Como Distinguir os Livros Inspirados por Deus?
1. Diversos têm sido, nos últimos séculos, os critérios propostos para se
resolver tal questão. Eis os mais invocados:
a) a índole mesma do livro examinado, ou seja, a sublimidade de sua doutrina,
o encanto singular de seu estilo, a sua aptidão a suscitar sentimentos piedosos;
b) a experiência do respectivo leitor, o qual durante a leitura da Bíblia sentiria
alegria e deleite, ou seria movido à compunção ou (como queria principalmente
Calvino) perceberia o testemunho interno do Espírito Santo;
c) o fato de ter sido o seu autor Profeta, Apóstolo ou discípulo de Profeta ou
Apóstolo;
d) o testemunho de homens eruditos e a constância dos mártires ao confessarem a índole
inspirada de determinado livro;
e) o estudo da história do cânon (ou catálogo) bíblico.
Todavia estes critérios são, sem exceção, assaz falhos:
a e b) a sublimidade da doutrina e do estilo, assim como as experiências
íntimas do leitor, estão sujeitas à apreciação pessoal de cada um, podendo ser
diversamente estimadas; além disto, tais características podem convir a qualquer livro
religioso (até mesmo ao Corão maometano, na medida em que este corresponde à índole
mística da natureza humana). Constituem, por isto, insuficiente indício de que Deus é o
Autor do respectivo texto.
c) Quanto à dignidade de Apóstolo, Profeta ou discípulo, .ela não se identifica
por si com a de escritor inspirado; Deus pode dar a alguém o carisma para pregar sem
lhe dar luz especial para escrever ou para se tornar autor de um livro bíblico. Ademais
há partes da S. Escritura das quais não se sabe indicar com segurança o respectivo autor
(por exemplo, muitos dos axiomas do livro dos Provérbios se devem a anciãos
anônimos da corte de Israel; pergunta-se qual o autor da epístola aos Hebreus, de Jo
7,53-8.11, de Mc 14,9-20). Doutro lado, sabe-se que há genuínos escritos dos Apóstolos
que se perderam (por exemplo, as cartas de Paulo mencionadas em 1 Cor 5,9; Col 4,16),
Ademais, alguns escritos na antiguidade eram explicitamente atribuídos a Apóstolos ou
discípulos de Apóstolos, sem que fossem tidos como inspirados; tal é o caso da carta
dita «de Barnabé», que Tertuliano e S. Jerônimo asseveravam haver sido escrita por
Barnabé, «Apóstolo dos gentios», mas não pertencer ao cânon dos livros sagrados (cf.
Tertuliano, De pudicitia 20; S. Jerônimo, De viris illustribus 6). — Apesar destas
considerações, alguns exegetas julgam que todos os Apóstolos e discípulos de
Apóstolos gozavam do carisma da inspiração bíblia sempre que escreviam; pode-se
aceitar esta sentença, contanto que se admita outro critério, mais amplo e seguro, para se
afirmar a índole inspirada de determinado livro.
d) Não se poderia dar valor absoluto ao testemunho de homens eruditos e dos
mártires. Embora muito valiosas, nada nos garante que tais asserções gozem de
autoridade superior à falível autoridade de homens.
e) O estudo da formação do cânon bíblico mostra ao historiador o que se deu
no decorrer dos séculos, mas não dá a ver com que direito isso se deu. Feita a
averiguação do que aconteceu, seria preciso ainda discutir a autoridade dos diversos
elementos que influíram na formação do cânon; em outros termos: seria preciso discutir
a autoridade dos bispos, escritores e concílios que, de um modo ou de outro,
concorreram para a estipulação do catálogo sagrado. Donde se vê que o simples estudo
da história do cânon não basta; requer-se um critério, deduzido de outra fonte, que
indique quem tinha e quem não tinha autoridade para falar no assunto. — Em
consequência, muitos protestantes reconhecem que a história do cânon não fornece
solução plenamente segura para o problema (cf, R. Knopf, Einfuehrung in das Neue
Testament. Bonn 1919, 142; F. Watson, Inspiration 1906, 178).
Como se entende, vão seria apelar para a Bíblia mesma em vista de uma
solução, pois nela não se encontra o catálogo dos livros inspirados.
