2 O mistério do mal e a queda do ser humano Após o estudo da questão da criação do mundo e do ser humano, Antigo e Novo Testamento, com suas implicações teológicas, concluiu-se que o ser humano é chamado a comunhão com Deus e vive esta comunhão no estado original da criação. O ser humano foi chamado para a amizade com Deus e nessa perspectiva é que tem sentido falar do pecado, e mais, do pecado das origens do ser humano. Torna-se incompleto, o estudo da queda do ser humano do estado original, sem ter em vista antes, a graça doada por Deus através do Verbo que participa da criação. O primeiro Adão foi criado já em vista do segundo Adão, Jesus de Nazaré. O texto do Genesis 3, é iluminado pelo Novo Testamento, que anuncia a salvação universal de Jesus para vencer a solidariedade do pecado intuída pelo Antigo Testamento. Vale lembrar que o texto do Genesis não é tratado como livro histórico, científico e jornalístico, no estilo moderno, mas de uma leitura aos olhos da fé em Deus Criador/libertador que chama a criatura a fazer aliança consigo. Por que um pecado da origem da história ainda me afeta? Como posso ser pecador sem meu consentimento? Ainda existe pecado ou tudo é questão de relacionamento psicológico/social? 2.1 Fundamentação bíblica a) Gn 3/ Gn 6,5-6 / Gn 6, 11-12: a experiência universal da pecaminosidade humana. Nos capítulos anteriores, a narrativa bíblica mostra o estado original querido por Deus, chamado paraíso. É a plena harmonia da criação, sem pecado ou morte, sem sofrimentos e conflitos. No capítulo três abre o episódio com a tentação da serpente e da mulher. O texto mostra o realismo da condição humana que não conseguiu estar a altura da condição original e sente a sua miséria, contudo, não atribui a Deus a causa do pecado, mas sim, na sua existência limitada e criatural. O autor sagrado descreve um quadro de degradação moral sofrido por Adão depois da desobediência. Enganado pelo diabo e aceitando seu orgulho, deseja conhecer o bem e o mal tornando-se autônomo diante de Deus. É este o pecado primeiro que gera uma longa cadeia de pecados contra a harmonia: como Caim que rebela-se contra a ordem social e familiar, e com Lamec de toda a ética civil. Tem-se três pecados capitais: o suicídio moral com a autonomia de Adão, o fraticinio de Caim e o homicídio de Lamec.1 Gn 3,1-7: o pecado de Adão e Eva descreve como se fez a passagem da situação ideal do paraíso para a situação real da experiência diária. Serpente: No relato genesíaco a serpente não é satanás, mas seu interlocutor. Somente a literatura hebraica tardia fez a identificação da serpente com o demônio. Para seduzir o ser humano, o mal, personificado na serpente, reveste-se de brilho enganador. O mal sob aparência de bem é a forma como satanás captura a vontade e a liberdade do humano: “o mal se prende nos laços da beleza, como um escravo coberto de correntes de ouro; estes laços o escondem até que sua realidade seja invisível aos deuses, até que não seja mais percebido pelo olhar humano”2 Para alguns a serpente representa o simbolismo da religião cananéia e seu culto da fertilidade que seduziram Israel a idolatria. Os cananeus eram um povo que morava na Palestina antes dos hebreus. Sua religião era centrada no culto a fertilidade. Não exigia nenhuma exigência ética e sacralizava a prostituição sagrada. A prostituição sagrada era vista como uma tentativa mágica e supersticiosa de vencer a morte e possuir a vida. O símbolo da serpente também aparece na mitologia pagã. A serpente é chamada leviatã e é símbolo do mal contraria a Deus. A serpente era a grande ameaça que levava o povo a abandonar a lei de Deus.3 Outros, a serpente sendo a projeção da tendência pecaminosa do ser