REVISTA REDAÇÃO
PROFESSOR: Lucas Rocha
DISCIPLINA: Redação
TERRORISMO: pode acontecer aqui?
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DATA: 21/04/2013
(LEOPOLDO MATEUS, MURILO RAMOS, LEANDRO LOYOLA,
MARTHA MENDONÇA e FLÁVIA TAVARES)
O atentado de Boston aumentou a preocupação das autoridades brasileiras com ações terroristas na Copa. Para o
Ministério Público, estamos atrasados...
PRONTOS - Policiais do Bope treinam operação no Corcovado. Polícias e Forças Armadas se preparam para garantir a
segurança na Copa e na Olimpíada (Foto: Alexandre Vieira/Ag. O Dia)
O QUE diferencia o terrorismo do simples homicídio está no nome. Seu objetivo é aterrorizar. Não os mortos, cujas
vidas são interrompidas sem que eles nem saibam o motivo. O terrorismo espalha o medo entre os vivos, e seus efeitos não
escolhem grupos sociais nem respeitam fronteiras. Prédios de escritórios, bares, aviões comerciais, trens, metrôs, hotéis,
nas Américas, na Europa, na África ou na Ásia: qualquer lugar pode ser alvo de uma ação terrorista, desde que ela possa
causar um grande número de mortos e espalhar medo. Com 500 mil pessoas nas ruas para acompanhá-la, a Maratona de
Boston era um alvo potencial. O Brasil não tem histórico de atividades terroristas, mas organizará, até 2016, alguns dos
maiores eventos esportivos do planeta, com a presença de delegações de todas as partes do mundo. O Brasil pode ser
escolhido por algum grupo armado como palco de um ataque? Sim. O país pode garantir que um atentado, caso planejado,
não aconteça? Essa é a missão das autoridades brasileiras.
Na última quinta-feira (18), às 10h30, o ministro da Defesa, Celso Amorim, reuniu-se com seus principais auxiliares.
Queria saber como andam os preparativos para garantir a segurança durante a Copa das Confederações, marcada para
junho próximo, e na Copa do Mundo, no ano que vem. A reunião ganhou contornos mais preocupantes após o atentado
à bomba em Boston. Amorim estava especialmente interessado nas informações do general Marco Antônio Freire Gomes,
comandante da Brigada de Operações Especiais, localizada em Goiânia. Freire Gomes é o responsável pelo destacamento
encarregado das ações contraterrorismo durante grandes eventos. Essa elite militar conta com 1.200 homens especializados
em atividades delicadas, como o desarme de bombas e artefatos químicos e radiativos. Entram em ação em situações
extremas. Para um país com histórico pacífico, tamanha preparação pode até parecer desmedida. A natureza do terrorismo,
revelada na tragédia de Boston, prova que não é.
Os preparativos para a segurança dos grandes eventos começaram há cerca de dois anos. O governo federal distribuiu
a responsabilidade da organização entre o Ministério da Defesa e o Ministério da Justiça. Criou até a Secretaria
Extraordinária de Segurança para os Grandes Eventos (Sesge), responsável por organizar as ações de segurança pública. É
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da Sesge a responsabilidade de proteger aeroportos, estradas, portos, rede hoteleira, locais de exibições públicas, pontos
turísticos e colaborar nos estádios e centros de treinamento. Até a Copa do Mundo contará com quase R$ 1,2 bilhão para
comprar equipamentos e distribuir a Estados e municípios. Ao Ministério da Defesa, cabe organizar a proteção ao espaço
aéreo, à área marítima e hidroviária, a usinas hidrelétricas, a subestações de energia e às fronteiras. No caso das fronteiras,
há uma divisão de tarefas com a Sesge. Para cumprir sua missão, o ministério conta com R$ 768 milhões. As ações de
segurança na Copa serão coordenadas nacionalmente pela Sesge e pelo Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas
(EMCFA).
As iniciativas do governo, em suas várias esferas, têm sido acompanhadas de perto pelo Ministério Público Federal. O
órgão criou um Grupo de Trabalho, o GT Copa, que produz balanços trimestrais sobre as medidas e os gastos para garantir
a segurança na Copa das Confederações e na Copa de 2014. O último Relatório Parcial, produzido pelo procurador da
República José Roberto Pimenta Oliveira e obtido com exclusividade por ÉPOCA, traz em detalhes o que os órgãos
envolvidos têm – ou não – feito. A conclusão do procurador preocupa. “Considerando que a Copa das Confederações já será
agora e que ela integrava todo esse planejamento, é manifesto que as providências estão atrasadas”, diz José Roberto
Pimenta. “É necessária uma atuação mais eficiente da administração pública.”
TROPA DE ELITE - Treino das Forças Especiais do Exército em Goiás. O grupo tem sido preparado para enfrentar possíveis
ameaças terroristas em território brasileiro (Foto: Celso Junior/ÉPOCA)
No final de 2012, o MPF requisitou de todos os órgãos públicos envolvidos um resumo das medidas tomadas por cada
um até então. Os governos do Rio Grande do Norte, Paraná, Distrito Federal e Amazonas nem sequer responderam.
Também ficaram em silêncio as prefeituras de Manaus, Natal e Salvador. A Sesge disse ter executado, já em 2011, seu ano
de criação, um orçamento de mais de R$ 193 milhões, vindos do Fundo Nacional de Segurança Pública. Ela informou ao MPF
ter estabelecido convênios com secretarias de Segurança estaduais e municipais para comprar equipamentos e investir em
capacitação das polícias e Guardas Municipais. Entre as principais medidas tomadas, está um convênio com a Secretaria de
Segurança do Rio de Janeiro para implementar o Centro Integrado de Comando de Controle Nacional Alternativo (CICCNA),
um centro de operações, em construção, na Praça Onze, centro do Rio. A empresa KPMG foi contratada, por quase R$ 10
milhões, para diagnosticar os serviços de todos os centros locais, instalados em cada cidade sede, de processos operacionais
a tecnologia da informação e comunicação. A Sesge também fechou um Termo de Cooperação com a Receita Federal para
comprar equipamentos a ser instalados nas fronteiras, no valor de quase R$ 40 milhões.
Ainda segundo os dados enviados ao MPF, dos R$ 52 milhões destinados à Marinha, R$ 29 milhões serão aplicados
principalmente em centros de comando e controle e força de contraterrorismo. O restante será distribuído para o corpo de
fuzileiros navais. A Aeronáutica ficou com R$ 63 milhões, dos quais grande parte será aplicada em suprimentos e
manutenção de aeronaves, capacitação de recursos humanos e no sistema de controle do espaço aéreo. O Exército ainda
deve um balanço das medidas tomadas até agora. Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal enviaram ao Ministério Público
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Federal explicações genéricas, com relação à liberação de verbas. A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) informou ter
firmado um Termo de Cooperação Técnica com a Sesge para a implementação do Projeto Arena, destinado à avaliação de
monitoramento de riscos em grandes eventos.
Entre os Estados que já responderam os ofícios do Ministério Público, um dos que mais detalharam suas medidas foi
Pernambuco. O governo local afirmou ter criado a Comissão Estadual de Segurança Pública para grandes eventos, além de
um Comitê Gestor de Ações Estratégicas Integradas. Pernambuco comunicou ainda ter apresentado uma lista de
equipamentos que devem ser comprados pela Sesge e repassados ao Estado, como 118 pistolas elétricas, um conjunto
antibomba e mais de 200 kits de equipamentos. A prefeitura do Rio de Janeiro disse que colocará 8 mil guardas municipais
nas ruas durante o Mundial.
Além de identificar atraso na preparação geral, o MPF diz se preocupar com a existência de dois centros de controle,
um civil e outro militar. “O problema será a comunicação desses centros de controle para ter uma situação relativamente
integrada, pois eles precisam ter uma sintonia perfeita”, diz o procurador Pimenta. A falta de um comando centralizado, seja
na prevenção ou no combate a ações terroristas, já foi um grave problema no passado. No atentado da Olimpíada de
Munique, em 1972, a existência de várias unidades de comando prejudicou a tentativa de salvar os atletas israelenses. Em
2001, nos Estados Unidos, a falta de sintonia entre o FBI e a CIA permitiu que os terroristas da al-Qaeda realizassem os
ataques de 11 de setembro.
ÉPOCA conversou com os responsáveis pela segurança dos grandes eventos brasileiros. Segundo eles, entre as
medidas estratégicas que serão tomadas para minimizar ameaças à segurança à Copa das Confederações e à Copa do
Mundo estão: 1)vistoria prévia de todos os setores dos estádios, com o uso de equipamentos de raios X; 2) revista dos
torcedores, com detectores de metal e aparelhos de raios X, além de imagens de circuitos internos de TV; 3) isolamento de
uma área em torno do estádio, para veículos, num raio de 1 quilômetro a 1,5 quilômetro; 4) criação do Centro Integrado de
Comando e Controle, estrutura de vigilância que concentrará imagens de câmeras instaladas em aeroportos, caminhões,
helicópteros, ruas e informações colhidas por agentes de segurança; 5)em partidas consideradas críticas, alocação de um
agente de segurança para cada 30 torcedores; 6) criação de zonas de exclusão do espaço aéreo, geralmente próximas aos
estádios do Mundial; 7) 10 mil membros das Forças Armadas a postos, como força de contingência para situações
emergenciais; 8) reforço, a partir de maio, da fiscalização das fronteiras; 9) escoltas e batedores para equipes esportivas.
Neste ano, a Copa das Confederações e a Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro, com a presença do papa
Francisco, serão os primeiros desafios das autoridades. O general José Alberto da Costa Abreu, coordenador de Defesa da
Área Rio nos grandes eventos e comandante da Primeira Divisão de Exército, diz que, já para os eventos de 2013, um
efetivo de 7.500 homens estará nas ruas cariocas ou pronto para atuar em ações de defesa – antiterrorismo, defesa química
bacteriológica e controle do espaço aéreo. No aeroporto do Galeão, farão a segurança das comitivas. “Estaremos bastante
invisíveis em nossas funções, o que é importante em eventos esportivos. Estaremos a postos e controlando tudo de nosso
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centro de comando”, afirma. Grupos militares também planejam estar presentes em áreas estratégicas da infraestrutura da
cidade, como reservatórios de água e subestações de energia elétrica. “Muito se fala em terrorismo, mas há tipos de
sabotagem que podem prejudicar o andamento dos eventos, caso falte água ou luz na cidade”, afirma.
O Brasil vem treinando equipes de policiais e militares para que estejam capacitados a enfrentar as situações mais
complexas e arriscadas de um possível atentado terrorista na Copa do Mundo ou na Olimpíada do Rio. A principal delas é o
Batalhão de Forças Especiais do Exército. Seus integrantes são selecionados entre oficiais voluntários vindos da Academia
Militar das Agulhas Negras ou da Escola de Sargentos das Armas. Apenas 30% desses voluntários ganham o direito de
sustentar, na altura do ombro, a designação “Forças Especiais”. O processo de seleção não é para qualquer um – e não há
condescendência. Um militar das Forças Especiais precisa ser forte, ágil, resistente, frio e agressivo. Tem de atirar com
exatidão, saltar de paraquedas e mergulhar com destreza. É a tropa brasileira que mais se assemelha aos Seals, a unidade
de elite da Marinha americana que matou Osama bin Laden, líder da al-Qaeda.
