O DESCANSO SEMANAL Helio Rios O descanso semanal é uma tradição ocidental herdada do judaísmo, da qual a principal vertente é o cristianismo, todavia na religião judaica o dia reservado é o sábado, enquanto na tradição cristã, em grande parte, o domingo. A defesa de um ou de outro dia foi causa de muitas polêmicas teológicas, bem como a razão para se reservar o dia, porém, em comum, têm a defesa de que se faz necessário um dia de descanso, após seis dias trabalhados, em analogia ao descanso divino, após os seis dias de trabalho na criação. A religião, porém, por outro lado, foi responsável em polemizar acerca da necessidade do maior tempo dedicado ao trabalho, como limitador ao tempo ocioso, desperdiçado em jogos, bebidas e outros vícios: “Lembra-te de que tempo é dinheiro. Aquele que pode ganhar dez xelins por dia por seu trabalho e vai passear ou fica vadiando metade do dia, embora não dispenda mais do que seis pences durante seu divertimento ou vadiação, não deve computar apenas essa despesa; gastou, na realidade, ou melhor, jogou fora, cinco xelins a mais. Lembra-te deste refrão: o bom pagador é o dono da bolsa alheia. Aquele que é conhecido por pagar pontual e exatamente na data prometida, pode, em qualquer momento, levantar tanto dinheiro quanto seus amigos possam dispor. Isso é, às vezes, de grande utilidade. Depois da industriosidade e da frugalidade, nada contribui mais para um jovem subir na vida do que a pontualidade e a justiça em todos os seus negócios; portanto, nunca conserves dinheiro emprestado uma hora além do tempo prometido, senão um desapontamento fechará a bolsa de teu amigo para sempre. O som de teu martelo às cinco da manhã ou às oito da noite, ouvido por um credor, o fará conceder-te seis meses a mais de crédito; ele procurará, porém, por seu dinheiro no dia seguinte se te vir em uma mesa de bilhar ou escutar tua voz numa taverna quando deverias estar no trabalho. (WEBER: 1981, 29-30) A ética protestante, notadamente o puritanismo, segundo Weber (1980, 169), foi fundamental à racionalização da vida prática que, entre os outros fatores, contribuiu ao surgimento e ao desenvolvimento do capitalismo moderno. Era característica latente nos empresários e trabalhadores protestantes a observação de preceitos morais, dentre os quais, a rejeição ao ócio e consequente valorização do tempo produtivo, fatores importantes ao progresso do capitalismo nascente que era, em grande escala, produtivo. Tempo livre, nesse sentido, para a sociedade protestante, não era somente problema de ordem econômica, mas de ordem moral-religiosa: “a perda de tempo (...) é o primeiro e o principal de todos os pecados. (...) A perda de tempo, através da vida social, conversas ociosas, do luxo e mesmo do sono além do necessário para a saúde - seis, no máximo oito horas por dia - é absolutamente dispensável do ponto de vista moral. (WEBER: 1981,112) Tal entendimento foi, em grande parte, responsável, ao modelo imposto sobre a classe trabalhadora, de exploração desumana manifestada, segundo Remond (1997, 104), sob rotineiras formas de trabalhos penosos que podiam alcançar uma jornada diária de até www.epj.org.br [email protected] 16 horas. Muitas vezes, o trabalho seguia até mesmo aos domingos, entre outros modos de reduzir progressivamente o descanso dos trabalhadores. Usurpando-se do descanso do trabalhador, sequer, o capitalista, considerou a necessidade da folga ao bom desempenho da sua tarefa, uma vez que, saudável, melhor a desempenha. Ao contrário, na lógica da mais-valia, o capitalista impõe ao seu obreiro o maior tempo de trabalho e, durante um tempo determinado, o resultado será a quantia do trabalho representado pelo salário semanal. Considerando, porém, que o salário semanal de um operário representa três dias de trabalho, os dias restantes da semana são apropriados pelo patrão, pois o capitalista comprou o seu trabalho por uma semana, e é necessário que o obreiro trabalhe ainda os outros três dias da semana. É o trabalho a mais, para além do tempo necessário para restituir o seu salário, que é a fonte do mais-valor, do lucro, do aumento sempre crescente do capital. Desse modo, castra-se, em um só golpe, a liberdade ao trabalho e ao repouso, pois por “uma parte da sociedade possuir o monopólio dos meios de produção , o trabalhador, livre ou não, é forçado a acrescentar ao tempo de trabalho necessário