humano. Em todo o caso, o mais importante é o que ela diz. A tentação por excelência de afirmar o ser humano como autônomo e absoluto no lugar de Deus. A pretensão humana de transgredir seus limites esbarra na questão do método para atingir isto: o ser humano tende a superar limites, mas pode fazer isto na obediência a Deus ou de forma autônoma. O mais importante é a sua tentação: sereis deuses. A tentação da divinização humana é complexo. Há promessa da divinização para o ser humano, mas pela graça de Cristo que nos diviniza pela ressurreição, nos deifica. O problema é a divinização feita 1 Cf. TESTA, E. Genesi, p. 81. Cf. PLOTINO, Enneadi, Bari, 1947-1949. VIII. Trattado della Eneade. 3 Cf. MESTERS, C. Paraíso terrestre: saudade ou esperança? p. 57-59. 2 pela idolatria humana em si mesmo. É a divinização do humano por si mesmo, que gera a autonomia na relação com Deus. No jardim há duas árvores que desempenham papel decisivo. A árvore da vida e do conhecimento do bem e do mal. Na Bíblia, vida, não significa apenas a vida biológica, mas a vida teológica. É uma vida plenificada pela comunhão com Javé. A árvore da vida no centro significa que a vida do ser humano procede da centralidade de Deus. Pecaminosidade universal do ser humano: A revelação bíblica começa com uma pedagogia progressiva que denuncia a pecaminosidade universal do ser humano e com a salvação universal de Jesus Cristo. O mundo criado por Deus é bom no qual o ser humano, imagem de Deus, preside de forma harmônica a criação. Mas depara-se com a experiência da tentação da ruptura com a aliança feita com Deus. O pecado de Adão tem conseqüências cósmicas e afeta sua própria existência com a perda dos dons preternaturais (imortalidade e integridade física) A imortalidade não se refere a dimensão biológica, mas a questão da não- dramaticidade do peso da morte como acontece depois do pecado de Adão. A morte como salário do pecado. O relato da queda de Adão e Eva revela a transmissão da pena do pecado para toda a humanidade. O ser humano perdeu a santidade e a justiça original, mas a natureza não esta totalmente corrompida. No relato bíblico não está escrito o termo “Pecado original”, o texto revela a universalidade do pecado na humanidade e na criação. Diante de Deus todos somos pecadores e ninguém é justo. Os vocábulos bíblicos hata, pasa e awah giram o campo do pecado, da ruptura e distorção das relações interpessoais e com o Criador. A pecaminosidade faz o crente recusar a ouvir a voz de Deus e fugir da sua presença. Israel entende-se na solidariedade com toda a família humana. O ser humano criado a imagem e semelhança de Deus se aliena de si mesmo. Um ato individual não se restringe apenas a si mesmo, mas se universaliza. Um ato de uma pessoa (maldição ou bênção) afeta a comunidade toda e até gerações seguintes. Ocorre a transferência de culpados por causa da queda. A vergonha mostra a ruptura com Deus e gera uma troca de acusações. O mecanismo de desculpas segue a transferência de culpa. O homem transfere a culpa para a mulher dada por Deus. O homem se torna acusador da mulher; a mulher de sedutora de Adão se sente seduzida pela serpente e transfere a culpa para a serpente. O homem coloca na mulher o nome de Eva, mãe de todos os viventes, que não perde o dom da maternidade, mas a vive com dores de parto. Gn 3,8-24: o castigo divino provocado pelo pecado. Na descrição se reconhece a situação concreta da vida humana dominada pela ambivalência e morte. Onde procurar a causa desse mal-estar? As religiões antigas diziam que tudo era influencia dos deuses e por isso, há uma situação de passividade fatalista diante do sofrimento. Não há como reagir se os males veem dos deuses. Na Bíblia descreve