro lado, sempre tive obsessão pela clareza e pelo que chamo “teor de evidência” das coisas. Clareza, para
mim, é tudo aquilo que é possível realizar no momento em que
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interpreto, o que suspeito, o que imagino, o que adivinho, o que
quero, e tudo isso ao mesmo tempo. E o trabalho é a soma dessas
vontades todas. Uma vez, alguém me disse que achava o meu trabalho frio, e eu lhe disse que não gostava de calor e que não havia
necessidade de mais um artista quente em um país tropical, não
me interessava ser um artista definido pela temperatura. Busco a
clareza explícita das coisas observando a evidência inaugural dos
objetos e suas imagens.
realizar uma obra posterior àquela declaração, seria bem-sucedido
apenas se ressuscitasse o suposto cadáver? Desculpem a sugestão
maliciosa, mas quando nasci, em 1946, era esta hipótese divertida,
da morte da arte, que agonizava. Cem anos depois, vimos assistindo
uma “ressurreição” em cada artista interessante que aparece, e
não são poucos. Certa vez, em uma livraria, um estranho ao meu
lado dizia, indignado, que o artista Marcel Duchamp com as suas
“atitudes críticas” tinha acabado com a possibilidade da pintura.
Olhei para as estantes à nossa frente e observei: estávamos ambos
diante de uma estante com dezenas de livros de arte, 70% dos
artistas reproduzidos nesses livros vieram depois de Duchamp,
e 80% deles eram pintores. Bastava olhar para a estante à nossa
frente para desmentir o argumento. Portanto, a questão da morte
ou não da pintura me parece absolutamente falsa. A pintura só
morre em um mau artista, em um mau pintor; em um bom pintor
ela está sempre viva e atual. Neste sentido, qualquer bom artista
é contemporâneo. A saturação de todas as linguagens, inclusive
a linguagem da pintura, exige que cada pintor encontre uma
nova possibilidade significativa para sua prática artística. Essa é
a questão. Qual é a diferença, afinal, entre um mau quadro e uma
má instalação? Não há um melhor entre os dois. A superação da
linguagem em cada uma dessas práticas é igualmente necessária
e fundamental.
Quando você fala da perda de linguagem, como o
colega citou o exemplo do cinema, que está vivendo essa
enxurrada de uma técnica diferente da sua linguagem original,
se é que isso existe, você acredita que a pintura em algum
período já tenha passado por um momento semelhante, em
que se deparou com um desenvolvimento de alguma outra
técnica, e nesse ponto se voltou para um caminho... para si
mesmo, de repente, e aí deu nessa explosão de possibilidades
que você está narrando.
Aluno:
Vamos partir da hipótese de que a arte, em algum momento da
história, tenha sofrido um impacto que a desnaturalizou, como
afirmam com prazer – ou desprazer? – alguns fundamentalistas estéticos. Seguindo essa hipótese, todo e qualquer artista, ao
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“Talvez seja necessário
estabelecer agora a
diferença entre o que
é sistematização do
conhecimento, um esforço
meritório da cultura, e a
imaginação das hipóteses
desconhecidas, que
impulsiona e justifica as
experiências artísticas.”
Como você vê a formação, a necessidade de
formação de um artista hoje? Ainda existe isso? Porque talvez
a ideia da necessidade de uma escola de Belas-Artes tenha se
diluído bastante, ou não?
Aluno:
Boa pergunta. Havia uma única escola, a de Belas-Artes, que era
inadequada aos meus anseios, com uma postura estética tão antiga
que desestimulava quem não quisesse copiar a natureza. Um anseio
de atualidade, uma vontade de conhecer as obras mais modernas,
me levaram a preferir as aulas de Ivan Serpa no Museu de Arte
Moderna. O conhecimento deste artista sobre a história da arte era
muito maior do que poderíamos esperar em uma escola de Belas-Artes, e, além disso, eles eram artistas praticantes. Observe que, na
época, não tínhamos sequer um modelo do que era ser um artista,
apenas uma vaga noção de um estereótipo. Hoje, todos nós podemos
ter uma noção mais precisa do que é ser um artista. O modelo é relativamente simples, a imagem existe até mesmo no senso comum.
