O ENSINO DE GÊNEROS TEXTUAIS DA LÍNGUA PORTUGUESA PARA SURDOS Maly Magalhães Freitas de Andrade Mestranda do Núcleo de Práticas Educativas e Processos de Interação Orientadora: Profª. Dra. Maria Inês Bacelar Monteiro Este estudo tem como objetivo conhecer e analisar as práticas de ensino de gêneros textuais da língua portuguesa para surdos. Meu interesse pelo tema surgiu devido a minha formação acadêmica em educação de surdos e pela minha experiência docente. Leciono para surdos desde 2002, e minha experiência docente me trouxe muitas inquietações a respeito do ensino e da aprendizagem da língua portuguesa para surdos. Esta pesquisa se justifica, pois é uma área que, apesar de nos últimos anos ter se ampliado, ainda há muito que ser investigado, além disso, a história da educação dos surdos tem mostrado as dificuldades no ensino da língua portuguesa para esses sujeitos devido a suas peculiaridades lingüísticas, que acarretam a necessidade de metodologias diferentes das utilizadas por aprendizes ouvintes. A criança ouvinte, diferente da surda, ao ingressar na escola, já tem uma língua internalizada, e é esta língua que ela vai aprender a ler e a escrever através de diferentes métodos de ensino. Ela estabelece relações entre fonema e grafema e “...desarolla su competência lingüística a través de los sonidos (sonido – letra – palabra – significado). Al descomponer el código traduce letra a sonido y encuentra el componente léxico.”(SVARTHOLM (s/d. p.3) As metodologias de ensino de língua portuguesa dependem do modo como a escola e o professor concebem a linguagem e a língua. Comumente, a concepção de língua que está presente nas escolas é a baseada no estruturalismo, ou seja, aquela em que a língua é vista como um código a ser decifrado. Para se aprender uma língua é preciso conhecer suas regras e sua estrutura. Conforme nos afirma PEREIRA (2005): ... Nesta concepção, a principal função da linguagem é a transmissão de informações. A língua é vista como um código, que obedece a um conjunto de regras que responde pela organização dos sons, das palavras e das estruturas frasais. (PEREIRA, 2005, p.12). Outra concepção, diferente desta, percebe a língua como lugar de interação social e constituição dos sujeitos. Nessa concepção, a língua não está pronta, mas ela é construída pelo sujeito na atividade de linguagem. O sentido, aqui, é construído pelo leitor na interação com o texto. Esta concepção é chamada de interacionista. No final dos anos 80, por influência das idéias de Vygotsky e de Bakhtin principalmente, a linguagem passou a ser concebida como atividade, como lugar de interação humana, de interlocução, entendida como espaço de produção de linguagem e de constituição de sujeitos. Nesta concepção, a língua não está pronta de antemão, dada como um sistema de que o sujeito se apropria para usá-la, mas é re(construída) na atividade de linguagem. (PEREIRA, 2005, p.13). Diferente da criança ouvinte, a criança surda ao ingressar na escola, geralmente não tem uma língua constituída. É no contexto escolar que ela vai entrar em contato com a língua de sinais, que chamamos L1, ou primeira língua. É nesse momento, também que ela vai entrar em contato com a L2, ou segunda língua, a língua portuguesa. Se para o ensino de uma nova língua para estrangeiros considera-se o conhecimento prévio de sua língua mãe, também no caso de alunos surdos deve-se considerar a sua primeira língua, ou seja, a língua de sinais, acrescida do fato de que, neste caso, temos línguas de naturezas diferentes: uma língua espaço-visual em contraposição a uma língua oral. Svartholm (1998) destaca a importância da língua de sinais para a compreensão dos significados pela criança surda. De acordo com a autora: Em comparação com outros professores de segunda língua, o professor de surdos tem um maior grau de responsabilidade em tornar a língua, o input lingüístico, disponível e compreensível para as crianças. Isto se deve às características da língua escrita e à sua falta de conexão com o contexto imediato. Ela exige explicações de modo a ser compreendida pela criança e, assim, ser usada como uma fonte de aprendizagem de uma língua. E isto só pode ser atingido adequadamente através do uso da língua de sinais ao trabalhar textos e suas formas/ significados. (SVARTHOLM, 1998, p.43). Se para o surdo a língua portuguesa é a segunda língua e para ouvinte é a primeira língua, então a metodologia de ensino não pode ser a mesma. O acesso a língua é outro, para o surdo é visual e para o ouvinte é auditivo. Segundo Svartholm (s/d, p.3), “En el niño sordo em cambio, no se puede esperar esto, y por essa razón