ANÁLISE SOCIOLÓGICA DO PLANO MUNICIPAL DE CULTURA DA CIDADE DO RECIFE (2009- 2019). Monique Correia de Barros1 Para melhor compreensão da dinâmica da produção cultural de uma determinada realidade social associada uma política pública proposta por um governo, é fundamental a compreensão sociológica que sustenta ações e programas de intervenção pública a serem implantados ou implementados. Visões diferentes de conceitos como Cultura, Multicultural e Diversidade Cultural geram diferentes projetos de intervenção das políticas públicas neste campo de ação social. O presente trabalho objetiva trazer elementos que contribuam para a compreensão da relação planejamento e ação para a área da cultura, a partir da análise do Plano Municipal de Cultura da Cidade do Recife (2009-2019), enfocando temas pertinentes a uma reflexão conceitual sociológica no âmbito de um planejamento de gestão pública da cultura. Palavras-chave: Cultura, Multicultural, Diversidade Cultural, Políticas Públicas. 1 Aluna especial do Programa de Pós-Graduação em Sociologia – PPGS – UFPE [email protected] 1 Introdução O presente trabalho vem contribuir com um estudo que pretende, processualmente, através de vias elaboradas da pesquisa contemporânea sociológica, explorar contornos indispensáveis em busca do sentido de conceitos como cultura, multicultural e diversidade cultural na forma como estes vêm sendo incorporados pelo discurso político programático em consonância com o planejamento das ações públicas correspondentes. Num tempo de crescente afirmação cultural, considero relevante analisar pelo prisma da observação sociológica o conjunto de metas e diretrizes que hoje norteiam a institucionalização da cultura, levado a efeito no âmbito da cidade do Recife, através de sua prefeitura municipal por meio do planejamento de uma política de articulação pública destinada às várias iniciativas culturais socialmente produzidas. O estudo do reconhecimento das iniciativas empreendidas pela Prefeitura da Cidade do Recife na área da cultura desde o governo João Paulo Lima e Silva (2001-2008) e que vem sendo mantida pela atual gestão política da cidade do Recife, sobretudo pela ação do Plano Municipal de Cultura do Recife, resulta do reconhecimento da importância de nossa atuação acadêmica frente à evidência do quanto se têm mostrado escassos os trabalhos sobre a situação atual das diretrizes das políticas públicas para a cultura. O Plano Municipal de Cultura do Recife define os conceitos de política cultural, apresenta alguns diagnósticos e aponta os desafios a serem enfrentados em cada área cultural. O PMC também formula diretrizes gerais e estrutura a intervenção do governo municipal através de cinco programas estratégicos que agrupam tematicamente os planos, programas, projetos e ações a serem implementadas a curto, médio e longo prazo. Por isto, foquei não apenas um documento isoladamente, mas em versões sociológicas preliminares, textos complementares, assim como o contexto de influência e da produção dos conceitos, articulando níveis macro e micro de análise. Para tal realização, recorri a autores como Norbert Elias e Stuart Hall para elaborar nossa reflexão teórica acerca da significância que os conceitos de cultura, multicultural e diversidade cultural exprimem do ponto de vista da sociologia contemporânea. Temas como, políticas públicas e políticas culturais, assim como a questão da ampliação das condições do acesso à cultura também são relevantes em nossa análise e são desenvolvidos de acordo com autores como Laurent Fleury entre outros. 2 “Cultura, Diversidade Cultural e Multicultural” no contexto de uma política pública. O redirecionamento da função social da cultura através da resignificação de valores sociais supõe muito mais que o acesso a condições objetivas de vida. Colocar em foco o tema cultura como uma das questões mais relevantes de nossa atualidade incorporada em planos de políticas públicas, contando com a possibilidade de localizar através de uma reflexão de temas sociológicos explicação quanto às diferentes soluções e padrões de regulação adotados na promoção de dinâmicas sociais de promoção do acesso à cultura - pensada não só como memória ou ato criativo espontâneo ou artístico, mas como conhecimento – ato consciente que exige inserção coletiva e política. A princípio buscou-se uma investigação de como se dá a construção de um ambiente comunitário e político favorável à inserção cultural de seus indivíduos e grupos através de planejamento social específico e constatou-se que tal dinâmica aparece acompanhada da transformação do status do termo Cultura, apenas recentemente inclusa nos avanços políticos que marcaram