Lygia Clark parecia ter um perfil de dona de casa. Ivan Serpa era
um homem discreto que morava em um subúrbio e pintava num
ateliê dez vezes menor do que esta sala em que estamos, e cada um
deles tentava encontrar uma maneira de fazer a arte que queriam.
Essa invenção de modelos era o que caracterizava a produção e a
vontade de ser artista. Não por acaso, faço parte de uma geração
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sem slogan, nem sequer precisávamos ter um slogan propagandista
para viabilizar uma profissão. Cildo, Tunga, José Rezende, Barrio
e muitos outros, tivemos que inventar um artista para cada um
de nós. Hoje, isso parece ter mudado, só o Brasil deve lançar uma
média de trezentos artistas por ano formados em instituições e com
diplomas. Fui, por algum tempo, conselheiro do Rijksmuseum na
Holanda, que concedia a melhor bolsa para artistas do mundo, que,
nessa época, propiciava um estúdio, casa para moradia, dinheiro
para produção das obras, exposição para o trabalho realizado e
ainda dois mil dólares por mês para cada bolsista. Era como ganhar
na loteria, uma coisa inacreditável. E o que acontecia? Artistas da
África, por exemplo, que não tinham sequer televisão ou dinheiro
para comprar tinta anteriormente, eram catapultados a uma situação ideal e muitos não sobreviviam culturalmente ao impacto da
mudança. Essa situação gerava um tal descompasso nos artistas
que, ao invés de realizar obras de arte, começavam a se preocupar
com a complexidade da nova condição e a questão principal passava
a ser a manutenção do novo estatuto. E o que acontecia a partir
daquele momento? Os artistas, praticamente todos, passavam a
adotar as mesmas soluções plásticas que, julgavam, os manteria
na situação confortável em que se encontravam, e chamavam a
atenção as soluções que achavam para resolver esse dilema: todos
passavam a adotar meios audiovisuais e tecnologia de ponta, agora
disponíveis. E, ao invés de experimentarem novos desafios com as
possibilidades a seu dispor, aprenderam a justificar seus trabalhos
com um discurso elaborado, buscando a competência nas justificativas. Não sabiam exatamente o que faziam, mas explicavam de
uma maneira perfeita. O que aprendemos dessa situação é que
algumas escolas ensinam como se comportar como artista, parecer
artista, muito mais do que a abrir caminhos através da linguagem
artística. E isto é mais comum do que se imagina.
Eu queria que você falasse sobre a relação entre a
palavra e a representação no seu trabalho.
Aluno:
Trabalhamos com a linguagem plástica, e essa é a razão da nossa
atividade. Não é só o que fazemos que importa, mas a maneira como
o fazemos. Às vezes nem mesmo o tema importa: qualquer filme
do Hitchcock, que às vezes se baseia num pequeno livro de ficção
sem importância, pode resultar num filme magnífico. Para mim,
as palavras são um elemento a mais do trabalho, assim como todos
os materiais utilizados na realização da obra, ou melhor: eu não
hierarquizo matérias, eu as relaciono. Quando uma determinada
matéria aparece na obra, isso nunca é casual – ela é tratada em suas
características específicas, e isto quer dizer: a palavra surge na obra
como palavra mesmo, e não como metáfora de um assunto. Quando
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o aço aparece no trabalho, ele esta lá como aço mesmo, e não como
alguma coisa que quer ser representada pelo metal. De certa forma,
todos os materiais são protagonistas da mesma relação entre eles, o
que me interessa, na realidade, não são os materiais, mas a relação
e a possibilidade poética que possa existir entre as várias características dos materiais. As palavras teriam tanta importância, para
mim, quanto uma cor, uma cor teria tanta importância quanto o
bronze, o bronze tanta importância quanto o espaço, e o lugar que
o objeto ocupa tem tanta importância quanto a palavra, a cor ou a
forma. Meus esforços vão na direção de um objeto recíproco, no qual
todas as partes sejam tão significativas quanto o todo que resulta
dessas partes. Eu diria, mesmo, que desejo construir objetos que
se assemelhem ao local que ocupam.
