SER FELIZ NA SOBRIEDADE Perante a degradação da condição humana e os consideráveis prejuízos infligidos à Natureza, Pierre Rabhi convida-nos a sair do mito do crescimento indefinido e a inaugurar uma nova ética de vida rumo a uma “sobriedade ditosa”. Em que é que esta lógica do «cada vez mais» se afigura suicidária para o homem e para o planeta? É que se está perante uma evidência que ninguém pode contestar : só temos um planeta. E este planeta é um organismo vivo que produz recursos, vivos ou fósseis, dos quais todos os humanos dependem. Alguns, é certo, renovam-se, em particular graças à agricultura que nos permite sobreviver. Mas há outros que não se renovam, ou que apenas o fazem após longos períodos de tempo. Não podemos imaginar que os poderemos utilizar indefinidamente porque eles são, por definição, limitados. Quais são, para si, as verdadeiras riquezas? Quando falamos de capital, vem-nos à ideia a questão do dinheiro, da moeda. Ora é evidente que a moeda, actualmente, não é verdadeiramente representativa de riqueza real. Com efeito, como se deram ao dinheiro plenos poderes sobre o destino e a vida, considera-se que ele é o único a poder fazer aparecer riqueza. Ele é o seu «representante». Mas, na realidade, a partir do momento em que introduzimos o dinheiro, falseámos completamente os dados económicos. Hoje, quando se fala de economia, não se trata de economia real. A economia real é um sistema que tem por objectivo repartir os recursos tão equitativamente quanto possível para responder às necessidades do maior número de pessoas. Infelizmente, o que se chama “economia” é, sobretudo, a monetarização que faz com que o dinheiro represente não apenas riquezas reais mas também riquezas não-reais, virtuais, especulativas, e que ele funcione sobre si próprio: dinheiro produz dinheiro. Logo, não estamos numa economia real. Se estivéssemos numa economia real, nenhum ser humano deste planeta teria falta do essencial: de alimentação, vestuário, abrigo e dos cuidados necessários. Trata-se de um bem legítimo ao qual cada um de nós deveria poder aceder como ser humano legitimado pela própria vida. Ora acontece que estamos longe do objectivo: fazemos muitas proezas técnicas mas nos nossos dias estamos longe de dar resposta às necessidades do conjunto da Humanidade. Porquê tanta pobreza num mundo tão rico em recursos naturais? Na realidade, as riquezas reais ainda são abundantes. Um grande número de pessoas pensa que o continente africano é pobre quando, afinal, é imensamente rico: ele representa cerca de dez vezes a superfície da Índia; com 800 milhões de indivíduos, poder-se-ia dizer que está, até, "subpovoado"; e mais: 60% da população tem menos de 30 anos. Este continente dispõe, de facto, de três trunfos: é rico, subpovoado e jovem. Se estivéssemos perante uma economia real, nada lhe devia faltar. Mas foram a representação do dinheiro e o sistema internacional que fizeram assentar as riquezas no dinheiro. Temos assim um continente que transborda de riquezas, mas que vive na indigência. Este problema não está ligado aos recursos, mas sim ao sistema em si, à forma que os humanos inventaram para repartir os bens e os recursos entre si. Tal deriva duma arbitrariedade segundo a qual uma minoria sobreconsome em detrimento da maioria da Humanidade que, dia após dia, é obrigada a reduzir as suas necessidades para atingir um estado de “sobrevivência, mais do que de vivência”. Depois do "trabalhar para ganhar mais", pode-se imaginar uma sociedade que funcione segundo a lógica do “trabalhar melhor para viver melhor"? O crescimento económico baseia-se num mal-entendido: ter «sempre mais» significa também «sempre menos», para outros. Quanto mais se gasta para lá do necessário, mais o fazemos em detrimento de outros indivíduos que assim são penalizados e condenados à indigência. "Trabalhar para ganhar mais" não tem limites, também. Pomos em marcha uma máquina infernal: mesmo tendo casa e comida, mesmo tendo tudo o que é preciso para viver, continuamos insatisfeitos. E assim produzimos miséria e contribuímos para a miséria dos