outra opinião porque o Deus bom e justo não faria o mundo assim.4 Deus dirige a penitência para cada um dos personagens da cena: para a serpente: oposição e se rastejar; A mulher deve sofrer as dores de parto e a relação de conflito com o homem. O homem resta o trabalho penoso na terra. A vergonha da nudez também não é castigada por Deus que entrega a túnica como sinal da dignidade. O ser humano permanece com dignidade inerente e protegido contra os atentados da vida. b) A salvação universal de Jesus Cristo, novo Adão O texto por excelência para a resposta ao pecado de Adão e que serve de base escriturística importante para a formação da doutrina do pecado Original é o texto de Rm 5,12-21. Mas acrescenta-se um corpus paulino sobre o tema: Gl 3,22; Rm 8,19; Ef 2,1-3. Na carta aos romanos capitulo 5: é na aceitação de Cristo que o ser humano vence o pecado. Nesse trecho temos uma situação de pecado anterior ao nascimento do ser humano. A palavra grega Hamartía que gera um estado de morte que alcança a todos. O pecado aparece como um poder anterior à escolha pessoal (hamartía) e com esse estado de pecado anterior, cada ser humano cede e passa a ser responsável pelo pecado (hémarton). O texto paulino de Rm 5,12 é a referência escriturística privilegiada para a doutrina do pecado original. Em são Paulo, a morte não se esgota no valor físico, mas uma situação 4 Cf. MESTERS, Carlos. Paraíso terrestre: saudades ou esperança?, p. 20. teologal de ruptura com Deus. O pecado é o salário da morte, conforme Rm 6,23. A morte é oposição à vida em Deus. Em Adão todos morreram e em Cristo todos reviverão. São Paulo mostra que todos pecaram. Os pagãos se perderam na idolatria e o judeu nas transgressões contra a lei de Deus. Por isso todos necessitam da salvação gratuita de Jesus. A harmonia na qual estava estabelecida a graça na justiça original está destruída, a união entre o homem e a mulher, a harmonia com a criação está rompida. Por causa do humano a criação esta submetida à corrupção, conforme Rm 8,20. A morte entra na história da humanidade. A partir do primeiro pecado, uma verdadeira invasão do pecado no mundo, começa o fratricídio cometido por Caim contra Abel, a corrupção universal. O pecado de Adão se tornou o pecado de todos os seus descendentes porque representa todo o gênero humano. Adão e Eva cometeram um pecado pessoal, mas este afeta toda a natureza humana. Para a humanidade o pecado é propagado pela transmissão de uma natureza decaída privada da santidade original. Para o restante da humanidade é um pecado contraído, é um estado e não um ato pessoal. 2.2 A formação teológica da doutrina do pecado original “Na história da doutrina do pecado original, dois momentos fundamentais merecem atenção: Santo Agostinho e a crise pelagiana, e o Concílio de Trento, cujo decreto ‘de peccato originali’ constitui a declaração magisterial de mais alto nível e mais completa sobre o assunto”.5 Uma primeira constatação é a dificuldade de explicar o mistério do mal, o mysterium iniquitatis. A expressão latina peccatum originale difundida por Santo Agostinho denota o termo original não no sentido de um começo da história humana após a expulsão do paraíso. Original não porque está no inicio de uma sucessão de fatos, mas indica uma realidade totalizante, ahistórica que serve para compreender o ser humano na sua realidade de sofrimentos. 5 LADARIA, L. Introdução à antropologia teológica, p. 88. Pelagio6 acreditava que o ser humano pela força natural e sua vontade livre poderia levar uma vida moral boa. Assim, Adão e Cristo se tornam exemplos de desobediência e obediência para o ser humano, mas sem modificar a natureza humana na sua raiz. Cristo não é o salvador do gênero humano, é apenas um bom exemplo. É a pessoa que tem a capacidade de sozinha vencer o mal. Pelágio, “patrocinador de uma forma de naturalismo otimista bem intencionado que, inspirando-se em motivações do pensamento estoico, reage contra o determinismo fatalista, procedente do maniqueísmo (...)”