UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ – UECE
CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS – CESA
MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS
E SOCIEDADE - MAPPS
SÂMEA MOREIRA MESQUITA ALVES
CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ?
UMA ANÁLISE SOBRE A
INTERGERACIONALIDADE
NA RELAÇÃO AVÓS E NETOS
FORTALEZA - CE
Abril / 2013
SÂMEA MOREIRA MESQUITA ALVES
CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ?
UMA ANÁLISE SOBRE A INTERGERACIONALIDADE
NA RELAÇÃO AVÓS E NETOS
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado
Acadêmico
em
Políticas
Públicas e Sociedade da Universidade
Estadual do Ceará, como requisito parcial
à obtenção do grau de mestre em
Políticas Públicas e Sociedade.
Orientadora: Profa. Dra.
Socorro Ferreira Osterne
FORTALEZA - CE
Abril / 2013
Maria
do
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Estadual do Ceará
Biblioteca Central Prof. Antônio Martins Filho
Bibliotecário (a) Leila Cavalcante Sátiro – CRB-3 / 544
A948c
Alves, Sâmea Moreira Mesquita.
Cuidar ou ser responsável? Uma análise sobre a
intergeracionalidade na relação avós e netos / Sâmea Moreira
Mesquita Alves. — 2013.
CD-ROM 188f. : il. (algumas color.) ; 4 ¾ pol.
―CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho
acadêmico, acondicionado em caixa de DVD Slin (19 x 14 cm x
7 mm)‖.
Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual do Ceará,
Centro de Estudos Sociais Aplicados, Curso de Mestrado
Acadêmico em Política e Sociedade, Fortaleza, 2013.
Área de Concentração: Políticas Públicas.
Orientação: Profª. Drª. Maria do Socorro Ferreira Osterne.
1. Velhice. 2. Relações internacionais. 3. Avosidade. 4.
Família. I. Título.
CDD:711.4
AGRADECIMENTOS
Em especial ao meu Deus, por me dar forças, iluminar e abençoar
constantemente a trajetória da minha vida, mesmo nos momentos mais difíceis desta
caminhada, confirmando sua presença, cuidado e planos em meu viver. Deus é fiel !
Aos meus pais, Anastácio Moreira e Vera Lúcia (em memória), pelo amor,
educação, zelo e incentivos para eu ir em frente e lutar pelos meus sonhos a fim de
torná-los realidade. E, especialmente à você mãe querida que tanto apoiou meu
crescimento pessoal e profissional. A profissão que hoje exerço dedico a você.
Aos meus familiares, em especial a minha avó Dourinha, que me acolheu com
todo o seu carinho e preocupação, contribuindo demasiadamente para que meus
sonhos se realizassem. Aos meus manos, Anastácio Júnior e Rafael Alves, pelo
carinho e compreensão em todos os momentos.
Ao João Paulo, querido esposo e amigo, por todo o seu amor, companheirismo,
compreensão, paciência, e, principalmente, por todo apoio que me concedeu, não só
no percurso desta pesquisa, mas em toda nossa convivência. Obrigada por
acompanhar minhas batalhas na procura do saber, compreendendo também as duras
renúncias que necessitei fazer, neste período. O mérito dessa vitória é nosso !
Às minhas queridas amigas de longas datas e que sempre torceram por mim,
vibraram, incentivaram, elogiaram desde a minha aprovação no mestrado, e, também
entenderam e perdoaram minhas ausências, são elas: Wládia Ribeiro, Elisângela Lino,
Isabel Cristina e Fabrícia GIrão.
Às amigas Ana Valesca, Andréa Cialdini e Herliene Cardoso, mestras que muito
apoiaram e incentivaram mais esta etapa da minha trajetória acadêmica, desde o
período da seleção.
À minha turma, com a qual tive a oportunidade de estudar, viver momentos de
tensões acadêmicas e também, muitas vezes, descontrair-me.
Em especial à Eniana Pachêco e Ana Marques, queridas amigas do MAPPS,
pela amizade conquistada nestes anos, pelo apoio em momentos difíceis, trocas de
experiências tão valiosas para a elaboração desta pesquisa.
Às profissionais da Coordenadoria de Habitação da Prefeitura Municipal de
Maracanaú-Ce, Eva Cristina e Maria Silênia, grandes profissionais. Histórias vivas da
urbe acima citada.
À minha orientadora, Profª. Dra. Socorro Osterne, que me recebeu com muito
carinho, dedicação e que muito contribuiu, com ricos momentos de orientação, na
construção deste trabalho acadêmico. Sou grata por seu apoio e paciência.
Aos professores que compõem a banca examinadora deste trabalho por
aceitarem o convite com toda gentileza e atenção, Prof. João Tadeu e Profª Adriana,
bem como aos professores que participaram da banca de qualificação, contribuindo
com suas colaborações e sugestões, as quais serviram para lapidar a pesquisa que
ora apresento.
Em especial, à Prof. Dra. Adriana Alcântara que colaborou demasiadamente
em meus conhecimentos acadêmicos, incentivando e valorizando o presente trabalho
desde que surgiam como pequenas sementes de gerontologia, durante minha
graduação em Serviço Social. Registro aqui minha sincera admiração e estima. Sua
participação na banca de qualificação significou uma bússola mestra no meu
caminhar.
Ao corpo docente do Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade
da UECE pelas trocas constituídas ao longo destes dois anos de vivência acadêmica.
À Cristina Maria Pires, secretária do programa de pós-graduação do MAPPS,
pelas palavras, por todos os esclarecimentos necessários, bem como pela atenção e
carinho sempre a mim destinados.
Às avós entrevistadas nesta pesquisa, sempre solícitas e receptivas a todas as
nossas necessidades, com relação à realização deste estudo.
Enfim, a todos que direta ou indiretamente contribuíram na realização desta
investigação, participando comigo desta jornada.
Muito Obrigada a todos !
O tempo pode apagar lembranças de um corpo
ou de um rosto,mas nunca a memória
daquelas pessoas que souberam
fazer de um pequeno instante,
um grande momento.
(Charles Chaplin)
RESUMO
Esta pesquisa partiu do objetivo central de ampliar o debate sobre as relações intergeracionais,
mediante o recorte das velhas avós que cuidam de seus netos, compreendendo as
características que estas assumem na reorganização do contexto familiar. Para tanto, foram
delineados alguns objetivos específicos, a saber: explorar o significado da velhice, presente no
pensamento das avós cuidadoras de netos, ante a realidade cotidiana enfrentada por este
segmento populacional; desvendar o conceito de cuidador que permeia a realidade das avós
que tomam para si a responsabilidade para com seus netos; e, por fim, conhecer a realidade
dessas avós, analisando suas condições atuais de vida, bem como de quais benefícios e
programas sociais esses sujeitos são usuários e/ou possíveis beneficiários. O local onde foi
realizado o estudo denomina-se Residencial Vitória, moradia verticalizada, localizada no
Município de Maracanaú-CE, Região Metropolitana de Fortaleza-CE. Para a coleta de dados,
foram considerados os seguintes instrumentos metodológicos: entrevista áudiogravada
(semiestruturada), realizada durante os meses de agosto e setembro do ano de 2012; análise
de depoimento, história de vida (destaque para a história oral), observação direta e utilização
do diário de campo. Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa e do tipo bibliográfica,
documental e de campo. Por meio deste trabalho, observa-se, destarte, que as relações
compreendidas pela avosidade, no âmbito familiar moderno, ultrapassam a imagem que
outrora ocupava o imaginário coletivo, ou seja, a das avós como meras transmissoras de
legados geracionais. Assim sendo, elas assumem papel de protagonistas na vida dos netos,
inclusive, no tocante ao seu sustento, independentemente da presença ou ausência dos
genitores dessas crianças e/ou adolescentes, tomando para si obrigações com filhos adultos e
netos. O vocábulo cuidado admite sentido mais amplo. Os avós passam a assumir significação
de pais substitutos para os netos, inclusive, também, no campo das discussões.
Palavras-chaves: Velhice . Relações Intergeracionais. Avosidade. Família.
ABSTRACT
This study started from the central objective of broadening the debate on intergenerational
relations, by clipping the old grandparents caring for their grandchildren, including the features
that these assume the reorganization of the family context. Thus, we outlined some specific
objectives, namely: to explore the meaning of old age, in this thought Grannies caregivers of
grandchildren, before the daily reality faced by this population segment; unravel the concept of
caregiver pervading reality of grandparents who take on the responsibility to his grandchildren,
and, finally, to know the reality of these grandparents, analyzing their current life conditions, as
well as social programs and benefits which these subjects are users and / or potential
beneficiaries. The place where the study was conducted is called Victory Residential, housing
vertically located in the municipality of Maracanaú-EC Metropolitan Region of Fortaleza-CE. To
collect data, we considered the following methodological tools: áudiogravada interview (semistructured), held during the months of August and September of the year 2012, analysis of
evidence, life history (especially oral history), direct observation and use of the field diary. This
is a qualitative research and the type literature, documentary and field. Through this work, it is
observed, Thus, the relations understood by avosidade within modern family, beyond the image
that once occupied the collective imagination, ie the Grannies as mere transmitters of
generational legacy. Thus, they assume leading role in the lives of grandchildren, including with
regard to their livelihood, regardless of the presence or absence of the parents of these children
and / or adolescents, taking on obligations to adult children and grandchildren. The term care
supports the broadest sense. Grandparents are taking on significance of surrogate parents to
their grandchildren, including also in the field of discussion.
Keywords: Old age. Intergenerational Relationships. Avosidade. Family.
LISTA DE FIGURAS
Figura 01: Localização de Maracanaú na Região Metropolitana de Fortaleza
Figura 02: Ave conhecida como Maracanã Maracanaú
Figura 03: Residencial Vitória
Figura 04: Área de Desenvolvimento Local de Maracanaú
Figura 05: Distribuição das Intervenções
Figura 06: Placa de identificação do Residencial
Figura 07: Residencial Vitória com maquete
Figura 08: Mapa das Áreas de Risco do Município
Figura 09: Frente do empreendimento
Figura 10: Visão aérea dos blocos
Figura 11: Visão aérea completa do empreendimento
Figura 12: Visão aérea do Salão de Festas e Área de Lazer
Figura 13: Salão de Festas do Residencial Vitória
Figura 14: Área de Lazer do Residencial Vitória
LISTA DE QUADROS
Quadro 01: Faixa Etária Geral
Quadro 02: Titularidade do Cadastro
Quadro 03: Escolaridade da População Cadastrada
Quadro 04: Atividades e Situações Profissionais
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
CAIXA – Caixa Econômica Federal
CNPQ – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
FAR- Fundo de Arrendamento Residencial.
HABITAFOR – Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas
IDH – Índice de Desenvolvimento Humano
IDI – Índice de Desenvolvimento Infantil
IDM - Índice de Desenvolvimento Municipal
IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicados
MAPPS – Mestrado Acadêmico de Políticas públicas
NOB – Norma Operacional Básica
OMS - Organização Mundial de Saúde
PUC – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
SEINFRA – Secretaria de Infra Estrutura de Maracanaú
SUAS – Sistema Único de Assistência Social
UECE- Universidade Estadual do Ceará
UVA – Universidade Vale do Acaraú
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS
LISTA DE QUADROS
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
RESUMO ........................................................................................................................7
CAPÍTULO 1 – INTRODUÇÃO.....................................................................................14
CAPÍTULO 2– O OBJETO DE PESQUISA E AS ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS:
CONHECENDO A REALIDADE DAS FAMÍLIAS DO RESIDENCIAL VITÓRIA.........25
2.1 A aproximação com o objeto.......................................................................25
2.1.1 Breve apresentação do município de Maracanaú....................................33
2.1.2 O Projeto Salgadinho................................................................................36
2.1.3 Perfil dos atores da pesquisa....................................................................40
2.1.4 Retrato social dos moradores...................................................................42
2.2 Trilha metodológica percorrida....................................................................46
2.3 Compartilhando algumas impressões de campo.........................................59
2.4 Sobre as informantes: As avós....................................................................61
2.5 Os domicílios...............................................................................................69
CAPÍTULO 3 – DEBATE SOBRE A FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA..........................73
3.1 A família no cotidiano da luta pela sobrevivência........................................73
3.2 Organização familiar: da diversidade dos modelos aos dias atuais............80
3.2.1 Famílias brasileiras: História e dinamismo...............................................83
3.3 A modernidade e suas conseqüências na família.......................................89
3.4 A fluidez nas relações: a participação dos avós no contexto familiar........93
CAPÍTULO 4 – ABORDAGENS SOBRE A TEMÁTICA VELHICE............................114
4.1 Velhices: entre conceitos e preconceitos...................................................114
4.1.1 Sob as lentes do estereótipo..................................................................124
4.2 Laços intergeracionais...............................................................................130
4.2.1 Avosidade: o tornar-se avó.....................................................................142
4.3 Cultura e natureza feminina.......................................................................144
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................152
REFERÊNCIAS..........................................................................................................158
ANEXOS.....................................................................................................................169
APÊNDICE..................................................................................................................186
Termo de Consentimento............................................................................................187
Roteiro de Entrevista...................................................................................................188
14
1 INTRODUÇÃO
No século atual, o envelhecimento torna-se um acontecimento sensível,
comum e preocupante, tanto para o mundo desenvolvido quanto para o
subdesenvolvido. Segundo registros do IBGE (2010), de maneira geral se observa que
o crescimento da população envelhecida é mais intensificado nos países em
desenvolvimento, conquanto este contingente ainda seja, proporcionalmente, bastante
inferior ao identificado nos países desenvolvidos. Identificado como fenômeno
mundial, o crescimento da população denominada velha é alarmante em números
absolutos e relativos.