estavam dizendo alguma coisa diferente e, para isto, buscavam
constantemente uma linguagem especifica. Então, passei a me
interessar pela natureza de seus esforços. Isto me impregnou de tal
maneira que passei a imaginar como seria a minha própria busca
de linguagem, a pensar no meu processo de busca como matéria
do interesse. Por quê? Porque me diverte saber como processar
uma ideia, ou um grupo de ideias, e ter a vontade de transformar
coisas que não existem em coisas que existem. Hoje, posso concluir
que o meu processo é a tentativa de entender o funcionamento
de como as coisas aparecem. E a arte é perfeita para isso. Tudo se
resume em acreditar que é possível transformar algo que não há
em algo que pode vir a ser, e que, efetivamente, aparecerá. Esta
hipótese é tão presente no meu trabalho que tenho a pretensão
de achar que mesmo um objeto já feito pode continuar a aparecer
constantemente. Este objeto que preserva, mesmo depois de concluído, sua capacidade inicial de aparecer parece ser o centro de
minha poética. E, quando falo assim, suspeito que a afirmação esteja
deliberadamente incompleta, mas isso me estimula ainda mais.
Certa vez Sérgio Camargo, tendo na mão uma de suas esculturas,
me disse: “Se eu não tivesse feito esse objeto, eu não teria agora o
prazer de olhá-lo”. Esta é a resposta mais clara desse processo. E
por quê? Porque a frase contempla a pessoa que desejou, a pessoa
que realizou e a pessoa que teve o prazer de experimentar o objeto
Gostaria que você falasse sobre o seu processo de
criação: você tem uma ideia, ou você escreve, e depois pensa
como vai transformar isso em uma instalação? Enfim, eu
gostaria de saber como funciona o processo do pensamento
até chegar ao trabalho final.
Aluno:
O processo? Comecei, como todos nós, visitando galerias de arte e
museus. Me interessei, primeiramente, pela arte e não pensava em
ser artista. Suspeitava que os artistas, através dos seus trabalhos,
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uma vez mais, e de uma forma nova, como autor/espectador do
feito. Essas três partes, projeto, realização e objeto final, estariam
perfeitamente harmônicas na observação de Camargo. Meu processo pretende deflagrar no objeto realizado o começo de outro,
o próximo, que trará ainda outro, e, assim, consecutivamente. É
esse o meu processo. E a intuição é apenas a mais desconhecida
das soluções imaginárias.
artistas devem quase tudo à sorte, simplesmente. Como sabemos, a
tentativa de utilizar a sorte é tão impossível quanto improvável. Só o
esforço, eu acho, pode dar a esse risco espiritual, antes mencionado,
uma significação. Eu vejo o artista personagem, este indivíduo que
tenta, através de uma profissão, se estabelecer no mercado, de
forma divertida e banal, quase patética. No final, há artistas que são
produtores e artistas que são simplesmente re-produtores. Vejo
estas duas figuras: um é um personagem que joga o jogo social e
simbólico da profissão, e o outro o artista que tenta algo mais, algo
que só existe quando se suspeita que exista. Lembrei-me de um
conto curioso, que se não é verdadeiro é muito apropriado aqui:
uma pessoa entra na casa onde habita um cientista, um homem da
razão, e, ao entrar, percebe que em cima da porta há uma ferradura.
O visitante perplexo questiona o cientista: “Mas o senhor acredita
mesmo nisso? Acredita que uma ferradura pode lhe trazer sorte
e mudar seu destino?” E o cientista responde: “Disseram-me que
este objeto funciona até mesmo para quem não acredita.” (Risos)
Você começou falando sobre o mecanismo em que
a arte circula, desde a exposição, a curadoria, a divulgação
de um trabalho, até a formação do artista. Gostaria que você
dissesse como você entende esse indivíduo, esse personagem
“artista” dentro da sociedade contemporânea.