.7 O ser humano é bom em si mesmo e tem a capacidade de não pecar. Assim, entre em choque com a questão da graça. Pelagianismo: sem a graça, o ser humano pode observar todos os mandamentos; negam o pecado original, é apenas um mau exemplo de Adão; a graça é um auxilio externo para o ser humano viver os mandamentos. Não negam a graça, mas ela é apenas uma força extra para cumprir os mandamentos de Deus; aparece o esquema da autosuficiencia do homem frente a redenção de Jesus. Se a graça é apenas um auxilio para o que o ser humano consegue sozinho, desmorona a base do cristianismo: a salvação redentora de Jesus. Santo Agostinho apresenta a exposição sobre a doutrina do pecado original. O gênero humano, por causa de Adão pecou, massa condenada, toda a natureza esta afetada; o ser humano sem a graça interna não pode ser bom e evitar o pecado; antes de qualquer mérito existe a graça que nos salva; Se Adão se torna apenas um mau exemplo, então, Cristo também torna-se apenas um exemplo e não o salvador da humanidade. 2.3 A doutrina do pecado original nos concílios e no catecismo a) Cartago (418): a graça da justificação consiste na remissão dos pecados e no auxilio para não pecar; afirma a existência do pecado original; os santos sozinhos são impotentes de evitar o pecado. 6 Sobre Pelágio. Uma intenção de Pelágio é a luta contra o maniqueísmo que ensinava a dualidade do ser humano. Para a defesa da pessoa humana, afirmava que a natureza humana é boa e naturalmente consegue fazer o bem. Porém, Pelágio exagera nas suas afirmações e cria uma controvérsia sobre a real necessidade de Cristo para a salvação do ser humano, que sendo bom conseguiria salvar-se sozinho. O pelagianismo como sistema mais radical provem dos discípulos de Pelágio, como Celestio, Julião de Eclana. 7 RUIZ DE LA PEÑA, J. L. O dom de Deus: antropologia teológica, p. 111. b) Orange (529): após a resolução de Cartago, surgem o semi-pelagianismo, que consiste em afirmar a vontade universal de salvação não pode admitir que a salvação ou a condenação do ser humano dependa da escolha divina. Eles reagem as posições rígidas de Agostinho sobre a predestinação. Assim, Orange ensina um Agostinho mais moderado. O concilio afirma: toda a iniciativa vem de Deus; a graça antecede a todo esforço humano; c) Concílio de Trento (1545-1564): este concílio apresenta justamente o problema inverso da questão de Santo Agostinho. Diante da tendência de Lutero de considerar a natureza humana totalmente corrompido pelo pecado, Trento necessita afirmar que esta natureza humana, embora afetada pelo pecado, possui valor no que é substancial e recebe a justificação pela fé que o transforma interiormente. O Cânon 5 é importantíssimo: o pecado original não pode ser identificado com a concupiscência, que permanece com o batizado, mas exercem tamanha influência pela graça de Cristo. d) Concilio Vaticano II (1962-1965): GS 13; o ser humano estava no estado de graça e justiça, mas instigado pelo maligno, abusou da liberdade e desviou-se da relação com Deus. O ser humano rompendo sua relação com Deus prefere a criatura ao seu Criador e nisso aliena-se a si mesmo, está dividido em si mesmo e se diminui enquanto homem. e) Catecismo da Igreja Católica: n. 385-421; o ser humano tem a experiência do sofrimento, da morte e do pecado na história humana. À luz da revelação reconhece que o pecado é um abuso da liberdade humana contra os desígnios do