A existência de dois comandos de segurança pode ser um problema na Copa do Mundo
Um galpão de blocos, num terreno do Exército na periferia de
Goiânia, Goiás, é onde as Forças Especiais têm sido treinadas para
emergências militares. Na semana passada, num final de tarde, 12
homens armados esgueiravam-se silenciosamente, rente à parede
externa. Vestiam grossos uniformes camuflados, forrados com uma
camada de carvão ativado, para evitar a contaminação por agentes
químicos. Seus rostos estavam cobertos com máscaras de gás,
equipadas com rádio. Armados com submetralhadoras MP-5, os
homens entravam numa sala atirando e gritando frases em código. Os
tiros acertavam os alvos na cabeça e no peito. A casa invadida era
uma célula terrorista simulada, montada com paredes, móveis, fogão,
geladeira e freezer. A operação treinada pelas Forças Especiais conta
ainda com especialistas em armas químicas, que revistam o local à
procura de produtos perigosos. Parece filme, mas é apenas o tipo de
situação extrema para a qual tropas brasileiras precisam estar
preparadas.
O general José Carlos De Nardi, chefe do Estado-Maior do
conjunto do Ministério da Defesa, diz que os atentados em Boston
serviram para que o Brasil ficasse ainda mais atento à segurança para
os grandes eventos. “O Brasil está se preparando bem. Temos
mandado nosso pessoal para acompanhar importantes eventos e
ganhar experiência”, afirma. O secretário da Sesge, Valdinho Caetano,
nega que a Copa das Confederações seja apenas um teste para o
Brasil, de menor importância. “É um grande evento, reunirá jogos
importantes de grandes seleções. Um teste pressupõe uma
possibilidade de falha. E nós não pressupomos falhas”, afirma. O
governo americano tem elogiado o Brasil em seus preparativos para a
Copa do Mundo. O chefe de segurança da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil, Paul Kennedy, disse a ÉPOCA que, após
uma resistência inicial a falar sobre terrorismo, o Brasil recebeu bem a ajuda americana na preparação contra esse tipo de
ameaça, oferecida em 2011. “Os brasileiros querem aprender e são abertos a isso.” A ajuda veio em forma de treinamento.
Vinte cursos foram ministrados por agentes americanos para brasileiros envolvidos na segurança do Mundial de 2014.
O governo reconhece ainda não ter mobilizado a população para o problema da segurança. Nos Estados Unidos e na
Europa, cartazes e anúncios em alto-falantes em locais de grande movimento alertam as pessoas sobre os riscos envolvendo
objetos abandonados – eles podem ser uma bomba. Segundo a Secretaria de Grandes Eventos, a Copa das Confederações
não contará com esse tipo de alerta, mas campanhas nesse sentido poderão ser feitas na Copa do Mundo e na Olimpíada.
Para o delegado Luiz Fernando Corrêa, diretor de segurança do Comitê Organizador da Rio 2016, o envolvimento do público
será essencial. “Há cidades frias em relação a grandes eventos. A população do Rio é o oposto: participa, se orgulha, torce a
favor. Cada cidadão ou turista acaba se sentindo um pouco responsável para que tudo dê certo.”
Muitas coisas nos preparativos, tanto da Copa como da Olimpíada, já não deram certo – de obras atrasadas a projetos
cancelados. A diferença, quando o tema é segurança, é que essa possibilidade não existe. Se algo der errado, o custo pode
ser a perda de vidas – e a propagação do medo. O Brasil precisa fazer de tudo para garantir a vitória do esporte e da
celebração sobre o terrorismo.
LEOPOLDO MATEUS, MURILO RAMOS, LEANDRO LOYOLA, MARTHA MENDONÇA e FLÁVIA TAVARES são Jornalistas e
escrevem para esta publicação. Revista ÉPOCA, Abril de 2013.
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Medo (LÚCIO PACKTER)
O MEDO é, provavelmente, um dos elementos fósseis da alma humana que sobreviveu desde os primeiros primatas
aos dias de hoje. Suponha um sujeito educado, gentil, refinado para os padrões de época, que, subitamente, por causa de
um desentendimento no trânsito empunha uma arma e mata o outro motorista. Você acha desproporcional, demasiado?
Pois, de modo semelhante, o medo, em muitos casos, se mostra desproporcional e demasiado, se tomarmos como
parâmetro o desenvolvimento da humanidade neste momento em alguns centros urbanos.
Outras manifestações, como ansiedade, cuidados, prevenção etc., estariam, ao menos, mais atualizados. O medo é um
dos traços dos primeiros primatas que acompanham a muitos, enquanto inúmeros traços dos primeiros antropoides
desapareceram. Por que o medo sobreviveu? Uma das respostas aponta para a sua indexação na propriedade, na educação,
na religião, na cultura. Ele sobreviveu pela necessidade da advertência exagerada, da ameaça ampla, da imposição de força
diante de determinados eventos existenciais; sobreviveu não por ele mesmo, mas pelo uso que fizeram dele.
Existe uma poderosa indústria que se alimenta do medo. Para ela, o medo é justificável, defensável, preventivo,
necessário. Esta indústria abrange segmentos amplos, que vão da área da saúde (hospitais, remédios) passando pela área
da Educação, chegando à área familiar. Armas, empresas securitárias, políticas econômicas se utilizam do medo como
argumento em parte importante de seus discursos. Sobre isso, Bertrand Russell escreveu: "O nosso mundo vive demasiado
sob a tirania do medo e insistir em mostrar-lhe os perigos que o ameaçam só pode conduzi-lo à apatia da desesperança. O
contrário é que é preciso: criar motivos racionais de esperança, razões positivas de viver. Precisamos mais de sentimentos
afirmativos do que de negativos".
O medo traz algumas consequências diretas e algumas pouco evidentes. Agustina Bessa-Luís escreveu: "O medo é o
que impede que tudo o que chega às mãos dos homens não se torne em sua propriedade". Eis um exemplo. Você consegue
ter o sentimento de ser dono de sua casa, sabendo que ela está envolvida em um negócio de grande risco, cujos resultados
lhe enchem de medo? Esta é outra característica do medo, a de destituir, privar. A pessoa perde o que possui como
propriedade; vive apenas a posse aos sobressaltos.
Lembre que é raro, em alguns contextos, um pai dizer a um filho que este pode falar abertamente aos outros que tem
medo. Em geral, isso soa como demérito, como fraqueza, algo a ser evitado e não confessado. Eis um dos motivos pelos
quais o medo somente aparece em historicidades no consultório sob seus nomes mais brandos: prevenção, zelo, prudência,
cautela etc. Saber quando uma "cautela" é um medo exige aprofundamentos na historicidade da pessoa. É possível uma
pessoa ter medo dela mesma? Pode acontecer. Há inúmeras razões para isso. Exemplo: se a pessoa nega e afasta suas
forças, sua coragem, sua iniciativa para os empreendimentos de sua vida, a lacuna que sobra pode ser ocupada pelo que
restou nela, coisas como a dúvida, o medo, a dor. Leia o que Oscar Wilde escreveu em O retrato de Dorian Gray: "Mas o
mais corajoso homem entre nós tem medo de si próprio. A mutilação do selvagem sobrevive tragicamente na autonegação
que nos corrompe a vida. Somos castigados pelas nossas renúncias. Cada impulso que tentamos estrangular germina no
cérebro e envenena-nos". Evidentemente, isso é assim para alguns, apenas.
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O medo pode ser também considerado positivo, indicado? Sim, pode. Quando se associa a elementos como respeito,
prudência em determinadas bases. Exemplo: quando o automóvel vai bater e o medo providencia uma alternativa rápida e
eficaz. Quando o medo lhe serve de aspecto dialético na enumeração de possibilidades diante de algo. É peculiar e
sintomático que a maior parte dos medos de nossa época, provavelmente, não tenham lastro, que funcionem como
fantasmas em armários assustando crianças de 4 anos, porque a mãe não vem acender a luz e mostrar que dentro do
armário há, somente, roupas de cama e de banho. É parte essencial pela qual o medo se perpetua em nossas vidas, muitas
vezes. Não se estende o braço até ele, o que, provavelmente, seria suficiente para que evaporasse. A questão maior, no
entanto, consiste em diferenciarmos quando o medo é fantasma e quando ele é concreto em sua ossatura e movimentos.
Pascal escreveu: "Quando me ponho, às vezes, a considerar as diversas agitações dos homens, e os perigos e
trabalhos a que eles se expõem, na corte, na guerra, donde nascem tantas querelas, paixões, cometimentos ousados e,
muitas vezes, nocivos etc., descubro que toda a miséria dos homens vem duma só coisa, que é não saberem permanecer
em repouso, num quarto. Um homem que tenha o bastante para viver, se fosse capaz de ficar em sua casa com prazer não
sairia para ir viajar por mar ou pôr cerco a uma praça-forte. Ninguém compraria tão caro um posto no exército se não
achasse insuportável deixar-se estar quieto na cidade; e quem procura a convivência e a diversão dos jogos é porque é
incapaz de ficar em casa, com prazer. Mas quando pensei melhor, e que, depois de ter encontrado a causa de todos os
nossos males, quis descobrir a razão desta, achei que há uma bem efetiva, que consiste na natural infelicidade da nossa
condição frágil e mortal, e tão miserável que nada nos pode consolar quando nela pensamos a fundo".
LÚCIO PACKTER é filósofo clínico e criador da Filosofia Clínica. Graduado em Filosofia pela PUC-FAFIMC de Porto Alegre (RS). É
coodenador dos cursos de pós-graduação em Filosofia Clínica da Faculdade Católica de Cuiabá e Faculdade Itecne de Cascavel.
Revista FILOSOFIA, Abril de 2013.
Um lugar para beijar (MALU FONTES)
DIANTE da morte do estudante de Produção Cultural da Faculdade de Comunicação da UFBA, Itamar Ferreira, em
virtude das circunstâncias em que o corpo e a roupa foram encontrados, não há como não pensar em uma morte dupla,
medieval e com a assinatura nítida do preconceito, seja ela deixada por ladrões comuns que queriam roubar gadjets e
deixar pistas falsas após golpeá-lo, ou por um homofóbico típico capaz de tudo. O que quer que tenha acontecido para
matar Itamar, o que houve naquela cena do crime representa uma morte dupla, marcada pela assinatura da homofobia,
encenada ou patológica.
Todos os dias ladrões matam pessoas, movidos pelo desejo de levar seus objetos. Já homofóbicos matam
exclusivamente homossexuais e o fazem movidos pelo ódio sexual, embora haja quem pregue que toda morte causada por
homofobia não passa de latrocínio comum. A assinatura perversa deixada na morte dupla de Itamar é traduzida na forma
como ele foi largado dentro de uma fonte de praça pública, já morto ou deixado inconsciente para afogar-se após uma
agressão na cabeça, mas com um detalhe extra para marcá-lo e matá-lo de novo, dessa vez moralmente: a bermuda
abaixada até os joelhos.