nas duas últimas décadas as discussões em outros setores de atuação social; a cultura caracterizou-se nos últimos anos como uma área de disputa de privilégios e não como parte do processo social geral. A reflexão teórica acerca dos conceitos sociológicos incorporados pela Secretaria de Cultura da cidade do Recife nos permite representar um fenômeno social que temos a oportunidade de acompanhar de perto, haja vista o modo como vem sendo aplicado à configuração social da cidade do Recife por meio de sua Prefeitura - mais especificamente pela Secretaria de Cultura - a divulgação e popularização de termos como Cultura, Multicultural e Diversidade Cultural, todos estes em evidência no discurso programático da atual gestão municipal (2008-2012), diretamente através de seu Plano Municipal de Cultura(PMC). Vejamos a maneira como esta situação encontra-se descrita: Cada vez mais a cultura ocupa um papel central no processo de desenvolvimento das cidades, exigindo das gestões locais o planejamento e a implementação de políticas públicas que respondam aos novos desafios do mundo contemporâneo. Políticas que valorizem as raízes históricas e culturais das cidades, que reconheçam e promovam a diversidade das expressões culturais presentes em seus territórios, que intensifiquem as trocas e os intercâmbios culturais, que democratizem os processos decisórios e o acesso aos bens e 3 serviços culturais, que trabalhem a cultura como um importante fator de desenvolvimento econômico e de coesão social. (...) A cidade do Recife teve uma formação histórica caracterizada pelo encontro das culturas indígenas, africanas e européias, com a forte presença dos colonizadores portugueses e holandeses, e, posteriormente, ao longo do último século, de migrantes das mais diversas nacionalidades. A cena cultural recifense é resultante desse processo histórico e as políticas públicas devem buscar prioritariamente fortalecer a sua identidade como cidade multicultural, valorizando todas as suas expressões culturais tendo bcomo meta estratégica para os próximos dez anos consolidar o Recife como a ‘Capital Multicultural do Brasil’. (PMC, 2008, p. 17-18) Stuart Hall (2003), analisando paradigmas acerca dos estudos culturais, atenta o leitor para o fato de a cultura ao longo da história das ciências humanas, ter sido discutida numa dimensão tal que a direcionou a um patamar onde se afirma que “concentradas na palavra cultura existem questões diretamente propostas pelas grandes mudanças históricas que a modificação na indústria, na democracia e nas classes sociais representam de maneira própria e às quais a arte responde também, de forma semelhante”. Segundo ele, esta linha de pensamento coincide mais ou menos com o que tem sido chamado de “agenda” da Nova Esquerda, a qual “esses escritores de uma forma ou de outra, pertenciam”. Hall (2003, p. 125), afirma que “essa ligação colocou a “política do trabalho intelectual” bem no centro dos Estudos Culturais desde o início”. O fato é que nenhuma definição única e não problemática de cultura se encontra aqui. O conceito continua complexo – um local de interesses convergentes, em vez de uma idéia lógica ou conceitualmente clara. Essa “riqueza” é uma área de contínua tensão e dificuldade no campo. (...) maneiras diferentes de conceituar a cultura podem ser extraídas de várias e sugestivas formulações feitas por Raymond Williams em The Long Revolution. (...) A concepção de cultura é, em si mesma socializada e democratizada. Não consiste mais na soma de “o melhor que foi pensado e dito” , considerado como os ápices de uma civilização plenamente realizada – aquele ideal de perfeição para o qual, num sentido antigo todos aspiravam.(...) Mesmo a “arte” - designada anteriormente como uma posição de privilégio, uma pedra-de-toque dos mais altos valores da civilização – é agora redefinida como apenas uma forma especial de processo geral histórico. (HALL, 2003, p.126-127) 4 Atualmente, a comunidade internacional tem se preocupado com a cultura, procurando defini-la, entendê-la e administrá-la, e isso tem gerado uma tendência em avaliar a cultura em sua esfera de atuação econômica, com empresas e instituições diretamente voltadas para este assunto. Uma vez institucionalizadas, a preocupação com o que se define como cultura passa a fazer parte da própria organização social. De acordo com o Plano de Gestão Municipal de Cultura da cidade do Recife, cultura configura papel central no processo de desenvolvimento das cidades, devendo ser considerada em suas várias dimensões socialmente produtivas (Plano Municipal de Cultura - 2009, pág. 17). Esse documento oficial demonstra uma concepção de cultura que