Paisagem e natureza em Porto Manso, de Alves Redol Carlos Nogueira Elsa Pereira Representadas na literatura desde a Antiguidade, a natureza e a paisagem vêm assumindo um papel cada vez mais relevante nos estudos sobre a narrativa, sobretudo com o advento de abordagens pós-estruturalistas, como a análise ecocrítica. Mais do que as questões teóricas inerentes à interseção do espaço e do ambiente no texto literário, este trabalho pretende todavia analisar de que forma a natureza e a paisagem do Douro vinhateiro dos anos 40 – Douro selvagem e mortífero – surgem representadas no romance Porto Manso, de Alves Redol. Dos quadros descritivos que antecedem cada capítulo, até ao modo como a natureza é filtrada emocionalmente pelas personagens, esta obra permite-nos encarar o espaço como “instrumento de análise para a alma humana” (Bachelard), na medida em que a representação da paisagem e dos aspetos ligados à navegação do rio surgem também como metáfora da própria condição humana. Neste romance de 1946, os arrais, os marinheiros e suas famílias encontram-se em estreita comunhão com a natureza e, em particular, com o rio Douro, que ora exaltam, ora maldizem. É nestas águas mortíferas que se alimenta e realiza o protagonista, António do Monte, projetando-se euforicamente na paisagem envolvente em instantes de maior esperança no futuro, quando o próprio andamento pessoal parece coincidir com o ritmo das estações. No entanto, os elementos naturais não produzem apenas identificação. Em momentos de crise interior e miséria material – quando as águas do Douro não permitem extrair recursos, para satisfazer a avidez de quem detém a terra e controla as trocas comerciais – a natureza representa também dissonância e antagonismo; a ligação das personagens ao ambiente, aos espaços e aos lugares fratura-se, resultando em emoções difíceis de gerir. Porto Manso retrata o fim de um mundo: o desaparecimento do barco rabelo (a pouco e pouco substituído pelo comboio), de um Douro selvagem (entretanto controlado pela interferência humana) e da cosmovisão de todos quantos, até sensivelmente meados do século XX, dependiam do Douro, para o transporte do vinho do Porto. Perdido o enraizamento a um solo (ou à água do rio), dissipou-se também a memória desta gente a da sua angústia, repartida entre um passado que se esvai e um futuro sem perspetivas. Através da narrativa neorrealista de Redol, o leitor atual encontra assim visão privilegiada sobre uma paisagem, natural e humana, carregada de história e de ensinamentos.