aware Newsletter 38 Setembro | 2010 Direito Comercial Grupo de Societário, fusões e aquisições “Golden Shares” - As restrições do ordenamento Aquisição de participação por parte das jurídico comunitário. | 2/3 sociedades de capital de risco à luz da Lei da Concorrência. | 5/7 Transposição da “Directiva dos Accionistas” para o or- Reflexões sobre o Princípio da Especialidade denamento jurídico Português. | 4/5 do Fim. | 7/8 EDITORIAL Bem-vindos à quarta Aware de 2010, do Grupo de Societário, Fusões e Aquisições da Abreu Advogados (GSFA). Esta Newsletter é composta por quatro artigos que esperamos possam ser úteis e merecer a vossa atenção. No terceiro artigo, abordamos algumas questões relativas à obrigatoriedade de notificar à Autoridade da Concorrência a aquisição de participações no capital social de sociedades não financeiras por sociedades e/ou fundos de capital de risco. No primeiro artigo, tendo em conta uma decisão recente do Tribunal de Justiça da União Europeia e o sucedido no caso Portugal Telecom/Telefónica, analisamos sumariamente as restrições do ordenamento jurídico comunitário em relação às “golden shares”. Por último, referimo-nos ao tratamento legal do acto de atribuição de uma viatura por uma sociedade para utilização de terceiros. De seguida são abordadas algumas das alterações ao Código dos Valores Mobiliários, efectuadas através da transposição da directiva 2007/36/CE, em particular quanto ao exercício do direito de voto. A Equipa GSFA Boa leitura, aware “GOLDEN SHARES” – AS RESTRIÇÕES DO ORDENAMENTO JURÍDICO COMUNITÁRIO Rui Rompante (Advogado) Golden shares são, sucintamente, participações sociais minoritárias, detidas por pessoas colectivas de direito público, em sociedades maioritariamente detidas por entidades privadas e que permitem àquelas vetar deliberações sociais relativas a certas matérias previstas nos estatutos da sociedade, nos casos em que seja necessária a protecção de qualquer interesse público. No passado dia 8 de Julho de 2010, o Tribunal de Justiça da União Europeia pronunciou-se quanto à violação, por parte do Estado Português, do disposto nos artigos 43º e 56º do Tratado da Comunidade Europeia, uma vez que aquele é titular de acções privilegiadas (“golden shares”) no capital social da Portugal Telecom, SGPS, S.A.. Apreciando a questão que lhe havia sido colocada, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu favoravelmente ao pretendido pela Comissão Europeia declarando que a detenção pelo Estado Português de uma golden share na Portugal Telecom, SGPS, S.A., é susceptível de: (i) desencorajar os operadores de outros Estados-Membros de efectuar investimentos directos na sociedade, na medida em que não podem concorrer na gestão e no controlo desta sociedade na proporção do valor das suas participações; (ii) perturbar as tomadas de participação de controlo na sociedade; e, consequentemente (iii) violar o disposto nos artigos 43º e 56º do Tratado da Comunidade Europeia. Coincidentemente, o Estado Português havia exercido os direitos especiais que aquelas acções lhe conferem na Assembleia Geral da Portugal Telecom, SGPS, S.A. de 30 de Junho de 2010, de modo a vetar a venda da participação social da Portugal Telecom, SGPS, S.A. na sociedade brasileira Vivo, à sociedade espanhola Telefónica. A atenção mediática e a proximidade cronológica destes dois acontecimentos fizeram com que o tema das golden shares fosse transportado tanto para a opinião pública, como para a discussão política, impondo-se, dada a actualidade da questão, uma análise do referido acórdão, e ainda, das restrições que o direito comunitário coloca à figura das golden shares. A questão ora decidida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia foi apresentada junto deste pela Comissão Europeia em Abril de 2008, fundando-se esta na alegada violação por parte do Estado Português das obrigações que lhe são impostas pelos artigos 43º e 56º do Tratado da Comunidade Europeia, nomeadamente pelas restrições que a golden share detida no capital social da Portugal Telecom, SGPS, S.A. implica na livre circulação de capitais e aquisição de participações e na gestão de uma sociedade privatizada. Em Portugal, o regime legal aplicável às acções pri vilegiadas é regulado, de uma forma bastante genérica, pelo Código das Sociedades Comerciais, nomeadamente nos artigos 24º e 302º, os quais dispõem que (i) 1 - Só por estipulação no contrato de sociedade podem ser criados direitos especiais de algum sócio. [...] 