Assim como assassinar uma pessoa com vários tiros no rosto significa, no código do crime, ajuste de contas, vingança
por traição, jogar um homem morto numa praça com as calças arreadas é uma assinatura a serviço dos argumentos de
quem vive alimentando o preconceito contra gays. Quantos não irão repetir coisas do tipo: ‘estão vendo?
A homossexualidade é coisa do diabo e Deus pune’. Não são de frases assim que são feitas as declarações de
Felicianos e Malafaias? A forma como a roupa de Itamar foi deixada não lhe dá, perante os preconceituosos para quem os
gays procuram a morte por desafiar as leis da natureza sexual ou de Deus, o direito de ser vítima. E quem o matou, por
mais tosco que seja, queria justamente isso. Não bastava matá-lo e levar suas coisas. Era preciso deixá-lo humilhado após a
morte, condenar sua sexualidade mesmo morto, matá-lo moralmente perante o mundo Feliciano.
Independentemente do contexto que levou Itamar à morte, ele é, foi, vítima. E se ele tiver provocado ou aceitado uma
paquera em relação a quem o matou? Ora, em que isso o torna moralmente culpado? Quanto a isso, vale citar um filme
fundamental para entender o preconceito contra os gays. Em 2009, a jornalista Neide Duarte, da Rede Globo, lançou um
documentário que, em tempos de tanta gente que não se constrange em ofender homossexuais, é uma aula.
O documentário chama-se “Um lugar para beijar”, pode ser visto no Youtube e mostra como o preconceito, inclusive o
familiar, empurra os gays, principalmente os mais pobres, para as zonas de risco da vida: as áreas escuras da cidade, os
botecos copos-sujos, onde nada no entorno soa familiar e seguro, pois é somente nesses espaços de perigo e nas
madrugadas desertas que encontram alguma privacidade.
Afinal, quem aqui é macho o suficiente para saber o que é poder beijar outro homem à luz do dia numa área nobre?
Do xingamento a uma tacada de golfe na cabeça, a imprensa mostra todo dia que tudo é possível. Sobra o gueto, o escuro
e a madrugada ameaçadora.
MALU FONTES é Jornalista e Professora de jornalismo da UFBA. Jornal CORREIO, Abril de 2013.
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Mania de carrão (MÁRCIA TIBURI)
O AUTOMÓVEL é para poucos
um meio de transporte. Produto para a
indústria e o mercado, ele deve surgir
como fetiche na consciência coisificada
dos usuários. É dessa coisificação que
depende o sucesso das vendas e o
aumento da produção. O aumento da
produção gera emprego, dirão uns,
gera capital, dirão outros. Que o carro
seja central na economia política de
uma sociedade marcada pelo descaso
com o transporte público explica a
supremacia do privado, o poder do
dinheiro em detrimento da cidadania. O
núcleo bárbaro de nosso estado social
refere-se também ao declínio do
espaço público ocupado pelos carros
em uma sociedade motorizada quando
já não há por onde seguir.
É evidente que o espaço social da
rua, este espaço desvalorizado onde
vivem excluídos e marginalizados,
moradores sem casa, se tornaria o
lugar onde o capitalista motorizado
ostentaria seu poder automobilizado. O
motorista realiza a ideia de que a racionalidade técnica é a racionalidade da dominação por meio de sua máquina
impressionante. Andar a pé, uma prática totalmente antitecnológica, tornou-se um perigo, cujo risco é deixado ao
despossuído. A posse é o espaço a ser percorrido. Os carros nas grandes cidades congestionadas surgem como marcadores
de lugar: quem pode mais ocupa mais espaço em relação a quem pode menos. Assim é que a sociologia do trânsito de
nossa época tem que se ocupar não apenas com a divisão do espaço, mas com a tradicional avareza do capitalismo aplicada
ao movimento nas grandes cidades. Não se trata mais do simples direito de cada um à cova medida; o movimento lento dos
carros nas ruas enfartadas lembra o funeral em que todos estão a caminho de um grande enterro.
Fetiche automobilístico
O carro faz parte da mitologia cotidiana. Ayrton Senna foi o deus maior sacrificado no ritual do automobilismo, ritual do
qual participam as massas encantadas com seus brinquedinhos mais baratos. Mas para entender o fenômeno do fetiche
automobilístico de nossos tempos podemos pensar algo ainda mais elementar: quem compra um carro nunca compra
apenas um carro, compra a ideia vendida pela propaganda do carro. A ideia é sempre a mesma, compra-se um poder. Com
o poder na forma de um carro, o motorista pode transitar pela rua.
Um carro permite a ostentação fundamental que se tornou meio de sobrevivência em uma sociedade competitiva na
qual, mesmo não sendo um vencedor, sempre se pode parecer um. A ostentação é parte essencial do sistema simbólico em
que o reconhecimento deturpado diz quem somos e o que podemos ser dependendo do que possuímos.
Do mesmo modo que o menino rico ganha um carro dos pais assim que aprende a dirigir não porque o carro seja
necessário, mas porque é sinônimo do tornar-se adulto ou pelo menos do parecer adulto, o menino pobre que trabalha
como empacotador no supermercado economiza dinheiro para comprar um carro porque, também ele, entende que é o
carro que o torna alguém numa sociedade de pilotos. Assim, ele não questiona seu trabalho escravizado, pois pode chegar
ao fim da corrida alcançando o bem desejado por todos os que, na qualidade de vencedores ou vencidos, não se colocam a
questão de parar a corrida.
Assim é que entendemos o caráter de máscara dos automóveis. A questão de ser quem se é define-se no meio de
transporte que se usa. Da bicicleta ao carro blindado, do ônibus que sai da periferia à Ferrari, cada um é reduzido ao
transporte que usa. Quem não tem carro, pois ele está ao alcance de todos independemente dos sacrifícios implicados em
sua aquisição e manutenção, pratica um ateísmo. O dono do carrão expõe, como um exibicionista expõe seu sexo, uma
verdade teológica.
MÁRCIA TIBURI é filósofa, professora e autora de vários livros. Escreve mensalmente para esta coluna. Revista CULT, Abril de
2013.
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O mal-estar na civilização dos anjos (LUIZ FELIPE PONDÉ)
O OTIMISMO está na moda com o novo livro do psicólogo cognitivista Steven Pinker, "Os Anjos Bons de Nossa
Natureza", da Cia. das Letras. Sou um admirador do seu já clássico "Tábula Rasa" (o título do livro remete a conhecida tese
empirista segundo a qual somos inteiramente frutos do meio).
No "Tábula Rasa", gosto em especial da parte denominada "Vespeiros", dedicada às polêmicas contra as ciências
humanas e sua defesa ideológica da "tábula rasa" a ser preenchida pelas modas ideológicas do momento, do tipo meninos e
meninas não existem a não ser como construção social. Risadas? Considero o evolucionismo e a ciência cognitiva ganhos
enormes para a compreensão do comportamento humano. Mas, me pergunto se ele, com este novo livro, não está fazendo
mais um panfleto de marketing moral do que um livro "científico".
Não aceito plenamente suas conclusões a partir daquilo que ele oferece como uma "ciência cognitiva do otimismo". E,
infelizmente, suspeito que Pinker tenha sucumbido a pressão para ser legal, pressão esta que todo mundo que atua como
agente do pensamento público sente hoje em dia. Essa é a praga do politicamente correto: tão invisível como um pó que cai
sobre nosso cérebro e não percebemos até nos tornarmos zumbis intelectuais com medo de pensar o impensável.
Temo que assumir que melhoramos porque os americanos passaram de Bush a Obama, e porque existe a ONU e os
shopping centers, é mais ideologia (o que Pinker normalmente critica) do que "ciência". Mesmo a "estatística do bem" só
convence quem crê em estatística aplicada a seres humanos. Dá até a impressão de que o autor se convenceu que o mundo
é mesmo igual às regiões mais ricas dos Estados Unidos, onde ele vive. O conforto e a segurança podem ser mesmo um
grande viés a entortar nossas conclusões. Pinker confundiu a felicidade de um circo com ar-condicionado, lanchonetes e
ONGs com evolução da paz.
A tese de Pinker em seu novo livro é que a humanidade está, desde o século 19, ficando menos violenta fisicamente.
Não é de todo absurdo dizer isso se levarmos em conta que grande parte da humanidade hoje em dia se ocupa com ganhar
dinheiro, comprar casas e carros, comer uma alimentação saudável e combater as rugas, afora se conectar às redes sociais
e falar besteiras quase o tempo todo. Trata-se da paz como resultado da banalidade do pequeno sucesso e das horas vazias
preenchidas com imposto de renda, divórcios e faturas do cartão de crédito.
Mas, suspeito que esse sucesso da paz se dá antes de tudo porque, além dessa ocupação com um cotidiano que vai da
TV a cabo às angústias com a previdência privada, as instituições da democracia representativa e da sociedade de livre
mercado (que os comunistas gostam de chamar de capitalismo) representam de fato um ganho, contendo nossa vocação
para violência, que agora adormece, cândida, babando nos bares, restaurantes, free shops e ONGs para pandas. Estamos
em paz porque compramos muito, comemos muito e somos muito narcisistas. Estamos muito próximos dos personagens
felizes e idiotas do "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley.
O otimismo "científico" de Pinker me lembra outro otimista, Francis Fukuyama, e seu "fim da história", porque segundo
este, não há possibilidade de retrocedermos para uma sociedade sem democracia liberal. Será? Esses dois autores, Pinker e
Fukuyama, parecem não levar em conta que estamos votando em candidatos duvidosos, comprando computadores, pílulas
e Viagra há pouquíssimo tempo e que assumir "200 anos de história da paz do consumo" contra 1 milhão de anos (grosso
modo) de sofrimentos intermináveis é como julgar a vida de um homem de mil anos pelos dois últimos segundos passados.
Por último, retornaria ao clássico freudiano "Mal-Estar na Civilização" (recusado pela moda cognitivista). Mesmo
Norbert Elias, referência essencial para um dos "bons anjos" de Pinker, sabia bem que o processo civilizador cobra um preço
alto pela repressão da "besta em nós". Resta saber qual seria o "retorno do reprimido" deste mundo de bons anjinhos.
LUIZ FELIPE PONDÉ é filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel
Aviv, professor da PUC-SP e da Faap. Autor de vários títulos, entre eles, "Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa). Jornal FOLHA DE
SÃO PAULO, Abril 2013.
Sofrimentos inevitáveis (ROSELY SAYÃO)
COSTUMO ouvir que os pais da atualidade querem poupar seus filhos de sofrimento. Por isso, sentem uma enorme
dificuldade para dizer "não" a eles, para permitir que enfrentem as suas frustrações e para deixar que atravessem as
situações difíceis que a vida lhes apresenta.
À primeira vista, esse discurso soa como uma verdade, não é mesmo? Afinal, temos visto crianças e adolescentes
agirem sem se importar com as normas sociais porque eles se sentem protegidos pelos pais em todas as circunstâncias.