reforça a noção de desenvolvimento agregada à condição humana ao estímulo das ações virtuosas do homem, enquanto via de superação a um quadro social desigual na distribuição da riqueza produzida socialmente. Essa concepção reflete o atual posicionamento da comunidade internacional que tem conduzido os debates sobre a questão da cultura caracterizando-a como vetor de desenvolvimento sócio econômico a partir do desenvolvimento das qualidades produtivas e criativas do ser humano. Nesse contexto, o recorte comumente dado à cultura pelas políticas oficiais a ela destinadas são especificamente direcionados para atividades como, por exemplo, a música, o teatro, as artes plásticas e às manifestações folclóricas em geral. O universo da cultura tal como ele se apresenta do ponto de vista normativo, coloca a cultura no foco de pesquisas e ações no que tange as inter-relações entre produtores, mediadores, consumidores e instituições que contribuem para fazer existir o que chamamos de arte atividades estas que, apesar de serem tidas como menos relevantes dentro da lógica do sistema produtivo não “são adornos inocentes da vida” (SMIERS, 2006, p. 28), pois através delas uma ampla diversidade de vozes e opiniões podem ser ouvidas, expressas. Considera-se que através disso a dignidade e os diversos valores contidos nessa área da vida humana devam ser respeitados e preservados. Através de uma ancoragem sociológica, visualizo tornar possível perceber que ao uso dos termos multicultural e diversidade cultural geralmente encontra-se associada à idéia de algum tipo de articulação organizada de diferenças culturais. De acordo com o aprofundamento sociológico desenvolvido durante a pesquisa, afirmo que nas sociedades contemporâneas reconhecer a diversidade significa admitir a existência múltipla, variada e concreta das 5 populações. Podemos aqui, aproximarmo-nos da reflexão encontrada em Norbert Elias com relação aos termos cultura e civilização onde é visto: Conceitos matemáticos podem ser separados do grupo que os usa.(...) Mas o mesmo não acontece com conceitos como “civilização” e Kultur. Talvez aconteça que determinados indivíduos os tenham formado com base em material lingüístico já disponível de seu próprio grupo, ou pelo menos lhes tenham atribuído um novo significado. Ma eles lançaram raízes. Estabeleceram-se. Outros os captaram em seu novo significado e forma, desenvolvendo-os e polindo-os na fala e na escrita. Foram usados repetidamente até se tornarem instrumentos eficientes para expressar o que pessoas experimentaram em comum e querem comunicar. Tornaram-se palavras da moda, conceitos de emprego comum no linguajar diário de uma dada sociedade (ELIAS, 1994, p. 26). Do meu ponto de vista, a mesma reflexão pode ser aplicada aos termos multicultural e diversidade. Admitimos em nosso argumento que multicultural refere-se ao conjunto de expressões culturais e étnicas diversas formadoras de determinada estrutura de sociedade; multicultural - que equivale ao multiétnico - compreende o conjunto da diversidade de povos e a significação do conjunto das expressões culturais diversas, tanto por sua quantidade como por sua qualidade no sentido da dinâmica cultural em desenvolvimento num espaço política e administrativamente determinado/normativo. Como exemplo prático da nossa interpretação dos ternos “multicultural” e “diversidade cultural” referentes ao o objeto de estudo, temos como exemplo mais próximo e evidente o programa Multicultural, contido no Plano Municipal de Cultura do Recife. O programa Multicultural, segundo consta no PMC, foi criado para incentivar e promover a formação em gestão e produção artística, visando estimular a renovação e a dinamização da cena cultural a partir de diretrizes que apontam para a valorização da “diversidade” e no contexto do discurso programático, esta ação social remete às características multiétnicas peculiares da formação sóciohistórica local, o que do ponto de vista dos gestores, reflete-se na produção artística da cidade. Torna-se compreensível pelo recorte a seguir, a concepção de cultura que corresponde à atual realidade vivida pela população recifense: a atenção dada pela gestão pública à “área cultural” - ou seja, ao complexo social articulador da dinâmica da 6 produção e da recepção de bens culturais - concerne no âmbito do incentivo a programas e projetos de estímulo à diversas modalidades artísticas através do fomento à produção, à circulação e ao consumo de bens simbólicos (aquilo que o senso comum entende por cultura). Vejamos como essa questão configura o nosso objeto de análise, o Plano Municipal de Cultura do Recife. Os festivais devem ter como foco central o