Anencefalia, Genética e o Sistema Único de Saúde: pela vida com dignidade Uma luz no fim do túnel surgiu por muito pouco tempo em 2004: mulheres grávidas de fetos com anencefalia, malformação cerebral grave e incompatível com a vida, puderam optar por uma antecipação do final da gestação, pela abreviação de um luto prolongado e sofrido. Não seriam mais condenadas duplamente: pela perda do filho que nunca teriam de fato, e pelo “crime” cometido ao tentar antecipar o parto como aborto ilegal, para que esta tristeza durasse o mínimo possível e suas vidas pudessem ser reconduzidas. A luz se apagou. Provisoriamente, espera-se. Nas mãos do Supremo Tribunal Federal está a tarefa de julgar esta questão. Uma questão de direito, de autonomia do casal, de vida. Qual direito à vida é julgado? Aquela vida que irá se apagar tão logo se dê à luz? Ou aquela que fica, sofrida, torturada, condenada como criminosa, apenas por tentar abreviar seu sofrimento frente ao inevitável? Cerca de metade dos bebês com anencefalia morre ainda durante a gestação; praticamente todos os demais vão morrer antes das primeiras 48 horas. A condição é inexoravelmente letal. A anencefalia pode também ser acompanhada de malformações adicionais (fendas na face, malformações digestivas, cardíacas, renais, entre outras). Muitos casos de anencefalia ocorrem por deficiência de ácido fólico; alguns estão relacionados a alterações genéticas que podem voltar a ocorrer em outros filhos. Recorrências deste problema tão grave podem ser prevenidas com o aconselhamento genético. Várias mulheres, diante do diagnóstico de anencefalia vêm buscando na justiça autorização para interrupção da gestação. Caso o Supremo Tribunal Federal julgue que a decisão por antecipar o parto nesses casos cabe à mulher, não haverá mais necessidade de ficar a mercê de convicções individuais de juízes. Não mais serão consideradas criminosas, além da dor pelo filho perdido, pela vida que nunca será de fato. Ainda durante a gravidez, ou após seu triste final, vem à tona a questão: por quê? Qual o risco desse problema voltar a acontecer? Quando acompanhada em serviço de genética médica, esta mulher passa por aconselhamento genético, sendo informada quanto a riscos de recorrência e possibilidades de prevenção em futuras gestações. Em outubro de 2004 o Departamento de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde instituiu um grupo de trabalho, que incluiu membros da Sociedade Brasileira de Genética Médica (SBGM), para sistematizar uma proposta de Política Nacional de Atenção à Saúde em Genética Clínica e implementar o mais rápido possível sua inserção no SUS. O produto deste trabalho, um documento completo – Política Nacional de Atenção Integral em Genética Clínica – hoje, quatro anos depois, ainda não foi viabilizado politicamente. A especialidade trabalha com um grupo de doenças com repercussões significativas e de relevância crescente para a saúde comunitária, sobretudo as malformações congênitas, retardo mental e doenças degenerativas. Se uma ferramenta de saúde preventiva de baixíssimo custo – o Aconselhamento Genético – para a qual médicos geneticistas são treinados, fosse acessível aos usuários do SUS, o problema seria minimizado. Importante ressaltar que a estruturação de uma Política Nacional em Genética Clínica não envolve necessariamente o aumento de custos, mas, sobretudo o aproveitamento da rede já existente. O reconhecimento e formalização da genética clínica como especialidade médica na rede pública de saúde permitiria a criação de novos pólos de atendimento. Mulheres que passaram pela infelicidade do diagnóstico de malformações em seus filhos serão acolhidas e orientadas a tomar suas próprias decisões, preferencialmente sem o risco de serem consideradas criminosas quando decidirem pela abreviação do sofrimento, tendo todas acesso ao aconselhamento genético e a informações sobre riscos e possibilidades futuras de prevenção. Apenas é possível exercer autonomia com informação; a implantação da genética no SUS será uma grande aliada neste exercício de autonomia e direito à dignidade.