Aluno:
Você usou bem a palavra, personagem. Como já disse, quando comecei a trabalhar com os objetos não sentia essa vontade meio difusa
de querer ser artista, não era simples assim, mas era certamente
uma decisão de risco. Talvez tenhamos perdido esta noção de risco
relacionada à prática artística, substituindo-a por uma vaga noção
de “profissionalismo”, a hipótese de que essa é uma atividade espiritual se confunde, agora, com o exercício de uma profissão. Várias
dessas tentativas profissionais passam por inúmeros fracassos e
poucos sucessos. Richard Serra chegou a dizer que na realidade os
Sobre a questão da representação. Em um dado
momento, você falou que não faz distinção entre palavra e
objeto. E eu queria saber mais sobre esses objetos, porque
a primeira coisa que eu vi sua foi um livro, o Manual da
ciência popular2, em uma livraria, e lembro que aquilo me
Aluno:
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impressionou muito, os objetos que tinham sido produzidos,
e eu não consegui esclarecer essa dúvida – me parece que
a própria produção daquele livro é o trabalho, ou aconteceu
uma exposição?
A obra é o livro.
Justamente, me pareceu ser o livro o trabalho, pois
ele lidava com a questão das fotografias de objetos e ficava
a dúvida se aqueles objetos foram realmente produzidos ou
foram manipulados. Então, o trabalho acabava lidando com
a questão da percepção, daquilo ser real ou não. Gostaria de
saber mais, se a questão da representação, para você, passa
por esse lugar da percepção fenomenológica.
Aluno:
Manual foi um livro feito um ano e meio depois de meu primeiro
livro, Aparelhos3. Naquela ocasião, não era hábito artistas terem
livros sobre suas obras, muitos colegas me aconselharam a não
fazê-lo, pois, sendo eu um jovem artista, este livro poderia inviabilizar prematuramente a minha obra. Pensei muito a respeito, e
embora tenha tido meu primeiro livro publicado aos 35 anos, hoje,
esta idade não parece mais ser prematura para nada. De qualquer
maneira, o desafio estava colocado e me fez pensar: “Por que será
que os livros destroem a obra dos artistas? Que questão é essa?”
E concluí que, na realidade, não eram os livros que destruíam a
obra dos artistas, mas a atitude que os artistas tinham para com
os livros que fechava possibilidades. Então, a questão passou a ser:
“Qual livro quero fazer?” Não um livro em que as pessoas dissessem : “Vejam o que esse artista fez”, mas um livro que, depois de
folheado, trouxesse a dúvida: “E agora, o que será que este artista
vai fazer?” Então, novamente estimulado, passei a imaginar o livro
que me convinha como proposta e plataforma de um futuro, um
livro que fosse mais do que um simples registro do que eu já havia
feito antes, e isso me fez ter uma visão crítica do livro. Não era mais
a representação dos trabalhos que estava em jogo, mas a realização de um objeto impresso, questionador e capaz de reproduzir
textos, objetos e suas fotografias de uma nova maneira. A questão
seguinte seria naturalmente: “Se estou interessado no processo
total da concepção de uma obra, então, devo me voltar, também,
para a maneira como os livros podem alterar este processo”. Foi
então que realizei o Manual da ciência popular, um livro que me
fez pensar a respeito dos trabalhos reproduzidos e suas respectivas fotografias, legendas, texto, etc. Nesta nova situação, algumas
fronteiras desapareceram e o trabalho era agora o próprio livro
e suas representações. Não é por acaso que o Manual da ciência
popular tem na capa a sua própria imagem. Anos mais tarde, diante
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do quadro Las meninas4, de Velázquez, pude perceber que aquela
obra tinha características jamais suspeitadas e ausentes das muitas
representações gráficas dessa pintura. O livro Velázquez5 se volta,
então, para esse espaço, para essa lacuna que existe entre o objeto
real e a imagem impressa, e tenta , mais uma vez, enfatizar a transformação que se dá na passagem de um estado a outro das imagens.
que valerão tanto que, paradoxalmente, não haverá mais quem as
compre, porque não haverá quem as venda. Nesse sentido, A vitória
de Samotrácia6 voltou à sua situação inicial: hoje, não há mais quem
a compre ou quem a venda. A obra percorreu todo o período, desde
que era grátis até a atualidade, quando não tem preço. O mercado
seria, portanto, apenas uma instância entre esses dois momentos.
(Não levem a sério esta hipótese, ela é apenas divertida.)
