CONTANDO A HISTÓRIA DE SÃO FRANCISCO DO SUL QUAL A RELAÇÃO TEATRO-COMUNIDADE? Clarice Steil Siewert1 Resumo: Este artigo apresenta a análise do processo de montagem da peça Histórias de São Chico da Dionisos Teatro de Joinville, tomando como referencial teórico o conceito de teatro na comunidade. O objetivo é delinear as características do processo e sua relação com a comunidade da cidade de São Francisco do Sul. Palavras-chaves: Teatro-comunidade; São Francisco do Sul Introdução O objetivo deste artigo é relatar um caso de Teatro na Comunidade, tendo como referencial teórico a pesquisa da Prof. Dr. Márcia Pompeo Nogueira, dentro da disciplina “Teatro para Desenvolvimento de Comunidades”, ministrada por esta professora no Mestrado em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina. O caso a ser relatado é o da construção da peça Histórias de São Chico, pela Cia. Dionisos Teatro de Joinville. Trata-se de uma peça que foi solicitada pelo Instituto Binot de Goneville para abordar a história da cidade de São Francisco Sul em comemoração ao aniversário de 500 anos da mesma. A cidade de São Francisco do Sul A cidade de São Francisco do Sul está situada ao norte do Estado de Santa Catarina, na ilha de São Francisco. Na parte continental, integrado ao município, encontra-se o Distrito do Saí. O Município faz divisa com Itapoá, Garuva, Joinville, 1 Aluna especial da disciplina “Teatro para o Desenvolvimento de Comunidades”, com a Profa. Dra. Márcia Pompeo, do Mestrado em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Araquari, Barra do Sul, possuindo também uma extensão de aproximadamente 30 Km, banhada pelo Oceano Atlântico.2 Possui cerca de 30 mil habitantes, e foi fundada em 1504, sendo a primeira povoação de Santa Catarina e a terceira do Brasil.3 A Dionisos Teatro A Dionisos Teatro é uma companhia criada em 1997 na cidade de Joinville pelo professor e diretor teatral Silvestre Ferreira. Inicialmente as atividades da companhia incluíam aulas de teatro, artes plásticas e música no seu próprio espaço, além da montagem e produção de espetáculos de teatro. Em 1999 foi criada a Trupe Camaleão de Teatro, grupo oficial da Dionisos Teatro, e a partir daí a companhia passou a construir um repertório de peças, além do trabalho com contação de histórias. Outras atividades que a companhia passou a exercer foram a direção de grupos de teatro em empresas e escolas e o desenvolvimento de palestras e cenas teatrais também para as áreas educacional e empresarial. Atualmente a Dionisos Teatro é formada pelos diretores Silvestre Ferreira e Hélio Muniz, e pelos atores Andréia Malena Rocha, Clarice Steil Siewert e Eduardo Campos. Têm em seu repertório as peças: Amor por Anexins, Babaiaga, A Farsa do Mestre Pathelin, Napiti Ditemê e Contando os Direitos da Criança e do Adolescente. Peças já montadas: Histórias de São Chico, O Julgamento na Floresta, A Ceia dos Cardeais, A Explosão, O Princípio. A Dionisos Teatro ainda dirige o Grupo de Teatro Embraco, o Grupo de Teatro Duas Rodas e o grupo Bytes & Parafusos da SOCIESC. 2 São Francisco do Sul. Disponível em: <http://www.saofranciscodosul.com.br> Acesso em: 18 jul. 2006. 3 Bela Santa Catarina. Disponível em: <http://www.belasantacatarina.com.br/saofranciscodosul/> Acesso em: 18 jul. 2006. 2 A montagem de Histórias de São Chico A cidade de São Francisco do Sul completou 500 anos no ano de 2004. Na ocasião dessa comemoração, o Instituto Binot de Goneville (responsável pelas comemorações) solicitou a montagem de uma peça teatral baseada na história dessa cidade. Dessa forma, com o patrocínio da empresa Vega do Sul, a Dionisos Teatro estabeleu com a mesma um contrato de prestação de serviço. A Vega do Sul é uma unidade industrial especializada na transformação de aços carbonos planos. [...] Tem como principal acionista o Grupo Arcelor (75%), um dos maiores produtores mundiais de aços, líder no fornecimento para a indústria automotiva em todo o mundo. Os outros 25% das ações são controlados pela CST, fornecedora de matéria-prima (bobinas laminadas a quente), e um dos mais modernos produtores de aço integrado. [...] Com uma capacidade de produção de 880 mil toneladas anuais de aços laminados a frio e galvanizados, a empresa é fruto de um investimento de US$ 420 milhões, o maior investimento privado da história de Santa Catarina, e gera, no Condomínio Vega, cerca