Registrado em todo o mundo, desde o início do século XX, a elevação do
número de pessoas do segmento em estudo instiga pesquisadores, desta temática, a
incluírem nas discussões (de caráter científico e político) a condição e as implicações
que permeiam o fenômeno da condição de avó, no cenário atual, que inclui a
assistência entre as gerações, ou, conforme expressa Camarano (1999), ―a dialética
entre dependência/interdependência entre as gerações‖ (P.86).
Contextualizando a dinâmica populacional brasileira em âmbito mundial,
pode-se destacar o indicador social chamado índice de envelhecimento, cujo valor
medido para o Brasil indicou 51,8, número bem próximo do índice de envelhecimento
mundial, que resultou em 48,2, conforme dados do IBGE (2012).
Ainda analisando o caso do Brasil, relevante é destacar o fato de que este
assume
posição
intermediária,
demonstrando
uma
população
de
velhos,
correspondente a 8,6 % da população total, em relação aos países da América Latina.
Tanto no Brasil, quanto em outros países, o grupo da população que mais cresce
refere-se ao segmento envelhecido. A estimativa é de que a população brasileira,
maior de 60 (sessenta) anos, seja de 14,2% em 2020. Diferentemente de outrora,
gradativamente, o Brasil deixa de ser considerado um país de jovens. Num futuro
próximo, a Nação brasileira deverá enfrentar, portanto, um grande desafio oriundo do
crescente envelhecimento populacional.
Conforme registros do censo IBGE (2010), a expressividade dos grupos
etários no total da população no ano de 2010 está inferior a que foi observada em
2000 para todas as faixas com idade até 25 anos, enquanto os demais grupos etários
15
elevaram suas participações na última década. O alargamento do topo da pirâmide
etária pode ser verificado pelo crescimento da participação relativa da população com
65 anos ou mais.
A predominância da população feminina entre os velhos é comprovada em
registros do IBGE (2012)1. Segundo a pesquisa, a razão de sexo da população deste
segmento etário é bastante diferenciada, sendo bem elevado o índice de mulheres. No
Brasil, em 2000, o percentual de mulheres equivalia a 55,1% da população
envelhecida; já em 2011 este valor aumentou para 55,7%. Isto significa que enquanto
em 2000, para cada 100 mulheres velhas havia 81,6 homens velhos; atualmente, a
proporção é de 79,5 para o mesmo número de mulheres.
No tocante à esperança de vida feminina, por meio de dados do IBGE,
constatou-se que, em 1980, esta era de 65 anos, ou seja, 6,4 mais elevada do que a
masculina. Já em 2000, este diferencial aumentou para 8,7 anos, em virtude da mais
acentuada diminuição da mortalidade entre o sexo feminino2. Em média, no Brasil, as
mulheres vivem oito anos a mais do que os homens.
Convém citar que fatores como a diminuição da taxa de natalidade, bem
como a elevação da expectativa de vida e a rapidez do processo de envelhecimento
do Brasil cooperam para um novo perfil populacional. Tal situação deixa um alerta
para gestores da esfera pública, pesquisadores e, por que não dizer, para o próprio
núcleo familiar.
Com efeito, pode-se projetar o Brasil com a chamada ―Revolução da
Terceira Idade‖, abordada por Giddens (2005) ao destacar a idéia de que:
[...] Quase todos os países desenvolvidos testemunharão o
envelhecimento de suas populações nas próximas décadas. Peter
Peterson descreveu essa mudança como uma ―aurora grisalha‖
(1999). Atualmente, uma em cada sete pessoas no mundo
desenvolvido tem mais de 65 anos. Em 30 anos, irá subir para uma
em quatro [...]. O número de ―muitos velhos‖ (acima de 85 anos) está
se expandindo mais rapidamente do que o de ―jovens velhos‖. Daqui
a meio século, o número de pessoas acima de 85 anos terá crescido
seis vezes mais. Esse processo é algumas vezes chamado de
―envelhecimento dos idosos. (P. 145).
1
2
Dados referentes ao Censo do IBGE ano 2010.
Para o ano de 2000, foi estimada uma esperança de vida de 64,6 e 73,4 anos para os sexos masculino
e feminino, respectivamente, de acordo com números do Ipeadata.
16
Esse crescimento contínuo da população com idade igual ou superior a 65
anos apresenta uma preocupação de ordem mundial e apregoa a realização de
pesquisas sobre a temática da velhice. Nessa realidade, ampara-se o interesse em
desenvolver esta investigação.
Na opinião de Debert (1999):
A preocupação da sociedade com o processo de envelhecimento
deve-se, sem dúvida, ao fato de os idosos corresponderem a uma
parcela da população cada vez mais representativa do ponto de vista
numérico. Contudo, explicar por razões de ordem demográfica a
aparente quebra da ‗conspiração do silêncio‘ em relação à velhice é
perder a oportunidade de descrever os processos por meio dos quais
o envelhecimento se transforma num problema que ganha expressão
e legitimidade, no campo das preocupações sociais do momento.
Considerar que as mudanças nas imagens e nas formas de gestão do
envelhecimento são puros reflexos de mudanças na estrutura etária
da população é fechar o acesso para a reflexão sobre um conjunto de
questões que interessa pesquisar. (P.12).
Vale frisar que trabalhos e pesquisas envolvendo a temática velhice ainda
possuem pouca visibilidade na literatura especializada, bem como no debate
profissional das diversas áreas do conhecimento. A representação numérica desta
faixa etária; todavia, desperta interesse em âmbito público (Estado) e privado
(comunidade e esfera doméstica) pelo fato de eles, os velhos, estarem cada vez mais
presentes no cotidiano da sociedade, no enfrentamento das expressões da questão
social3, muitas vezes, participando deste cenário como atores principais da vida real.
Conforme Fraiman (1991), a partir de 1950, os estudos referentes à velhice
ganharam destaque, em virtude da transição demográfica dos Estados Unidos, bem
como de vários países europeus. Assim sendo, o campo da Gerontologia adquiriu
novos espaços, como relevante área de conhecimento do desenvolvimento humano.
Já no Brasil, estudos que versam sobre a velhice emanam desde a década de 1980.
Foi neste período, segundo Alcântara (2004), que este segmento auferiu ―maior
3
―Questão social apreendida como o conjunto das expressões das desigualdades da sociedade
capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho
torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação de seus frutos mantém-se privada,
monopolizada por uma parte da sociedade.‖ (IAMAMOTO, 2004, p.27).
17
atenção por parte de geriatras, gerontólogos, movimentos sociais e universidades
(...).‖ (P.13).
Abordar
o
assunto
velhice,
compreender
algumas
definições
terminológicas, tais como o que significam Gerontologia e Geriatria, são providências
de suma relevância, tanto para o pesquisador, quanto para o leitor. Convém frisar que
não há conformidade entre estas definições. Dessa forma, esta investigação se pauta
na análise expressa por Neri (2005), ao esclarecer que:
[...] Gerontologia é o campo multi e interdisciplinar que visa à
descrição e á explicação das mudanças típicas do processo do
envelhecimento e de seus determinantes genéticos-biológicos,
psicológicos e socioculturais. Interessa-se também pelo estudo das
características dos idosos, bem como pelas várias experiências de
velhice e de envelhecimento ocorridas em diferentes contextos
socioculturais e históricos. Abrange aspectos do envelhecimento
normal e patológico. Compreende a consideração dos níveis atuais
de desenvolvimento e do potencial para o desenvolvimento. (...) A
gerontologia também comporta interfaces com áreas profissionais
dentre as quais se destacam a clínica médica, a psiquiatria, a
geriatria, a fisioterapia, a enfermagem, o serviço social, o direito, a
psicologia clínica e a psicologia educacional, das quais derivam
soluções para problemas individuais e sociais, novas tecnologias,
evidências e hipóteses para a pesquisa.
[...] o campo da Geriatria compreende a prevenção e o manejo das
doenças do envelhecimento. É uma especialidade em Medicina e
também em Odontologia, Enfermagem e Fisioterapia, que se
desenvolvem á medida que aumenta a população de adultos mais
velhos e idosos portadores de doenças crônicas e de doenças típicas
da velhice, em virtude do aumento da longevidade desses segmentos
populacionais. (pp 95-96)
A pouca literatura, ou seja, a escassez de material para o estudo desta
temática, bem como o desprestígio cultural e no âmbito das discussões, foram alguns
dos fatores que contribuíram para as motivações e inspirações de se dar continuidade
a este ensaio, cada vez mais, ampliando informações sobre a categoria pelo qual se
nutre verdadeira paixão, desde a graduação, passando pela especialização, e, agora
no mestrado: velhice.
Vale salientar que, inicialmente, nas primeiras disciplinas da graduação em
Serviço Social, ou seja, no decorrer das disciplinas de Pesquisa (I e II) a visão da
pesquisadora em alusão já se desenhava para este objeto de estudo. Posteriormente,
durante as disciplinas de Estágio Supervisionado (I e II), os quais foram realizados no
Fórum Clóvis Beviláqua, no Setor de Serviço Social de Atendimento às Varas de
Família, foram proporcionadas vivências e muitos momentos reflexivos no tocante à
18
condição do velho, na sociedade atual. Tais vivências produziram inquietações que
nortearam a elaboração do trabalho final monográfico, da graduação do curso de
Serviço Social, realizado na Universidade Estadual do Ceará - UECE. Foi com suporte
nessas instigações empíricas, bem como da leitura de teóricos especializados (em
velhice e família), que surgiram os questionamentos que demarcaram a formulação do
projeto de pesquisa para o Mestrado Acadêmico de Políticas Públicas e Sociedade da
UECE.
Cabe ressaltar aqui que, no decorrer deste trabalho, adota-se o termo
―velho‖ pelo fato de se compreender que este corresponde ao sujeito do processo
definido como velhice. Esta situação foi muito bem ponderada por Alcântara (2010),
quando a autora acentua que esta opção decorre do fato de ―esta categoria
redimensionar com maior clareza as representações pelas quais a velhice vem
passando.‖ (P. 15).
Ainda sobre este assunto, Alcântara (2010) revela:
Na sociedade brasileira, percebo que, existe um certo melindre para
pronunciar a palavra ‗velho‖, pois parece que soa como insulto, o que
não é difícil de compreender, uma vez que a juventude é uma
categoria privilegiada, apresentando-se como um padrão valorizado,
em oposição à desvalorização da velhice. (P. 15).
Durante esta investigação, a circunstância há pouco exposta por Alcântara
(2010) foi identificada nas falas e reações das entrevistadas. Não se restringiu,
todavia, a estas, haja vista que se identificou também tais comportamentos de
negação ou eufemismo da velhice na equipe técnica social da Coordenadoria de
Habitação do Município de Maracanaú-CE, bem como na comunidade onde residem
os sujeitos desta busca de teor acadêmico.
Esta ―negação‖ da velhice e/ou imagens negativas da velhice foram
também abordadas de forma poética por grandes ícones da literatura, tais como:
Rubem Alves, Cecília Meireles, Vinícius de Moraes, Leonardo Boff, dentre outros, os
quais são compartilhados nos anexos deste estudo.
Caracterizado por intensas mudanças culturais, éticas, econômicas,
sociais e ainda no plano do comportamento humano, num Brasil cada vez mais
urbano, ainda permanece o consenso em torno da família como espaço privilegiado
para a prática de valores e solidariedade.
19
Apesar de ser concebida como uma categoria historicamente determinada,
a família é sempre alvo de mudanças, fato que chama a atenção, principalmente, no
tocante à constituição dos ―novos arranjos familiares‖, em que se pode focalizar aqui a
significativa presença dos avós do século XXI. O modo de ser e viver a avosidade vem
se transformando ao longo do tempo. Na atualidade, os avós oferecem aos seus netos
muito mais que simples proteção, pois se tornam cuidadores integrais e, até mesmo,
legais, de seus netos.
Ao ressaltar as relações intergeracionais, Vitale (2005) faz menção à figura
das avós, no contexto de modificações dos laços familiares, os quais demandam
novas exigências à imagem dessas avós que surgem como protagonistas no
panorama das relações familiares.
No último século, a sociedade passou por diversas transformações. Muitas
dessas mudanças impactaram, e ainda impactam, a população envelhecida da
sociedade, na atualidade. Vale lembrar que estas estão relacionadas ao contexto
familiar, o qual, conforme exprime Szymanski (2003), tende a se ajustar,
constantemente, ao cotidiano enfrentado, marcado pela fluidez das relações, de modo
geral.
Nesta ambiência de modernidade, Giddens (1991) adverte para a noção
de que ―a vida social e os laços que ela envolve estão profundamente entrelaçados
com os sistemas abstratos de mais longo alcance.‖ (P.108). Na óptica do autor, a
modernidade altera radicalmente a natureza da vida social cotidiana e afeta os
aspectos mais pessoais da existência humana.