Entretanto, podemos pensar um pouco além dessa linha para tentar compreender melhor o relacionamento atual entre pais
e filhos no que diz respeito à chamada "felicidade" das crianças. Na realidade, pode ser que os pais façam mesmo de tudo
para que os filhos não sofram. Mas é preciso considerar que, em geral, eles desejam proteger seus filhos apenas de
determinadas experiências dolorosas - não de qualquer uma.
Os pais não querem, por exemplo, que os filhos se sintam excluídos de qualquer situação, de qualquer grupo e de
qualquer atividade. É em nome do desejo adulto de eliminar esse tipo de sofrimento que as crianças fazem as mesmas
atividades que os colegas em seus dias de lazer, ganham os mesmos jogos e todo tipo de traquitana tecnológica,
frequentam os mesmos lugares, usam roupas e calçados parecidos (quando não são iguais) e vão a mil festas de
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aniversários, muitas vezes de crianças que nem são amigas próximas. Os pais também não querem, de maneira alguma,
que seus filhos sofram por causa da escola. É por isso que vira e mexe eles vão falar com coordenadores, professores e
diretores, reclamam de alguns profissionais, colocam os seus filhos em aulas particulares, fazem a lição de casa com eles ou no lugar deles - e estão sempre prontos para defender suas crianças e seus adolescentes de qualquer sanção que tenha
sido aplicada pela escola.
E é assim, entre tentativas de evitar um e outro tipo de sofrimento, que os pais vivem a ilusão de construir para seus
filhos um mundo que só pode existir em outra dimensão: um mundo onde ninguém os rejeitará, onde não serão excluídos
de nada e onde participarão de todos os grupos pelo simples fato de consumirem as mesmas coisas que a maioria. Doce e
amarga ilusão... Porém, há alguns sofrimentos que os pais da atualidade não evitam que seus filhos experimentem. Ao
esconder de crianças e jovens verdades da vida que os envolvem, esses pais fazem com que os filhos sofram se debatendo
entre mentiras ou silêncios. Quando o tema é doença ou morte na família, por exemplo, isso acontece bastante.
O que os pais talvez não saibam é que, ao tentarem evitar que os filhos sofram a dor da perda, eles acabam
provocando nos mais novos um sofrimento ainda maior que é a dor de não saber, de não entender, de não conseguir
simbolizar a angústia que sentem. Outra dor que os pais provocam e à qual não dão muita importância é a dor do
abandono. Buscar o filho na escola bem depois do término da aula; deixar o filho sem parâmetros; permitir que a criança
atue como se já fosse responsável por sua vida e colocar em suas mãos escolhas que deveriam ser de adultos são alguns
exemplos de atitudes que fazem crianças e adolescentes se sentirem abandonados pelos pais. E isso dói neles.
Uma garota de nove anos disse uma frase reveladora sobre essa sensação de abandono à sua amiga, que estava triste
e constrangida por ter sido impedida pelos pais de acompanhá-la em um passeio: "Não chore por causa disso, não. Eu
adoraria que os meus pais se importassem assim comigo". Os filhos são supostamente protegidos de sofrimentos muitas
vezes inevitáveis e, ao mesmo tempo, são colocados em situações nas quais experimentam sofrimentos inúteis. Qual será o
resultado desse tipo de equação?
ROSELY SAYÃO é psicóloga e consultora em educação. Fala sobre as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no
ato de educar e dialoga sobre o dia-a-dia dessa relação. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril 2013.
Jovens delinquentes (CONTARDO CALLIGARIS)
NA NOITE de terça-feira passada (dia 9), em São Paulo, Victor Hugo Deppman, estudante de 19 anos, foi
assassinado. As câmeras mostram que ele entregou seu celular, e o assaltante o matou sem razão, com um tiro na cabeça.
O criminoso se entregou à polícia declarando que faltavam dois dias para ele completar 18 anos. Com isso, pelo ECA
(Estatuto da Criança e do Adolescente), aos 20 anos e 11 meses no máximo, ele voltará a circular. A gente não pode nem
deixar anotado o nome do assassino, para mantê-lo afastado de nossas vidas futuras: por ele ser menor, seu anonimato é
preservado.
É assim que protegemos o futuro do criminoso, para que, uma vez regenerado pela mágica de três anos de internação
(alguém acredita?), ele possa facilmente reintegrar a sociedade e ser um cidadão exemplar, nosso vizinho. Obviamente, nos
últimos dias, multiplicaram-se os pedidos de revisão do próprio ECA. Marcos Augusto Gonçalves (na Folha de segunda)
observou que, na boca dos políticos, esses pedidos escondem décadas de descaso em matéria de segurança pública.
Concordo. Mas, como não sou político, não vou deixar de discutir, mais uma vez, o estatuto do menor.
Por exemplo, sou a favor de baixar a maioridade penal, drasticamente, como acontece no Reino Unido, no Canadá, na
Austrália, na Índia, nos Estados Unidos etc. --sendo que, na maioria desses lugares, o juiz tem a autonomia para decidir por
qual crime um menor de 12 ou dez anos será, eventualmente, julgado como adulto. Hélio Schwartsman (na página 2
da Folha de sexta passada) aconselhou prudência: seria melhor não "legislar sob forte impacto emocional" e, sobretudo
agora, confiar apenas nas "considerações racionais". Ele quase me convenceu, mas...
1) Penso isso há muito tempo.
2) Se deixássemos de agir sob impacto emocional, nunca nada mudaria. Por exemplo, o conselho de esperar para que
as emoções esfriem é o argumento dos fabricantes de armas a cada vez que, nos EUA, um exterminador invade uma escola
e o Congresso propõe leis de controle das armas. Os fabricantes de armas querem que esperemos para quê? Pois é, para
que a gente se esqueça e se desmobilize.
3) Conheço só uma consideração racional a favor da maioridade penal aos 18 anos, e ela não é boa: o córtex préfrontal (zona do cérebro que controla os impulsos) não está totalmente desenvolvido na infância e na adolescência. Tudo
bem, se aceitarmos essa consideração, deveríamos aumentar seriamente a maioridade penal, pois o córtex pré-frontal se
desenvolve até os 25 anos ou além. Além disso, deveríamos julgar como menores todos os adultos impulsivos, que nunca
desenvolveram um córtex pré-frontal "satisfatório".
4) As outras "considerações racionais" (que deveriam prevalecer sobre o impacto das emoções) são apenas disfarces
de emoções especificamente modernas que, à força de serem compartilhadas, se tornaram chavões ideológicos. Três deles
são corolários de nossa "infantolatria", ou seja, da paixão narcisista que nos faz venerar crianças e jovens porque, graças a
eles, esperamos continuar presentes no mundo depois de nossa morte.
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Primeiro, queremos que as crianças nos apareçam como querubins felizes como nós nunca fomos e nunca seremos.
Por isso, preferimos imaginar que os jovens sejam naturalmente bons. Quando eles forem maus, atribuímos a culpa à
sociedade e a nós mesmos. Portanto, não podemos puni-los, mas devemos, isso sim, nos punir.
Tendo a pensar o contrário: as crianças podem ser simpáticas, mas são más (briguentas, possessivas, invejosas,
mentirosas, ingratas etc.); às vezes, elas melhoram crescendo, ou seja, a cultura pode civilizá-las (ou piorá-las, claro).
Segundo, adoramos acreditar que sempre podemos mudar (para melhor, claro): apostamos que a liberdade do indivíduo
permita qualquer reviravolta --até a salvação eterna pelo arrependimento na hora da morte. A possibilidade de os
criminosos (ainda mais jovens) se redimirem confirma nossa crença querida.
Terceiro, acreditamos também na fábula da reciprocidade amorosa: quem ama será amado. Se forem bem tratados e
se sentirem amados e respeitados, os jovens se emendarão. É só confiar neles, deixá-los impunes e lhes oferecer castiçais
de prata, como o padre que presenteia Jean Valjean. Meus amigos, "Les Misérables" é lindo e comovedor, mas é um
romance, ok? Na outra noite, no bairro do Belém, teria sido melhor que aparecesse Javert.
CONTARDO CALLIGARIS é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY
e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de
2013.
A democracia está no caminho do meio (ROBSON RODOVALHO)
CONSTITUÍDO pela Câmara Federal, a casa do povo, e o Senado, a casa dos Estados, o Congresso é a representação
máxima do Poder Legislativo brasileiro. É ali que os representantes da sociedade se encontram, no espaço mais apropriado
da República, para debater e fazer dos dissensos consensos; das posições mais antagônicas, acordos. Tudo para viabilizar,
ainda que de forma mínima, as condutas sociais sob a forma de leis.
O pressuposto da democracia é que tais leis sirvam de norte para a sociedade, partindo da ideia de que tenham
nascido de uma representação legitimamente eleita, de tal sorte a formar uma Casa que efetivamente espelhe a diversidade
que existe na população brasileira. É natural, portanto, que o Congresso seja composto de pares tão díspares. Eles
traduzem as diferenças do nosso povo. Essa convivência faz parte da democracia - e tem garantias constitucionais. Mais do
que isso: a humanidade hoje é multifacetada; conceitos antes padronizados vivem sob questionamento a cada segundo. É a
caminhada da humanidade: ninguém, em sã consciência, pode questionar esse caminho. Está escrito no Evangelho, que
serviu de base para nossas sociedades modernas.
Foi o Senhor Jesus Cristo quem disse que Deus, nosso Pai, dá o livre arbítrio a todos as pessoas (Mateus 5:45). Mas as
escolhas de uns não podem ser impostas aos demais sem antes negociarmos com os diferentes segmentos nos foros
apropriados, sob pena de construirmos novamente uma sociedade com o amálgama da intolerância. Essa é a discussão que
está posta na Comissão de Direitos Humanos, sob a presidência do deputado e pastor Marco Feliciano. O pressuposto de
que se tem partido na CDH, atualmente, é que Feliciano, como presidente, está credenciado para todos os diálogos
necessários. Mas essa ponte precisa ser construída, o que é um processo político.
Não adianta ter a comissão como um palco para reafirmar pensamentos. Muito menos usar esse foro democrático
como alto-falante para gritar mais alto, radicalizando posições - o que vale aqui para ambas as partes. A força da sabedoria
se sobrepõe à do grito e à da voz. A força moral do exemplo, dos argumentos e da verdade sempre fala mais alto que a da
imposição e da intolerância. Lembremo-nos de Gandhi, do próprio Senhor Jesus Cristo, que nunca ergueu a voz (Isaías
53:7).
Se a CDH falhar em estabelecer esse diálogo, devolverá a tensão à sociedade - como já tem acontecido, aliás, deixando
aos aproveitadores de plantão os benefícios suspeitos dos holofotes de oportunidade. A Câmara não pode ficar paralisada. O
país tem urgência de encontrar soluções para seus desafios. As comissões têm projetos valorosos que precisam ser votados.
Não é possível conceber que um ocaso midiático domine o Congresso, sem deixar nada mais andar.
Se o deputado Marcos Feliciano foi infeliz em diversas declarações - e já se penitenciou o quanto pôde por isso -, é fato
que chegou à Câmara por votação legítima de uma parcela do segmento evangélico. Além disso, sua eleição como
presidente da CDH teve o respaldo dos partidos representados no colegiado. Mas é evidente que Feliciano não representa
todos os evangélicos, como se tem dito. São mais de 35 milhões de fiéis no Brasil. Ninguém pode se arrogar como
representante unânime desse grupo.