Criador. O Catecismo afirma: todos os homens estão implicados no pecado de Adão. A Igreja administra o batismo para perdão dos pecados, mesmo para crianças que não cometeram pecado. O pecado de Adão e Eva foi um pecado pessoal, mas afeta todo o gênero humano; o pecado será transmitido por propagação à humanidade inteira. É um pecado contraído e não cometido, é um estado e não um ato. O batismo apaga o pecado original, porém suas consequências permanecem. A natureza humana não é totalmente corrompida, mas enfraquecida e inclinada para o mal, necessitando de um combate espiritual. 2.4 A experiência do mal: por que o mal se Deus é bom? As perguntas que recaem sobre Deus a respeito do mal: Se Deus é todo poderoso, amoroso e bom, por que o mal? Ou Deus não tem poder; ou Deus não quer ajudar; ou Deus não é bom; “ou Deus quer tirar o mal do mundo, mas não pode, ou pode, mas não quer tirá-lo. Ou não pode nem quer. Ou pode e quer. Se quer e não pode é impotente. Se pode e não quer, não nos ama. Se não quer nem pode, não é Deus bom, e além disso é impotente. Se pode e quer - e é apenas ai que, como Deus se enquadra – de onde vem então o mal real e por que não o elimina?”8 O mal é o que há de mais temível e inqualificado que revolta o coração e a razão humana. A teologia e o racionalismo moderno tenta colocar o mal dentro de um discurso para dar-lhe justificativa e explicação. Mas o mal é o irracional e o injustificável por excelência. “Temido desde sempre, o mal o é ainda hoje, depois que nos tornamos sensíveis mais do que nunca ao mal-desgraça, imerecido, aquele que cai sobre o inocente e sobre a coletividade. O mal individual que se contra o culpado poderia valer-se de uma aparência de justificação em razão de certa proporção que poderia ser estabelecida entre o mal feito e o mal sofrido. Mas aqui qual é a relação? Ainda mais que a modernidade retira a explicação da fatalidade dos deuses ou do heroísmo diante da mal”.9 Na tradição do Livro do Gênesis a origem do mal é entendida como surpresa, como o que não foi previsto. Na Teologia da Criação o mal não foi pensado e por isso não foi criado. É por isso que o mal é desprovido de sentido, é um irracional absoluto. O crente apenas pode dizer que o mal apareceu. Esse é um fato inegável, mesmo que ele não tenha sido pensado. Para o livro do Gênesis o mal tem uma origem. Ele vem de um desconhecido representado pela serpente, símbolo da religião Cananéia do tempo da redação do livro das origens. A serpente foi muitas vezes identificada com o demônio, o rebelde, o acusador, o divisor, o adversário. A primeira constatação que o relato permite é que o mal não vem de Deus nem da criatura humana.10 A ação da serpente demoníaca é uma surpresa. No meio da criação boa e harmoniosa ela aparece sem se afirmar de onde vem. Ela está fora do plano criador, fora da lógica. Essa presença adversária não evoca uma culpabilidade para Deus e nem para o ser humano, de tal forma que, segundo o Gênesis, a única responsabilidade pela entrada do mal nesse contexto é da serpente. Ela entra em cena de forma acidental e provoca a desgraça. Com 8 Cf. RUIZ DE LA PENA, Juan. Teologia da criação, p. 141, citando Andres Torres Queiruga. Cf. GESCHÉ, Adolphe. O mal, p. 41. 10 Texto de teologia: a serpente intrusa. 