É relevante destacar a idéia de que circunstâncias diversas, como
desemprego, falta de recursos financeiros, gravidez precoce, envolvimento com
drogas, separações conjugais e outras situações, são alguns dos fatores que tem
contribuído para o retorno dos filhos à casa dos pais. Na verdade, essa situação muda
o sistema de solidariedade, e a própria estrutura da família muda de eixo, já que
outras gerações (netos e /ou bisnetos) entram em cena.
Sabe-se que transformações sociais afetam também a instituição família, a
qual desenvolve novas características em sua organização, em sua composição, como
também nas formas de relações entre seus membros, as quais, paulatinamente,
20
passam a se diferenciar do modelo de família nuclear burguês, presente no período de
colonização. Assim sendo, a instituição família encontra-se em constante mudança e
dinamismo, em decorrência da própria estrutura e da conjuntura da sociedade, que
refletem as multifacetadas expressões da questão social. Ocorre que tais
acontecimentos refletem na população velha que, perante a reorganização familiar,
assume novas outra configuração nas relações intergeracionais.
Ocorre que, na atualidade, tais acontecimentos refletem na população
velha, aqui representada pelas avós, as quais, ante a reorganização familiar, passam
a assumir características mais amplas no que se refere a ―cuidar de netos‖, ao
bancarem, além de suas despesas, o custo de manutenção de filhos e, principalmente,
de seus netos, conforme dados do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA).
Nesta pesquisa, verificou-se que tal situação, talvez, derive muito mais da falta de
opção do que mesmo de escolha para estas ―personagens‖ reais num cenário
cotidiano de famílias monoparentais4, composta por avós e netos.
Na intelecção de SIingly (2010), a família é, assim, apanhada entre as
exigências da vida comum e da existência individual, entre infantes, adolescentes e
adultos, estando sujeita a tensões que atingem também a população mais velha.
Referido autor destaca que a família contemporânea é caracterizada por um duplo
movimento, pois, na medida em que é privada, é simultaneamente, pública. Portanto,
a família, como espaço em que as pessoas acreditam proteger sua individualidade, é
também alvo de intervenções do Estado nas relações com seus membros.
Releva salientar o fato de que, em estudos da história da família e da
criança, a figura dos avós podia exercer relevante papel social no âmbito familiar.
Mascaro (1997) destaca o fato de que, no Império Romano, as famílias abastadas
―confiavam sua casa de campo e seus filhos aos cuidados da avó ou de uma parente
idosa, virtuosa e responsável.‖ (P.27).
O aumento do número de netos que vivem com os avós, sendo, portanto,
criados e/ou até mesmo sustentados por eles, é fato registrado, inclusive, pelo estudo
Perfil dos Idosos Responsáveis pelos Domicílios no Brasil /IBGE (2002).
4 O reconhecimento e a definição da família monoparental, como família natural, podem ser observados
no dispositivo 25, da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, o qual dispõe que: ―entende-se por família
natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes‖.
21
Ao vivenciar uma situação que, muitas vezes, lhe surge como inesperada,
a população mais velha adquire novo lugar na sociedade contemporânea, ou seja, a
de cuidador5 dos netos, com tendência a reunirem as características maternas e ou
paternas nesta relação. Com efeito, faz-se necessário destacar a amplitude que o
vocábulo cuidado vem assumindo. É válido mencionar que o ato de cuidar passa a ser
considerado inerente ao gênero feminino por motivos históricos e culturais, as quais
ainda nos dias de hoje acompanham o ser mulher. Assim, o ambiente doméstico e as
funções ligadas à esfera privada foram, desde muito tempo, atribuídas ao sexo
feminino, como sendo natural e vinculada às características da maternidade, conforme
considerações de Beauvoir (1980).
Esta circunstância a que estão expostos os avós do século XXI caracteriza
a família como espaço de mudanças também entre gerações, no qual os avós
participam diretamente da organização desta nova estrutura familiar, de modo a
ocupar um lugar de destaque no modelo de organização da família brasileira, bem
como na sociedade. Desse modo, pode-se perceber que a presença dos avós nas
famílias de hoje insere-se num âmbito de modificações dos laços familiares, os quais
lhes demandam novas exigências. Vale frisar que as atuais imagens do
envelhecimento, as quais anunciam mudanças sociais e redefinem identidades,
clamam por uma rediscussão sobre as categorias família e velhice, bem como acerca
da dependência/interdependência entre gerações, segundo alerta Camarano (1999).
O despertar para o estudo da temática velhice, na pesquisa em alusão,
pelo recorte das avós, com idade igual ou superior a 60 anos, que cuidam de seus
netos como já explicitado decorre do fato de se nutrir paixão pela temática ora
desenvolvida. Daí a decisão de se continuar as investigações deste objeto de estudo,
iniciadas ainda na graduação.
O cenário eleito para esta pesquisa foi o empreendimento denominado
Residencial Vitória, local onde foram beneficiadas com unidade habitacional, do tipo
verticalizada (ou seja, apartamentos), 80 famílias de baixa renda, residentes, a
maioria, anteriormente às margens do riacho Salgadinho, o qual está situado no
Município de Maracanaú-CE. O projeto desenvolvido com estas famílias recebeu o
mesmo nome do Riacho (Projeto Salgadinho), o qual, mediante atividades
5
Relevante é frisar aqui a dimensão que assume a palavra cuidado ou a ―expansão nos papéis― das avós
na atualidade , conforme enfatizado por Dellman-Jenkins, Blanemeyer e Olesh (2002).
22
desenvolvidas pela equipe Técnica Social6, tem como objetivo garantir condições
adequadas de moradia, segurança e lazer para a comunidade local, assim como a
preservação ambiental de importantes recursos naturais da área.
Por intermédio de dados cadastrais7, do próprio Município, comprova-se
que a maioria destas famílias sobrevive de maneira simples, ou seja, suas condições
econômicas não lhes proporcionam, na maioria das vezes, opções de lazer e
alimentação adequadas. São pessoas que sobrevivem com dificuldades, sob uma
realidade dinâmica, crítica e preocupante.
Este texto dissertativo tem como objetivo central ampliar o debate sobre as
relações intergeracionais, compreendendo as características que estas assumem no
contexto familiar. Para tanto, foram traçados alguns objetivos específicos, a saber:
explorar o significado de velhice, compreendido no pensamento das avós cuidadoras
de netos, ante a realidade cotidiana enfrentada por este segmento populacional;
identificar quais fatores contribuem, na atual conjuntura, para que essas avós passem
a cuidar de seus netos, provendo, até mesmo, o seu sustento; e desvendar o conceito
de cuidador (legal ou informal) que permeia a realidade das avós que tomam para si a
responsabilidade com seus netos.
Para a realização deste estudo, alguns autores foram fundamentais, com
suas considerações e orientações sobre o cotidiano da família, sua luta pela
sobrevivência e as conseqüências da modernidade em suas configurações. Foram
eles: Cruz (2012), Yazbek (2012), Iamamoto (2004), Petrini (2003), Szymanski (2003),
Bauman (2001), Osterne (2001), Peixoto (2000) e Giddens (1991). No que se
concerne às discussões relativas à temática velhice, destacam-se, principalmente, os
seguintes autores: Alcântara (2010), Leite (2004), Araújo (2002), Ferrigno (2003),
Vitale (2002), Guedes (2000), Peixoto (2000), Camarano (1999), Mascaro (1997), Bosi
6
Relevante é mencionar que, nos projetos habitacionais, existe uma equipe técnica multiprofissional,
composta por assistentes sociais, sociólogos, geógrafos e advogados, os quais visam a atender as
diversas complexidades que se somam à questão habitacional. No que se refere ao Trabalho Técnico
Social – TTS, este é desenvolvido por assistentes sociais e estagiários da área, sendo responsáveis pela
elaboração, organização, execução e avaliação das ações previstas no projeto de intervenção. Convém
salientar que se teve a oportunidade de compor a equipe técnica social do Município em tela, e, embora
não se atuasse no Projeto Salgadinho, acompanhou-se algumas etapas deste, contemplando de perto
experiências e angústias da população beneficiária do referido projeto; momento de vivências,
observações e questionamentos. Também já se possuía experiência profissional, na área habitacional, no
Município de Fortaleza-CE, todavia, nunca se deixou passar despercebido objeto de estudo e o pano de
fundo que norteiam as relações entre eles (velhos) tanto como assistente social, quanto como estudiosa
da temática.
7 Para elaboração deste perfil foram utilizados os cadastros sócioeconômicos preenchidos pela equipe do
Serviço Social da Coordenadoria de Habitação, mediante atendimentos sociais e/ou visitas domiciliares.
23
(1994) e Beauvoir (1990). Tais autores, dentre outros, contribuíram para ampliar o
debate das relações intergeracionais.
A pesquisa em alusão está estruturada em cinco capítulos, incluindo
Introdução e Considerações finais
O primeiro capítulo refere-se à introdução e expressa: a contextualização
da pesquisa, a relevância do estudo, as razões para a escolha do tema, os objetivos e
a organização do trabalho em capítulos.
O segundo segmento denominado ―O objeto de pesquisa e as estratégias
metodológicas: conhecendo a realidade das famílias do Residencial Vitória‖, expõe,
em sua primeira parte, a narrativa da aproximação com o objeto, o campo de
pesquisa, bem como o perfil geral dos moradores deste empreendimento,
participantes da investigação ora relatada. Já na segunda parte, este capítulo traz o
percurso metodológico da pesquisa, explicitando os instrumentais utilizados, aspectos
observados no campo, bem como informações sobre as avós que participaram do
estudo. Sob o ponto de vista metodológico, convém mencionar que esta dissertação
se pauta na concepção metodológica de natureza qualitativa, além de avançar
também em sua fase exploratória, a qual antecede e sucede a construção do projeto,
conforme orienta Minayo (1995).
O terceiro módulo traz o título de ―Debate sobre a família contemporânea‖
e visa compreender a categoria família no cotidiano da luta pela sobrevivência, sua
organização e reorganização sob a modernidade e suas consequências na estrutura
familiar, com ênfase na fluidez entre as relações e a participação das avós (velhas),
que cuidam de netos, para melhor apreensão do objeto de estudo. Vale frisar que
pesquisar sobre família é essencial para compreensão desta realidade, haja vista ser
esta a célula básica ou menor célula organizada da sociedade. Na esteira desta idéia,
Prado salienta que ―uma família é não só um tecido fundamental de relações, mas
também um conjunto de papéis socialmente definidos‖. (1985:23).
O quarto capítulo, nomeado ―Abordagens sobre a temática velhice‖,
objetiva desvendar os conceitos (e preconceitos) sobre velhice, abordar as relações
intergeracionais, estudar a cultura do feminino na sociedade e o fenômeno da
avosidade, assim como a complexidade que assume a palavra cuidar para as avós
24
que cuidam de seus netos.
O último momento do trabalho comporta ás ―Considerações finais‖. Nesta
etapa, são expressas as conclusões sobre os principais pontos suscitados no trabalho
em pauta.
Sintam-se, destarte, convidados a apreciar o material que resultou deste
empenho!
25
2
O
OBJETO
METODOLÓGICAS:
DE
PESQUISA
CONHECENDO
E
A
AS
ESTRATÉGIAS
REALIDADE
DAS
FAMÍLIAS DO RESIDENCIAL VITÓRIA
―Fisicamente, habitamos um espaço,
mas, sentimentalmente, somos
habitados por uma memória.‖
José Saramago
2.1 A aproximação com o objeto
É crucial iniciar dizendo que o envelhecimento da população brasileira
ocorre de maneira rápida, e que o aumento da expectativa de vida, bem como a
redução da taxa de natalidade, são fatores que cooperam para um novo perfil
populacional. É fato que o Brasil, cada vez mais urbano, é marcado por profundas
transformações sociais, econômicas, culturais, éticas e até mesmo no plano do
comportamento humano.
Compreendendo que a população envelhecida é um segmento em
constante expansão no contexto mundial, deve-se considerar ainda que este aumento
também trouxe novos desafios a essa categoria, na contemporaneidade. Sendo assim,
na atualidade, observa-se que os avós (especificamente as mulheres) passam a ser,
cada vez mais, responsáveis diretos pelos netos, de modo que, na redefinição dos
laços familiares, esses avós assumem o papel de protagonistas principais na vida dos
mencionados, inclusive, no tocante ao seu sustento, independentemente da presença
ou ausência dos genitores dessas crianças e /ou adolescentes.
Debruçar-se sobre a temática velhice e relações intergeracionais não
consiste numa tarefa simples, conforme abordado em capítulos anteriores e também
ratificado nas palavras da Professora Doutora Maria Lúcia Martinelli8, quando
mencionou que havia ―poucos estudos sobre o tema do envelhecimento no CNPq‖,
fato este que chama a atenção, inclusive, no sentido de fazer um alerta quanto à
8
Em agosto de 2012, a Universidade Estadual do Ceará-UECE contou com a significativa presença da
Prof. Dra. Martinelli (PUC/SP), em evento promovido pelo Mestrado Acadêmico de Políticas Públicas –
MAPPS, a saber: III Seminário Estado, sociedade e Políticas Públicas. A convidada em alusão abriu a
mesa de debate intitulada ―Dimensão Política da Pesquisa Social‖, a qual contou também com a presença
da prof. Dra. Maria do Socorro Ferreira Osterne, orientadora desta pesquisa.