outros. Não faz sentido. Hoje, é urgente repensar a economia de maneira a que o ser humano e a natureza façam parte das nossas preocupações e que organizemos o nosso modo de existência tendo em conta os limites e as necessidades do homem e da Natureza. A partir daí entraremos em algo de perene. Se não, depressa chegaremos ao esgotamento dos recursos que vai, aliás, acelerar, devido ao aumento da procura, nomeadamente nos países ditos “emergentes”. Vemos, pois, acelerar-se o processo de esgotamento e, com ele, o fim do próprio homem, sem contar com todos os desregulamentos, incluindo os climáticos. Todos esses sinais mostram que é impossível continuar a sustentar uma tal lógica. Todavia, não será legítimo que quem ganha pouco queira ganhar mais? Claro que sim. Mas o que é legítimo, também, é que aqueles que têm muito, limitem as suas necessidades. Se não, não faz sentido e volta-se ao mesmo: é como se você corresse mais do que eu e que eu tentasse continuamente alcançá-lo sem nunca conseguir. Se queremos que o mundo funcione, devemos estabelecer nele a justiça. Não há qualquer razão para que 1% dos americanos tenham 50% da riqueza. E pode-se aplicar este ratio um pouco por toda a parte: não basta simplesmente que aqueles que têm menos possam ter acesso a mais para atingir o óptimo e um nível confortável de vida, mas é preciso também que aqueles que estão à frente do pelotão parem de querer possuir sempre mais. Eles não se situam apenas na resposta às necessidades mas, antes, num supérfluo desmesurado. É o grande problema da economia: o necessário é relativamente limitado e o supérfluo não tem limite. Um sistema que não estabelece limites carece de sentido. Que impacto teria uma civilização «sóbria» no plano ambiental e humano? No plano humano, a sobriedade é a própria satisfação. Se eu for sóbrio tenho maior certeza de atingir o meu nível de satisfação do que se não for. Se não, o nível de satisfação permanece sempre elevado, é nisso que se baseia o sistema infernal da publicidade para a qual “nunca há que chegue”. Se eu tiver satisfação pessoal, consigo equilibrar o meu ser com o meu ter, apercebo-me de que sou equitativo e, consequentemente, tenho satisfação por viver com justiça. Pode-se, pois, fundar uma verdadeira civilização da satisfação sobre essa sobriedade. Por outro lado, moderando as minhas necessidades, tenho um impacto directo sobre os recursos uma vez que, se não gastar demasiado, são outros tantos recursos que eu não vou contribuir para esgotar pelos meus excessos: não vamos precisar de tantas coisas para gastar. Quando se vêem todos os desperdícios, quando se destrói a floresta, os solos, quando se apanha até ao último peixe, se dissipam os recursos, quando há 40% de matéria produzida que é supérflua, isso revela uma civilização totalmente desinteligente. Até que ponto é preferível a terminologia «decrescimento sustentável» em vez de «desenvolvimento durável»? Eu próprio abandonei o termo «decrescimento sustentável» para falar simplesmente de «sobriedade ditosa». Isto diz mais às pessoas do que «crescimento», que apenas se aplica à economia. É preferível, para lá duma linguagem económica, interpelar os indivíduos no que respeita à sua vida quotidiana. Se, no meu dia-a-dia, eu adoptar a sobriedade, ela torna-se uma espécie de virtude que será a base duma vida com sentido, que me satisfaça. Para além disso, aquilo a que se dá o nome de “desenvolvimento durável” nem por isso faz lá muito sentido. Tem-se a pretensão de que é por aí que se vai parar com a evolução negativa do nosso sistema mas, para mim, o único desenvolvimento durável possível consiste em colocar em questão, uma vez mais, o nosso modelo económico. É absolutamente necessário mudar de paradigma. Não se pode continuar a pilhar até ao último peixe e, paralelamente, falar de desenvolvimento durável; não faz qualquer sentido! O que é preciso é renunciar a este modelo estúpido em que toda a gente parece alienada. As pessoas trabalham sem saber exactamente por que trabalham. Muitos trabalham porque, ao fim e ao cabo, “ é preciso arranjar