Cabe à Câmara, que pavimentou a estrada para esse impasse, garantir uma saída democrática. E urgentemente, sob
pena de falhar em seu objetivo maior, que é o de ser o foro para a construção do consenso possível no país. Da mesma
forma, é fundamental que os deputados que compõem a CDH, e não só Feliciano, saiam de posições radicais e achem o
caminho do meio, que é o de Deus; o caminho do diálogo, com interlocutores à direita e à esquerda. Sem imposições, só
negociações. De parte a parte.
ROBSON RODOVALHO, 57, é bispo presidente do ministério Sara Nossa Terra, físico, teólogo e ex-deputado federal (20072010). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2013.
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O Brasil está seguro? (MICHEL ALECRIM, WILSON AQUINO, CLÁUDIO DANTAS e JOÃO LÓES)
Como o País está se preparando para garantir a segurança nos quatro grandes eventos que irá sediar a partir de junho
O ATAQUE terrorista na Maratona de Boston, nos Estados Unidos, na semana passada, fez acender a luz amarela no
Brasil. Embora o País não faça parte da rota do terror, os grandes eventos internacionais que acontecerão aqui nos
próximos anos irão atrair para as cidades brasileiras dezenas de autoridades e milhares de jornalistas e cidadãos de
diferentes nações. Em junho, Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte, Salvador, Recife e Fortaleza receberão jogos da Copa
das Confederações e, no mês seguinte, o Rio será palco da Jornada Mundial da Juventude, com a presença do papa
Francisco. Serão eventos-teste para a Copa do Mundo de 2014, que incluirá outras seis capitais, e, dois anos depois, para os
Jogos Olímpicos, majoritariamente sediados na capital fluminense. Quanto mais visibilidade, maior a comoção diante de
tragédias – e é isso que os terroristas buscam. Por isso, as autoridades estão se preparando para todo tipo de emergência.
O governo federal investirá, em parceria com os 12 Estados-sede da Copa e a iniciativa privada, mais de R$ 2 bilhões em
segurança. Ao todo, serão cerca de 142 mil policiais de todas as esferas em ruas e em pontos estratégicos.
Horas depois das explosões em Boston, enquanto as autoridades americanas ainda tentavam entender o que havia
acontecido, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general José Elito Siqueira, convocou uma
reunião com assessores militares e da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) para avaliar o caso. Pouco antes, ele havia
recebido um recado da presidenta Dilma Rousseff para dar atenção especial ao episódio e verificar a necessidade de rever a
estratégia de segurança dos grandes eventos. Uma das conclusões é que é preciso maior integração entre as forças
envolvidas na proteção dos cidadãos. Em Brasília, cidade de abertura da Copa das Confederações, em 15 de junho, o comitê
local de organização montou uma espécie de gabinete de emergência, com representantes das polícias Civil, Militar e
Federal e da polícia do Exército. “Sem integração, perdemos agilidade no atendimento às demandas”, diz Severo Augusto,
coronel da reserva e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
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O aparato que está sendo montado é grande. Dos R$ 2 bilhões investidos, metade será empregada na instalação de
centros de comando e controle. Serão 14 bases, duas de abrangência nacional – em Brasília e no Rio de Janeiro – e as
outras regionais. Cada centro será dotado de dezenas de monitores que processarão imagens de centenas de câmeras
espalhadas dentro e fora dos estádios. Esses centros serão operados por agentes das polícias Civil, Militar, Rodoviária e
Federal e por órgãos da Defesa Civil. Na Copa das Confederações, as seis cidades-sede terão, cada uma, em torno de três
mil militares e, juntas, 25 mil agentes de segurança pública. Durante a Jornada, o Rio terá o reforço de 8,5 mil homens das
Forças Armadas e de 4,5 mil policiais das três esferas de governo. E na Copa do Mundo os números são ainda mais
expressivos: 36 mil militares e 50 mil agentes de segurança. A questão é que falta treinamento. São poucas as
oportunidades de se realizar uma ampla simulação com todos os envolvidos. Um evento-teste aconteceu um dia antes da
tragédia de Boston, no jogo Fortaleza x Ceará, no Castelão. Foram destacados, para a operação, 665 policiais militares, dois
delegados, 15 policiais civis e 40 bombeiros, além de 240 guardas municipais. No Carnaval, o Ministério da Saúde realizou
ensaios no Recife e em Salvador. O objetivo foi avaliar a capacidade de planejamento, execução, resposta e avaliação das
situações de emergência relativas à saúde em grandes aglomerações.
O secretário-extraordinário de Segurança para Grandes Eventos do governo federal, delegado Valdinho Caetano, afirma
que o Brasil está dotado de tecnologia de ponta para proteção contra grandes atos terroristas ou ações domésticas. O
aparato inclui câmeras especiais que identificam uma única pessoa no meio da multidão e que estarão disponíveis até em
helicópteros. “É uma filosofia inédita no País, de planejamento conjunto e de tomadas de decisão conjuntas”, explica
Caetano. Há investimentos também em cursos no Exterior. Integrantes do Esquadrão Antibombas do Rio estão sendo
treinados em países como Colômbia, Israel e Espanha a fim de aprender técnicas de elite para desativar carros-bombas.
Oficiais espanhóis vieram ao Brasil dar cursos de treinamento de controle de massa, no mês passado. Em maio, militares
serão enviados ao Centro de Treinamento da Guarda Costeira dos EUA, em Yorktown, no Estado da Virgínia, para um curso
de Controle e Comando de Crises.
A missa campal que será celebrada pelo papa Francisco irá reunir a maior aglomeração de todos os eventos: são
esperados 2,5 milhões de católicos no dia 28 de julho, em Guaratiba, zona oeste do Rio. Um grande esquema está sendo
preparado. Haverá três hospitais de campanha (dois das Forças Armadas), 14 postos médicos, dez aeronaves e mais de mil
bombeiros. “Nosso planejamento está acima de qualquer ameaça, até terrorismo. Mas sabemos que é difícil prevenir; nem
os Estados Unidos conseguem”, diz o general José Alberto Abreu, responsável pela coordenação das Forças Armadas na
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Jornada e na Copa. No caso de o papa visitar o Cristo Redentor, o que ainda não foi definido pelo Vaticano, o Batalhão de
Operações Especiais da PM (Bope) já se preparou com um treinamento recente junto à estátua.
As Forças Armadas deverão complementar a atuação da Segurança Pública nessas ocasiões. “Estamos trabalhando as
áreas de controle aeroespacial, marítimo e fluvial, além da defesa cibernética, com a criação de um centro de controle em
Brasília”, diz o coordenador do Ministério da Defesa para Grandes Eventos, general Jamil Megid Júnior. O risco maior dos
ataques cibernéticos é a derrubada do sistema de comunicação por hackers, como foi tentado, sem sucesso, durante a
Rio+20, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, no ano passado. No Rio, tropas militares vão
tomar conta da água para evitar sabotagem ou contaminação que possa prejudicar o abastecimento. Outros pontos
estratégicos, como torres de transmissão de energia, refinarias de petróleo, usinas nucleares de Angra dos Reis, portos e
aeroportos, também serão vigiados pelas Forças Armadas.
Na semana passada, o governo federal anunciou um plano para o setor aéreo. A Copa das Confederações será o
primeiro grande teste do conjunto de medidas que, entre outras coisas, amplia o número de servidores públicos que atuam
nos aeroportos em 1.723 funcionários, restringe o espaço aéreo sobre os grandes eventos em um raio de até sete
quilômetros e reforça a infraestrutura elétrica que serve os aeroportos. Um acréscimo no número de policiais federais nos
principais terminais do País – de 313 para 1.153 – também é esperado, bem como a expansão no número de operadores
aeroportuários, que hoje é de 1.023 e passará a ser de 1.537. Ainda há dúvidas, no entanto, sobre a capacidade do governo
de colocar todas essas medidas em prática a tempo.
No caso da defesa aérea, o monitoramento será feito com veículos aéreos não tripulados (Vant), os drones. A
Aeronáutica já tem dois em operação e espera ter mais dois disponíveis já para a Copa das Confederações. Assim como a
Força Aérea Brasileira (FAB), o Exército prevê o uso de equipamentos de última geração para defesa dos estádios, inclusive
baterias antiaéreas e modernos equipamentos de comunicação criptografada e 34 carros de combate Gepard alemães,
comprados recentemente, capazes de derrubar mísseis, aviões comuns, helicópteros e aviões não tripulados.
O ataque de Boston, porém, chama a atenção para a necessidade de aprimoramento contra os artefatos artesanais. “Já
há algumas práticas que são adotadas, como lacrar os bueiros, lixeiras e caixas de correio 48 horas antes. Como muitos
explosivos são detonados por aparelhos celulares, há também o uso de misturadores de frequência que impedem a
transmissão dos sinais”, explica Renato da Silva, consultor de segurança pública de grandes eventos.
Dados do Esquadrão Antibomba da polícia fluminense a que ISTOÉ teve acesso revelam um número extraordinário de
bombas caseiras apreendidas no Rio: 3.016, desde 2009, sem contar os artefatos que não foram destruídos pelo esquadrão.
A maioria é de fabricação doméstica, mas também são encontrados rojões com capacidade para derrubar aviões, desviados
de quartéis ou contrabandeados por traficantes de drogas. “É o Estado que tem mais ocorrências com explosivos.
Pernambuco, por exemplo, arrecadou dois ou três no ano passado”, comparou um técnico.
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Como o terror tem um alto grau de
imprevisibilidade, as ações de inteligência são
fundamentais.
É
necessária
cooperação
internacional para o País saber quais são os
potenciais terroristas que podem desembarcar aqui,
além de um sistema protegido e eficiente de
comunicação interna para troca de dados. “A
prevenção do terrorismo depende de informação”,
resume o capitão de mar e guerra José Alberto
Cunha Couto, que foi do Gabinete de Segurança
Institucional da Presidência, é especializado em
antiterror e participou das discussões para a
elaboração de um projeto de lei para tipificar o
crime. Aliás, a inexistência de uma legislação no
Brasil que mencione o crime de terrorismo é um
problema, na avaliação de especialistas. “Hoje, se
um sujeito estiver diante do Palácio do Planalto
fazendo desenhos da estrutura, for perguntado por
um policial o que ele está fazendo e responder:
‘Planejando um ataque terrorista’, o policial não
pode prendê-lo”, diz Fernando Fainzilber, assessor
de segurança da Federação Israelita do Estado de
São Paulo. “A menos que ele esteja com uma arma
sem registro ou carregando explosivos.” A única
possibilidade – remota – é tentar enquadrá-lo na
Lei de Segurança Nacional. “Esse é o grande
calcanhar
de
aquiles
na
nossa
política
antiterrorismo”, complementa o capitão Couto.