4 – Nas sociedades anónimas, os direitos especiais só podem ser atribuídos a categorias de acções e transmitem-se com estas [Artigo 24º (Direitos Especiais)]; (ii) 1 – Podem ser diversos, nomeadamente quanto à atribuição de dividendos e quanto à partilha do activo resultante da liquidação, os direitos inerentes às acções emitidas pela mesma sociedade. [...] [Artigo 302º (Categorias de Acções)]. (continuação na página seguinte) www.abreuadvogados.com 2 2 aware “GOLDEN SHARES” – AS RESTRIÇÕES DO ORDENAMENTO JURÍDICO COMUNITÁRIO (continuação) Já no que se refere ao caso específico das golden shares em sentido estrito, detidas por entes públicos, estas foram introduzidas e são reguladas pela Lei-Quadro das Privatizações, Lei nº 11/90, de 5 de Abril, dispondo o artigo 15º deste diploma que: [...] 3 - Poderá ainda o diploma referido no n.º 1 do artigo 4.º, e também a título excepcional, sempre que razões de interesse nacional o requeiram, prever a existência de acções privilegiadas, destinadas a permanecer na titularidade do Estado, as quais, independentemente do seu número, concederão direito de veto quanto às alterações do pacto social e outras deliberações respeitantes a determinadas matérias, devidamente tipificadas nos mesmos estatutos. Este diploma veio permitir, no âmbito das privatizações a serem conduzidas em empresas públicas, que o Estado Português pudesse continuar a exercer a sua influência em determinadas sociedades através da detenção de golden shares que garantissem o direito de veto relativamente às deliberações de determinadas matérias em Assembleia Geral, tal como sucedeu no caso da Portugal Telecom, SGPS, S.A., a que já nos referimos. Como vimos, o Tratado da Comunidade Europeia impõe determinadas restrições à intervenção dos Estados-Membros no sector financeiro e económico, nomeadamente no que se refere à livre circulação de capitais e à liberdade de estabelecimento. Estes princípios impõem, ainda que reflexamente, restrições à acção dos Estados-Membros no que toca à utilização da figura das golden shares, acção essa amplamente permitida no caso Português. www.abreuadvogados.com Não obstante, o Tratado da Comunidade Europeia dispõe no artigo 58º, nº 1, alínea b) que ainda que os Estados-Membros estejam vinculados às restrições que acabamos de referir, estes podem adoptar medidas que restrinjam aquelas liberdades se tal for justificável por motivos de ordem e de segurança públicas. Analisando os dados que nos são fornecidos, pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, pelas normas do Tratado da Comunidade Europeia e ainda pela legislação nacional, afigurase-nos claro que a questão da admissibilidade da utilização da figura das golden shares por parte dos Estados-Membros não possui uma resolução fácil, devendo esta ser sempre aferida em concreto, caso a caso, uma vez que não só as restrições impostas aos Estados-Membros, como também as excepções a essas mesmas restrições resultam em conceitos indeterminados. Numa fase de crise económica e em que os Estados-Membros enfrentam várias dificuldades na definição das suas políticas económicas, será interessante verificar de que forma é que as ingerências crescentes do Estado na economia se compaginarão com o ordenamento jurídico comunitário no que diz respeito à criação e utilização das golden shares. 3 2 aware TRANSPOSIÇÃO DA “DIRECTIVA DOS ACCIONISTAS” PARA O ORDENAMENTO JURÍDICO PORTUGUÊS Sérgio Gonçalves Dinis (Advogado) A comummente designada Shareholders’ Rights Directive, ou “Directiva dos Accionistas” – Directiva n.