de 800 empregos. [...] até o final de 2003 todas as linhas da unidade industrial estavam em funcionamento. A inauguração oficial foi em 27 de abril de 2004 e fez parte das comemorações dos 500 anos de descobrimento de São Francisco do 4 Sul. Os serviços, a cargo da Dionisos Teatro, em função desta contratação, consistiam na montagem e apresentação de uma peça teatral inspirada na história de São Francisco do Sul. A peça deveria ser de linguagem popular com tempo de duração entre 30 a 45 minutos a ser apresentada na praça da Igreja de São Francisco do Sul e outras comunidades daquela cidade, com estréia oficial no dia 05 de Janeiro de 2004. Segundo Silvestre Ferreira, diretor da Dionisos Teatro e da peça, em relação ao que se pretendia no início do processo: Nesta montagem não nos arvoramos à pretensão de sermos definitivos tanto do ponto de vista histórico quanto estético. Pretendemos apenas que a peça seja um pequeno prisma onde a comunidade Francisquense possa olhar para si mesma com carinho. O palco pode ser uma lente de aumento onde possamos ver melhor nossa própria existência, onde podemos rir de nossos pequenos defeitos, chorar nossas dores e sonhar nosso futuro. (informação verbal)5. O processo de montagem foi iniciado com a pesquisa histórica, orientada pela Historiadora Raquel Santiago e realizada pela Dra. Eliane Lisbôa e pelo pesquisador 4 5 Vega do Sul. Disponível em: <http://www.arcelor.com/br/> Acesso em: 01 ago. 2006. Texto escrito por Silvestre Ferreira no release de lançamento da peça no ano de 2003. 3 Hélio Muniz. Porém os atores Andréia Malena Rocha, Clarice Steil Siewert, Eduardo Campos e o ator convidado Samuel Kühn, assim como o diretor Silvestre Ferreira, o figurinista Lucas David, o bonequeiro Fábio Henrique Nunes, e a musicista Fabrícia Piva, também realizaram visitas à cidade e participaram de algumas entrevistas. A pesquisa histórica abrangeu então os seguintes planos: Pesquisa bibliográfica: • Guia Cultural Ilha Encantada de São Francisco do Sul – 2000/2001 – Editora Ana Paula. • Guia Cultural e Turístico Lendas e Folclore de São Francisco do Sul – 2000/2001 – Editora Ana Paula. • ALEXANDRE, Arnoldo. São Francisco do Sul Ex-Ilha Terra de Sonhos e Tradição. Editora Lítero-Técnica. • PEREIRA, Carlos da Costa. História de São Francisco do Sul. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1984. • PEREIRA, Carlos da Costa. Traços da Vida da Poetisa Júlia da Costa. Florianópolis : FCC, 1982. Entrevistas: • Presidente do Sindicato dos Pescadores • Dona Elvira e Beto do Grupo Folclórico 25 de Dezembro • Maestro da Orquestra Guarani • Phrineya Pereira Starzak da Fundação Cultural de São Francisco do Sul • Samir Deud do grupo Dramático X de Novembro • Clara Amélia Costa Pereira, diretora do museu histórico • Dalmira Cabral • Tharyn Starzak de Freitas Visitas: • Museu do mar • Porto • Museu histórico • Alguns bairros da periferia da cidade 4 • Centro Histórico Após a pesquisa, iniciou-se o processo de estruturação da peça. Parte da dramaturgia foi feita a partir da improvisação de cenas baseadas em lendas ou fatos históricos importantes da cidade, e outra parte foi proposta por Hélio Muniz e Eliane Lisbôa, também de acordo com a pesquisa histórica. Eliane Lisbôa explica a elaboração do texto: Junto com Hélio Muniz passei a elaborar as cenas que seriam desenvolvidas pelo grupo. Na verdade o processo parece-me que se dava em dois tempos. Líamos o material teórico e histórico, depois trocávamos idéias, produzíamos algum texto, juntos e/ou individualmente, e o grupo se apossava deste material. Muitas vezes o diretor entregava o material e deixava o elenco jogar sozinho, para somente depois ver o que tinha sido criado, e selecionar o que realmente poderia ser aproveitado. A partir desta primeira realização cênica do material, partíamos para sua reelaboração, levando em conta o jogo de cena criado pelos atores. Novos textos eram criados, excessos cortados, trechos eram eliminados e outros introduzidos para dar coerência e seqüência lógica ao que se criava. O texto se construía então destas idas e vindas, enquanto buscávamos amarrar dois aspectos: 1. Que materiais deveriam integrar o roteiro básico, que assuntos não poderiam deixar de ser tratados. Lendas, causos, momentos históricos importantes, personagens curiosos, foram o principal alimento deste conjunto de cenas. 