público recifense e se integrarem às políticas e ações da gestão para os respectivos setores artísticos. Além das apresentações de espetáculos, devem sempre prever na programação atividades de formação e reciclagem profissional, reflexão crítica e debates, envolvendo a comunidade artística e o público em geral, contribuindo para a renovação e a formação de novas platéias”. (PMC, 2008, p. 64) Em síntese, a questão do multiculturalismo e da diversidade cultural, configura-se através de noções bastante complexas no campo teórico-prático de observação das Ciências Sociais, o que busquei desenvolver com o presente trabalho. Assinalo como novo e interessante o fato de que isto se esteja aplicando, de modo sistemático e cientificamente estruturado, na área das atividades de gestão pública para a área da cultura. Para representar o pragmatismo com que tais questões vêm sendo tratadas contemporaneamente, torna-se relevante à esta pesquisa destacar que sob os ditames de uma concepção sociológica de multicultural e diversidade cultural são desenvolvidas as ações do Plano Municipal de Cultura da Cidade do Recife, através de uma variada linha de promoção cultural, traduzida em programas sociais, assim como consta no documento base das ações o Plano Municipal de Cultura do Recife. A cultura deve ser considerada sempre em suas três dimensões: 1) enquanto produção simbólica, tendo como foco a valorização da diversidade das expressões e dos valores culturais; 2) enquanto direito de cidadania, com foco na universalização do acesso à cultura e nas ações de inclusão social através da cultura; e 3) enquanto economia, com foco na geração de emprego e de renda, no fortalecimento de cadeias produtivas e na regulação da produção cultural e dos direitos autorais, considerando as especificidades e valores simbólicos dos bens culturais. Adotar essa concepção implica em reconhecer a cultura como fenômeno plural e implementar uma política capaz de responder às demandas oriundas das suas diferentes manifestações, desde os conhecimentos e as artes 7 tradicionais até os mais elaborados produtos culturais da alta tecnologia. (...) Esta concepção ampla de cultura implica em considerar todos os indivíduos, e não apenas os artistas, como sujeitos e produtores de cultura. É nesta condição de agentes culturais, que o conjunto dos cidadãos deve se constituir no foco das atividades e projetos da administração governamental. (PMC, 2001, p. 17). Para Renato Ortiz (2007) o debate sobre a diversidade não deve restringir-se ao argumento lógico-filosófico, com a ressalva de que necessita ser contextualizado e apontar para a importância de entender os momentos em que diversidade oculta questões como a desigualdade. Dizer que a diferença é socialmente produzida permitiria distingui-la da idéia simples de pluralismo e de sua mera utilização no âmbito político. Segundo Renato Ortiz (2007), a condução do termo diversidade ao intercâmbio de fusão com o conceito de democracia, diz respeito a um cenário (ou situação) mundial de valorização das diferenças. Renato Ortiz (2007) faz uma reflexão afirmando que as reivindicações por parte de grupos sociais desfavorecidos é pautada na denúncia da desigualdade, o que legitimaria o discurso e a ação que corresponde a um processo de resignificação das diferenças. A afirmação ‘a diversidade dos povos deve ser preservada’, utilizada em diversos documentos de organismos nacionais e internacionais nada tem de natural. Pelo contrário, deveríamos nos surpreender diante de sua estranheza pois, ela carrega consigo uma carga de sentido inteiramente nova. Dizer que as culturas são um ‘patrimônio da humanidade’ significa considerar a diversidade enquanto valor universal.(...) Há nesta operação semântica uma redefinição do que seria impensável nos marcos anteriores: o diverso torna-se um bem comum. (ORTIZ, 2007, p. 49). De acordo com minhas investigações teóricas, a ampliação do conceito de cultura tratada no contexto de uma política pública aqui representada pelo PMC, ressignifica a própria utilização do termo cultura como parte do processo social. Por essa perspectiva é notável a elevação do status de promoção da cultura com o foco na multiplicidade de funções socialmente produtivas que esse campo social pode gerar no sentido de melhorar a vida das pessoas, através da geração de renda criando novas 8 possibilidades de mercados. Considero importante haver a articulação dos programas de políticas culturais pelos grupos políticos, ciente de que deixar a cultura nas mãos das forças econômicas pode acarretar aridez nessa dinâmica social; no jogo das relações de poder entre os homens em sociedade, o Estado e suas políticas