º 2007/36/CE, do Parlamento e do Conselho, de 11 de Julho de 2007, foi recentemente transposta para o ordenamento jurídico Português, por meio do Decreto-Lei n.º 49/2010 de 19 de Maio. Com a introdução deste Decreto-Lei, foram efectuadas várias e importantes alterações no Código dos Valores Mobiliários (doravante o “CVM”) e no Código das Sociedades Comerciais (doravante o “CSC”), tendo em vista a eliminação – ou diminuição – dos obstáculos ao exercício do direito de voto dos accionistas nas sociedades cotadas. As convocatórias para as Assembleias Gerais (doravante “AG”) de sociedades cotadas passam agora a ter de mencionar, para além dos elementos previstos no artigo 377.º do CSC1, i) informação sobre procedimentos de participação na AG, incluindo data de registo e menção de que apenas quem for accionista nessa data poderá participar na AG, ii) informação sobre procedimentos e prazos tendo em vista a inclusão de assuntos na ordem no dia, para apresentação de propostas de deliberação e informação geral, iii) informação sobre procedimento para representação em sede de AG, e, iv) local e forma para obter o texto integral dos documentos e propostas de deliberação a apresentar à AG. A obrigação de fazer constar as informações referidas em ii) e iii) supra poderá ser substituída por indicação do respectivo sítio da Internet da Sociedade, e disponibilização de tal informação. 1. Adicionalmente, a respeito das convocatórias, existe agora um prazo mínimo de 21 dias a mediar entre a divulgação da convocatória e a AG. Também as informações preparatórias às AG’s têm agora de ser disponibilizadas no sítio da Internet e, para além da informação já necessária2, tem também de ser disponibilizada a convocatória para a AG, número de acções e direitos de voto na data de disponibilização da convocatória, formulário de instrumento de representação e documentos que venham ser apresentados à AG. No que concerne ao exercício do direito de voto, foram introduzidas importantes mudanças, nomeadamente a respeito da representação de accionistas. Com efeito, já não é possível restringir o voto por procuração, uma vez que o artigo 23.º do CVM o admite expressamente, sendo que passa agora também a ser possível a designação de representantes diferentes para acções detidas pelo mesmo accionista, mas que se encontrem em diferentes contas de valores mobiliários. É ainda previsto que os intermediários financeiros que detenham acções em nome próprio e por conta de clientes, votem em sentidos diferentes relativamente às acções por eles detidas e detidas por clientes, desde que identifiquem devidamente os accionistas que representam e as instruções de voto de cada cliente. (continuação na página seguinte) Tais como lugar, dia e hora da reunião, ordem do dia, espécie da assembleia, entre outros. 2. Prevista no artigo 289.º CSC, e que inclui, entre outros, os nomes completos os membros de órgãos estatutários, propostas de deliberação a apresentar, curriculum vitae das pessoas a propor para eleição de órgãos sociais, entre outros. 4 www.abreuadvogados.com 2 aware TRANSPOSIÇÃO DA “DIRECTIVA DOS ACCIONISTAS” PARA O ORDENAMENTO JURÍDICO PORTUGUÊS (continuação) AQUISIÇÃO DE PARTICIPAÇÃO POR PARTE DAS SOCIEDADES DE CAPITAL DE RISCO À LUZ DA LEI DA CONCORRÊNCIA Inês Sequeira Mendes (Advogada) Merecedor de destaque é o facto da transposição desta Directiva vir introduzir a regra da data de registo (comummente designado como record date) para clarificar a participação nas AG de sociedades cotadas, sendo agora previsto que tem direito de participação e votação nas AG quem, pelas 00:00 horas (GMT) do 5.