comida”. E o próprio trabalho tornou-se uma espécie de obrigação sem sentido a que nos sujeitamos, sem dele tirar uma real satisfação, mergulhados em múltiplos problemas, num profundo malestar. Hoje, o que é preciso é humanizar a sociedade. É fazer com que o ser humano esteja satisfeito interior e exteriormente, isto é, quanto às suas necessidades materiais mas também quanto às suas necessidades psicológicas, emocionais, espirituais. Esta é que é uma sociedade que nos satisfaz. Eu preconizo uma reorganização na qual a satisfação de ser e a satisfação de agir possam fazer sentido. Não se trata de ser aquele pequeno produtorconsumidor do que quer que seja, mesmo de produtos biológicos. Não quer dizer nada, isso de sermos só produtores biológicos. O que é relevante é encontrar profunda satisfação quando fazemos qualquer coisa. O que faz sentido é encontrar uma satisfação profunda naquilo que fazemos e ter a impressão de que a nossa vida não está a ser desbaratada com coisas inúteis, desperdício, porcarias, até. Condicionado pela sociedade de consumo, desde a mais tenra infância, deve o homem abrir a sua consciência? Deve. Detesto que me chamem “consumidor”, é quase um insulto. Eu não sou um consumidor. Sou, antes do mais, um ser humano. Esse termo tem uma conotação de cariz económico. Eu não sou as minhas mandíbulas e não estou aqui só para consumir; estou aqui para viver, para ser, em profundidade. O consumo deve ser limitado para responder às nossas necessidades fundamentais: alimentar-me, abrigar-me, vestir-me e tratar-me. Mas eu tenho outras necessidades, de ordem não-material : necessidade de amar, de me interessar por muitas coisas, contemplar a natureza, desfrutar da vida na sua totalidade e não ser simplesmente um consumidor-que-empurra-o-seucarrinho-de-compras. Ou então, apenas servimos para fazer girar uma máquina económica infernal da qual uma minoria tira enormes benefícios arruinando e empobrecendo a maioria. Como é que vamos fazer para nos tornarmos responsáveis? Através da educação? A educação é absolutamente primordial. A educação, tal como hoje é ministrada às crianças, não vai fazer parar a bulimia, a insatisfação, os gastos excessivos e o consumo. Estamos a preparar as gerações futuras para se tornarem consumidores, para alimentarem eternamente o sistema. Não os estamos minimamente a preparar para a simplicidade, a sobriedade, para que se interessem pelos valores da vida, pela beleza que a vida nos oferece no dia-a-dia, e que não vemos. Não os preparamos para utilizar correctamente as mãos, a ser fraternos. Preparamo-los para se tornarem competitivos mas não solidários. É um perfeito desastre... Para além disso, eles estão num universo cada vez mais virtual, de ecrãs, de ratos, maquinaria, coisas... É realmente uma tristeza. Não se preparam as crianças para se estruturarem interiormente no intuito de as tornar capazes de ultrapassar os grandes desafios que se aproximam e que até já cá estão. O amanhã está longe de ser fácil. A escola devia prepará-los para esses desafios. Na sua opinião, o comércio justo Norte-Sul faz parte da estratégia da “sobriedade ditosa”? Faz, sim. Mas a justiça, para mim, não começa no Norte-Sul. Começa pelo meu vizinho; é preciso que eu seja justo para com a minha mulher, os meus filhos, os meus amigos, etc. O que é importante é a justiça, não é o comércio justo. Se cada um de nós fosse justo na sua vida própria, diária, poderíamos ser justos para com os países do Sul. Isso dá-nos uma aura moral de pessoas generosas, é certo. Eu fico reconhecido às pessoas que tentam essa justiça, mas diria que a justiça começa, em primeiro lugar por nós próprios, no lugar em que estamos, pela relação que temos com a família, amigos, comerciantes que estão à nossa volta. Desse modo daremos resposta aos critérios de justiça mas não nos podemos contentar com um comércio justo entre o Norte e o Sul, a milhares de quilómetros; a justiça deve estar em toda a parte, não apenas entre o Norte e o Sul. A simplicidade voluntária não implica «relocalizar» as relações comerciais, Norte-Norte e