para a sua própria subsistência um mais-valor destinado a sustentar o possuidor dos meios de produção"(Marx: 1999, Livro I). A sociedade aos poucos compreende a necessidade do descanso à saúde e a melhor convivência social1. Contudo, deve-se salientar, que os descanso diário, de horas dentro de uma jornada, o semanal, de dia/s dentro da semana, ou o anual, de um mês após um ano trabalhado, não foram concedidos pelo patrão, mas conquistado ao longo da história e com muita luta pela classe trabalhadora, haja vista, os grandes conflitos que resultaram em morte de trabalhadores, como, por exemplo, as emblemáticas que fizeram nascer as datas memorativas, como o dia do trabalhador e o dia mulher.2 Até a década de 80, pelo menos em grande parte das grandes cidades do Brasil, poucas empresas impunham sobre o trabalhador o labor dominical. Exceções eram as das atividades emergências ou imprescindíveis, como as da área da saúde, como hospitais e farmácias, da segurança e outras que, como essas, funcionavam em regime de plantões. Também, alguns setores específicos, como caldeirarias e outros que necessitavam do acompanhamento contínuo que se fazia por revezamento. Porém, eram exceções. Atualmente, ao contrário, o trabalho dominical torna-se cada vez mais a regra, sobretudo, em razão da ampliação e multiplicação dos grandes centros de consumo e do surgimento de atividades virtuais, como comércio em geral ou o atendimento aos clientes por operadoras de TMK. Atividades sem qualquer justificativa além do culto ao consumo que se opera pela exploração da excessiva jornada de trabalho sem descanso semanal. Tal política de precarização do trabalho de justifica pelo mito de que, desse 1 O projeto da redução da jornada de trabalho nacional de 44 para 40 horas semanais, sem redução de salário, precisa ser votado na Câmara e no Senado, seguir para sanção presidencial e virar lei. Se for aprovado, o ganho social para o povo brasileiro vai ser muito grande. Mais empregos serão gerados, o trabalhador e a trabalhadora poderão se dedicar mais aos estudos, ao lazer, às atividades sociais e culturais, tão importantes para a vida e para o país, que vai se desenvolver ainda mais com o aumento do consumo e da produção. Sindicato do Comércio de S.J.Campos e Região, Boletim n. 46, de 2009. 2 Deve-se salientar que em algumas atividades profissionais o descanso é ampliado, sobretudo quando a tarefa exercida exige-se muito mais esforço, físico ou mental, ou quando se trata de trabalhos que oferecem insalubridade, penosidade ou periculosidade. Dentre esses, se enquadra, por exemplo, o caso da atividade docente, que necessita de dois meses, que compreendem, geralmente divididas em meio de semestre, férias e recesso. www.epj.org.br [email protected] modo, reduz-se o desemprego por meio de novas contratações de mão de obra a atender as demandas desse novo tempo. O trabalho dominical, todavia, não amplia a oferta de emprego, mas intensifica a fadiga do trabalhador que perde o direito do tempo de descanso semanal, pois, em vez de empregar novos trabalhadores, o empregador opta pelo menor custo, isto é, pagar hora extra ou computar em banco de horas o trabalho de domingo. O Sindicato dos Comerciários de Salvador, por exemplo, noticia que, em 2010, segundo o Dieese, os profissionais do comercio tiveram uma carga horária extensa por trabalharem de domingo a domingo. O problema se agrava se considerar que, ao lado da questão do trabalho excessivo, muitos desses trabalhadores vivem em regime de semi-servidão, excluídos de qualquer direito garantido nas leis do trabalho, dentre os quais, destacam operadores de TMK, trabalhadores de shopping, plantonistas, panfleteiros e corretores de lançamento de produtos imobiliários e outros que passam desapercebidos pela fiscalização do trabalho.3 O fim do trabalho dominical, pois, deve se tornar mais uma bandeira da classe trabalhadora que assiste a mais um direito ser solapado em benefício do Capital, o do descanso semanal que, em vez de servir de tempo de lazer, repouso ou convívio, foi sabotado em tarefas que, em grande parte, promovem o consumo e não o bem estar. A tarefa de sua eliminação não deve apenas estar restrita aos sindicatos, mas a toda organização social que luta pela dignidade do homem, incluindo as igrejas que perdem a freqüência dos seus membros, uma vez que devem optar entre o trabalho religioso e o trabalho secular dominical, este último fonte do seu sustento. Nesse sentido, o trabalho dominial é um flagrante obstáculo à liberdade religiosa ou de culto. A questão do descanso semanal, entretanto, vai além, pois, no retrocesso do trabalho dominical, os indivíduos ficaram apartados do convívio social, em especial familiar e do acesso aos esporte e cultura, mais comuns os domingos devido a herança ocidental de considerá-los dias livres. Por essas principais razões, torna-se imperativa a reivindicação pelo fim do trabalho dominical. 