públicas configura como o fator de equilíbrio da relação de interdependência entre mercado e sociedade civil. Considerações sociológicas sobre o Plano Municipal de Cultura do Recife (2009-2019) De acordo com Sébastien Joachim (2008, p.59) “a cultura por uma boa parte concerne ao Estado e suas políticas públicas em um país de muita pobreza como o Brasil”. Este enunciado demonstra com acerto o cerne de nossa preocupação: reconhecer as iniciativas empreendidas pela Prefeitura da Cidade do Recife na área da cultura desde o governo João Paulo Lima e Silva (2001-2008) e que vem sendo mantida pela atual gestão política da cidade do Recife, sobretudo pela ação do Plano Municipal de Cultura do Recife através de uma política cultural de integração da população a partir do acesso aos serviços públicos deste segmento da dinâmica social. Portanto, nossa análise sociológica acerca das definições e diretrizes inerentes às ações políticas governamentais empreendidas por meio de um planejamento social, no caso, o Plano Municipal de Cultura do Recife, diz respeito ao caráter regulador de uma ordem social, operando por princípios que visam à integração social e o desenvolvimento de uma economia fundada no saber. De acordo com Laurent Fleury (2009) a questão da cultura revela-se um problema político que já tem dois milênios de idade. Na atual sociedade recifense, a resposta política à questão de transformar uma diversidade infinita de vontades e interesses individuais em plano ou proposta pode ser observada através do discurso programático apresentado no Plano Municipal de Cultura do Recife. Este Plano representa a conclusão de um ciclo, iniciado em 2001 com a criação da Secretaria de Cultura e a elaboração do Plano Estratégico de Gestão Cultural para a Cidade do Recife, e o início de um novo, onde estas políticas públicas de cultura, construídas democraticamente com a sociedade ao longo destes oito anos, são institucionalizadas e consolidadas pelo Legislativo Municipal como Políticas de Estado. É o principal legado que a atual gestão e o Conselho Municipal de Política Cultural deixam à cidade do Recife, definindo conceitos e princípios de política cultural, apresentando um amplo 9 diagnóstico e apontando os desafios a serem superados, pensando e estruturando o desenvolvimento cultural da cidade no horizonte dos próximos dez anos. Propondo uma política de transversalidade onde a cultura atue integrada às outras áreas da gestão e interagindo com a dinâmica da cidade e dos cidadãos. O significado deste Plano Municipal transcende a cidade do Recife e representa, também, uma importante contribuição à construção do Sistema Nacional de Cultura, estimulando outras cidades do país a seguirem o seu exemplo. Este grande desafio foi vencido pelo total envolvimento dos integrantes de nossa equipe e de outros órgãos governamentais e, principalmente, dos representantes da sociedade civil, em todas as etapas de sua construção. Nos sentimos muito orgulhosos por este processo e pelo excelente produto resultante desta ousadia democrática. “Peixe”, João Roberto Costa do Nascimento, ex-secretário de cultura do Recife, PMC (2009, p.12) O trecho acima, destacado do PMC, reporta à análise colocada por Laurent Fleury (2009) através do prisma de uma sociologia da cultura, uma vez que nesse ponto do discurso (“nos sentimos muito orgulhosos por este processo”) o representante da gestão deixa claro ter a consciência de que a ação pública a ser empregada representa um avanço positivo para a sociedade. (...) ainda hoje em dia, a política, para se destacar da concorrência, usa às vezes o pretexto cultural, de valor simbólico, e de sua democratização para assegurar seus interesses. O homem político tem consciência do princípio segundo o qual as orientações e os mecanismos simbólicos das ações humanas possuem conseqüências praticas sobre a ação, o consumo e a produção por meio do modo como seus atores ‘constroem o social.’(...) a democratização da cultura baseia assim politicamente a intervenção pública em matéria cultural, ao menos desde 1959, as políticas culturais que desdobraram em seguida foram regularmente julgadas segundo esse corpo de doutrina. Com base na institucionalização de uma administração cultural, na profissionalização do campo artístico e na elaboração de referenciais sucessivos de ação pública (ação cultural nos anos 1960, desenvolvimento cultural nos anos 1970, mediação cultural nos anos 1990), uma concepção tecnológica das políticas da cultura foi substituída por uma concepção mais simbólica do político. (FLEURY, 2009, p. 109). Desse modo, a questão política referente à cultura pode ser entendida, segundo aponta Laurent