26
necessidade de formar gerontólogos para esta sociedade, haja vista que a pesquisa,
em si, possui ligação com a vida em que se vive e/ou com a vida dos sujeitos.
Relevante é mencionar, por oportuno, a importância da leitura do
cotidiano, a qual deve ser feita pelo pesquisador, haja vista ser por seu intermédio (do
cotidiano), que se faz possível ler/interpretar a conjuntura. É preciso que o
pesquisador saiba dialogar com o real, pois todo problema (objeto de conhecimento e
pesquisa) é, antes de tudo, um problema de vida prática, conforme explanou Martinelli
durante evento na UECE.
A arte da pesquisa é uma tarefa árdua. Ao bom pesquisador deve-se
remeter, dentre outras, à sua capacidade de unir os fios da experiência, considerando
o dia a dia do campo. Nesse sentido, Bourdieu (1989) destaca a pesquisa como
fenômeno ininterrupto e inacabado, enfatizando que:
[...] a construção do objeto (...) não é uma coisa que se produza de
uma assentada, (...) é um trabalho de grande fôlego, que se realiza
pouco a pouco, por retoques sucessivos, por uma série de correções,
de emendas, sugeridas por o que se chama o ofício, quer dizer, esse
conjunto de princípios práticos que orientam as opções ao mesmo
tempo minúsculas e decisivas. (P. 26-27).
O interesse em estudar velhice e as relações intergeracionais,
compreendida nesta pesquisa na relação avós-netos, deu-se com amparo em
vivências anteriores no campo dos estudos (na graduação, conforme exposto na
introdução) e intervenções sobre velhice, as quais aconteceram no primeiro campo de
estágio que se desenvolveu, o qual ocorreu no Fórum Clóvis Beviláqua, no Setor de
Serviço Social de Atendimento às Varas de Família, como se adiantou noutra
passagem.
No ambiente ora descrito, sucederam as primeiras experiências e
contatos com a categoria velhice, e seus representantes, na atual conjuntura. Este
setor é responsável pela elaboração de relatórios sociais, de suma importância para
nortear o juiz, em suas decisões, durante a audiência, sendo, portanto, peças
importantes em processos dos tipos curatela9, guarda judicial, e/ou em outros
9
Ação judicial que objetiva identificar alguém para a função/ação de curador (responsável por uma
pessoa incapaz de gerir a si e aos seus bens). Segundo consulta ao dicionário Aurélio, curador consiste
na pessoa que é ―encarregada por lei, da administração de bens, de um menor emancipado, de um
ausente ou de um alienado internado, ou então pela gestão e liquidação de uma sucessão vacante.
27
casos/processos em que o juiz considere necessária a intervenção do conhecimento
do profissional de Serviço Social, para sua decisão.
Estes ricos momentos de estágio, os quais perduraram por três anos,
foram responsáveis por muitas inquietações, as quais conduziram a elaboração do
trabalho final monográfico, da graduação do curso de Serviço Social, realizado na
Universidade Estadual do Ceará - UECE. A paixão pelo tema, porém, não se exauriu
aí, mas foi acompanhante diuturno na especialização que se cursou na área de Saúde
Pública (realizado na Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA), e, posteriormente,
indo mais além, chegando ao MAPPS, Mestrado da UECE.
Confessa-se que nos dois primeiros materiais elaborados, há pouco
mencionados, não houve recorte no que concerne à classe social. Para o projeto do
mestrado, no entanto, a nova visão voltava-se para as camadas urbanas populares,
mais especificamente para os avós que cuidavam de seus netos, os quais estavam
inseridos no perfil de ―possíveis‖ beneficiários para o Programa Minha casa, Minha
Vida10 - PMCMV, pertencente ao Governo Federal, em parceria com a Caixa
Econômica Federal-CEF.
Inicialmente,
se
pensou
como
cenário
para
a
pesquisa
o
11
empreendimento, do PMCMV, denominado Senador Virgílio Távora , localizado em
Maracanaú-CE, o qual seria (e foi) o primeiro empreendimento entregue pelo PMCMV
no Município. Para o referido condomínio, foram cadastradas famílias que residiam em
bairros circunvizinhos à área do empreendimento, e que atendiam ao perfil exigido, ou
seja, famílias que em sua maioria compreendem realidades críticas, moradores de
áreas que os expunha a vários tipos de riscos (tanto físicos12 quanto sociais).
Vale frisar que, neste período, o PMCMV era totalmente novo, e que as
técnicas sociais (bem como os demais profissionais que atuavam no programa em
10
Durante o ano de 2009, teve-se a oportunidade de realizar os trabalhos iniciais no que concerne ao
Programa Minha Casa, Minha Vida, no Município de Fortaleza-CE, na Fundação de Desenvolvimento
Habitacional de Fortaleza – HABITAFOR, período em que já se direcionava olhar para estes sujeitos na
busca da inserção desta política pública.
11
Composto por 672 unidades habitacionais verticalizadas, dividido em três blocos, com 208 (duzentos e
oito), 240 e 224 apartamentos, respectivamente. Os tipos de empreendimentos do tipo térreo +1 ainda
são experiência nova para o Município de Maracanaú-CE, o qual é permeado de experiências exitosas do
FAR no Município, cujo agente gestor é a CEF.
12
Foram apontados como principais: desabamento, inundações causadas pelas chuvas, além da
precariedade das edificações em razão dos materiais utilizados (pelos próprios moradores) para a
construção (madeira e plástico).
28
alusão) do Município, recebiam orientações da CEF, a qual repassava critérios
federais para inscrição da família (além, claro, dos critérios identificados pelo próprio
Município). Preocupante é mencionar aqui que, após identificados, cadastrados e
selecionados por perfil, a CEF comunicou, de maneira informal, que pessoas
―analfabetas‖ não poderiam ser beneficiadas pelo PMCMV, haja vista que, mesmo
sendo pensado/elaborado para pessoas carentes com o intuito de ―realização do
sonho do imóvel próprio‖, este dizia respeito a um financiamento, e, como qualquer
outro, se exigia um procurador (para aqueles sem alfabetização).
Tal fato resultou numa situação bastante complicada, tanto para a
equipe social (que conhecia a realidades das pessoas/famílias inscritas), quanto para
o objeto de pesquisa (os velhos) que se pretendia, os quais, muitas vezes residiam,
apenas, na companhia de netos (ainda infantes ou adolescentes). O resultado desse
imenso problema, ocasionado por uma política pública pensada ―de cima para baixo‖,
foi a saída de pessoas já velhas que não tinham ―ninguém de confiança‖ para ser seu
procurador ou para transferir-lhe a titularidade do imóvel.
Em outras palavras, os velhos foram excluídos do contexto dessa
política pública de modo sutil, e, atualmente, a maioria de beneficiários do PMCMV se
refere a pessoas jovens (jovens casais e/ou mães solteiras). Quanto aos poucos que
permaneceram insistindo no direito à moradia com dignidade, não puderam ser os
donos de direito (ou seja, a titularidade do imóvel foi transferida para alguém de
confiança e da família: netos, filhos, irmãos...), embora o compromisso e a
responsabilidade em arcar com o financiamento continuassem, de fato, a ser do velho,
o provedor destas famílias. Nesse sentido, Ferrigno (2003) esclarece que,
Todavia, esse novo paradigma da velhice, ao mesmo tempo em que
coloca à sombra a velhice pobre e desassistida e, por conseguinte, as
determinações
socioeconômicas
dessa
exclusão,
tende
a
responsabilizar o indivíduo idoso por conquistar, ou não, um
determinado estilo idealizado de vida. (P. 73-74).
Recorda-se que, no interior da sala de Serviço Social, da COHAB, por
muitas vezes, se pôde contemplar a insatisfação, a tristeza (expressadas algumas
vezes em lágrimas, outras em palavras), o descrédito em relação ao Poder Público, e
até mesmo as indignações diante de duras realidades daqueles que não puderam
continuar no processo de sua cidadania. São personagens e histórias, algumas das
29
quais registradas em Diário de Campo, àquela época, às observações que seguem
abaixo:
O dia de trabalho transcorria normalmente, entre um atendimento e
outro ...Eu e estagiários de serviço social, envolvidos nas atividades do
setor, quando durante um atendimento soa aquela voz envolvida entre
sentimentos de raiva e tristeza:
- Doutora, essa era a única chance que eu tinha de possuir minha casa
própria e sair do aluguel. Esperei tanto por isso. Peguei uma fila
imensa pra inscrição. Cheguei cedinho pra conseguir um lugar. Passei
sol e chuva. Agora não posso ficar no programa? E por que é que
não disseram isso antes? (Diário de Campo, outubro de 2011).
Passou a ser ―comum‖ a expressão de sentimentos mistos de raiva,
tristeza e indignação, durante os atendimentos. E por mais que
esclarecêssemos que as orientações não haviam sido repassadas no
início do Programa Minha Casa, Minha Vida, aquelas pessoas, já
velhas, viam seu sonho (talvez o da vida toda) se desconstruir,
naquele momento.
No registro do contato com outra usuária, registrou-se:
Todos os dias ela telefonava, escolhia turnos e horários diferenciados.
Seu intuito era, simplesmente, de ―dá notícias sobre a sua situação‖.
Em virtude das datas estabelecidas pelo banco financiador, Caixa
Econômica, essa usuária queria, como ela mesma dizia ―segurar sua
vaga‖. Pois, não mais sendo possível ser a contratante, teria que
apresentar com urgência alguém (e de confiança) para ser o seu
procurador. E, como não conseguiu. Ela ficou de fora do programa. O
último contato telefônico com a citada, com voz de choro, ela disse: ―eu
não tenho ninguém de confiança para passar a minha casa. Não
entendo, porque mesmo apresentando outra pessoa. sou eu mesma
quem vou pagar.‖
E ela tinha razão. O que ela tentou explicar é que no nome do
procurador seria emitida toda documentação, inclusive o contrato do
imóvel. O procurador seria o dono de direito. Todavia, não o dono de
fato, pois o pagamento advinha da aposentadoria daquela senhora. Ela
era o pillar econômico de seu lar.
Convém lembrar aqui das palavras de Yazbek (2012), quando questiona
o contexto, preocupante e paradoxal, em que estão inseridas as políticas públicas, ao
ressaltar que:
30
Pois se de um lado contam com as garantias constitucionais que
pressionam o Estado para o reconhecimento de direitos, por outro se
inserem nesse contexto de ajuste às configurações da ordem
capitalista internacional, com seu caráter regressivo e conservador,
que ameaça o direito e a cidadania (...). (P.316).
Nesta caminhada, entretanto, os percalços não foram capazes de fazer
com que se parasse. A pouca literatura relacionada à temática foi, destarte,
considerada o desafio inicial. Então, continuando com o desejo de estudar as relações
intergeracionais, nas classes subalternas, a segunda opção, para se realizar esta
pesquisa foi o Residencial Vitória13, conjunto habitacional localizado na cidade de
Maracanaú-CE, onde se experimentou a oportunidade de trabalhar como assistente
social.
Nas impressões decorrentes desses atendimentos (e de tantos outros)
foram também elementos que motivaram a seguir neste estudo, que compreende os
temas velhice, família e relações intergeracionais.
Igualmente, os estudos aos longos dos anos como discente do nível
superior despertaram a sensibilidade em formular algumas indagações que permeiam
o universo desta investigação, sobre as quais se investiu tempo e empenho na
tentativa de respondê-las, e que para tal foram necessárias idas e vindas ao campo,
haja vista que os significados e respostas não se revelam de imediato.
Cabe aqui mencionar que estes foram momentos valiosos, os quais
compreendem trocas acadêmicas e não acadêmicas; períodos de desaprender as
respostas prontas, de modo a não impedir o avanço do conhecimento, desfazendo-as,
no campo, pela leitura do cotidiano, como alerta o poeta Fernando Pessoa14, ao
mencionar que ―o essencial é saber ver‖. Foram ocasiões ímpares de expor idéias e
também de recebê-las, tendo a sensibilidade de perceber que o conhecimento não se
esgota.
Assim sendo, ressalta-se que a escolha da temática em estudo é fruto
de um conjunto de fatores, dos quais podem ser destacados: o interesse pelo tema, a
relevância, bem como a viabilidade de ser investigada; a viabilidade, no tocante a
recursos de estudo, e o acesso ao que está sendo pesquisado – tudo isto encerra
13
14
Mais detalhadamente caracterizado no Item.2.1.2, desta pesquisa, denominado ―O Projeto Salgadinho‖.
Como Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa).
31
grande importância. Gondim e Lima (2002), todavia, chamam a atenção para o
seguinte aspecto: o fator primordial deve ser o interesse do aluno sobre o assunto.
Convém lembrar que, no âmbito da pesquisa, as temáticas não se
limitam, apenas, ao mundo acadêmico, mas tomam dimensões mais amplas, ou seja,
de vida, de política e também cultural, com necessidade de retorno à sociedade.
Portanto, temas que impactam e inquietam a sociedade devem fazer parte,
constantemente, da contingência da Academia.
Qual a relação entre velhas avós e seus netos, na complexidade do
vocábulo cuidado? Qual a percepção da velhice para essas avós? O que levou essas
avós a serem cuidadoras de seus netos? Qual a percepção de cuidador para essas
avós ?