Você fala desde o início sobre a representação da sua
obra, e algo que me chamou a atenção foi que a forma como
você coloca a obra faz parte da sua linguagem. E quando a
obra sai do seu controle? Quando a obra é vendida ou na
posteridade, daqui a duzentos anos, como você lida com isso?
Com a sua obra depois que ela sai de suas mãos?
Aluno:
São três perguntas em uma só.
Você tem formação de engenheiro?
Aluno:
Não.
Aluno:
O que nos traz agora a uma questão legal. Quando se vende uma
obra, dá-se uma concessão patrimonial, mas não autoral. A legislação reconhece que, ao vender uma obra, abdicamos do patrimônio,
mas não da autoria. O que faz com que a obra tenha exatamente o
mesmo autor, seja em minha casa ou na casa de um colecionador.
Outra questão, mais ingênua, sugere que o mercado muda o sentido
da obra quando a adquire. Curiosamente todas as obras de arte, ou
pelo menos algumas obras-primas, passam do momento inicial
em que não valem nada para um outro momento consagrador em
De arquiteto?
Não. (Risos)
Aluno: Reformulando, não são mais três em uma só. Eu
imaginei que você tivesse formação em engenharia, porque
eu fui à sua exposição e, sei lá, veio isso na minha cabeça,
aí eu resolvi perguntar.
Eu estou interessando em saber por que você acha isso. (Risos)
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“Particularmente, optei por
pensar a política da arte e
seus significados ao invés
de praticar a política dos
partidos. Em arte podemos
confrontar a linguagem
e usar muitos materiais,
inventar mais linguagem é
muito mais estimulante do
que nos submeter a ela.”
Aluno:
Você está interessado?
Estou. (Risos)
Eu perguntei se você tem formação em engenharia
porque eu visitei o seu site e tive essa impressão... Eu
gostaria de saber qual é a relação entre a representação e a
significação por meio do título. Por exemplo, Orquestra7 é
uma instalação com diapasões na parede. Há uma associação
entre os diapasões e o título?
Aluno:
Creio que existe uma lacuna esclarecedora entre um instrumento e
a sonoridade que produz; uma incongruência entre o som emitido
por um saxofone e o próprio saxofone. Em 1982 a indústria fonográfica trabalhava com uma questão interessante. Os técnicos estavam
começando a achar que existia um certo limite na capacidade de
reproduzir sons através de microfones, esses captadores tinham
sido projetados para reproduzir fielmente o som dos instrumentos,
mas eram insatisfatórios. Depois de muito discutir, chegaram à
conclusão de que a engenharia dos microfones não deveria captar
o som de um saxofone, mas apenas, e tão somente, as frequências
emitidas pelo instrumento. Essa pequena diferença melhorou em
30% a qualidade das gravações. Compreender que entre o objeto
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saxofone e o objeto microfone existiam frequências foi fundamental. Talvez a escultura Orquestra, que você mencionou, tenha
alguma coisa a ver com esta historia.
O que eu tenho notado é que os artistas
contemporâneos trazem um discurso de que a arte é o que
torna o objeto arte. Eu queria saber se você acha que isso
é um aspecto mais contemporâneo, ou não, que isso
sempre aconteceu?
Aluno:
O público, hoje, me parece ser mais “conceitual” do que os artistas.
E o que eu quero dizer com isso? Que o público aceita as interpretações das obras, antes mesmo de se colocar disponível para
as obras, e isso aponta para três razões: há uma negligência dos
artistas que aceitam esta facilidade; a cumplicidade de um público
que parece aceitar essa situação, e uma ansiosidade curatorial que
pretende intermediar a relação entre os artistas e seu público.
Um público atônito, eu diria, vitimado por uma oferta imensa e
incessante de significados.
depois conhecer o original, por representação. Gostaria que
você comentasse a evocação desses nomes em seu trabalho,
enquanto artista brasileiro.
Na realidade, sempre partimos de uma questão regional para uma
questão universal. E, é natural que assim seja. É interessante como
tudo isso mudou. Num livro chamado Vozes do silêncio8 André
Malraux começa lembrando fatos curiosos, que Vermeer não
conhecia Rembrandt embora morassem a 150 km um do outro.