Fleury, como uma equalização progressiva das condições de acesso às 10 bens produzidos como forma de expressão cultural, que consiste em dispositivos de mudança social (FLEURY 2009, p.116). Como sugere Fleury (2009), a questão do acesso aos bens culturais produzidos numa determinada sociedade pode fornecer à observação sociológica um valor de referência na análise de políticas públicas para a cultura; todavia, essa concepção considera, principalmente, a questão da cultura em termos de custo e de acessibilidade, apresentando-se, então, mais como uma questão técnica avaliada por suas funções sociais e econômicas e em suas dimensões artísticas e políticas. Se se concorda que os diferentes aspectos da democratização da cultura não se negam uns aos outros, mas que as instituições culturais participam , ao contrário, das suas articulações, a observação sociológica torna-se possível (FLEURY, 2009, p.118) O fenômeno que acabamos de descrever a partir da citação de Laurent Fleury torna-se evidente a partir do nosso objeto de estudo, o Plano Municipal de Cultura do Recife, de acordo com suas diretrizes, no que diz respeito aos objetivos estratégicos da política cultural apresentada. Desenvolver a cultura em todos os seus campos como expressão e afirmação de identidade. • Democratizar o acesso e descentralizar as ações culturais, num movimento de mão dupla centro-periferia / periferia-centro.•Inserir a cultura no processo econômico como fonte de geração e distribuição de renda. Consolidar o Recife no circuito nacional e internacional da cultura. Principais Pontos de Mudança na Política Cultural• Implementar um modelo de gestão moderna, transparente e democrática. • Viabilizar uma política cultural ampla e integrada no espaço metropolitano. • Dar visibilidade, estimular e valorizar a produção cultural local.• Estimular, através da cultura, o exercício da cidadania e da autoestima dos recifenses, especialmente dando aos jovens uma perspectiva de futuro com dignidade. (PMC 2008, p.19). Segundo Laurent Fleury (2009), na reivindicação por condições de acesso mais amplo aos bens culturais produzidos pela sociedade, fenômeno aparentemente simples e incontestável em um regime em que a decisão do governo seja apoiada pelos indivíduos em debates de negociação e em processos de comunicação em espaços públicos - que antecedem e auxiliam a própria formação da vontade dos cidadãos - repousa, de acordo 11 com este autor, “uma temerosa contradição entre duas ordens de valores igualmente legítimos e, no entanto, dificilmente conciliáveis”. A reivindicação igualitária visa o acesso de todos ao consumo de um bem universal, acesso que é preciso organizar a partir de então, pois ele não é óbvio, e cuja organização é de incumbência (porque isso diz respeito ao interesse geral) dos poderes públicos e das instituições culturais. (...) Comunhão de um lado, distinção do outro. Antinomia fundamental entre o que resultaria, em teoria de um direito e o que é vivido na prática como um privilégio. FLEURY (2009, p. 105-106) Pelo que foi visto, nos colocamos diante de um processo que corresponde à necessidade de transformação na convivência social, posto que de acordo com Norbert Elias (2006, p. 33) “faz parte das peculiaridades dos processos sociais que eles possuam direções” ainda que sem um fim objetivo, o que segundo este autor poderia ser alcançado apenas se “os seres humanos, como humanidade conseguissem algum dia chegar a um acordo sobre eles”. Para o cientista político Joost Smiers (2006, p. 59), a junção de cultura, política e economia não é em si revolucionária. De acordo com a observação desse autor, em diversos países, trabalhos artísticos e de entretenimento sempre serviram como transportadores de mensagens e interesses políticos e sociais. O que é passível de investigação com relação à aplicação desta prática na cidade do Recife é justamente a maneira como a secretaria de cultura da cidade institucionaliza, racionaliza e sistematiza a cultura na intenção de afinar interesses econômicos com acordos políticos junto a sociedade civil, a partir do discurso galgado na expressão de termos sociológicos utilizados como instrumento para a valorização das diferenças culturais. A aplicação do Plano Municipal de Cultura representa então para a cidade do Recife, a atuação pública no campo da cultura desenvolvida a partir de diretrizes associadas a programas estratégicos que ofertam o incentivo a praticamente todos os segmentos culturais com ênfase na valorização da variedade de estilos culturalmente produzidos pela sociedade. Vale ressaltar que a proposta desenvolvida neste trabalho se distancia de uma avaliação funcional de programas sociais, mas direciona o foco a uma série de apontamentos com relação às propostas do Plano Municipal de Cultura tais como são apresentadas em forma de documento oficial. 