Sul-Sul? Certamente. Há anos que preconizo isso. Trata-se de recriar espaços nos quais as actividades humanas são “reconcentradas”. Devíamos encontrar os alimentos, o vestuário, os cuidados... no sítio em que vivemos. A pequena indústria devia estar à mão e ao pé de nós e não à distância de carregamentos de camiões... Portanto, torna-se evidente que é a sobriedade, a simplicidade que poderia permitir a redução dos custos que nos fazem viver duma maneira muito estúpida, dependente, feita de transportes contínuos, caros, poluentes, destruidores e desestruturantes. O nosso sistema, devido à distribuição alargada, destrói o social e o económico. Acha que esta alteração de mentalidades deve ocorrer «de baixo para cima» ou deve ser imposta por uma autoridade? Tal só pode acontecer através de seres conscientes que, mais do que fazer disso um belo discurso, põem em prática e dão o exemplo dum modo de vida susceptível de inspirar os outros. Assim se poderia, verdadeiramente, mudar a ordem das coisas pela demonstração, o testemunho que cada um de nós pode dar na sua vida quotidiana. Não podemos contentar-nos com proclamações, votos piedosos. A sociedade civil faz, efectivamente, experiências interessantes; é um laboratório muito importante de experimentações de interesse geral. Mas, ao mesmo tempo, o Estado funciona segundo os seus próprios critérios. É por isso que evoluir é tão difícil: nós temos instituições e um modo de organização económica e social que bloqueiam toda a evolução em direcção a outra coisa que não seja princípios estabelecidos e ideias recebidas. Há um bloqueio ao mesmo tempo moral e estrutural. Como é que quer que o Estado imponha uma diminuição da utilização dos carros, se ele cobra uma taxa sobre a gasolina e se isso lhe evita ter desempregados a mais? Estamos mais ou menos numa ratoeira em que o Estado é tanto mais impotente quanto não assimilou a ideia duma mudança profunda e contínua, e por outro lado, subordinado às potências económicas que «dão cartas». 70 a 80 % dos franceses não querem os OGM mas isso não impede que eles venham a ser votados. Isso significa que há uma negação da democracia, mau grado o Grenelle*. Então, para que serve o Estado? Para legitimar e impor os interesses das potências económicas. Concretamente, o que é que se pode fazer a nível individual. Por onde começar? No final das conferências que dei com Nicolas Hulot, na Unesco, perguntaramnos: «Agora vamos para casa e o que é fazemos a seguir? Como é que fazemos?» E eu disse: «Se querem mudar a sociedade, comecem por se reconciliar com vocês próprios, com os vizinhos, companheiros, filhos... e começarão a construir uma sociedade». Não se trata apenas de actos. Eu não sou contra o facto de fechar a torneira, apagar a luz, mas isso não chega para mudar a sociedade. Não podem ser só actos. O que mudará a sociedade será o dia em que cada ser humano tome a decisão de ser um outro ser humano, com mais compaixão, mais gentileza, generosidade, atenção. Estaremos atentos para não destruir, para respeitar a vida sob todas as formas, para não gastar em demasia... Isso deve partir de nós, da decisão que cada um pode tomar, não duma decisão colectiva ou duma ordem ou imposição do Estado. No frontispício das câmaras municipais está escrito «Liberdade Igualdade Fraternidade». A Liberdade, é preciso reconhecê-la em todos, num país democrático, desde que não se prejudique ninguém. Você tem de ser livre. É uma semi-liberdade estrutural, o que não quer dizer «liberdade interior», que é outra coisa. Igualdade: está-se mesmo a ver que é impossível; e igualdade em quê? Igualdade de direito, claro, mas em bens e recursos... Eu substituiria esta palavra por «justiça». E a Fraternidade, isso não se decreta. Não se lhe aponta uma arma à cabeça para lhe dizer que seja fraterno. É qualquer coisa que deriva dum sentimento profundo que nasce em nós, um sentimento de amor pelo outro. A fraternidade deriva, pois, estritamente, da decisão do ser humano na solidão que lhe é própria. Declarações recolhidas por Caroline Bongiraud. In, Biocontact Julho-Agosto 2008