º dia de negociação dos valores mobiliários anterior ao da realização daquela, for titular de acções que lhe confiram, pelo menos, um voto. Myriam Ouaki (Consultora) Algumas questões têm sido suscitadas quanto à obrigatoriedade de notificar à Autoridade da Concorrência (AdC) a aquisição, por sociedades e/ ou fundos de capital de risco, de participações no capital social de sociedades não financeiras. Como melhor veremos, essas dúvidas têm origem nas especiais características e objectivos dos investimentos que podem ser levados a cabo por sociedades e/ou fundos de capital de risco, nomeadamente: (i) o facto de os mesmos serem necessariamente por tempo limitado, (ii) terem por objecto “sociedades com elevado potencial de desenvolvimento”, e (iii) terem por objectivo “beneficiar da respectiva valorização”1 , não sendo pois objectivo primordial de tais aquisições nem a obtenção do controlo das sociedades adquiridas, nem a sua detenção com carácter duradouro. Em traços muito gerais, uma aquisição ou alteração de controlo de empresas dará em princípio origem a uma obrigação de notificação prévia à AdC ou à Comissão Europeia, nos seguintes casos: Garante-se ainda que o exercício dos direitos de participação e votação não será prejudicado com a transmissão das acções posteriormente à data de registo. Por fim, o Decreto-Lei estabeleceu a obrigatoriedade de declarar a intenção de participar na AG, por escrito ao presidente da mesa da AG e ao intermediário financeiro. À guisa de conclusão, com esta transposição, o principal objectivo visado, e no nosso entender cumprido, é a garantia de um reforço da protecção dos investidores através da facilitação do acesso à informação relativa aos seus direitos individuais e simultaneamente aumentado a capacidade de exercício dos seus direitos, garantido, então, uma efectiva participação na vida societária. 1. 2. a) À AdC, no caso de aquisição ou alteração de controlo de empresas que apresente um volume de negócios conjunto em Portugal superior a 150 milhões de euros, desde que pelo menos duas das empresas tenham um volume de negócios em Portugal acima de dois milhões de euros2, (ou no caso de resultar da aquisição a criação ou reforço de uma quota de mercado superior a 30%, o que não releva para o caso em análise); b) À Comissão Europeia nos casos em que (i) o volume de negócios total realizado à escala mundial pelo conjunto das empresas em causa seja superior a 5000 milhões de euros; (ii) o volume de negócios total realizado individualmente na Comunidade por pelo menos duas das empresas em causa seja superior a 250 milhões de euros, e (iii) nenhuma das empresas em causa realize mais de dois terços do seu volume de negócios total na Comunidade num único Estado-Membro3. (continuação na página seguinte) Vd artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 375/2007 de 8 de Novembro. Vd artigo 8.º da Lei da Concorrência (Lei nº 18/2003, de 11 de Junho, doravante designada por “LdC”). 3. Regulamento (CE) nº 139/2004 do Conselho, de 20 de Janeiro de 2004, relativo ao controlo das concentrações de empresas, artigo 1.º, n.º 2. www.abreuadvogados.com 5 2 aware AQUISIÇÃO DE PARTICIPAÇÃO POR PARTE DAS SOCIEDADES DE CAPITAL DE RISCO À LUZ DA LEI DA CONCORRÊNCIA (continuação) Note-se ainda que, para efeitos da Lei da Concorrência (LdC)4 “controlo” implica a possibilidade de, em função de quaisquer circunstâncias de facto ou de direito, se verificar uma “influência determinante” de uma empresa sobre a actividade da outra. A “influência determinante” sobre a actividade da empresa, pressupõe, por seu turno, um carácter de permanência do “controlo”, sem a qual a actuação de quem a cada momento detenha o controlo não será suficiente para que se possa repercutir. O carácter duradouro do controlo como requisito para a aplicação destes regimes está aliás expressamente previsto no Regulamento relativo ao controlo de concentrações5. Já quanto ao segundo factor e, face ao carácter necessariamente temporário da aquisição de participações por parte de entidades de capital de risco, pode ser posta em causa a obrigatoriedade de notificação à AdC, de todas as operações que ultrapassem os limiares financeiros fixados na lei. Na realidade, este elemento temporal é já reconhecido pela LdC, pelo menos em parte, como podendo influenciar a qualificação da aquisição como sujeita ou não à obrigatoriedade de notificação. Assim, da conjugação do art. 8.