2. Como amarrar estes temas, estas cenas, aparentemente desconexas num todo coerente. Havia uma idéia básica definida pelo diretor que deveria nortear a construção global, que era o folguedo do Boi de Mamão. A idéia da cidade de São Francisco como o Boi, que seria apresentado ao público, esteve sempre presente e acabava dando uma certa linha ao trabalho, que se mostrava mais claramente nos materiais cênicos criados, figurinos e adereços, mas que também direcionava o espírito da criação ‘textual’. 6 (informação verbal) . A peça teve sua estréia no dia 05 de janeiro de 2004 na praça central da cidade com um público de mais de 2.000 pessoas. Depois foram realizadas mais 10 apresentações (Quadro 1). 6 Entrevista com Eliane Lisbôa cedida em 13/07/2006. 5 Data 04/01/04 Local Em frente à Igreja Matriz – Público Observações 2000 Centro de São Francisco do Sul 09/01/04 Centreventos - Joinville 800 Para funcionários da empresa Vega do Sul 17/01/04 Praia da Enseada – São 1000 Francisco do Sul 31/03/04 Câmara Legislativa - 150 Florianópolis 18/04/04 Em frente ao Mercado Municipal Lançamento da Festilha 600 Festilha 300 44a. Conferência do - São Francisco do Sul 15/05/04 Cine Teatro X de Novembro São Francisco do Sul 14 e 15/06/04 Cine Teatro X de Novembro - Rotary Club 1200 São Francisco do Sul Para alunos de escolas públicas 3 apresentações 21/08/04 Centro Histórico de São 500 Festa dos Açores 310 Gravação da peça – Francisco do Sul 17/10/04 Teatro Juarez Machado Joinville 28/11/04 Galpão da Igreja da Vila da aberta ao público 67 Glória – São Francisco do Sul Quadro 1 – Apresentações da peça Histórias de São Chico. Foram no total 12 apresentações, abrangendo um público de quase 7.000 pessoas. São Chico para São Chico A peça Histórias de São Chico pode ser considerada como Teatro na Comunidade, já que seu objetivo era o de contar a história da cidade de São Francisco do Sul, tomada aqui como a comunidade alvo. O termo Teatro na 6 Comunidade é muito amplo e abarca diferentes práticas teatrais. Tomamos aqui o conceito de Baz Kershaw: Sempre que o ponto de partida [de uma prática teatral] for a natureza de seu público e sua comunidade. Que a estética de suas performances for talhada pela cultura da comunidade de sua audiência. Neste sentido estas práticas podem ser categorizadas enquanto Teatro na Comunidade”. 7 (KERSHAW apud NOGUEIRA). Considerando o conceito de comunidade dado por Anthony Cohen: Comunidade não se define apenas em termos de localidade (...) É a entidade à qual as pessoas pertencem, maior que as relações de parentesco, mas mais imediata do que a abstração a que chamamos de ‘sociedade’. É a arena onde as pessoas adquirem suas experiências mais fundamentais e substanciais da vida social, fora dos limites do lar. (COHEN apud NOGUEIRA).8 É necessário, porém, que se faça a análise de como e por quê a comunidade de São Francisco do Sul recebeu esta peça, já que o termo Teatro na Comunidade pode abranger muitos “comos” e “porques”. O compromisso da Dionisos Teatro estabelecido com a cidade de São Francisco do Sul foi de muito respeito e carinho. A partir das pesquisas, entrevistas e visitas, os integrantes do processo foram se familiarizando com as lendas e histórias da cidade, tendo a preocupação de levantar também algumas histórias “esquecidas”. Um exemplo delas foi a do Grupo Dramático X de Novembro, contada por Samir Deud, um dos integrantes deste que foi um importante grupo de teatro da cidade e do estado. O grupo é homenageado na peça, e os nomes de algumas pessoas que fizeram parte são citados. No dia da estréia, algumas pessoas fizeram questão de ir contar ao grupo que faziam parte da família deste ou daquele personagem. Ainda no relato de Eliane Lisbôa pode-se entender melhor como foi esse contato: Andar pelas ruas, sentir o ‘espírito’ de São Chico de algum modo, ouvir os depoimentos pessoais de um e de outro, reconhecer a presença da história nos nomes das lojas, cafés e até nas pedras do lugar, escutar lendas e ouvir falar de tipos curiosos, falar com os pescadores, foi ainda mais importante do que a simples leitura de material. Este jeito de falar das pessoas, e a sua ligação com as tradições locais me parece que foi o alimento que deu base a todo o processo criativo. 7 8 NOGUEIRA, M. P. Teatro e Comunidade. Florianópolis. Artigo não publicado. Ibidem. 