Com efeito, o trabalho ora relatado partiu do objetivo central de ampliar
o debate sobre as relações intergeracionais, mediante o recorte das velhas avós que
cuidam de netos, compreendendo as características que estas assumem na
reorganização do contexto familiar, na contemporaneidade.
Assim sendo, foram delineados os seguintes objetivos específicos, a
saber:

Explorar o significado de velhice, presente no pensamento das avós
cuidadoras de netos, ante a realidade cotidiana enfrentada por este segmento
populacional.

Identificar quais fatores contribuem, ante a atual conjuntura, para que essas
avós passem a cuidar de seus netos, provendo, até mesmo, o sustento diário
dos citados.

Desvendar o conceito de cuidador (legal ou informal) que permeia a realidade
das avós que tomam para si a responsabilidade para com seus netos.
Na busca de encontrar os nexos estabelecidos nestes objetivos, partiu-se
dos pressupostos adiante expressos.
32

Nos dias atuais, a instituição familiar passa por constantes transformações em
sua estrutura, em decorrência das expressões da questão social.
A
reorganização familiar alcança também a população envelhecida, aqui
representada pelos avós, que passam a assumir novas funções para com seus
netos. Estes ―novos avós‖ vêm transformando a dinâmica, ao longo do tempo
no enfrentamento de problemas relacionados com o ciclo da pobreza. Tais
configurações derivam muito mais da falta de opção do que mesmo de decisão
dessas ―personagens‖ reais num cenário cotidiano de famílias monoparentais
na relação entre avós e netos.

A velhice compõe uma das etapas inerentes à condição de todo ser vivo,
independentemente de raça, etnia e/ou classe social. Apresentada como um
processo que modifica a relação do indivíduo com o tempo, a velhice, embora
seja individual (ou seja, cada um vivencia seu próprio processo de
envelhecimento), compreende um processo biológico, social e psicológico.
Para os sujeitos desta pesquisa, em sua maioria, a velhice é vista mais como
doença, incapacidade, desprezo, cansaço e encargo, dentre outras carregadas
de negatividade. Para muitos, envelhecer e ficar velho torna-se um momento
trágico da existência humana.

As transformações ocorridas, ao longo do tempo, na estrutura familiar, o
declínio do modelo nuclear burguês e os novos arranjos familiares atribuem a
esses avós responsabilidades mais complexas. São avós que cuidam de netos
em virtude de filhos que vão trabalhar e não têm com quem deixar as crianças
e/ou adolescentes, mas, também, pessoas que, em sua maioria, se tornaram
pais ainda na adolescência; que já faleceram; que são usuárias de drogas, e,
portanto, não têm condições de exercer seus papéis como elementos
cuidadores do processo de socialização de suas proles.

Para as avós que cuidam de netos, sujeitos desta pesquisa, a palavra cuidado
ganha amplitude, gradativamente, na expressão cotidiana desta relação, e
troca intergeracional, haja vista que a contribuição destes avós se estabelece
desde os cuidados básicos e diários (banhar, alimentar, dentre outros...) a
orientar para a vida, educar e até mesmo em ser o representante legal,
mediante solicitação de guarda judicial. Assim, o ato de cuidar, educar e/ou ser
33
responsável, faz destas avós um tipo de ―pais adotivos‖ dos netos, também, no
campo das discussões teóricas.
Algumas estratégias metodológicas foram desenhadas, a fim de
contemplar os objetivos desta pesquisa, além de possibilitar melhor contato com a
realidade estudada. A seguir, compartilhar-se-á com o leitor o caminho metodológico
percorrido.
2.1.1 Breve apresentação do município de Maracanaú
Maracanaú faz parte da Região Metropolitana de Fortaleza e está
localizado à 25 km da Capital. Limita-se ao norte com Fortaleza e Caucaia, ao sul
Pacatuba, o leste Pacatuba e o oeste Maranguape. Seu acesso se dá pela CE 60 e
CE 065.
A dimensão territorial do Município é de 105km², apresentando fácil
acesso para a Capital por meio das rotas rodoviárias e recentes instalações do
Metrofor. A população de Maracanaú, de acordo com dados do IBGE/CENSO 2010, é
de 209.057 habitantes, com densidade demográfica de 1.877,75hab/km².
FIGURA 01: Localização de Maracanaú
na Região Metropolitana de Fortaleza
Fonte: Diagnóstico Social, 2011
34
O desenvolvimento de Maracanaú foi bastante gradativo, no entanto, na
última década o Município se destacou no contexto estadual, nas áreas da gestão,
assistência social e habitação. Já ocupa a segunda colocação no Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH), primeira no Índice de Desenvolvimento Infantil (IDI) e
a terceira em Desenvolvimento Municipal (IDM) no âmbito do Ceará.
O topônimo Maracanaú é de origem indígena, tupi-guarani, e possui como
significado: “lagoa onde os maracanãs15 bebem”, referindo-se à lagoa do mesmo
nome, em cujas mediações teve início o povoamento na região, inicialmente, pela
ocupação espontânea, às margens de lagoas e rios, como a lagoa de Maracanaú, o
rio Maranguapinho e a lagoa de Jaçanaú. Neste território, o primeiro contato dos
colonizadores foi com indígenas de Jaçanaú, Mucunã e Cágado, aldeamentos que
deram origem a nomes de bairros nos dias atuais.
FIGURA 02: Ave conhecida como Maracanã.
Fonte: WWW.google.com/imagens
Sua denominação original era Vila do Santo Antônio do Pitaguary e
depois, em 1890, passou a chamar-se Maracanaú, com sua emancipação definitiva
de Maranguape, especificamente, em 5 de julho de 1983, pela Lei Estadual no.
10.811.
15 Ave da família dos psitacídeos, ou seja, aves trepadoras que compreende as araras (aves abundantes
no local), periquitos, dentre outros.
35
Nos anos 1970 Maracanaú passou por uma grande transformação, quando
foi escolhido para sediar o Distrito Industrial de Fortaleza, o qual conta, atualmente,
com cerca de 135 indústrias, numa área de 1.100 hectares.
Conforme o diagnóstico municipal (2005), a cidade de Maracanaú é
caracterizada por uma sólida explosão demográfica, que teve início na década de
1980, época que se refere à implantação dos distritos industriais e dos primeiros
conjuntos habitacionais, os quais alteraram consideravelmente a paisagem urbana e
os modos de vida de sua população.
O surgimento do polo industrial colaborou para a construção de conjuntos
habitacionais para os trabalhadores das futuras fábricas, haja vista a Capital estar
passando por um ―inchaço‖, em decorrência do processo imigratório, de famílias que
fugiam da seca e vinham em busca de melhores condições de vida em Fortaleza. Vale
ressaltar que Maracanaú também já foi conhecido como a maior cidade-dormitório16 do
Ceará.
No que se refere à economia17, o Município traz como destaque o setor
industrial, com ênfase para as seguintes atividades: preparação de britamento e outros
trabalhos em pedras (não associados à extração); produtos de laticínio (exceto leite);
artefatos têxteis de tecidos (exceto vestuário); artigos para cama e mesa e colchoaria;
biscoitos e bolachas; calçados de couro, plástico, tecidos, fibras, madeira ou borracha;
fungicidas; herbicidas; defensivos agrícolas; massas alimentícias; material elétrico
para veículos (exceto baterias) e medicamentos. A arrecadação de Maracanaú é a
segunda maior do Estado. Sobre o clima desta cidade, este é identificado como sendo
tropical.
Quanto à hidrografia tem-se como principais fontes: rio Maranguape;
riachos: Santo Antônio, Timbó (Lameirão), Salgadinho, Taboqueira e Urucutuba;
lagoas: Marancanaú, Jaçunã, Jupaba e do Mingau. A maioria desses recursos
hídricos, contudo, apresenta baixa qualidade em suas águas, em virtude de
lançamentos de dejetos e lixo (doméstico e industrial) no leito dos riachos, de
desmatamento de suas margens, bem como retirada de areia e argila de seus
entornos para atender às necessidades comerciais das olarias e da construção civil.
16
17
Tendo em vista que, a maioria, de seus habitantes/moradores trabalhava em municípios vizinhos.
O Município possui destaque quanto à economia, conhecido por seu polo comercial/industrial,
enfatizando sua capacidade de geração de trabalho e renda.
36
Ante o aumento, nos últimos anos, dos níveis pluviométricos do Município,
enfatizando os meses de janeiro a abril, as recorrências chuvosas afetam diretamente
moradores das áreas de risco do Município, ou seja, que residem nas proximidades de
rios e lagoas.
Seu crescimento populacional não foi acompanhado por investimentos
em infraestrutura, o que pode ser observado, por exemplo, na falta de acesso aos
esgotamento sanitários que, atualmente, atendem a cerca de 55 % dos habitantes.
2.1.2 O Projeto Salgadinho
FIGURA 03: Residencial Vitória
Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação, 2009.
De acordo com o Diagnóstico Social de Maracanaú, elaborado por equipe
técnica
especializada,
no
ano
de
2005,
como
exigência
Operacionalização Básica do SUAS/2005, para credenciamento e
da
Norma
de
habilitação do
Município para o nível a gestão plena da assistência, Maracanáu dividiu-se,
internamente, em dois distritos: Distrito-Sede, que abrange a maioria do seu território,
e o Distrito de Pajuçara. Internamente, divide-se em 06 Áreas de Desenvolvimento
Local (ADL's), espaços territoriais com características geográficas e demográficas.
37
FIGURA 04: Área de Desenvolvimento Local de Maracanaú
Fonte: Diagnóstico Municipal de Maracanaú, 2005.
Pajuçara integra a Área de Desenvolvimento Local - ADL III,, divisão
administrativa e política utilizada pela Prefeitura. Nessa ADL, além do bairro em
alusão, somam-se ainda os seguintes: Bom Jardim, Menino Jesus de Praga, Parque
Progresso, Jardim Paraíso, Alto da Bonanza, Boa Esperança e Novo Mondubim I,
É especificamente na área da Pajuçara que está situado o riacho
Salgadinho, local de origem das famílias pesquisadas neste estudo. A localidade da
Pajuçara é uma região de alta densidade populacional, A população que reside em
seu entorno é extensa e corresponde a, aproximadamente, 26.172 habitantes, sendo
habitada por 30,6 % da população do Município em tela. Vale destacar que a maioria
de seus habitantes sobrevive em estado de pobreza e exposta à vulnerabilidade
social.
Neste espaço geográfico, concentram-se famílias com estilo de vida
simples, ou seja: que vivem com renda mensal baixa (de 01 a 02 salários-mínimos),
com predomínio de emprego do tipo informal, em virtude da baixa qualificação
38
profissional18, alta taxa de analfabetismo e desemprego, com moradias precárias e
risco iminente de inundações. As famílias moradoras às margens do riacho
Salgadinho, que corta o bairro anteriormente mencionado, encontra-se em sua maioria
neste perfil.
O projeto que recebeu o mesmo nome desse riacho teve como principal
objetivo, através de atividades desenvolvidas pela equipe Técnica Social19, garantir
condições adequadas de moradia, segurança e lazer da comunidade local, além da
preservação ambiental de importantes recursos naturais da área.
No tocante ao investimento, o Projeto Salgadinho custou um valor total de
6.153.507,84 (seis milhões, cento e cinqüenta e três mil, quinhentos e sete reais e
oitenta e sete centavos) e a fonte do recurso é proveniente do Programa Ministério das
Cidades/ Urbanização, Regularização e Integração dos Assentamentos Precários.
O
Projeto
20
reassentamento
Salgadinho
compreende
intervenções
dos
tipos
e urbanização, como se pode observar na ilustração a seguir:
FIGURA 05: Distribuição das Intervenções
Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação /Google Maps, 2011.
No que se concerne ao número de famílias beneficiadas com estas
intervenções, tem-se o total de 350, sendo divididas da seguinte forma: 80 para
18
Costureira, manicure, do lar, profissionais da construção civil e autônomos (vendedores).
19
Composta por assistentes sociais e estagiários de serviço social.
20
Transferências de famílias moradoras em áreas de risco para unidades habitacionais.
39
reassentamento e 270 para serem beneficiadas com regularização fundiária e
melhorias habitacionais.
Acrescenta-se ainda que os projetos referentes à
regularização fundiária e as melhorias habitacionais encontram-se em andamento, não
estando totalmente concluídas.
Vale destacar que, mesmo com a concentração de esforços do Poder
Público Municipal, inúmeros são os problemas enfrentados por esta população, no que
se refere às dificuldades inerentes às grandes cidades, podendo-se mencionar como
exemplo: violência, favelização, desemprego, insuficiência de saneamento básico,
bem como outros serviços públicos básicos.
De modo geral, a procura pela moradia precária, por uma parte da
população maracanauense e em áreas consideradas como de risco, decorre de
problemas estruturais, tais como o desordenamento do crescimento populacional
urbano, o desemprego e até mesmo a desmontagem no sistema de garantias e
proteções sociais.
O empreendimento construído para acomodar as famílias que moravam às
margens do riacho Salgadinho foi batizado, pelos próprios beneficiários, de
Residencial Vitória, e foi entregue à população no ano de 2010. Foi edificado em
terreno particular desapropriado pela Prefeitura Municipal de Maracanaú. Composto
por unidade habitacional do tipo verticalizada21, contém 20 blocos residenciais
multifamiliares, áreas de lazer com play-ground e salão comunitário.