no se puede enseñar de la misma manera que al niño oyente. Pues solo aprenderia la correspondência sonido-palabra pero no entenderia el significado que eso tiene.” Diante disso, o ensino de língua portuguesa deve ser pautado no uso social da língua. Fazer o aluno refletir sobre seu uso adequado em situações sociais diversas é papel da educação. É importante que a escola utilize os gêneros textuais no ensino de língua portuguesa. Partilhamos do conceito de gêneros textuais que MARCUSCHI (2002) traz: ... usamos a expressão gênero textual como uma noção propositalmente vaga para referir os textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que apresentam características sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica. Se os tipos textuais são apenas meia dúzia, os gêneros são inúmeros. Alguns exemplos de gêneros textuais seriam: telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhete, reportagem jornalística, aula expositiva, reunião de condomínio, noticia jornalística, horóscopo, receita culinária, bula de remédio, lista de compras, cardápio de restaurante, instruções de uso, outdoor, inquérito policial, resenha, edital de concurso, piada, conversação espontânea, conferencia, carta eletrônica, bate-papo por computador, aulas virtuais e assim por diante. (MARCUSCHI, 2002, p. 23). Os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais) de língua portuguesa também destacam a importância do trabalho com textos no seu uso social sugerindo uma seleção de textos a serem trabalhados pela escola que favoreçam a reflexão, bem como os que são utilizados publicamente. Sem negar a importância dos textos que respondem a exigências das situações privadas de interlocução, em função dos compromissos de assegurar ao aluno o exercício pleno da cidadania, é preciso que as situações escolares de ensino de Língua Portuguesa priorizem os textos que caracterizam os usos públicos da linguagem. Os textos a serem selecionados são aqueles que, por suas características e usos, podem favorecer a reflexão crítica, o exercício de formas de pensamento mais elaboradas e abstratas, bem como a fruição estética dos usos artísticos da linguagem, ou seja, os mais vitais para a plena participação numa sociedade letrada. (PCN, 1998, p.24) Como referencial teórico-metodológico o estudo se apóia na perspectiva histórico-cultural de Vygotsky, cuja matriz se baseia no materialismo históricodialético de Marx, que percebe o homem como produto das relações sociais estabelecidas no meio cultural em que vive. É através da interação social que o homem adquire linguagem, estrutura o pensamento, desenvolvendo as funções psicológicas superiores. Assim, optamos pela análise dos processos de ensinoaprendizagem e pelo estudo da origem dinâmico-causal, enfatizando uma análise explicativa e não apenas descritiva. Segundo PINO (2005) deve haver coerência entre o método e posição teórica adotado pelo investigador, o que implica em duas posturas metodológicas dentro da matriz histórico-cultural, ou seja: o objetivo da pesquisa é a análise da historia da gênese dos fatos e a análise descritiva dos problemas, que fica na exterioridade dos fenômenos deve-se contrapor a análise explicativa que penetra no interior dos fenômenos. Analisar as práticas de ensino de língua portuguesa para surdos a luz da teoria histórico-cultural requer, então, um olhar não somente para as atividades desenvolvidas, mas para as relações que se estabelecem entre sujeitos que estão ali para ensinar e aprender, levando em consideração os processos históricos que determinaram tais relações. Isso não é tarefa fácil, visto o grau de complexidade existente na sala de aula. Pensando nisso, a abordagem escolhida para este estudo é a análise microgenética dos acontecimentos. De um modo geral, trata-se de uma forma de construção de dados que requer a atenção a detalhes e o recorte de episódios interativos, sendo o exame orientado para o funcionamento dos sujeitos focais, as relações intersubjetivas e as condições sociais da situação, resultando num relato minucioso dos acontecimentos. (GÓES, 2000, p. 9). A pesquisa de campo foi realizada na Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação – DERDIC, escola particular para surdos vinculada a PUC/SP, que atende alunos da educação infantil e do ensino fundamental I e II. A escolha dessa escola para o desenvolvimento do estudo a que me propus se deu por dois motivos principais: 1) A DERDIC é uma escola referência nacional na educação de surdos e, 2)Meu acesso à escola poderia ser facilitado pelos meus contatos anteriores com profissionais da DERDIC na escola em que