7 Também tenho a impressão, pelas poucas vezes em que lá estive, de que o carinho das pessoas entrevistadas, a maneira amorosa com que nos transmitiam o que sabiam, ou entregavam documentos e materiais de uma história, muitas vezes de sua vida mais pessoal, a ser trabalhada como objeto de pesquisa, determinava em nós uma responsabilidade e um respeito muito grande. Ainda mais sabendo-se que tudo isto seria devolvido à cidade em forma de espetáculo. (informação verbal)9. Porém, a participação da população da cidade foi pequena, considerando-se que vários bairros nem foram visitados. A falta de tempo para a realização do projeto é um dos fatores. A aprovação do patrocínio por parte da empresa se deu 2 meses antes da estréia da peça. Isso ocasionou, além da falta de tempo para uma pesquisa mais aprofundada, uma aceleração no processo de montagem. Não foi possível deixar a peça exatamente como a direção desejava, sendo que ficava, por vezes, sem ritmo e com pouca elaboração dos personagens. Ainda outro relato de Eliane Lisboa fala sobre essa falta de tempo: Saí também com a sensação de que o trabalho se interrompia num dado momento, onde não havia tido tempo para amadurecer tudo o que se tinha colhido, diante da urgência e dos prazos a cumprir. Com a sensação, portanto de que o trabalho se interrompeu em meio de seu processo, como se ainda houvesse muito a se dizer e elaborar, e que diante da urgência ele tomou um caráter quase alegórico, sem permitir maiores aprofundamentos. Isso me parece particularmente verdadeiro no que se refere à nossa tentativa de dar uma finalização ao trabalho, não no sentido de construção da cena final, mas da idéia do que se gostaria de estar falando para e sobre a cidade. (informação verbal)10. Dessa forma, a história da cidade abordada na peça é aquela registrada nos museus e livros, e no máximo, aquela contada pelas pessoas entrevistadas, que na sua maioria, moram no centro da cidade e têm ligação com a fundação cultural, que foi uma das instituições que auxiliou na pesquisa. A população mais pobre não foi ouvida, tampouco aquelas mais distantes. Assim como apenas parte da cidade foi ouvida, também apenas parte dela pôde se ver. As 10 apresentações que ocorreram foram em locais e ocasiões escolhidas pela empresa patrocinadora – Vega do Sul. A Vega do Sul é uma empresa instalada em São Francisco do Sul em 2003. Por ser uma grande corporação, e por trabalhar com aço (sendo portanto bastante poluidora), ela tinha a necessidade de ser aceita pela comunidade da cidade. No ano de 2004, a Vega do Sul patrocinou vários projetos voltados para a população de 9 Entrevista com Eliane Lisbôa cedida em 13/07/2006. Ibidem. 10 8 São Francisco. Ela tinha um objetivo bastante marcado de construir uma boa imagem, e para isso, fez uma grande campanha de marketing. A peça Histórias de São Chico fez parte desse objetivo. Nas matérias de jornal sobre a peça, via-se embaixo da mesma, grandes propagandas pagas com a logomarca da empresa. Também pode-se entender que os lugares escolhidos para as apresentações eram de grande visibilidade (com exceção da última apresentação na comunidade da Vila da Glória). Outro fator importante a ser analisado é a questão da estética. A linguagem adotada, do teatro popular, utilizando elementos do folguedo do boi-de-mamão e do teatro de rua, teve uma boa recepção pelo público local. A Dionisos Teatro teve uma especial preocupação em trabalhar com uma forma que realmente tivesse algum significado para a comunidade de São Francisco do Sul. A pesquisa então não se limitou ao conteúdo histórico, mas também na linguagem a ser utilizada. Por ser uma cidade com forte influência açoriana, o boi-de-mamão ainda é uma referência para a população, e foi esse o principal mote da peça, não só com o enredo, mas com o visual e a musicalidade. Também outras tradições serviram de inspiração, como o pau-de-fita e a dança do vilão. Nesse contexto, é importante trazer a tona a discussão da relação forma e conteúdo do teatro na comunidade. Relação esta que tem seu ponto inicial de discussão com os posicionamentos de Lúkacs e Brecht acerca do realismo no teatro. Lúkacs primava pelo "realismo crítico" como modelo estético socialista, o qual tinha uma forma de narrativa própria de apresentar os fatos objetivos mediados pela consciência das personagens (Balzac e Tolstoi como exemplos máximos). Para ele, a arte deveria