3 Por consenso, considera-se três formas de trabalho escravo: os que trabalham sob encarceramento (sistema pré-abolicionista), os que trabalham sob endividamento perpétuo (política da borracha) e os que trabalham desprovidos de direitos e garantias trabalhistas. www.epj.org.br [email protected] PROPOSTA DE CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DO TRABALHO DOMINICAL Proponho algo que pode nos parecer grande, mas, como cristãos, possível. Lançar a campanha pelo fim do trabalho dominical. É obvio que há exceção, como era antes, médico-plantonista, algumas farmácias de plantão, enfim os que se justificam por razão emergencial. Temos razões de ordem bíblica para justificar a nossa ação (é mandamento) e também no que concerne à liberdade religiosa, pois muitos cristãos não podem frequentar as suas igrejas, por trabalharem no domingo. Não tem opção, ou trabalha ou vai para a igreja e quem não trabalha não come, imperativo não somente bíblico, mas econômico. Fora isso, para termos apoio da sociedade, também é fato que o repouso semanal, necessário à saúde cada vez mais torna-se escasso. Voltamos à época dos sem-direitos, como trabalho escravo ou, pelo menos, de semi-servidão e, agora, não somente no campo, mas também na cidade. Eis o contraste do mundo moderno com o medieval, escravos em shopping e TMK. Sem hora extra, no máximo banco de horas, sem hora de almoço, apenas uma rapidinha de 30 minutos (não é sexo, apenas uma pausa para um lanche, sem qualquer prazer para o trabalhador, mas somente para o patrão que usufrui de mais uma modalidade perversa de mais-valia). É uma campanha pelo resgate à dignidade da vida humana, do ser criado por Deus não para o trabalho, mas para o Seu louvor. Se concordarem com o desafio, proponho alguns encaminhamentos que poderão ser somados com os seus no avançar do debate: 1. iniciarmos já o debate sobre o tema; 2. determinarmos uma data-fim para o debate a fim de concluirmos em um documento que será enviado para as nossas igrejas, instituições e imprensas evangélicas; 3. promover nesses locais reuniões para discutir o documento e tirarmos propostas de mobilização (atos, manifestos às autoridades etc); 4. elaborarmos um outro documento às instituições não evangélicas (partidos, sindicatos,movimentos, escolas etc)para iniciarmos a campanha nacional (já que outros documentos sairão das reuniões); 5. repetir o ponto 3; 6. apontar uma data para o plebiscito nacional pelo fim do trabalho dominical; 7. elaborar agendas de lutas, regional e nacional (reuniões, atos e manifestos públicos ou impressos etc). Tenho orado muito a esse respeito e senti que vieram de Deus essa santa indignação e o desafio de lutar contra mais essa injustiça e, mesmo sendo um presbi, fico movido nessa batalha com o antigo hino pentecostal "ninguém detém é obra santa, essa obra é do Senhor". Então, vamos com fé e amor a Deus e aos sofridos a mais uma guerra em favor da Justiça de Deus! www.epj.org.br [email protected] REFERENCIAS: MARX, Karl. O Capital Critica da Economia Política, V.1,L.1: O Processo de Produção do Capital, T.1: Prefácios e Capitulos I A XII. 17ª.ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. 1999. REMOND, René. O século XIX: 1815-1914. Tradução de Frederico Pessoa de Barros. 7ª. ed. São Paulo: Cultrix. 1997. Sindicato dos Comerciários de Salvador. http://www.comerciariossalvador.com.br/web/itallik/?md=5&id_pagina=402 Consultado em 12 de março de 2011. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução de Irene Szmerecsányi e Tamás Szmerecsányi. São Paulo: Pioneira/UnB, 1981. WEBER, Max. Origem do capitalismo moderno. In: TRAGTEMBERG, Maurício. Textos selecionados - Max Weber. Tradução de Maurício Tragtemberg et al. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Coleção Os Pensadores). www.epj.org.br [email protected]