FIGURA 06: Placa de identificação do Residencial
Fonte: Registro próprio/ trabalho de campo, 30.07.2012.
21
Apartamento
40
As edificações possuem pavimentos térreos e superiores, também com
unidades adaptadas para portadores de deficiências. Cada unidade habitacional
apresenta 44 m², distribuídos em dois quartos, sala, banheiro, cozinha e área de
serviço.
FIGURA 07: Residencial Vitória com maquete
Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação, 2010.
A distribuição das unidades habitacionais foi orientada pela metodologia de
sorteio, contemplando moradores de áreas de riscos do município, bem como famílias
remanejadas por desapropriações e indenizações por melhorias.
Nesta localização, geográfica e espacial, foram pesquisados os sujeitos
deste estudo, os velhos/avós, que cuidam de seus netos, bem como o perfil dos
pesquisados, o delineamento de seus modos de vida cotidiana, reorganizações
familiares,
relações
intergeracionais
e
estratégias
diárias
de
sobrevivência
(constituídas historicamente neste contexto social).
2.1.3 Perfil dos atores da pesquisa
No Município de Maracanaú-CE, Região Metropolitana de Fortaleza,
percebe-se a existência de conflitos e dificuldades presentes no cotidiano dos sujeitos
41
pobres (faixas etárias de jovens a velhos), os quais lutam por uma habitação própria e
digna. Para grande parcela da população brasileira, a questão da moradia ainda se
configura como um problema de solução difícil.
Faz-se necessário esclarecer que o grupo familiar (moradores do
Residencial Vitória) aqui apresentado, em sua maioria, compreende realidades
críticas, haja vista que foram trazidos de uma área que os expunha a vários tipos de
riscos (físicos e sociais), sendo apontados como principais os desabamentos, as
inundações causadas pelas chuvas, bem como a precariedade das edificações, em
razão do material disponibilizado para a construção dos imóveis (madeira, plástico).
Por meio de dados cadastrais, do próprio Município, comprova-se que a
maioria destas famílias sobrevive de maneira simples, ou seja, suas condições
econômicas não lhes proporcionam opções de lazer e alimentação adequadas. São
pessoas que sobrevivem com dificuldades, sob uma realidade crítica e preocupante.
Vale frisar que a questão habitacional atinge moradores oriundos das mais
complexas situações, tais como: aluguel, coabitação, área de risco22, imóveis cedidos
(ou emprestados), aluguel social e terrenos em áreas verdes, sendo este último mais
expressivo. Acrescenta-se ainda, ao fator localização do imóvel, a situação de imóveis
com as condições inapropriadas para moradia, ou seja, carentes de infraestrutura,
dessa forma, não possuindo alguns dos serviços básicos, como abastecimento de
água, coleta de lixo e energia elétrica.
FIGURA 08: Mapa das áreas de risco do município
Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação /Google Maps, 2011.
22
Terrenos inadequados para fins de moradia, geralmente, localizados próximos aos rios, lagoas,
encostas ou em morros, dentre outros. Conforme Diagnóstico Municipal (2005), as áreas de risco do
Município de Maracanaú estão localizadas nas margens do rio Timbó e rio Maranguapinho, dos riachos
Atalaia e Retiro, e dos sangradouros dos açudes Olho D‘água dos Pratas e Furna da Onça. No que
concerne às localidades mais afetadas, destacam-se: Pajuçara, Jardim Bandeirante, Siqueira, Alto Alegre
(I e II), Alto da Mangueira e Olho d‘Agua.
42
Conforme dados da Coordenadoria de Habitação de Maracanaú, órgão
municipal responsável pela elaboração, execução e acompanhamento das ações
habitacionais de Maracanaú-CE, foi possível conhecer o perfil dos moradores
mediante informações repassadas, por eles mesmos, durante atendimento social e
aplicação de cadastro socioeconômico.
2.1.4 Retrato social dos moradores
De acordo com o Projeto Técnico Social do Salgadinho, o público
beneficiado com o Projeto Salgadinho compreendeu um total de 302 pessoas,
distribuídas nas seguintes faixas etárias:
QUADRO 01: Faixa Etária Geral
FAIXA ETÁRIA GERAL
ESPECIFICAÇÃO
QUANTIDADE
%
De 0 à 12 anos de idade
92
30,46
De 13 à 18 anos de idade
38
12,58
De 19 à 59 anos de idade
165
54,64
Acima de 59 anos de idade
07
2,32
TOTAL
302
100%
Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação/2011
Ao analisar este quadro, nota-se que há um número expressivo de
crianças, representadas, com índice percentual de 30,46%. Relevante é considerar
que este público deriva de um contexto social de limitações, e, por que não dizer, de
exclusões, as quais perpassam, muitas vezes, as diversas fases da vida: infância,
adolescência, vida adulta e velhice.
Quanto à titularidade do cadastro, por sexo, no quadro 02 se pode
observar a situação.
43
QUADRO 02: Titularidade do Cadastro
TITULARIDADE DO CADASTRO
ESPECIFICAÇÃO
QUANTIDADE
%
Homens
17
21,25
Mulheres
63
78,75
TOTAL
80
100%
Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação/2011
Conforme os dados revelados, observa-se que 78,75 % dos cadastros
possuem titularidades femininas. Estas mulheres elaboram, ―dia após dia‖,
possibilidades de trilhar novos desafios. Este indicador aponta para mudanças
culturais e de papéis no âmbito familiar. Vale frisar que, na comunidade sob estudo,
60,31% das mulheres cadastradas são chefes de família. Segundo dados estatísticos
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, a chefia feminina no espaço
familiar aumentou consideravelmente nos últimos dez anos.
No que se refere à escolaridade da população cadastrada, identificou-se o
que retrata o Quadro 03.
QUADRO 03: Escolaridade da População Cadastrada
ESCOLARIDADE DA POPULAÇÃO CADASTRADA
ESPECIFICAÇÃO
QUANTIDADE
%
Ensino superior incompleto
01
0,32
Ensino Médio Completo
29
9,45
Ensino Médio Incompleto
37
12,05
Ensino Fundamental Completo
29
9,45
Ensino Fundamental Incompleto
154
50,16
Educação Infantil
15
4,89
Alfabetizado
20
6,51
Analfabeto
17
5,54
TOTAL
302
100%
Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação/2011
44
No que se concerne à escolaridade da população cadastrada, verifica-se
que um número significativo de pessoas possui, apenas, o ensino fundamental
incompleto. Importa enfatizar que o baixo índice educacional reflete diretamente no
mercado de trabalho, podendo ser observado no decorrer desta pesquisa quando
mencionadas as profissões que demandam pouca (ou nenhuma) qualificação
profissional, e, consequentemente, nos salários pagos por estas.
Quanto à renda familiar, vale destacar que foi considerando todo valor
obtido pelos membros familiares, seja ela oriunda do mercado de trabalho (formal ou
informal), aposentadoria e/ou pensão, bem como de programas assistenciais. Convém
informar que a renda familiar média da maioria desta população é de 01 e ½ (hum)
salário-mínimo e meio, todavia, não se pode desconsiderar a existência de famílias
que sobrevivem com valor inferior a este. Nesta situação, foram constatadas 20
famílias.
Sobre às mulheres, chefes de família, as quais declararam que não
trabalham, sendo, portanto, donas de casas, vale frisar que as rendas destas advêm
do benefício do Bolsa-Família23, da renda do cônjuge ou de suas aposentadorias e/ou
pensões.
Ao observar a ficha cadastral dessas famílias, conforme já mencionado, no
que se refere ao número de componentes familiares, foi possível identificar que, na
conjuntura atual, o núcleo familiar está em redução constante, por diversos fatores
relatados no decorrer dos atendimentos, os quais possuem registros em campos
específicos do cadastro sócio-econômico.
Situações como separações conjugais, mulheres chefes de família, mães
solteiras, casais de velhos, pessoas viúvas e até mesmo avós que cuidam de netos,
foram expressas como sendo alguns casos que justificam a diminuição do número de
seus membros. Assim, a realidade dos dias atuais é caracterizada na luta pela
sobrevivência, pois estão inseridos em tempos difíceis, expressados também nas
relações precarizadas de trabalho, as quais também atingem a instituição familiar.
23
Refere-se a um programa de transferência direta de renda que beneficia famílias em situação de
pobreza e de extrema pobreza em todo país, e integra o Plano Brasil Sem Miséria (BSM). Fonte:
www.mds.gov.br/bolsafamilia .
45
Quanto aos dados levantados sobre as situações e/ou atividades
profissionais mais exercidas pelos beneficiários, os resultados estão contidos no
quadro seguir:
QUADRO 04: Atividades e Situações Profissionais
ATIVIDADES E SITUAÇÕES PROFISSIONAIS
ESPECIFICAÇÃO
QUANTIDADE
%
Donas de casa
30
37,5
Aposentado
10
12,5
Doméstica
06
7,5
Operário
10
12,5
Reciclagem
01
1,25
Serviços Gerais
05
6,25
Comerciários
07
8,75
Construção Civil
05
6,25
Artesã
01
1,25
Costureira
04
5
Agente Comunitário de Saúde
01
1,25
TOTAL
80
100 %
Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação/2011
Em adição, em decorrência da precarização das relações de trabalho,
muitas vezes, a pessoa que possui profissão definida submete-se a exercer trabalho
do tipo ―informal24‖, haja vista a necessidade maior de garantia de sobrevivência,
conforme constatado em atendimentos sociais, realizados pelo Setor de Serviço
Social da citada Coordenadoria.
Observa-se, em síntese, que a caracterização da população beneficiária
corresponde a pessoas com estilo de vida simples que enfrentam dificuldades
econômicas, as quais influenciam diretamente no acesso a direitos básicos, como
alimentação e saúde. De modo mais geral, são famílias carentes da intervenção do
Poder Público.
24
Também chamado de bico, este corresponde a um trabalho eventual e sem vínculo empregatício.
46
Assim sendo, este público se torna frequente no atendimento diário da
rede socioassistencial, clamando por intervenção de modo compactuado com ações
profissionais de áreas diversas do conhecimento, a fim de garantir a complementação
de saberes e o acesso aos serviços necessários. Nesse sentido, a atuação do Serviço
Social, no contexto de ação interdisciplinar, deve ser destacada como âncora, haja
vista ser este o profissional capacitado para atuar na questão social e suas
multiformes expressões25, num cotidiano cheio de imediatismo e estratégias, sem
desconsiderá-lo como um rico campo de pesquisa.
2.2 Trilha metodológica percorrida
A
metodologia
é
parte
indispensável
do
trabalho
acadêmico,
consequentemente, científico. Nesta, foi explicitada a procedência da pesquisa, ou
seja, os passos metodológicos trilhados no decorrer do estudo. É válido acrescentar
que a metodologia consiste numa fase complexa da pesquisa, necessitando, portanto,
de maior cuidado por parte do pesquisador. Sábias são as palavras de Gondim (1999),
ao frisar que a metodologia está presente desde o início do projeto, na medida em que
é muito difícil separar o que fazer do modo como fazer.
Convém mencionar que as idéias preconcebidas não devem acompanhar
o estudante durante a pesquisa de campo, pois ele (o pesquisador) tem a obrigação
de possuir conhecimento de teorias científicas pertinentes ao problema que será
estudado, não deixando, deste modo, ser ―iluminado pelos fatos‖. Não se pode
desconsiderar, todavia, o fato de que a pesquisa consiste num constante desafio, em
que, neste, o pesquisador se torna um eterno aprendiz. Assim sendo, pesquisa é
sempre uma aventura nova sobre a qual incide a necessidade de reflexão.
No que se concerne ao material científico, faz-se necessário destacar a
idéia de que este fornecerá verdades relativas, representadas pelas hipóteses, as
quais poderão se modificar (ou não) a cada confronto com a realidade. Em outras
palavras, não se pode garantir que as hipóteses se sustenham eternamente.
25
Seja no atendimento as demandas conhecidas ou na pesquisa de respostas mais complexas e
qualificadas para elas.
47
Com efeito, Fonseca (2002) esclarece que ―é ilusório ditar quaisquer
‗regras‘ sobre valores e comportamentos em famílias de grupos populares‖. (P.22). É
válido lembrar que nestes grupos estão inseridos os agentes desta pesquisa. A autora
há pouco mencionada dá suporte à afirmação de Cardoso (2004), quando este expõe
sobre o fenômeno estudado, e destaca que ―é a sistematização que a ciência propõe
que permite avançar para além destes fragmentos na busca de uma explicação mais
global, porém, sempre provisória.‖ (P.101).
Esta busca científica, ora levada a efeito, e pautada na concepção
metodológica de caráter qualitativo, em razão de possibilitar a análise da relação
dinâmica que se estabelece entre os sujeitos sociais, bem como da vinculação destes
com o mundo real, conforme se observa nas palavras de Bourdieu (1989): ―o objeto
em questão não está isolado de um conjunto de relações que retira o essencial das
sua propriedades.‖ (P.27). Vale destacar a idéia de que a pesquisa avançou também
em sua fase exploratória, a qual antecede e sucede a construção do projeto, conforme
elucida Minayo (1995).