trabalho. Foram realizadas seis observações das aulas de português, durante duas semanas seguidas. As observações foram registradas em diário de campo. Observei situações de leitura e escrita de diversos gêneros textuais focalizando a metodologia adotada pela professora no processo de ensinoaprendizagem. Posteriormente, os registros das observações foram lidos e realizei recorte de episódios em unidades que conservassem as propriedades conjunto de ações e interações do processo de ensino-aprendizagem gêneros textuais de alunos surdos. Estes episódios foram organizados núcleos temáticos. um do de em No núcleo temático “A compreensão da língua como um código”, foram selecionados episódios em que podemos perceber a concepção de língua que permeia as atividades e situações de ensino-aprendizagem, bem como na importância dada ao conhecimento de vocabulário como forma de se avaliar o conhecimento que o aluno tem sobre a língua estudada. Conforme afirma Botelho (2005, pág. 52), “A metodologia de ensino é frequentemente pautada no ensino de palavras, pensando a linguagem como um aglomerado de vocábulos.” Ainda nesse sentido, Lodi, Harrison, Campos e Teske (2009) referem que, ... Ler, para esses sujeitos, implica reconhecimento vocabular, significação monossêmica da palavra e em pareamento termo-atermo entre as palavras do português e da língua de sinais em detrimento da construção dos sentidos em circulação nos textos escritos. Esta busca de paridade leva-os, muitas vezes, à inclusão de gestos inventados para essa finalidade não necessários/presentes na estrutura gramatical da língua de sinais (LODI, HARRISON, CAMPOS, E TESKE, 2009, pág. 43). No núcleo temático “Compartilhando Saberes”, foram selecionados episódios que revelam a valorização dada pela professora na troca de conhecimento pelos alunos, quando propõe atividades em duplas e/ou grupos. A importância da participação do outro no processo de aprendizado foi destacada por Vygotsky (1987) quando discutiu o conceito de zona proximal de desenvolvimento. No núcleo temático “Os Gêneros Textuais e a Produção Escrita” foram selecionados episódios em que as atividades de produção escrita tinham o objetivo de cumprir uma tarefa escolar, não havendo outro interlocutor senão a professora. Nota-se que são oferecidos textos para leitura e escrita que são utilizados em séries anteriores a desses alunos, em detrimento de textos próprios para sua idade/série, conforme sugerem os PCNs (1998), o que pode significar uma concordância com o que afirma Pereira (2005): A atribuição de material empobrecido para os alunos lerem decorre, a meu ver, da imagem que o professor tem do seu aluno. Muitos professores resistem ou mesmo se negam a dar livros para que os alunos surdos leiam, afirmando que estes têm muita dificuldade e que não gostam de ler. Por outro lado, por não terem acesso a materiais escritos ricos e diversificados, os alunos surdos vão tendo cada vez mais dificuldade para ler e se tornam completamente desinteressados pela leitura. Conseqüentemente, não gostam de escrever e muitos se sentem incapacitados para fazê-lo. (PEREIRA, 2005, Pág. 63). As análises dos dados sugerem uma concepção de ensino de língua portuguesa para surdos baseada no estruturalismo que, historicamente, também permeia a educação de ouvintes. Para que os alunos aprendam uma língua e para que compreenda função social dela é preciso que ele aprenda a usar essa língua em práticas que sejam significativas. É fundamental que os alunos tenham acesso a textos de qualidade, ricos e diversificados. É importante ressaltar a postura da professora em relação a aprendizagem de seus alunos. Durante todas as observações ela se mostrou preocupada com a participação, compreensão e desempenho deles nas atividades, buscando através do trabalho coletivo ou em duplas que houvesse trocas entre eles, que uns aprendessem com os outros. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS BOTELHO, P. Linguagem e na Educação de Surdos: Ideologias e Práticas Pedagógicas. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2005. 1ª edição BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa/ Secretaria de Educação Fundamental. . Brasília: MEC/SEF, 1998. GÓES, M.C.R. de. A abordagem microgenética na matriz histórico-cultural: Uma perspectiva para o estudo da Constituição da Subjetividade. Caderno Cedes, ano 20, n.50, p.09-25, 2000. LODI, A.C.B.; HARRISON, K.M.P.; CAMPOS, S.R.L.; TESKE, O. (orgs). Letramento e Minorias. Editora Mediação: Porto Alegre, 2009. MARCUSHI, L.A. Gêneros Textuais: definição e funcionalidade. 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