2. Vista a precariedade dos diversos critérios acima assinalados, verifica-se que
não há outro capaz de resolver a questão senão o testemunho da tradição oral, que
sempre acompanhou os livros sagrados. Esta constitui a atmosfera dentro da qual os
hagiógrafos viveram e da qual quiseram consignar uma ou algumas facetas apenas, nos
escritos bíblicos. A tradição oral, sendo anterior à Bíblia, é o único critério para se
elucidarem questões atinentes à Bíblia, a começar pela questão capital: «Quem me
garante o que pressuponho no estudo da Escritura, isto é, que tais, e somente tais, livros
têm autoridade divina?» Naturalmente não qualquer voz da tradição merecerá crédito,
mas, sim, aquele testemunho constante e unânime que, tendo atravessado
ininterruptamente os séculos, hoje se reflete no magistério da Igreja. Será preciso,
portanto, reconhecer o seguinte: desde os primórdios do Cristianismo, o Espírito Santo
foi assistindo aos Apóstolos e aos seus sucessores, os bispos, a fim de que distinguissem
livros inspirados e não-inspirados; as dúvidas que surgiram nos quatro primeiros séculos
a respeito de um ou outro escrito foram finalmente resolvidas de modo autêntico pelos
concílios que desde 393 (concilio de Hipona) definiram o cânon bíblico tal como ele
ainda hoje é reconhecido na Igreja Católica (os concílios reunidos em Cartago nos anos
de 397 e 419 repetiram tal catálogo; o mesmo foi feito pelo Papa Inocêncio I, que em
405 mandou a Exupério, bispo de Tolosa, o elenco dos livros sagrados; o concilio de
Florença em 1441 o reafirmou, assim como os concílios de Trento, em 1546, e do
Vaticano em 1870).
Observe-se, de resto, que a própria Escritura apela para a tradição oral como
para o tesouro onde se deve procurar a solução dos pontos obscuros que a Bíblia mesma
não resolve. Assim, por exemplo, Paulo admoesta Timóteo a ler as Sagradas Escrituras,
cujo sentido o Apóstolo lhe elucidou por via oral; com outras palavras: recomenda a
leitura das Escrituras à luz daquela tradição oral que Timóteo por sua vez deverá
transmitir a seus discípulos:
«Tu permanece naquilo que aprendeste e de que foste inteirado, sabendo de
quem o aprendeste. Desde a tua meninice conheces as sagradas letras, que podem fazerte sábio para a tua salvação... E. o que de mim entre muitas testemunhas ouviste confiao a homens fiéis, que sejam idôneos para também ensinarem a outros» (2 Tim
3,14s; 22).
São Pedro, por sua vez, acautela os cristãos contra qualquer interpretação
subjetiva da Escritura, recomendando de novo fidelidade ao ensinamento comum oral
que sempre acompanha e ilumina a Bíblia:
«... sabendo primeiramente isto: que nenhuma profecia da Escritura é de
particular interpretação... E tende por salvação a longanimidade de Nosso Senhor, como
também o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi
dada. É o que ele faz em todas as suas cartas, nas quais fala desses assuntos. Nelas há
pontos difíceis de entender, que os indoutos e inconstantes torcem, como Igualmente
torcem as outras Escrituras, para sua própria perdição» (2 Pdr 1,20; 3.15s).
Em seu bom senso, o eunuco da rainha dos etíopes julgou que era incapaz de
interpretar por si, sem magistério oral, o texto da Escritura : «Como poderei entender se
alguém não me ensinar?» (At 8,30).
3. Tão íntimo é o nexo vigente entre a Bíblia e a tradição oral que quem nega o
valor desta se priva da única fonte donde se pode depreender com certeza a índole e a
autoridade dos livros sagrados. Negada a tradição oral, a autoridade da Sagrada
Escritura é fundada sobre o sentimento ou os conceitos subjetivos do leitor, e cedo ou
tarde vem a ser minada ou mesmo removida; os mais adiantados mostres modernos do
Protestantismo já chegaram a considerar as Escrituras como simples testemunho da
consciência religiosa dos antigos cristãos, testemunho que não difere essencialmente do
dos demais livros da cristandade primitiva. Ou o cristão guarda a Bíblia e a Tradição
oral inteira ou acaba nada mais guardando do depósito revelado.
Dom Estêvão Bettencourt (OSB)
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