12 Considerações finais Para encerrar, quero deixar a reflexão de que o redirecionamento da função social da cultura através da resignificação de valores sociais supõe muito mais que o acesso a condições objetivas de vida. O presente trabalho teve por objetivo colocar em foco o tema cultura como uma das questões mais relevantes de nossa atualidade incorporada em planos de políticas públicas, contando com a possibilidade de localizar através de uma reflexão de temas sociológicos explicação quanto às diferentes soluções e padrões de regulação adotados na promoção de dinâmicas sociais de promoção do acesso à cultura. A compreensão acerca dessa nova forma de perceber a dinâmica produtiva da cultura, hoje, diz respeito também à necessidade que se desenvolveu (o que se deve muito às exigências de um mercado de bens de valor pautado no aspecto simbólico) de potencializar o capital social e cultural de uma população. Tarefa complexa que exige a ampliação das possibilidades das políticas culturais de se integrarem ao esforço de desenvolvimento do país. Analisar a situação na qual se encontra hoje a situação da gestão cultural na cidade do Recife trouxe a constatação de que a população vivencia um momento positivo de sua produção intelectual e artística, embora muitas das ações por parte do poder público que foi investigado, ao valorizar e reproduzir socialmente uma visão de cultura por meio de uma política pública acaba limitando esse campo de atuação social, pois padronizam um modelo de produção cultural e artística; com isso deixa-se relegados em segundo plano, aqueles sujeitos sociais que não correspondem à visão de cultura pertinente a proposta dessa política cultural. Com isso percebeu-se que carecem de ser efetivados principalmente mecanismos mais abrangentes de acesso a recursos para a área da cultura, pois a sociedade para desenvolver-se nesse sentido deve contar com muito mais do que meras ilustrações contidas em planos de metas com a finalidade implícita e explícita de propaganda político-partidária. Espera-se que a pesquisa venha suscitar o interesse dos que atuam na área cultural e contribuir para a realização de projetos de estudos semelhantes, inspirados na experiência ora relatada, atingindo-se uma de suas propostas acadêmicas: seu efeito multiplicador de idéias. _______________________________________________________________ 13 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Abramowicz, Anete / Roberto Silvério, Valter, Orgs. Afirmando diferenças: Montando o quebra-cabeça da diversidade na escola– Campinas, SP : Papirus, 2005. Direito Internacional e desenvolvimento / organizador Alberto do Amaral Júnior. – Barueri, SP: Manole, 2005. ELIAS, Norbert. Escritos e Ensaios; 1: Estado, Processo e Opinião Pública. Organização e apresentação Federico Neilburg e Leopoldo Waizbort. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 2006. FLEURY, Laurent. Sociologia da cultura e das práticas culturais. São Paulo, Editora Senac São Paulo, 2009. HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e mediações culturais. Organização Liv Sovik; Tradução Adelaine La Guardia Resendeb... (et al). Belo Horizonte, Editora UFMG 2003. JOHNSON, Allan G. Dicionário de sociologia: guia pratico da linguagem sociológica – tradução, Ruy Junngmann. Consultoria Renato Lessa. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 1997. Joachim, Sébastien. Cultura e inclusão social: Ariano Suassuna, Paulo Coelho e outros fenômenos atuais – Recife: Ed. Universitaria da UFPE, 2008 SMIERS, Joost. Artes sob Pressão: promovendo a diversidade cultural na era da globalização. São Paulo, Escrituras Editora: Instituto Pensarte, 2006. OBRAS E DOCUMENTOS CONSULTADOS NA WEB Convenção sobre a proteção e promoção da Diversidade das Expressões Culturais - Texto oficial ratificado pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo 485/2006 http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001502/150224por.pdf Download em 16/03/2010 NOVA LEI DA CULTURA http://www.cultura.gov.br/site/wpcontent/uploads/2010/01/projeto-15-28jan10-web.pdf download em 02/03/2010 PLANO MUNICIPAL DE CULTURA DO RECIFE – Secretaria de Cultura do Recife – Conselho Municipal de Política Cultural – Recife, 2009. http://www.recife.pe.gov.br/noticias/arquivos/457.pdf download em 04/07/2010 Sistema de Informações e Indicadores Culturais – IBGE – 2003-2005 http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/indic_culturais/2005/default.shtm 14 Download em 03/10/2009 15