9 Sartre é possível pensar que “o homem é um ser para o qual alguma coisa aconteceu”11. O mal, portanto, é concebido como um acidente, uma desgraça que surpreende o ser humano das origens e é inesperado no projeto da criação. Nesse sentido, biblicamente, não se sustenta uma reflexão que procure identificar culpados e criadores para a presença do mal no mundo.12 Olhar o mal como acidente, como irracionalidade, permite inocentar Deus e o humano do problema da responsabilidade do mal. Evidencia-se o quanto o Criador e a criatura são vítimas desse invasor que o mito das origens evoca. Tal perspectiva, contudo, não isenta a Deus e ao ser humano de se questionarem sobre as possibilidades de se livrar do mal. Longe de explicar a gênese do mal, todo pensamento bíblico destacará a importância de anular a força destruidora sobre a criação divina. A grande questão a ser enfrentada pelo homem bíblico não é a origem do mal, mas sua superação. Segundo Ricoeur a forma especificamente religiosa de tratar o mistério do mal remete sempre à linguagem da esperança13. O homem religioso há de se ocupar mais com a superação da força do mal do que especular sobre o sentido e gênese do problema. Se o fizer, será para encontrar formar de cessar o efeito maligno sobre a vida e a história.14 Ao abrir os textos bíblicos temos o mal como uma surpresa, algo que não foi previsto. O mal vem de algum lugar. O mal é mostrado vindo de um desconhecido, o demônioserpente, único responsável-culpado. O mal não faz parte do plano de Deus, situa-se no lado de fora. Na primeira instancia o mal não deve ser procurado nem no lado de Deus nem do lado do homem. O mal é uma surpresa para Deus. A serpente, representa a presença do mal, pega Deus e o ser humano de surpresa, que acaba consentindo com o mal, mas que o antecede. Deus caminha no jardim do Éden e pergunta: Adão, onde estás? E para Eva: o que foi que tu fizeste? O mal, no primeiro momento, não se fala em termos de responsabilidade ou culpabilidade, mas de um acidente, uma desgraça nos planos de Deus.15 11 SARTRE, J. P. Cahiers por une morale. Paris, 1983,p.51. Texto de teologia: a serpente intrusa. 13 RICOEUR, P., Finitude et culpubilité. Paris, 1960, P.341. 14 Texto de teologia: a serpente intrusa. 15 Cf. GESCHÉ, Adolphe. O mal, p. 44-45. 12 Primeiro lugar, ver o mal como desastre e não como culpabilidade permite mobilizar uma verdadeira responsabilidade. Se a origem do mal fosse uma culpabilidade, o mal não poderia aparecer como algo irracional a ser combatido porque alguém estaria ligado a ele. A primeira forma diante do mal é que ele não vem de um cúmplice, mas como inimigo absoluto, sem que alguém seja culpado do seu surgimento. O primeiro degrau é de desculpabilização que liberta os agentes para esquivar-se do mal. Retirar a primeira culpa, não sou culpado, não fui eu, é a melhor forma de fazer uma responsabilidade ativa diante do mal. Se encontrarmos primeiramente um culpado não podemos enfrentar responsavelmente o mal. O homem não é culpado nem cúmplice do mal, mas vitima do mal. “Se Deus e o homem saem assim inocentados na narrativa teológica do Genesis, o verdadeiro e o primeiro problema da responsabilidade pode então ser colocado: como agir diante do mal, o que é preciso fazer, como sair dele? Uma responsabilidade de salvação toma o lugar de uma responsabilidade de perdição.16 2.4.1 A malicidade do demônio: o anjo decaído Conforme o Catecismo, antes da opção de pecados dos primeiros pais há uma voz sedutora que se opõe a Deus. A Escritura e a Tradição da Igreja veem neste ser um anjo decaído chamado Satanás ou diabo. A Igreja ensina que era um anjo bom criado por Deus, mas por opção revoltou-se contra o Criador. Por contemplarem a Deus no Céu, o pecado dos anjos não pode ser perdoado. Não existe arrependimento depois da queda dos anjos. A permissão divina para a atividade diabólica na criação é um mistério. (Existem teorias teológicas que ainda ensinam que no fim dos tempos haverá a conversão de todos, mesmo do anjo decaído, exemplo Origines). Cristo é o centro do mundo angélico. São seus mensageiros do projeto de salvação. Na liturgia, a Igreja se reúne com os santos para adorar o Deus três vezes santo e invocar sua assistência. Da infância até a morte, a vida humana é protegida pelos anjos. O catecismo retoma São Basílio: cada fiel é ladeado por um anjo como protetor e pastor para conduzi-lo á vida (cat 329). 