º, n.º 4, al. c) da LdC com o art. 101.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF) resulta que não será tida como concentração de empresas para efeitos da obrigatoriedade de notificação, a aquisição indirecta por instituições de crédito – através de sociedades de capital de risco por si controladas – de participações em empresas não financeiras, desde que: (a) a participação não envolva mais de 25% dos direitos de voto e (b) não dure mais do que 5 anos. Embora o teor exacto desta excepção não tenha sido (ainda) objecto de clarificação por parte da AdC, podem ser distinguidas, sem ir além da própria letra da Lei, duas situações em que a aquisição não será sujeita à obrigatoriedade de notificação prévia: Vemos assim que os dois factores que desencadeiam a obrigação de notificar a operação, tanto a nível nacional como comunitário, são: i) uma modificação no controlo na empresa e; ii) o carácter duradouro da mesma. No contexto de uma tomada de participação no capital social de uma sociedade não financeira por parte de sociedades e/ou fundos de capital de risco, o preenchimento do primeiro factor dependerá da dimensão efectiva de capital social que venha a ser detido, podendo, em determinadas circunstâncias, justificar-se a obrigação de notificação. 4. 5. a) a aquisição de uma participação superior a 25% num período de tempo igual ou inferior a 5 anos; b) a aquisição de uma participação igual ou inferior a 25%, independentemente da respectiva duração. Face ao exposto acima, a LdC parece ter deixado a cargo do RGICSF a fixação dos limiares quantitativos e temporais abaixo dos quais a aquisição de uma participação por parte de uma entidade de capital de risco não deverá ser apreciada como uma operação de concentração de empresas sujeita a notificação: por não exercer uma influência determinante (abaixo dos 25% dos direitos de voto) ou não ter carácter duradouro (menos do que 5 anos). Vd. nº 3 do artigo 8.º da LdC Vd nota 3 acima. 6 www.abreuadvogados.com 2 aware AQUISIÇÃO DE PARTICIPAÇÃO POR PARTE DAS SOCIEDADES DE CAPITAL DE RISCO À LUZ DA LEI DA CONCORRÊNCIA (continuação) Em termos práticos, desde que se demonstrem os elementos referidos na excepção consagrada na alínea c) do n.º 4 do artigo 8.º da LdC, a operação não está sujeita a notificação obrigatória. Caso contrário, ou seja, se não for possível demonstrá-los, a operação deverá ser notificada. Assinale-se que será ainda necessário assegurar que, findo o prazo dos 5 anos, a entidade de capital de risco terá que alienar a sua participação a outra entidade ou diminuir os direitos de voto abaixo dos 25%, sob pena de se considerar já fora do perímetro de licitude do referido artigo 101.º do RGICSF e, consequentemente, fora do âmbito da excepção prevista pela LdC. Reflexões sobre o Princípio da Especialidade do Fim Susana Alves Pereira (Advogada) “É Proibido! mas pode-se fazer...” Não raras são as vezes em que nos deparamos com questões legais para as quais a lei prescreve a nulidade, mas que, na prática, não reflectem aquela cominação. Vejamos, pois, neste contexto, o tratamento legal da validade do acto de atribuição de uma viatura de uma Sociedade para utilização por terceiros, ou seja, pessoas alheias à estrutura orgânica e funcional da Sociedade. A resposta à questão colocada inscreve-se no âmbito da capacidade das Sociedades Comerciais. O artigo 160.