É preciso ainda integrar os cidadãos comuns
na luta contra o terror. Por exemplo: treinar os
chamados “first responders” (em inglês, algo como
“quem vê primeiro”), ou seja, o gari, o porteiro, o
guarda municipal. “Não é glamouroso, mas o
esquema antiterrorismo precisa deles”, diz o
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coronel Severo Augusto. Afinal, foi um vendedor ambulante que percebeu algo estranho no furgão prestes a explodir na
Times Square, em 2011. Graças ao aviso dele não houve uma grande tragédia no coração turístico de Nova York. “Temos
que transformar o cidadão em um elo do sistema que garante a sua própria segurança, como já acontece na Inglaterra e
nos Estados Unidos”, diz Vinícius Cavalcante, diretor da Associação Brasileira dos Profissionais de Segurança no Rio de
Janeiro.
Numa guerra em potencial na qual não se conhece o inimigo, o desafio é cercar todas as brechas possíveis. O cientista
político especializado em terrorismo Graham T. Allison, da John F. Kennedy School of Government na Universidade Harvard,
faz um alerta para os brasileiros: “O primeiro passo a ser tomado pelos órgãos de defesa e inteligência é imaginar o
inimaginável.” E explica: “Antes do 11 de setembro, a ideia de que alguém podia usar aviões como mísseis para derrubar o
World Trade Center, nos Estados Unidos, parecia inconcebível.” Não faltam avisos. O último veio de Boston.
Fotos: Bernardo Soares/JC Imagem; Ed Alves/Esp. CB
Fotos: CHRISTOPHE SIMON/ AFP PHOTO; Ale Silva
Fontes: CNN, National Geographic, BBC
Foto: Fernando Quevedo/Ag. O Globo
MICHEL ALECRIM, WILSON AQUINO, CLÁUDIO DANTAS e JOÃO LÓES são Jornalistas e escrevem para esta publicação.
Revista ISTO É, Abril de 2013.
Por que a exceção não deve ser a regra (RAFAEL FRANZINI e AMERIGO INCALTERRA)
O CONSUMO de drogas, especialmente o crack, nas ruas das cidades brasileiras tem gerado enorme debate público a
respeito de qual seria a resposta mais eficaz para o problema. Propostas de ações voltadas à internação involuntária têm se
multiplicado tanto nas ruas como na esfera legislativa.
No entanto evidências científicas apontam para a direção contrária: a lógica da saúde pode ser mais efetiva na redução
do uso problemático de drogas. Segundo diretrizes do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc) e da
Organização Mundial da Saúde (OMS), a atenção e o tratamento devem estar de acordo com os princípios da ética do
cuidado em saúde e respeitar a autonomia e a dignidade individuais. Além disso, os tratados internacionais de direitos
humanos exigem garantias processuais para a detenção e privação de liberdade de qualquer pessoa.
Recentemente, o Ministério Público do Rio de Janeiro, a Defensoria Pública de São Paulo e duas missões das Nações
Unidas demonstraram grande preocupação com a forma violenta, degradante e desumana com que usuários de drogas têm
sido recolhidos das ruas brasileiras em nome de uma abordagem de saúde. A tendência mundial crescente de propostas de
tratamento sem consentimento gerou um posicionamento da ONU em 2012 contra centros de detenção/tratamento
compulsório, destacando que a privação da liberdade arbitrária é uma violação das normas internacionais de direitos
humanos.
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Da mesma forma, um editorial de 2012 da revista "Addiction", uma das mais respeitadas do mundo no tema, diz que
as internações involuntárias caíram em desuso em países desenvolvidos por serem ineficazes no tratamento da dependência
de drogas e favorecerem a violação dos direitos humanos dos usuários. A internação sem consentimento deve se aplicar a
situações de absoluta emergência e ter como justificativa a proteção, quando houver risco para a segurança do sujeito e/ou
de terceiros, e ser proporcional. Em outras palavras, a internação deve ser a exceção, e não a regra.
Mesmo nesses casos, é essencial observar princípios éticos e legais para que não haja violação dos direitos garantidos
pelas convenções internacionais. Os procedimentos devem ser transparentes e legalmente estabelecidos para evitar uma
aplicação ampla e arbitrária desse recurso. Para tanto, as pessoas em internação involuntária devem ter o direito de recorrer
a um tribunal para que seja decidida rapidamente a legalidade da privação de liberdade. Os casos judicialmente autorizados
devem ser periodicamente revisados para determinar a necessidade da continuação da internação.
É certo que o uso problemático de drogas está vinculado a condições sociais de vulnerabilidade e risco, mas há poucas
pesquisas e informações confiáveis sobre o número de usuários que realmente necessitariam de internação. A experiência
internacional demonstra que a reabilitação e a reintegração de usuários de drogas passam muito mais por intervenções que
respeitem os direitos humanos dos usuários e sejam adequadas às suas necessidades sociais e de saúde do que pela sua
segregação em centros de tratamento.
RAFAEL FRANZINI é representante do Escritório de Ligação e Parceria do Unodc (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e
Crime) no Brasil e AMERIGO INCALCATERRA é representante regional para a América do Sul do Escritório do Alto Comissariado
das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2013.
Venezuela: amanhã pode ser outro dia (SÉRGIO FAUSTO)
ESTÁ desfeito o mito da invencibilidade eleitoral do chavismo. No último domingo, dia 14, ele colheu seu pior resultado
nas quatro eleições presidenciais que disputou. A diferença de votos com a oposição vinha caindo sistematicamente desde
2006. Em condições de normalidade democrática, Henrique Capriles teria vencido o pleito. Contra todas as iniquidades,
conquistou 49,1% dos votos.
Nicolás Maduro começa o mandato com pouca força política e muitos problemas a enfrentar. Seu desgaste no cargo é
inevitável. Com um déficit fiscal superior a 10% do PIB e uma dívida pública elevada, o governo precisa cortar gastos e
aumentar a arrecadação. Numa economia em que as exportações de petróleo são a principal fonte de receita do Estado e a
produção de barris está estagnada, o aumento da arrecadação exige uma nova desvalorização da moeda.
Ela terá impacto sobre uma inflação que já ultrapassa 20% ao ano, a despeito de congelamento de alguns preços.
Impacto inflacionário significativo, porque a Venezuela hoje importa quase tudo que consome, inclusive gasolina. Os
venezuelanos perderão renda pelo aumento da inflação, pela elevação das tarifas públicas, pesadamente subsidiadas, e/ou
pela diminuição das transferências governamentais para os programas sociais.
O ajuste pode ser suavizado se o governo contar com novos empréstimos da China (seu maior credor externo) e com
auxílio de países interessados na estabilidade da Venezuela, como o Brasil. Mas ele é inescapável, e seus resultados,
incertos. A verdade é que não basta à Venezuela um ajuste macroeconômico. Trata-se da reconstrução de uma economia
destruída por vários anos de voluntarismo e incompetência. Agora, com os preços internacionais do petróleo tendentes à
queda. Como se não bastasse, Maduro enfrentará um quadro político adverso dentro da heterogênea coalizão de forças que
compõem o chavismo. Ungido por Chávez, respaldado pelos irmãos Castro, ele precisava de uma consagração eleitoral para
adquirir capital político próprio e firmar sua liderança dentro do seu grupo político e ante o país.
Abandonará Maduro a lógica da confrontação política em nome da governabilidade e o "socialismo do século 21" em
favor da reconstrução da economia venezuelana? Nada em sua formação política, nos interesses e na ideologia do chavismo
indica que este será o caminho. Dois dias após o pleito, ele afirmou sobre as medidas que pretende tomar para enfrentar os
constantes apagões de energia elétrica no país: "Vou declarar o setor elétrico serviço de segurança do Estado, com
disciplina militar interna" (para expurgar supostos sabotadores).
O peso das Forças Armadas no chavismo é crescente: 11 dos 22 governadores eleitos pelo Partido Socialista Unido da
Venezuela em outubro do ano passado são militares. Oficiais ocupam postos e sinecuras no aparelho estatal. Com uma
maioria eleitoral mínima, um Maduro enfraquecido requer o apoio das Forças Armadas para operar o Estado e manter-se no
Palácio de Miraflores. Militar da reserva, presidente da Assembleia Nacional, homem da boliburguesia, preterido por Chávez
na sua sucessão, Diosdado Cabello deve estar sorrindo por dentro.
Em três anos, Maduro tem encontro marcado com o referendo revocatório previsto na Constituição venezuelana.
Ninguém mais duvida de que a oposição tem hoje força para convocar o referendo e vencê-lo. Resta saber se o chavismo
aceita conviver com essa perspectiva. E se a oposição saberá consolidar a nova posição conquistada no domingo.
SERGIO FAUSTO, 50, cientista político, é superintendente-executivo da Fundação Instituto Fernando Henrique Cardoso. Jornal
FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2013.
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As mãos dos EUA sobre a região (MARK WEISBROT)
ACONTECIMENTOS recentes indicam que a administração Obama intensificou sua estratégia de "mudança de
regime" contra os governos latino-americanos à esquerda do centro, promovendo conflito de maneiras que não eram vistas
desde o golpe militar apoiado pelos EUA na Venezuela em 2002.
O exemplo mais destacado é o da própria Venezuela na última semana. No momento em que este artigo está sendo
impresso, Washington está mais e mais isolada em seus esforços para desestabilizar o governo recém-eleito de Nicolás
Maduro. Mas a Venezuela não é o único país vitimado pelos esforços de Washington para reverter os resultados eleitorais
dos últimos 15 anos na América Latina. Está claro agora que o afastamento do presidente paraguaio Fernando Lugo, no ano
passado, também teve a aprovação e o apoio do governo dos Estados Unidos.
Num trabalho investigativo brilhante para a agência Pública, a jornalista Natalia Viana mostrou que a administração
Obama financiou os principais atores do chamado "golpe parlamentar" contra Lugo. Em seguida, Washington ajudou a
organizar apoio internacional ao golpe. O papel exercido pelos EUA no Paraguai é semelhante a seu papel na derrubada
militar, em 2009, do presidente democraticamente eleito de Honduras, Manuel Zelaya, caso no qual Washington dominou a
Organização de Estados Americanos e a utilizou para combater os esforços de governos sul-americanos que visavam
restaurar a democracia.
Na Venezuela, na semana passada, Washington não pôde dominar a OEA, mas apenas seu secretário-geral, José
Miguel Insulza, que reiterou a reivindicação da Casa Branca (e da oposição venezuelana) de uma recontagem de 100% dos
votos. Mas Insulza teve de recuar, como teve de fazer a Espanha, única aliada importante dos EUA nessa empreitada
nefanda, por falta de apoio. A exigência de uma recontagem na Venezuela é absurda, já que foi feita uma recontagem das
cédulas de papel de uma amostra aleatória de 54% do sistema eletrônico. O total obtido nas máquinas foi comparado à
contagem manual das cédulas de papel na presença de testemunhas de todos os lados. Estatisticamente falando, não existe
diferença prática entre essa auditoria enorme já realizada e a recontagem.
Jimmy Carter descreveu o sistema eleitoral da Venezuela como "o melhor do mundo", e não há dúvida quanto à
exatidão da contagem. É bom ver Lula denunciando os EUA por sua ingerência, e Dilma juntando sua voz ao resto da
América do Sul para defender o direito da Venezuela a eleições livres. Mas não apenas a Venezuela e as democracias mais
fracas que estão ameaçadas pelos EUA.