16 Cf. GESCHÉ, Adolphe. O mal. P. 45-46. Em termos bíblicos, não se consegue afirmar a existência de uma individualidade chamada Satanás ou Diabo. É a afirmação teológica e doutrinal que afirma que existe uma pessoa, individual que é a personificação do mal. Os documentos ensinam: o diabo é uma criatura de Deus, não é um princípio incriado; O Papa Leão I escreve: a substância de todas as criaturas é boa e que não há nenhuma natureza do mal, pois Deus fez tudo bom. Daí segue que o diabo seria bom se permanecesse na verdade, mas porque usou mal sua excelência passou para uma substância contrária. O Papa João III: se alguém diz que o diabo não foi anteriormente um anjo bom feito por Deus e que a sua natureza não foi obra de Deus, mas diz que ele saiu do caos e das trevas e não há quem o tenha criado, sendo ele mesmo e o princípio e também a substância do mal, seja anátema. O IV Concílio de Latrão confirma os enunciados da bondade inicial do demônio e sua condenação eterna. O Catecismo ensina a queda dos anjos, na sua liberdade rejeitaram a Deus, e por isso não podem ser perdoados de sua rebeldia (cat 391-395). Se o mundo é obra de um Criador bom e onipotente, como entender a presença do mal na criação? A resposta clássica se construiu como contraponto a duas correntes: à gnose, para quem o mundo é imperfeito porque é obra de um demiurgo e não do Deus supremo; e ao maniqueísmo que afirmava a existência substancial do mal tanto quanto do bem. O ser humano entra na história do mal não como primeiro culpado, mas como um “segundo” culpado. O ser humano cedeu a sedução do mal, foi surpreendido. O mal não provem do ser humano, o mal não é inerente a condição humana, mas entra em consentimento ao mal. O pecado que é o mal que o homem comete, não é uma invenção, mas um consentimento. O pecado, que vem de fora do ser humano, é o que pode ser perdoado enquanto o mal será vencido pela graça de Deus.17 O ser humano sente a fragilidade de sua condição em evitar a sedução do mal. Alem da fragilidade humana aparece outro tema do mal: a sedução. A sedução está na arte de apresentar o mal como sendo um bem. Para o cristianismo, a partir da tentação, o culpado é também uma vitima. Não que ele e sua vitima devam ser confundidos. O homem culpado, na visão cristã, não é um culpado absoluto. O tema da sedução nos 17 Cf. GESCHÉ, Adolphe. O mal, p. 51-52. mostra que todo culpado é vitima de solicitações, de heranças, do peso de condicionamentos. Para a religião, apontam para o culpado, o demônio. O sedutor é aquele que retira de mim mesmo e me faz cometer algo estranho a minha vontade. O ser humano é seduzido pelo mal, embora não seja culpado, mas deixa entrar o mal na sua vida. O mal é algo fora de nós, por isso, reza-se livrai-nos do mal. Desculpabilizar o homem para lhe dizer que ele não é mau, não tem como finalidade e nem deve ter como efeito desculpá-lo de forma barata, mas coloca-lo diante da verdadeira face e do verdadeiro perigo do mal. A teologia desmascara a malicidade do mal.18 O Pai Nosso, oração que Jesus ensinou aos discípulos, recorre ao tema da tentação. O texto suplica ao Pai que “não nos deixeis cair na tentação”, pois ela sempre existirá. Será sempre um desafio ao ser humano escolher entre o bem e o mal, ser conduzido pela verdade ou ceder à alienação do tentador que afasta o ser de si mesmo. Em seguida, a oração coloca um condicional : “mas livrai-nos do mal”. Correlaciona, assim, a tentação ao