º do Código Civil consagra o chamado princípio da especialidade, de acordo com o qual a capacidade de gozo das pessoas colectivas tem limites de três ordens: i) só compreende os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins; ii) só compreende os direitos e obrigações que não sejam vedados por lei; iii) só compreende os direitos e obrigações que não sejam inseparáveis da personalidade singular. As limitações da capacidade jurídica das Sociedades Comerciais decorrem principalmente do artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais, (que consagra o já mencionado princípio da especialidade), de acordo com o qual, os actos gratuitos – actos pelos quais uma Sociedade dá a outrém uma prestação ou vantagem sem contrapartida – estão (em regra) fora da capacidade societária, por não serem convenientes à prossecução do fim da Sociedade. O fim da Sociedade é, pois, “o escopo lucrativo, o intuito de obter lucros para atribuí-lo (s) aos sócio (s)”. Por isso, “os actos estranhos à capacidade societária, contrários ao fim lucrativo (doações, comodatos, mútuos gratuitos, prestação gratuita de garantias) são nulos”1. (continuação na página seguinte) 1. Cfr. Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso do Direito Comercial, vol. II, das Sociedades, pág. 184 e 185. www.abreuadvogados.com 7 2 aware REFLEXÕES SOBRE O PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE DO FIM (continuação) Sendo esta norma imperativa, não pode ser derrogada por vontade dos sócios, quer pelos estatutos, quer por deliberação em Assembleia Geral. Assim, esta atribuição de utilização da viatura deve considerar-se nula e de nenhum efeito, porque se traduziu num negócio gratuito, que a lei exclui da capacidade de gozo das Sociedades, e por conseguinte, do âmbito dos poderes dos respectivos gerentes ou administradores2. Por se tratar de um acto nulo, pode a respectiva nulidade ser invocada a todo o tempo, por qualquer interessado, ao abrigo do disposto pelo art. 286.º do Código Civil3. Não obstante este enquadramento jurídico, em que se traduz a nulidade mencionada? De facto, e na prática, aquela cominação não tem tradução. Por um lado, o contrato de aquisição da viatura4 é válido, porque a invalidade que se coloca é na utilização da viatura e não na sua aquisição (que não viola os mencionados preceitos legais). Por outro lado, qualquer acto inspectivo levado a cabo pelas Autoridades Policiais não revelará, pela mera observação dos documentos da Sociedade, a irregularidade praticada. É certo que do acto podem derivar consequências ao nível da responsabilidade dos Administradores/Gerentes5 mas a principal consequência prática que poderá colocar-se será de carácter fiscal, se a situação configurar uma aquisição simulada pela Sociedade com o objectivo de acréscimo de custos e, em consequência, de diminuição do montante de imposto pago. Neste caso, e a verificar-se um acto inspectivo que detecte a situação, poderão resultar consequências para a Sociedade, que derivam não da nulidade do acto, mas do intuito fraudulento de diminuição do imposto a pagar6. Deste modo, e devido às dificuldades práticas de verificação das consequências associadas à nulidade neste tipo de actos resulta um sentimento de que a lei proíbe comportamentos que são, na realidade, disfarçadamente permitidos, abrindose assim portas a práticas abusivas na gestão das Sociedades. 2. Isto não significa que todos os actos gratuitos praticados pela Sociedade sejam nulos: determinados actos gratuitos podem ser validamente praticados quando eles se revelem necessários ou, ao menos convenientes à consecução de lucros. 3. Note-se que estando a viatura em questão registada em nome da Sociedade – i.e., sendo esta a proprietária “de iure”–, resultará especialmente dificultada a produção da prova, por qualquer interessado, nomeadamente por um credor social, do uso abusivo da viatura por um terceiro. Em causa estará, mesmo, a chamada “prova diabólica”, porquanto versa sobre um facto negativo, o não uso da viatura pela Sociedade. 4. Seja qual for o tipo de contrato que titule a aquisição. Nos termos gerais deste regime e mediante a prova dos respectivo pressupostos. 6. O acto poderá igualmente, verificados os respectivos pressupostos, configurar um ilícito penal. 5. Esta Aware contém informação e opiniões de carácter geral, não substituindo o recurso a aconselhamento jurídico para a resolução de casos concretos. Para esclarecimentos adicionais contacte [email protected] | Visite o nosso site www.abreuadvogados.com © ABREU ADVOGADOS 2010 8 2