Consoante leciona essa autora, pode-se perceber que, como resultado
concreto, a pesquisa qualitativa proporciona uma análise mais profunda das relações,
das pessoas e dos fenômenos sociais, apreendendo os significados e valores dos
sujeitos entrevistados. Minayo (1995) pondera explicando a noção de que a pesquisa
qualitativa
[...] trabalha com o universo de significados, aspirações, crenças,
valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo
das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser
reduzidos à operacionalização de valores. (p. 22)
Baptista (1999), seguindo o raciocínio de Minayo (1995), destaca que o
objeto estudado não se caracteriza como inerte e neutro, estando, por conseguinte,
carregado de significados e relações que os sujeitos concretos instituem em suas
ações, ou seja, os fenômenos e a situação estão inter-relacionados, bem como
influenciados reciprocamente, de forma que se busca compreender estas interrelações numa dada conjuntura. Nos termos de Baptista (1999), nas pesquisas
qualitativas,
Deixam a verificação das regularidades para se dedicarem à análise
dos significados que os indivíduos dão as suas ações, no espaço que
48
constroem as suas vidas, e suas relações, ou seja, à compreensão
dos sentidos dos atos e das decisões dos atores sociais, assim como
dos vínculos das ações particulares com o contexto social mais
amplos em que estas de dão. (P. 35).
Gil (2002) também compartilha da análise de Minayo (1995), e
complementa, afirmando que, na fase exploratória, se enfatiza o estímulo ao livre
pensamento dos entrevistados sobre os temas, objetos e/ou conceitos levantados.
Ainda sobre pesquisa de caráter qualitativo, Goldenberg (2000) contribui,
esclarecendo que esta é formada com origem numa perspectiva compreensiva,
caracterizando-se num objeto de estudo aberto e amplo, em que a coleta de dados se
por métodos qualitativos, os quais não pressupõem quantificação. Logo, é importante
salientar que a preocupação que se tem não está na representatividade numérica,
contudo, numa investigação a fundo da compreensão de um grupo social, de uma
trajetória, de uma instituição, entre outros aspectos.
No tocante à capacidade do pesquisador em tratar com minorias e suas
realidades, Cardoso (2004) ensina que:
Concentra-se o interesse na relevância do tema estudado e na forma
pela qual o investigador se engaja no estudo. Um pesquisador capaz
de uma ‗boa‘ interação com as minorias ou grupos populares será
sempre um porta-voz de seus anseios e carências, logo, da sua
‗verdade‘. O critério para avaliar as pesquisas é principalmente sua
capacidade de fotografar a realidade vivida. Sua função é tornar
visível aquelas situações de vida que estão escondidas e que, só por
26
virem à luz, são elementos de denúncia do statu quo . (P. 95).
Torna-se relevante refletir, porém na idéia de que a análise qualitativa não
corresponde à substituição de métodos quantitativos, conforme esclarecem Cardoso
(2004) e Martinelli (1999). Quanto a esta falsa oposição, Cardoso (2004) explana
expressando o argumento de que:
Certamente esta oposição qualitativo/quantitativo não corresponde a
modos opostos e inconciliáveis de ver a realidade. São modos
diversos de resgatar a vida social e chegar a iluminar aspectos não
aparentes e não conscientes para os atores envolvidos. (Pp. 95-96).
26
Expressão em latim que significa: momento atual. Estado atual das coisas.
49
Na pesquisa qualitativa estão inseridas as abordagens biográficas, as
quais demonstram compromisso com a história, com vistas a rememorar, no próprio
instante em que fatos da vida cotidiana passam a ser revisitados pelos sujeitos. Tal
razão é ratificado também nas palavras de Durham (2004), quando lembra que a
popularidade das pesquisas antropológicas ocorre também pelo fato destas
concentrarem-se ―(...) em grande medida em temas de interesse geral imediato (...),
mas, muito do que é cotidiano e familiar em nossa sociedade urbana (...)‖. (P.17)
É válido acrescentar que, conforme Bezerra (2002), o cotidiano se refere
ao local onde são expressas as particularidades dos indivíduos, mediante ações e
pensamentos imediatos, cristalizados e naturalizados, os quais reproduzem também a
sociedade. Quanto à relação entre o cotidiano e o objeto de pesquisa, a mencionada
autora aponta que
Os objetos de pesquisa aparecem para o (a) pesquisador (a) como
expressões de problemáticas sociais, questões que se apresentam
como relevantes para serem estudadas. Ou seja, como
manifestações da realidade social, do cotidiano no qual o (a)
pesquisador (a) acha-se inserido. O cotidiano emerge, pois, como
cenário histórico, palco onde se desenrolam as praticas sociais, o
acontecimentos, os hábitos e comportamentos humanos que poderão
ser problematizados pro cientistas sociais, pesquisadores, a
depender de suas trajetórias individuais neste contexto. (P.11).
Entrando no debate, Campos (2004) acrescenta que ―dentro do quadro
referencial da metodologia qualitativa biográfica destacam-se: História Oral, Biografia,
Autobiografia e História de Vida.‖ (P.43). Neste aspecto, convém ressaltar que o este
trabalho abordará o método da História Oral, como instrumento de investigação,
contemplada num recorte da história de vida das avós entrevistadas, bem como a
experiência do dia a dia, de acordo com Queiroz (1998).
No tocante à valorização do papel dos sujeitos na conjuntura social, por via
de depoimentos e relatos pessoais, com ênfase para a história oral, Ferreira (1998)
ensina:
Na virada dos anos 70 e no decurso da década de 80 registraram-se
informações expressivas nos diferentes campos da pesquisa
histórica: incorporou-se o estudo de temas contemporâneos,
valorizou-se a análise qualitativa, resgatou-se a importância das
50
experiências individuais, ou seja, deslocou-se o interesse das
estruturas para as redes, dos sistemas de posições para as situações
vividas, das normas coletivas para as situações singulares. (P.17).
Ainda sobre história oral, Debert (2004) alerta para a noção de que ―a
história oral e a história de vida são sempre um monte de fragmentos desconexos (...).
Nossa tarefa enquanto analistas é entender esses relatos e depois apresentar um
quadro minimamente coerente (...)‖. (P.150).
Lang (1996) confirma o pensamento ora externado por Debert (2004), ao
mencionar que existem ―histórias de vida mais ou menos ricas, mais completas ou
mais fragmentadas.‖ (P.34). Lang (1996), todavia, considera não ser efetivamente
possível a obtenção de uma história de vida completa, em virtude da expressividade
numérica de facetas e fatos que envolvem uma vida. Neste aspecto, Bosi (2003)
também se manifesta acerca da memória e expressa que ―a memória é um cabedal
infinito do qual só registramos um fragmento‖. (P.39).
Colaborando, outra vez, neste estudo, Lang (1996) destaca que história
27
oral de vida se reporta ao:
[...] relato de um narrador sobre sua existência através do tempo. Os
acontecimentos vivenciados são relatados, experiências e valores
transmitidos, a partir dos fatos da vida pessoal. Através da narrativa
de uma história de vida, se delineiam as relações com os membros
de seu grupo, de sua profissão, de sua camada social, da sociedade
global, que cabe ao pesquisador desvendar. (P.34).
Na definição de Queiroz (1998), história oral é
[...] um termo amplo que recobre uma quantidade de relatos a
respeito de fatos não registrados por outro tipo de documentação; ou
cuja documentação se quer completar. Colhida por meio de
entrevistas de variada forma, ela registra a experiência de um só
indivíduo ou de diversos indivíduos de uma mesma coletividade.
Neste último caso, busca-se uma convergência de relatos sobre um
27
Queiroz (1998), alude ao período de reaparecimento da história oral: ―Diz-se reaparecimento porque, do
começo do século ao início dos anos 50, a ―história oral‖ fora utilizada por sociólogos como W.I. Thomas
(1863-1947) e F. Znaniecki (1882-1958) em sua pesquisa conjunta, datada de 1918-1920; ou como John
Dollard (1900) que pretendeu traçar-lhe as regras de aplicação; e também por antropólogos, netre os
quias Franz Boas 91858-1942), geográfo alemão convertido à antropologia e naturalizado em 1886, que
recolheu relatos e depoimentos de velhos caciques e pajés a fim de preservar do desaparecimento a
memória da vida tribal.
51
mesmo acontecimento ou sobre um período de tempo. A história oral
pode captar a experiência efetiva dos narradores, mas também
recolhe destes tradições e mitos, narrativas de ficção, crenças
existentes no grupo, assim como relatos que contadores de histórias,
poetas, cantadores inventam num momento dado. (P.7).
Na concepção de Lozano (2005) sobre história oral, ele se posiciona ao
mencionar a idéia de que:
Diria que é antes um espaço de contato e influência intedisciplinares;
sociais, (...) com ênfase nos fenômenos e eventos que permitam,
através da oralidade,oferecer interpretações qualitativas de processos
histórico-sociais. Para isso, conta com métodos e técnicas precisas,
em que a constituição de fontes e arquivos orais desempenham um
papel importante. Dessa forma a história oral, ao se interessar pela
oralidade, procura destacar e centrar sua análise na visão e versão
que dimanam do interior e do mais profundo da experiência dos
atores sociais. (P.16)
Faz-se necessário mencionar que o narrador é o próprio objeto de estudo,
haja vista que o relato prestado por ele (depoimento de vida, sua realidade vivida),
enfatizando a subjetividade dos eventos, permite ao pesquisador identificar as
relações sociais e as dinâmicas que se inserem no objeto de estudo, ou seja,
apreender as articulações entre a trajetória individual e social. Conforme Lang (1996),
―a versão do indivíduo tem, portanto, um conteúdo marcado pelo coletivo ao lado
certamente de aspectos decorrentes de peculiaridades individuais.‖ (P.45).
Na avaliação de Gaujelac (2005), o objetivo da história de vida
corresponde a ter acesso a uma realidade que ultrapassa o narrador. Relevante é
frisar que, embora a história oral compreenda o indivíduo na sua singularidade, por
seu intermédio é possível elaborar uma relação simultânea com os fatos sociais,
conforme elucidado por Barros e Silva (2002), e Durham (2004).
Quanto ao encanto que a narrativa oferece Grossi e Ferreira (2001)
acentuam:
O poder e a sedução remetem ao encantamento do outro que, no
registro do falante, tranqüiliza-se ao penetrar em sua escuta e
aprisioná-lo na teia de significados que a narrativa oferece. O
narrador, no momento de sua fala, exerce sobre o outro o poder de
seduzir (...). (Pp. 6-7).
52
Ainda sobre a ―arte de narrar‖, a autora Bosi (2003), em consonância com
Grossi e Ferreira (2001), pondera que:
A arte da narração não está confinada nos livros, seu veio épico é
oral. O narrador tira o que narra da própria experiência e a transforma
em experiência dos que o escutam. (p. 85)
É válido acrescentar, ainda do ponto de vista metodológico, que este
trabalho possui também caráter exploratório, visando a proporcionar maior
aproximação acadêmica, identificação com o problema, além de permitir aproximação
dos agentes e fatos sociais envolvidos na pesquisa, segundo Gil (1999).
Ainda acerca da história oral, convém acrescentar a noção de que esta
corresponde essencialmente a uma história de vida28. Como parte da metodologia de
pesquisa, a história oral assenta em realizar entrevistas induzidas, instigadas e
registradas (por meio de gravações) com pessoas que podem testemunhar a respeito
de acontecimentos, conjunturas, instituições, modos de vida ou outros aspectos da
contemporaneidade. Debert (2004), em conformidade com Queiroz (1998), assinala
que a utilização da história oral possibilita ―o estabelecimento de uma conversação ou
um diálogo entre informante e analista.‖ (P.142).
Como leciona Haguette (2001), a história oral, a história de vida e a
entrevista são técnicas que não podem ser vistas de maneiras individuais, haja vista
que o produto da relação entre estas formam um ―conjunto de depoimentos que
informam o todo de um determinado projeto de pesquisa‖. (P.94).
De acordo com Queiroz (1998), a entrevista, nas Ciências Sociais, é a
maneira mais antiga e difundida de coleta de dados orais. Quanto à captação dos
dados, argumenta que esta provém da habilidade do pesquisador em orientar o
informante para ponderar sobre o tema pretendido, haja vista ser este último quem:
[...] conhece o acontecimento, suas circunstâncias, as condições
atuais ou históricas, ou por tê-lo vivido, ou por deter a respeito
28
Ao abordar os métodos qualitativos de análise, dentre os quais a história de vida, Debert (2004)
menciona que têm elevado cada vez mais seu prestígio perante os cientistas sociais.
53
informações preciosas, as quais ora fornecem dados originais, ora
complementam dados já obtidos de outras fontes. Na verdade, a
entrevista está presente em todas as formas de coleta dos relatos
orais, pois estes implicam sempre num colóquio entre pesquisador e
narrador. (P.8).
Na perspectiva de Oliveira (1999), a oralidade não é uma descrição seca,
fria e distante. Esta é, portanto, rica em expressões, emoções, palavras, e, por que
não dizer em silêncio, o qual não deve ser ignorado. Tal atitude é abordada pelo autor
há instantes mencionado que faz um importante alerta para o pesquisador:
Silêncio e infelicidade, assim, andando de mãos dadas, no coração e
no semblante dos que vivem a opressão, podem sugerir ao cientista
distanciado ou ao pesquisador mais afoito de que ali existe
passividade e conformismo. (OLIVEIRA, 1999: p. 53).