mal. Pede-se ajuda para não cair na tentação, mas pede-se que seja livrada a possibilidade de sofrer o mal que toda tentação proporciona. Os dois temas se interligam, pois o mal é o preço, o efeito e a conseqüência devida ao que não resistiu às artimanhas do tentador. O verbo “livrar” exprime um ato externo: pede que Deus liberte. Na oração denota-se o quanto o mal sobrevém de forma surpreendente sobre o ser humano. Por isso o mal não está apenas na intenção , porque existe independente a ela.19 Uma das primeiras respostas vem de Orígenes: “Não suponhas que Deus é a causa da existência do mal, nem imagines que o mal tem uma subsistência própria. A perversidade não subsiste como se fosse algo vivo; nunca se terá diante dos olhos sua substância como existente verdadeiramente”20. Para Santo Agostinho admitir a existência do mal significa fazer uma concessão ao dualismo. Neste caso, o mal não “é”, ele, na verdade é a privação do bem – privatio boni – ele é ausência do que deveria ser. Deus portanto, não é a causa do não-ser21. 18 Cf. GESCHÉ, Adolpho. O mal, p. 56-57. Texto de teologia: a serpente intrusa. 20 De Princ. II, 9,2, in Joh. II, 17, PG 14,137. 21 Cf. Conf. III, 7,12 19 O amor revelado sobre a cruz indica para todos – crentes e não crentes que estão em busca da verdade – o bem que salva e se oferece como luz e força também para superar os tormentos do mal. O que nos leva a procurar intensamente o Deus revelado na Páscoa é também o seu contrário, isto é a negação da potência. O verdadeiro bem é negado onde o mal parece triunfar, onde a violência e o ódio tomam o lugar do amor e a prepotência da justiça. Mas o verdadeiro bem é negado, também, onde não existe mais alegria, especialmente lá onde o coração do crente parece ser preso à evidência do mal, onde falta o entusiasmo da vida de fé e não se irradia mais o fervor de quem crê e segue o Senhor da história. Em Jesus revela-se o anti-mal, o Novo Adão. Na quenose, nem o Filho amado do Pai ficou livre da condição de sofrimento, finitude e morte. Há uma força ôntica do mal. A necessidade da paixão de Cristo está além da ira de Deus ou da vingança do Pai na Cruz. No sim de Jesus ao madeiro da vergonha está a resposta ativa de Deus contra o mal. Jesus sempre toma partido nessa relação entre o ser humano e o mal. Ele sempre é o sim de Deus ao ser humano. Defende o pobre e o desprezado, ajuda o enfermo e o necessitado, perdoa o pecador. Em Jesus torna-se blasfêmia pensar num deus que manda o mal porque quer. Deus suporta que matem Jesus assim como suporta a presença do mal no mundo. Mas permanece sempre do lado contrário à violência, ao mal. O crente cristão já sabe que todo o que chora, passa fome e sede, que é injustiçado e violentado, é um bem-aventurado, porque a vitória lhe está garantida em Jesus. Isso impede a acomodação e alienação em aceitar a situação do mal e impele a trabalhar contra o mal nas trilhas da não violência que Jesus Cristo apresenta.22 Para o cristão importa saber como Jesus enfrentou a questão do mal. Diante do mal, Jesus viveu no combate para vencer o mal. Tratou o mal de forma séria, não trivializou nem entrou no desespero do mal. A resposta de Jesus ao mal foi o amor. Amar os justos é mais fácil, mas Jesus ama os que não recebem amor. Jesus nos seus ensinamentos salva a pessoa e não os atos. Junto com o amor está a fé. A confiança que Jesus deposita no Abba diante do mal. Mesmo na cruz, no seu grito de abandono, Jesus sente o drama humano do sofrimento irracional e da dor. A atitude de Jesus foi ativa diante do mal, suas bem aventuranças demonstram sua posição de vencer o mal.23 22 23 Texto de teologia, a serpente intrusa. Cf. RUIZ DE LA PENA, Juan. Teologia da criação, p. 146- 149