Isso é praticamente impossível hoje em dia, uma situação como
essa. Por quê? Porque acredito que o que aconteceu teria que acabar acontecendo, e o que não aconteceu nunca correu o risco de
acontecer. Então, quando vejo a história da arte como um fluxo
constante de rupturas, vejo um rio que não tem nascente e não
tem mar, e todos os artistas contribuindo para o movimento das
águas desse rio. Incluo a história da arte em minhas obras como se
fosse uma matéria, com efetivas possibilidades imaginárias, uma
prerrogativa de linguagem.
Começou a fazer muito sentido na minha vida uma
relação entre a gravidade e o artista, como uma metáfora das
limitações que a gente tem, algo que nos puxa pra baixo...
Gostaria de saber se você tem alguma opinião sobre isso.
Aluno:
Percebo nos seus trabalhos uma referência à pintura
e à escultura, como exemplo, em trabalhos com Giotto e
Velázquez. Eu cheguei até Giotto vendo um Giotto seu, para
Aluno:
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Mas nós, os artistas, temos uma vantagem: podemos de certa
forma utilizar a gravidade a nosso favor, não é mesmo? Escultores tratam exatamente dessa questão, do fato de que um objeto
é irremediavelmente um objeto condenado a sofrer atração para
o centro da Terra. Me interessam particularmente os objetos
tridimensionais, porque, com eles, posso trabalhar com matérias
que me agradam, como a transparência, por exemplo – e esculturas podem ser objetos transparentes. Objetos tridimensionais
podem repousar em sua precariedade, ser estáveis, dinâmicos
ou mesmo paralíticos. Podemos nos mover ao redor deles e ver
muitos objetos em um só. Creio que se o mundo fosse opaco eu
não seria artista. Felizmente, posso olhar um objeto e ver através
dele. Este é meu oxigênio ótico, eu preciso dessa transparência para ver as coisas de várias maneiras. E é nos espelhos que
esta transparência se resolve. Pinturas como as de Morandi são
opacas e transparentes ao mesmo tempo. E não foi por acaso
que eu me interessei pelas obras de Velázquez, que talvez tenha
sido o primeiro artista a incluir a visão do espectador na pintura, a ponto de a obra e a visão do espectador se confundirem.
Ao olhar, somos parte integrante do que é olhado e as obras
nos respondem com uma versão inesperada e diferente da que
depositamos sobre elas. O enigma destas respostas é a história
do nosso olhar.
Me interessou bastante aquele objeto Anda uma coisa
no ar , na sua exposição. Eu gostaria de saber um pouco mais
sobre ele.
Aluno:
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Pensei em como seria possível tornar aparente a metamorfose no
exato momento de sua transição, exemplificado pelo momento
em que, ao ver uma flor, sabemos, e apenas sabemos, que ela está
crescendo diante de nossos olhos, mas não vemos o seu movimento. Olhar para aquela flor incorpora a ideia de que ela cresce
constantemente, e a beleza vegeta na flor, relacionada a algo que
não vemos... mas sabemos. Anda uma coisa no ar é este momento
entre dois materiais semelhantes e que se distanciam apenas no
tempo e no espaço: o carvão e o cristal. Como se fosse finalmente
possível isolar o estado intermediário que se insinua entre a lagarta
e a borboleta.
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Notas
Saiba mais
1. CALDAS, Waltercio. Salas e abismos. Exposição individual realizada no Museu de Arte
Moderna, Rio de Janeiro, 26 de agosto a 31 de outubro de 2010.
http://www.walterciocaldas.com.br
2. CALDAS, Waltercio. Manual de ciência popular, 1981. Livro, edição de 2.000
exemplares.
3. CALDAS, Waltercio. Aparelhos, 1978. Livro, edição de 1.500 exemplares.
4. VELÁSQUEZ, Diego. Las meninas, 1856. Óleo sobre tela. 3,18 x 2,76 m. Museu do
Prado, Espanha.