Conforme relatado nas páginas deste jornal, em 2005 os EUA financiaram e organizaram esforços para mudar a
legislação brasileira com vistas a enfraquecer o PT. Essa informação foi descoberta em documentos do governo americano
obtidos graças à lei americana de liberdade de informação. É provável que Washington tenha feito no Brasil muito mais e
siga em segredo. Está claro que os EUA não viram o levemente reformista Fernando Lugo como um elemento ameaçador ou
radical. O problema era apenas sua proximidade excessiva com os outros governos de esquerda.
Como a administração Bush, a administração Obama não aceita que a região mudou. Seu objetivo é afastar os
governos de esquerda, em parte porque tendem a ser mais independentes de Washington. Também o Brasil precisa se
manter vigilante diante dessa ameaça à região.
MARK WEISBROT é codiretor do Centro de Pesquisas Econômicas e Políticas, em Washington, e presidente da Just Foreign
Policy. Tradução de CLARA ALLAIN. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2013.
Esses filhos perplexos diante da velhice dos pais (ELIANE BRUM)
O cinema anuncia novos arranjos para o envelhecer e traz um olhar irônico sobre essa relação familiar quase sempre
conflituosa
UMA SEQUÊNCIA de filmes mostra que a velhice mudou – ou está mudando. Isso diz bastante sobre o aumento da
expectativa de vida, já que um dos temas cruciais da sociedade contemporânea passa a ser como ser velho nestes tempos.
E faz com que atores e atrizes sem muita chance de viver papéis desafiadores por conta da idade, muitos deles obrigados a
uma aposentadoria não desejada, passem a ter a chance de interpretações magistrais, como foi o caso de Emmanuelle Riva
e de Jean-Louis Trintignant, no excepcional Amor. Ou tem levado atores consagrados a se aventurar na direção depois dos
70, como fez Dustin Hoffman no encantador O Quarteto. São filmes em que a velhice é contada pelo olhar de quem a está
vivendo e há várias formas de pensar sobre o que está sendo dito, dentro e fora da tela. Minha proposta é refletir sobre
uma em particular: nos últimos quatro filmes exibidos por aqui e que já estão ou devem estar chegando às locadoras e às
TVs por assinatura, os filhos ou estão ausentes ou são uns atrapalhados, oscilando entre a boçalidade e a incapacidade de
dar conta da própria vida.
Em O Excêntrico Hotel Marigold, o mais fraco deles, um dos casais britânicos vai parar na Índia porque a filha gastou o
dinheiro dos pais numa aventura empreendedora na internet. Assim, precisam encontrar uma opção mais barata de
moradia, o que os leva ao excêntrico hotel do título. Ainda que depois a opção se mostre interessante, mesmo que por
caminhos tortuosos, não foi uma escolha num primeiro momento. E sim uma reação à atrapalhação da filha, que se arriscou
não com o seu próprio dinheiro, mas (convenientemente) com o dos pais, o que também é uma marca da nossa época.
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No ótimo E se vivêssemos todos juntos?, a filha do casal
interpretado por Jane Fonda e Pierre Richard é uma chata
pretensiosa que só aparece para (tentar) mandar nos pais e dar
palpite na vida deles, para em seguida desaparecer. Já o filho do
Don Juan interpretado por Claude Rich é muito mais participativo e
francamente esforçado, mas o pai tenta escapar de todo jeito das
boas intenções filiais porque esse filho só é capaz de enxergá-lo
como alguém que vai quebrar a qualquer momento – o que é
verdade, mas está longe de ser toda a verdade.
Em Amor, a maravilhosa Isabelle Huppert está menos
maravilhosa no papel de filha do casal que se descobre velho de
repente, numa manhã qualquer, em um segundo. Esta personagem,
às voltas com um casamento que parece emocionante apenas pelas
razões erradas, encarna a filha perplexa diante dos pais. Perplexa e
apavorada diante da fragilidade e da finitude dos pais. Ela tenta
intervir, ela tenta se impor, ela tenta dizer e fazer coisas sensatas –
e tudo falha. Ela tenta principalmente ser potente, mas mal dá conta
da própria vida. Seu diálogo com o pai, enquanto a mãe não sabe de
si, é uma das cenas antológicas desse filme belíssimo.
Em O Quarteto, que se passa num “lar para velhos” que foram
cantores e músicos antes de perderem a voz, a memória ou a saúde,
os filhos não estão lá. Surgem, ao fundo, nos dias de visita, mas
nenhum dos personagens principais parece ter filhos. Artistas de
ópera, eles possivelmente não tiveram tempo para a maternidade ou
a paternidade. E esta não parece ser nem uma questão, nem um
motivo de arrependimento, o que é bastante interessante. Se
tiveram filhos, o fato não foi tão marcante a ponto de ser citado, o
que de novo é bem interessante. O quarteto é primeiro um trio, que
se ampara e se diverte na velhice como os amigos de uma vida
inteira que foram e ainda são. A quarta personagem, que chega
para fechar o grupo, é uma diva atormentada pela perda da potência, que no seu caso se expressa pela voz que falha. Ela
terá de descobrir que pode cantar mesmo com uma voz que não é – nem jamais voltará a ser – a da juventude. E para isso
terá de amarrar alguns fios esgarçados do passado.
Só estou citando os últimos filmes, mas antes destes já tivemos outros em que os filhos aparecem ora perdidos, ora
oportunistas na vida dos pais, como no delicioso Elsa & Fred. O que vale a pena perceber é que, cada vez mais, ao contar a
velhice pelo olhar de quem a vive, conta-se também da perplexidade dos filhos apatetados diante dos pais. Não mais os pais
velhos como um estorvo para filhos que mal dão conta da sua vida, sem saber se os enfiam num asilo ou os carregam para
casas ou apartamentos onde mal cabem eles. E sim filhos atrapalhados ou boçais que, quando aparecem, tornam-se um
estorvo para os pais.
A ponto de em E se vivêssemos todos juntos? deixarem o filho de um para fora do portão e ainda lhe darem um banho
de mangueira para que vá embora de uma vez e não volte tão cedo. São velhos poderosos – e que reivindicam seu poder
mesmo em uma condição de fragilidade – os do cinema. Poderosos porque não se deixam apartar de sua história na velhice,
ao contrário. Apropriam-se dela e a usam para viver com intensidade seus últimos capítulos, apesar das inevitáveis perdas e
limitações. Cabe esclarecer que esta questão, a dos filhos diante da velhice dos pais, que aqui se torna a principal, nos
filmes é secundária, quando não inexistente, o que também é muito significativo. Como filha de pais que envelhecem, eu
me identifico com esses filhos perplexos e atrapalhados. Como uma mulher que envelhece, me identifico com esses velhos,
nos quais me espelho para o futuro não mais tão distante. Em qualquer um dos casos, consigo encontrar discernimento para
perceber o quanto é sensacional que os filhos, que se acham tão centrais na vida de seus pais, a qualquer tempo, sejam
colocados no seu devido lugar.
“Minha mãe (ou meu pai) virou criança.” Esta frase, corriqueira na boca de filhos que parecem exaustos, me provoca
alguma desconfiança. Soa mais como uma tentativa de potência de filhos que estão se sentindo bem impotentes. Ou soa
como uma tentativa de mostrar que sabem o que fazem ou para onde vão, quando de fato se encontram completamente
perdidos. Até porque é uma marca do nosso tempo o retardamento da vida adulta, de preferência para sempre. E a velhice
dos pais, os adultos por excelência, afunda todas as esperanças inconfessadas de ser adolescente para sempre em pelo
menos um lugar no mundo. Sinto compaixão por esses filhos, como senti pelos filhos dos velhos do cinema. Como senti por
mim mesma à certa altura. Ao perceber que meus pais estavam envelhecendo, em determinado momento achei que tinha
de assumir também o comando da vida deles. Considerei que, para ser uma boa filha, tinha de ter todas as respostas. Ou,
invertendo o lugar, me apropriar do famigerado “eu sei o que é melhor para eles”. Aos poucos fui percebendo que estava
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me tornando uma chata pretensiosa. Com tanto medo que eles quebrassem que queria carregá-los no colo, mas minha
estropiada coluna vertebral mal dá conta de sustentar meu próprio peso.
Com a gentileza que lhes é peculiar, meus pais escutavam meus palpites e minhas pregações e, claro, faziam
exatamente o que queriam. Devagar fui me dando conta de que era só o que faltava ter vivido e experimentado tanto para
chegar à velhice e ter de suportar uma filha tentando mandar neles. Percebi que o importante era estar por perto não só
para o que fosse preciso, mas pelo prazer da companhia, e continuar capaz de escutá-los. Se precisam da minha ajuda, eles
mesmos me dizem – não só com palavras, mas de maneiras mais sutis. E se fazem coisas que eu considero mais arriscadas,
tanto a decisão quanto o risco continuam sendo deles, como sempre foram. Não por minha majestosa concessão, mas
porque não tenho nenhum direito de impor qualquer vontade. Se depois de me tornar adulta eu nunca permiti que meus
pais interferissem de forma autoritária na minha vida, por que é que eu me acharia no direito de me meter de forma
autoritária na deles quando estão envelhecendo? Escutar de verdade ainda é o começo e o fim de qualquer relação de
respeito mútuo – e de amor.
Mas nós, os filhos, nos atrapalhamos mesmo. E acho muito divertida a ironia com que somos tratados nessa sequência
de filmes, mesmo quando não estamos. (Como assim não estamos, nós, tão centrais na vida dos pais? Que horror!) Alguns
se atrapalham porque se confrontar com a velhice dos pais é se confrontar com a certeza de que não há mais jeito de
escapar da vida adulta. E, para quem achou que poderia continuar sendo filho para sempre, é uma complicação virar gente
grande de uma hora pra outra. Ao tentar dar ordens aos pais, esses filhos na verdade estão dizendo: “Não me deixem
sozinho nesse mundo tão ameaçador. Não me desamparem!”. E a irritação que manifestam diante das limitações dos pais
muitas vezes é um jeito tosco de disfarçar o pavor que sentem diante do desamparo iminente. Isso para alguns.
Para todos a velhice dos pais anuncia a própria velhice. É talvez o primeiro grande confronto com a fragilidade e com a
finitude. Os filhos que olham aterrorizados para os passos claudicantes dos pais não temem apenas que eles caiam, mas
principalmente que serão os próximos a ter pernas que vacilam. Ainda que não confessem nem para si mesmos, talvez seja
este o maior horror. E este é um momento bem periclitante da vida. E quando isso se dá por volta dos 40, 50 anos, o
confronto acontece quando o corpo está dando os primeiros sinais inequívocos de que já não somos tão jovens. É um duplo
desafio, a velhice dos pais e o anúncio do próprio envelhecer. Que nem se compara, e isso também é preciso lembrar, com
o desafio abissal que é ser velho – e ser velho nesse mundo em que, além de todas as dificuldades da idade, é preciso
brigar para ser respeitado. E escutado.