refletir a vida real, mas para isso, deveria utilizar somente de uma forma - o "realismo crítico". (MOSTAÇO, 1983)11. Esse posicionamento de Lúkacs era contra a "arte burguesa", criticando a sua forma, que vinha aparecendo no expressionismo, por exemplo. Brecht vem contrapor Lúkacs, colocando-se também como realista - já que seu teatro vinha discutir a realidade - porém utilizando outras formas que não aquelas preconizadas por Lúkacs. A primeira objeção de Brecht a Lúkacs coloca-se quanto ao seu caráter formalista, isto é, sua modelização de realismo baseada numa forma literária (o romance) e numa forma técnico-mimética exclusiva (o estilo 11 MOSTAÇO, Edélcio. O Espetáculo Autoritário. São Paulo : Proposta, 1983. 9 narrativo realista de Balzac e Tolstoi, duas formas historicamente datadas e que não permitem generalizações, não apenas às demais expressões artísticas não literárias como no tempo, no espaço e na consciência 12 contemporânea. (MOSTAÇO, 1983, p. 39). Para Brecht: Tendo em mente o povo que luta e transforma a realidade, não podemos prender-nos a regras 'comprovadas' da narrativa, a veneráveis modelos da literatura, a leis estéticas imutáveis. Não podemos decalcar o realismo a partir de determinadas obras existentes; em vez disso, temos que usar todos os meios, velhos e novos, comprovados e por comprovar, vindos da arte ou de outros domínios, para oferecer às pessoas uma realidade que elas possam dominar. (BRECHT, 1978, p. 110).13 Dessa forma, Brecht não separa a forma do conteúdo, sendo que para ele, "a realidade altera-se, e para a representar têm de se alterar os processos de representação". (BRECHT, 1978, p. 111).14 A partir dessa polêmica aberta por Brecht e Lúkacs, passou-se a discutir a relação forma e conteúdo no teatro. Existe uma forma única e certa, como coloca Lúkacs, para que a mensagem possa ser transmitida através teatro? Ou será que a forma deve ser também conteúdo, sendo mutável de acordo com a realidade de seu tempo e local, como colocou Brecht? Na prática do Teatro na Comunidade, o posicionamento de Brecht se faz mais eficaz, na medida em que há a identificação da comunidade com o que está no palco, sendo então o palco um canalizador do pensar e do transformar a comunidade. Buscou-se, na montagem da peça Histórias de São Chico, uma forma de representação das histórias e lendas a partir de uma linguagem da comunidade de São Francisco e de suas manifestações. Era necessário contar a história da cidade, porém, na própria estética da peça, essa história também era contada. E para isso, a pesquisa na cidade e o contato com as pessoas foi de extrema importância. Por fim, é necessário ressaltar a boa recepção do público da cidade em relação à peça. Por vezes o público batia palmas ao final de alguma cena, por mais que soubesse que não era ainda o final da peça. Isso acontecia principalmente nas cenas em que apareciam os personagens do boi. Uma das cenas mais aplaudidas foi aquela em que o barão (personagem do boi parecido com um dragão que engole pessoas) engolia o pescador. O barão, na peça, representava o progresso, que veio para a cidade com o trem e depois com o aterramento do canal do Linguado. 12 Ibidem. LÚKACS, Georg; BLOCH, Ernst; EISLER, Hanns; BRECHT, Bertold. Realismo Materialismo Utopia - uma polêmica. 1935 - 1940. [S.l.] : Moraes, 1978. 14 Ibidem. 13 10 Ao final da peça, as pessoas vinham falar com os atores, e principalmente as pessoas mais velhas, falavam de onde conheciam as histórias. O processo de contar a história de uma cidade para sua comunidade é muito rico. O resgate de lendas, histórias e do folclore é muito importante nessa construção, para que as pessoas possam realmente se sentir prestigiadas e respeitadas ao assistir a peça. Por a Cia. Dionisos não ser de São Francisco, isso pode ter feito com que esta tenha falhado em algum aspecto da cidade, porém, por outro lado, por causa de sua distância, ela pode ter conseguido contar a história de uma forma mais neutra e ampliada. O Teatro na Comunidade pode acontecer de várias formas, porém ele terá maior força quando dispuser de tempo e disponibilidade de seus praticantes em realmente interagir com a comunidade, buscando sempre atingi-la de modo mais integral. O processo de escuta é muito importante, já que as pessoas da própria comunidade são as mais indicadas para contarem suas próprias histórias. 11