5. CALDAS, Waltercio. O livro Velázquez, 1996. São Paulo: Editora Anônima.
6. Vitória de Samotrácia é uma escultura, de autoria desconhecida, que representa
a deusa grega Nice. Pedaços da obra foram descobertos em 1863 pelo cônsul e
arqueologista francês Charles Champoiseau, nas ruínas do Santuário dos Grandes
Deuses de Samotrácia. Apesar dos danos significativos e de estar incompleta, é
considerada uma das grandes obras sobreviventes do período helenístico.
7. CALDAS, Waltercio. Orquestra, 2005. Instalação.
8. MALRAUX, André. As vozes do silêncio. Lisboa: Livros do Brasil, 1988. 248 p.
9. CALDAS, Waltercio. Anda uma coisa no ar, 2002.
CALDAS, Waltercio. Salas e abismos. Textos de Paulo Sergio Duarte, Paulo Venancio Filho e
Sonia Salzstein. São Paulo: Cosac Naify. 2009. 240 p. Edição bilíngue português-inglês.
CALDAS, Waltercio. Aparelhos. Rio de Janeiro: GBM, 1979. 162 p. Edição bilíngue
português-inglês.
WALTERCIO Caldas 1985-2000. Textos de Ronaldo Brito, Paulo Sergio Duarte, Paulo
Venancio Filho, Guy Brett, Nina Rodrigues, José Thomas Brum, Adolfo Montijo
Navas, Sonia Salzstein e Lorenzo Mammi. Rio de Janeiro: CCBB, 2001. 265 p.
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agradecimentos
APOIADORES CADERNOS EAV
Adriana Carrasco
Alice Strauch
Aline Carreiro
Ana Costa
Ana Cunha
Ana Franco
Ana Hortides
Ana Lucia Leal
Ana Luiza Moraes
Ana Santeiro
Analu Cunha
André Dametto
Andrea Matriciano
Anna Helena Cazzani
Antonio Caetano S. Neto
Antonio F. de Queiroz Junior
Augusto Lima
Barbara Emanuel
Barbara Targino
Benjamin Rothstein
Bet Katona
Beth Young
Bia Amaral
Brigitte Bruns
Bruna Fazolo
Bruno Belo
Cadu
Carli Portella
Carlos Alberto Mattos
Carlos Zilio
Carmen Ferreira
Carmen Silvia Nora Dias
Carole Chueke
Carolina Cattan
Carolina Cortes
Carolina Kaastrup
Cata Schedel
Cathrine Clarke
Clarissa Baumann
Clarisse Rivera
Claudia Hirszman
Claudia Moog
Claudia Saldanha
Claudia Tebyriçá
Claudio Diegues
Claudio Gabriel
Cláudio Luiz Garcia
Cristiane Friggo e Barros
Cristiane Geraldelli
Cristina Amiran
Cristina Cantergiani
Cristina de Pádula
Cristina Pimental
Cristina Salgado
Cristine Flores
Daniel Penteado
Daniel Yuhasz
Débora Guimarães
Diana Josefina Rosa
Guenzburger
Dulce Lessi
Eduarda de Aquino
Edval Ponciano Carvalho
Elisa Brasil
Elizabeth Jobim
Ernesto Neto
Evangelina Seiler
Evany Cardoso
Fátima Pereira
Fernanda Pequeno
Fernando Abrao
Flavio Colker
Franz Manata
Frederico Bonfatti
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Gilberto Malva Filho
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Gisele Leme
Gloria Ferreira
Gloria Marcia Percinoto
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Gustavo Torres
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Jacqueline Medeiros
Jacqueline Paschoal
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Jose Antonio Ferreira
José Eduardo Nogueira Diniz
Jozane Braz Resende
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Lila Montezuma
Lilian Zaremba
Livia Flores
Loise Rodrigues
Lucas Milanez Leuzinger
Luciana Algarte
Luciana Paiva
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Lucimara Letelier
Luiz Vergara
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Marcel Alcantara
Marcelo Cattan
Marcelo Diego
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Marcia Britto
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Marcio Zardo
Marcos Bonisson
Maria Ângela P. Caetano
Maria Clara Barbosa
Maria Clara Dias
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Maria Cristina Sacramento
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Maria Mendes
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Martha Niklaus
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