Como já contei aqui, compartilho com um grupo de amigos o projeto de envelhecermos juntos num condomínio
construído por nós em uma cidade pequena perto de uma grande. Uma cidade pequena por ser mais amigável a quem tem
limitações físicas, sem contar que perder o pouco tempo de vida que resta empacado no trânsito não parece uma boa ideia.
E perto de uma grande porque queremos continuar indo ao cinema, ao teatro, às livrarias e aos cafés e restaurantes, e
numa cidade maior as alternativas gratuitas ou de baixo custo de eventos culturais são mais promissoras para quem vive de
aposentadoria. Nossas casas terão fundos para um pátio comum, para o caso de querermos nos encontrar, e frente
individual, para a rua. O pacto, já antigo entre nós, parte da ideia de envelhecer no mundo – e não apartado dele, como
acontece com a velhice asilada – e perto de quem sabe de nós. Além de nos dar a possibilidade de amparar as dificuldades
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um do outro e de baratear os custos de manutenção. Neste sentido, nos aproximamos dos personagens de E se vivêssemos
todos juntos?, mas com um pouco mais de privacidade.
Tenho encontrado gente na mesma faixa etária com projetos semelhantes com o seu grupo de amigos. E acredito que
esta também é uma mudança importante. Acho que a minha geração está diante dessa questão como nenhuma outra. E
tem aprendido algo importante com sua própria perplexidade diante da velhice dos pais. A questão dos meus pais, que
sempre viveram com salário de professor, o que todo mundo sabe o que significa no Brasil, era fazer uma poupança para
não depender dos filhos na velhice. A frase clássica dos pais bacanas, que hoje estão nos 70, 80 anos, é: “Não quero dar
trabalho para os meus filhos dependendo deles”. Ou: “Não quero incomodar os meus filhos”.
A frase da minha geração – e que já se anuncia na boca dos velhos do cinema – é outra: – Incomodar os meus filhos?
Nem me importaria. O que não quero é que os meus filhos me incomodem!
ELIANE BRUM é Jornalista e escreve – semanalmente – para esta publicação. Revista ÉPOCA, Abril de 2013.
Vitamina D (DRAUZIO VARELLA)
AINDA trago na memória o gosto insuportável do óleo de fígado de bacalhau que minha avó me empurrava goela
abaixo, antes do almoço. A crença nos poderes milagrosos do fígado do bacalhau vinha do século 19. Em 1822, um médico
polonês observou que o raquitismo era mais comum nas crianças que haviam migrado para as cidades. Dois anos mais
tarde, os alemães sugeriram que a doença fosse tratada com óleo de fígado de bacalhau.
Em 1848, médicos ingleses conduziram um dos primeiros ensaios clínicos da história da medicina. Mais de mil pacientes
com tuberculose foram divididos em dois grupos: um deles foi tratado com três colheres diárias do insuportável óleo,
enquanto o outro recebeu apenas cuidados gerais. No final, haviam morrido 33% dos pacientes do grupo-controle, contra
19% do grupo tratado. Até a descoberta de medicamentos específicos para a tuberculose, em meados do século 20, os
doentes eram enviados para respirar ar puro e fazer repouso, nas montanhas. Nos sanatórios, era obrigatório expô-los ao
sol da manhã.
O tratamento com óleo de fígado de bacalhau e a fototerapia tinham um denominador comum: a vitamina D, só
descoberta em 1922. Ao contrário de outras vitaminas, o corpo humano produz cerca de 90% da vitamina D de que
necessitamos; o restante vem dos alimentos. Sob a ação dos raios ultravioletas, uma molécula precursora existente na pele
(7-dihidrocolesterol) se transforma numa forma inativa da vitamina D, que será convertida em ativa no fígado e nos rins. A
descrição recente de que a maioria das células do organismo possui receptores para vitamina D serviu de base para
preconizar seu uso na prevenção de males crônicos, como diabetes, câncer, asma, alzheimer e doenças cardiovasculares.
Esses conhecimentos, associados à dificuldade de exposição ao sol característica da vida urbana, criaram um mercado
fértil para o consumo indiscriminado de suplementos contendo vitamina D, que, nos Estados Unidos, saltou de U$ 50
milhões em 2005 para U$ 600 milhões em 2011. Muitos pesquisadores desaprovam essa estratégia de medicar em massa.
No passado, outras vitaminas que pareciam trazer benefícios à saúde demonstraram efeito contrário. Nos anos 1990, a
crença de que o beta-caroteno seria dotado de efeito antioxidante capaz de neutralizar os compostos cancerígenos do
cigarro levou os finlandeses a dividir 30 mil fumantes em dois grupos, um dos quais recebeu suplementos com betacaroteno. Para surpresa, justamente nesse grupo houve aumento de 18% na incidência de câncer de pulmão e de 8% na
mortalidade geral.
Estudo semelhante conduzido nos Estados Unidos dois anos mais tarde precisou ser interrompido por causa do
aumento do número de casos de câncer de pulmão e de mortes entre os que receberam beta-caroteno. Em 2008, um
ensaio clínico para estudar o papel da vitamina E e do selênio na prevenção do câncer também foi interrompido
precocemente: a suplementação provocou aumento de 17% na incidência de câncer de próstata. Enquanto uma corrente
defende que níveis sanguíneos mais baixos de vitamina D estejam associados a diversas doenças crônicas, outras
consideram simplista essa explicação. Para estas, a hipovitaminose é mais comum em pessoas que não tomam sol e,
portanto, fazem menos exercício e levam vida menos saudável.
Além disso, como se trata de uma vitamina solúvel em gordura, indivíduos obesos (portanto, mais propensos a doenças
crônicas) apresentam níveis sanguíneos mais baixos. Depois de examinar centenas de trabalhos, a ONG Institute of
Medicine, dos Estados Unidos, concluiu em 2010 que, "embora haja evidência de que a vitamina D é importante para a
saúde dos ossos, não há benefícios que justifiquem seu uso com outras finalidades". Estão em andamento diversos estudos
com milhares de participantes para esclarecer o papel da vitamina D na prevenção de enfermidades crônicas.
Enquanto os resultados não são conhecidos, é mais sensato confiar no método natural: expor braços e pernas ao sol
durante cinco a 30 minutos (a pele escura sintetiza com mais dificuldade), duas vezes por semana, ou apanhar sol no corpo
inteiro a cada dois ou três meses, por tempo suficiente para deixar a pele um pouco mais pigmentada.
DRAUZIO VARELLA é médico cancerologista. Por 20 anos dirigiu o serviço de Imunologia do Hospital do Câncer. Foi um dos
pioneiros no tratamento da Aids no Brasil e do trabalho em presídios, ao qual se dedica ainda hoje. É autor do livro "Estação
Carandiru" (Companhia das Letras). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2013.
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Ah, se não fosse a realidade! (FERREIRA GULLAR)
ESTAVA assistindo a um programa de televisão onde eram entrevistados alguns artistas de teatro e cinema. Um deles,
que foi entrevistado isoladamente, e que não era brasileiro, demonstrou sua profunda decepção com o momento atual e
especialmente com sua geração, desinteressada da revolução.
Por isso mesmo, sentia-se isolado, uma vez que, no seu entender, a sociedade atual é inaceitável e teria que ser
varrida do mapa. Não deixou claro que outra sociedade seria posta no lugar desta, mas certamente nada teria a ver com o
capitalismo. Em seguida, falou uma jovem atriz que, embora não tão radical quanto o anterior, também lamentou o fato de
que a sua geração, ao contrário da de seus pais, não sonha com a revolução, nem pensa nisso. O entrevistado seguinte, um
pouco mais velho, também lamentou a falta de espírito transformador que impera hoje, quando as pessoas só pensam em
seus próprios interesses, indiferentes aos problemas que tornam nossa sociedade inaceitável.
Enquanto os ouvia, me veio à lembrança uma conversa que tive, faz já algum tempo, com uma jovem universitária.
Tinha ido à UFRJ fazer uma palestra e ela ficara de me trazer de volta para casa. Deu-me o exemplar de um jornal do PC do
B e perguntou o que eu achava das ideias desse partido. Respondi que não estava muito atualizado com o que aquele
partido pregava mais recentemente mas, no passado, opunha-me a seu radicalismo exagerado. Ela não gostou de ouvir isso
e defendeu o radicalismo como a única maneira de levar à mudança da sociedade capitalista.
Sem pretender travar polêmica com a moça, mas puxado por ela a discutir o assunto, argumentei. Com cuidado,
perguntei-lhe se não lhe parecia bastante difícil fazer uma revolução comunista, hoje, depois de tudo o que aconteceu no
mundo. Veja bem - disse eu - o sistema socialista, liderado pela URSS, chegou a ser a segunda potência militar e econômica
do mundo e ainda assim, fracassou. Acha você que, agora, quando já quase nada existe daquele poder, é que vocês aqui no
Brasil vão fazer a revolução e recomeçar tudo de novo? - perguntei-lhe.
- E por que não?, disse ela. A URSS seguiu o caminho errado. Lembrei-lhe que a China, que tinha divergência com os
soviéticos, também mudou e tornou-se agora um país capitalista. A resposta dela foi que a China nunca tinha sido de fato
comunista. - E Cuba? Cuba é que está certa? Mas a coisa por lá não anda muito bem. - Aquilo ali não é socialismo,
respondeu ela.
Fiquei olhando-a, sem entender. Então tudo o que aconteceu, desde a revolução de 1917, estava errado, nada daquilo
era o verdadeiro socialismo? Sim, era isto o que ela afirmava ali, dentro daquele carro. O verdadeiro socialismo era o do PC
do B, embora seja ele hoje um partido sem maior expressão na vida política brasileira e tudo o que conseguiu foi ocupar o
Ministério dos Esportes nos governos do PT. E logo o Ministério dos Esportes! Se há uma coisa que sempre esteve fora da
preocupação do PC do B foram exatamente os esportes, que certamente viam como pura alienação...
Ao comentar essa conversa com o professor que me convidara a fazer a tal palestra, ouvi dele que, dos 30 alunos que
compunham aquela turma, quase todos, senão todos, se diziam comunistas. Admito que fiquei realmente surpreso. Que
pessoas de minha geração, por terem militado na esquerda, ainda se mantenham fiéis àquelas convicções ideológicas, dá
para entender. Mas jovens, que nasceram após o fim do sistema socialista, insistirem num sonho revolucionário que há
muito já se dissipou, é, no mínimo, surpreendente.
Mas tampouco dá para entender a tese daquela mocinha para a qual tudo o que houve e ainda resta com o nome de
comunismo não deu certo porque não era o verdadeiro comunismo. Ou seja, se fosse, teria dado certo. Pensando assim, ela
se sente à vontade para acreditar em algo que não precisa acontecer para existir. A conclusão é que esse pessoal não dá
muita bola para a realidade.
Agora mesmo, apareceu na internet um documento, supostamente assinado pelo PC do B, PT e outras entidades,
solidarizando-se com a Coreia do Norte, que estaria sendo ameaçada pelos belicistas norte-americanos. Pode?
FERREIRA GULLAR é cronista, crítico de arte e poeta. Escreve aos domingos na versão impressa de "Ilustrada". Jornal FOLHA
DE SÃO PAULO, Abril de 2013.
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