No que diz respeito à relação existente entre ciência/pesquisa e cotidiano,
Debert (2004) chama a atenção para ―a importância de darmos condições aos
informantes de nos levar a ver outras dimensões e a pensar de maneira mais criativa a
problemática que, através deles, nos propomos a analisar.‖ (P.142).
Assim sendo, pode-se perceber que, ao relatar a sua vida para o
pesquisador, a pessoa passa a ser contextualizada na conjuntura social, sendo,
portanto, estabelecida uma conexão entre o individual e o coletivo. Deste modo, esta
análise possibilita ao pesquisador uma perspectiva de apreciação de um fenômeno
mais global. Para Sader e Paoli (2004), ―os pesquisadores operam um movimento que
os leva da aparência à essência, que constitui a realidade encoberta dos fenômenos‖.
(P.64)
Complementando a exposição ora exteriorizada por Sader e Paoli (2004),
Debert (2004) acrescenta ainda que, mediante a utilização da história de vida, esperase ―é que a partir dela, da experiência concreta de uma vivência específica, possamos
reformular nossos pressupostos e nossas hipóteses sobre um determinado assunto.‖
(P.142).
Vale frisar que, embora o objetivo do pesquisador seja trabalhar as
narrativas que ganham voz na fala de seus sujeitos, por intermédio da história oral,
54
pretende-se ir além da teia instigante dessa forma discursiva. Destarte, neste estudo,
será privilegiada também a pesquisa do tipo bibliográfica, documental e de campo.
Com efeito, Bourdieu (1989) orienta no sentido de que se deve romper
com o monoteísmo metodológico. Faz, então, um importante alerta, ao mencionar que
―(...) tentar em cada caso, mobilizar todas as técnicas que, dadas as condições
práticas de recolha dos dados, são praticamente utilizáveis‖. (P.26).
Ainda seguindo o pensamento desse sociólogo francês, em harmonia com
Oliveira (1999), destaca-se que a pesquisa é bastante séria e difícil, logo, o
pesquisador deve ter cautela para não confundir a rigidez (oposto da inteligência e da
intervenção), com o rigor, ficando privado de usar este ou aquele recurso entre a
diversidade que podem ser ofertados pelo ―conjunto das tradições intelectuais da
disciplina e das disciplinas vizinhas.‖ (P.26).
Quanto aos instrumentos utilizados no decorrer da investigação, destacamse os seguintes: entrevista29 (do tipo semiestruturada) e análise de depoimento30, bem
como história oral (anteriormente citada), sem desconsiderar as conversas informais
com os sujeitos.
Convém partilhar a idéia de que o exercício de observação foi expediente
que se acompanhou a cada encontro (totalizando em nove), conquanto, tenha se
intensificado no momento da conversação. Assim, à medida que o gravador registrava
a fala dos sujeitos da presente pesquisa, não desprezava o desígnio demarcado de
―decifrar a linguagem não verbal e o ambiente daquela situação‖. (OLIVEIRA, 1999:
p.61). É válido lembrar que as entrevistas não foram o único instrumento da presente
pesquisa, haja vista ter sido associadas à observação. A combinação destas práticas
foi facilitada pela utilização (permitida) do gravador.
Do ponto de vista de Cardoso (2004), observar corresponde:
Contar, descrever e situar os fatos únicos e os cotidianos, construindo
cadeias de significação. Este modo de observar supõe, como vimos,
29
Vale frisar que é pela da entrevista que o pesquisador apreende os informes contidos na fala dos atores
sociais. As entrevistas foram realizadas durante os meses de agosto e setembro de 2012.
30
A pesquisa se concentra na análise de depoimentos, a qual conforme Durham (2004), tem na ―entrevista
o material empírico privilegiado‖. (P.26).
55
um investimento do observador na análise de seu próprio modo de
olhar. (P. 103).
Informa-se não ter havido qualquer oposição ao uso deste aparelho, por
parte dos narradores. Confessa-se que, em alguns contatos, se optou por gravar e
registrar no caderno tudo o que diziam. Tais anotações foram de grande valor, haja
vista que a fala lenta e baixa das avós, muitas vezes, configurou maior dificuldade
para transcrever as conversas. Quanto à escolha das depoentes, se falará mais
adiante31. Enfim, nada era impossível, haja vista que o interesse e a paixão pelo objeto
de pesquisa ainda são bem maiores.
Sobre o uso do gravador como meio de registro, conforme Queiroz (1998),
este reaviva o relato oral e possui relevância, à medida que encerra maior precisão e
capacidade de ―conservar á narração uma vivacidade de que o simples registro no
papel as despojava, seu vaivém no que contava, constituíam outros tantos dados
preciosos para estudo‖. (P.03).
Quanto à técnica da entrevista, Haguette (2001) argumenta que
A entrevista pode ser definida como um processo de interação social
entre duas pessoas, na qual uma delas, o entrevistador, tem por
objetivo a obtenção de informações por parte do outro, o entrevistado.
As informações são obtidas através de um roteiro de entrevista
constando de uma lista de pontos ou tópicos previamente
estabelecidos de acordo com uma problemática central e que deve
ser seguida. (P. 86).
No que se diz respeito à diferença na escolha entre as técnicas de história
de vida e depoimentos, na óptica de Queiroz (1998), esta não implica, somente,
diferenças no modo de aplicá-las, mas, inclusive, e, principalmente, na diferença
presente nas ansiedades do pesquisador com relação às informações que se almeja
obter.
Vale frisar que a intenção desta pesquisa não é conhecer a sequência de
vida de seus sujeitos. Por conseguinte, foi eleita a coleta de informações por meio de
seus depoimentos, os quais tiveram durações variáveis de trinta a cinqüenta minutos..
Como se verifica, no depoimento, o colóquio é dirigido abertamente pelo pesquisador;
31
No item 4.2.1 Sobre as informantes: as vós...
56
enquanto, na história de vida, a conversa é conduzida pelo narrador. (QUEIROZ,
1998: p.11)
Sobre o depoimento, Queiroz (1998) adverte ainda para a noção de que:
Ao colher um depoimento, o colóquio é dirigido diretamente pelo
pesquisador; pode fazê-lo com maior ou menor sutileza, mas na
verdade tem nas mãos o fio da meada e conduz a entrevista. Da
‗vida‘ de seu informante só lhe interessamos acontecimentos que
venham se inserir diretamente no trabalho, e a escolha é unicamente
efetuada com este critério. Se o narrador se afasta em digressões, o
pesquisador corta-as para trazê-lo de novo ao seu assunto.
Conhecendo o problema, busca obter do narrador o essencial,
fugindo do que lhe parece supérfluo e desnecessário. E é muito mais
fácil a colocação do ponto final neste caso, assim que o pesquisador
considere ter obtido o que deseja. A obediência do narrador é
patente, o pesquisador tem as rédeas nas mãos. A entrevista pode se
esgotar num só encontro; os depoimentos podem ser muito curtos,
residindo aqui uma de suas grandes diferenças para com as histórias
de vida. (P.10)
Freitas (2006) empreende um exame com relação à coleta de
depoimentos, a qual pode ser traduzida num amplo empenho de reaver a palavra de
sujeitos que, sem a interferência de um pesquisador, não deixariam qualquer registro
e/ou testemunho. Acrescenta ainda que, por via do trabalho elaborado por um
historiador oral, pretende-se registrar experiências e representações do indivíduo, ao
considerar sua inserção num contexto social.
Ainda sobre os instrumentos metodológicos utilizados no trabalho de
campo: a entrevista32 e a observação direta, a qual impõe uma relação social com o
meio estudado. Minayo (1995) ressalta que a entrevista ―se insere como um meio de
coleta dos fatos relatados pelos autores sujeito-objeto da pesquisa que vivenciam uma
determinada realidade que está sendo focalizada‖. (P.57).
Contribuindo neste debate, quanto ao uso de entrevistas em pesquisas
qualitativas, Haguette (2001) pondera que ―Estudos qualitativos raramente podem
estabelecer, de antemão, quantas pessoas serão pesquisadas, uma vez que tal
número vai depender da qualidade das informações fornecidas pelos próprios
32
Ressalta-se aqui que as entrevistas não consistiram no único instrumento de coleta de dados desta
pesquisa, haja vista ter buscado associá-las á observação. Acrescenta-se ainda que nenhum dos sujeitos
deste trabalho demonstrou qualquer objeção quanto ao uso do referido equipamento. Quanto ao motivo
da pesquisa em alusão, informa-se que este foi explicado com toda clareza aos sujeitos.
57
informantes‖. (P.57). E acrescenta que à medida que as entrevistas se repetem em
conteúdo, ou seja, não acrescentando nada mais às informações obtidas, chega-se ao
momento de saturação qualitativa, ocasião propícia a encerrar tal procedimento.
No tocante à observação direta, prática rotineira adotada pelo Serviço
Social, nesse trabalho, esta possibilitará comparar as informações obtidas, verificar o
nível de emoção dos entrevistados e suas atitudes com relação ao assunto em alusão.
O ato de observar corresponde a um dos modos mais comuns, entre os
seres humanos, empregado para conhecer e compreender pessoas, objetos e/ou
situações. Na pesquisa, observar é também aplicar os sentidos, com a finalidade de
obter determinada informação sobre algum aspecto da realidade estudada. Assim
sendo, a observação é fator essencial para a pesquisa, sobretudo, a que tem enfoque
qualitativo. A observação direta, como uma das técnicas de coleta de dados,
corresponde também às visitas ao campo de pesquisa. Vale destacar o fato de que as
observações podem variar de atividades formais e informais, durante a coleta de
evidências.
Para a pesquisa documental, foram utilizados tanto o diagnóstico social33
quanto cadastros socioeconômicos, os quais correspondem a instrumentais
fundamentais no trabalho cotidiano dos profissionais34 de Serviço Social, da
Coordenadoria de Habitação, tanto no atendimento social ao usuário em geral, quanto
à aplicação deste no atendimento aos beneficiários de programas habitacionais.
Quanto ao levantamento bibliográfico, Gondim (1999) acentua que este:
[...] é um processo que se verifica ao longo de toda elaboração da
tese: irá continuar durante a pesquisa de campo e na fase de análise
dos dados, e mesmo durante a redação dos capítulos da dissertação,
quando se constatar a necessidade de leituras complementares. (P.
32).
Assim sendo, ela se reporta à importância de uma constante revisão de
literatura para que haja o embasamento das idéias contidas no corpo do texto,
garantindo, assim, qualidade ao objeto estudado.
33
Documento, elaborado por assistentes sociais, que apresenta a realidade social da área e sujeitos ora
analisados.
34
Considerando aqui toda a equipe social, composta por assistentes sociais e estagiários do setor.
58
A pesquisa bibliográfica permite a apreensão das informações de várias
vertentes
teóricas
referentes
às
categorias
família
e
velhice
(relações
intergeracionais), como também o pronunciamento de alguns autores concernente ao
tema em debate. Vale destacar, todavia, que a revisão bibliográfica incidiu durante
todo o processo de elaboração desta pesquisa.
A pesquisa de campo contou com observações técnicas do diário de
campo. A utilização das anotações neste refere-se a alguns acontecimentos, falas,
impressões orientadas durante toda a pesquisa, haja vista que um dos locais
propostos para coleta de dados, COHAB, já foi campo onde já trabalhou a
pesquisadora. Desse modo, vale frisar que esse contato cotidiano permitiu maior
apreensão das relações que se estabelecem no dia a dia, contribuindo, assim, ao final,
para análise dos dados.
Minayo (1995) evidencia o argumento de que o diário de campo consiste
em ser ―um amigo silencioso‖, o qual não pode ser subestimado no tocante à sua
importância. Referida autora acrescenta ainda que sobre ele o pesquisador se debruça
no intuito de obter detalhes, os quais em seu somatório vão congregar os diferentes
momentos da pesquisa.
O registro no diário de campo tem como objetivo suplementar com maior
riqueza de detalhes o fenômeno estudado, no que concerne, segundo Martinelli
(1999), a captar conteúdos não coletados em dados estatísticos, em arquivos e
documentos oficiais, entretanto, são desvendados pela pesquisa qualitativa.
É importante ressaltar que, na qualidade de investigador social, é preciso
adotar atitude metodológica sempre voltada para o imparcial e o incompleto, ou seja,
compreender que todos os aspectos investigados e selecionados devem ser revistos
permanentemente, de modo que não se há de mencionar fatos e constatações como
sendo absolutos e/ou inquestionáveis.
Convém compartilhar aqui, porém, sobre os anseios que se guardaram
vivenciados durante a investigação, elaboração deste estudo e contatos iniciais com
os depoentes, os quais podem ser constatados em alguns registros elaborados no
diário de campo, como, por exemplo:
59
[...] Muitas são minhas inquietações enquanto pesquisadora. Os
questionamentos quanto à abordagem aos depoentes estão
constantemente a me acompanhar...Como será o momento de
chegada a cada domicílio ? Quais serão suas reações frente ao teor
da minha pesquisa ? Como irão compartilhar comigo seus segredos e
dores de ordem tão familiar... Revelações que, talvez, nunca fizeram
a ninguém... Por falta de oportunidade? Falta de confiança? Por não
ter a quem? Por naturalizar a situação? Sinceramente, não sei !!!
Acredito que tudo fluirá aos poucos, que o tempo e o vínculo
estabelecidos serão pontos fortes para esta ocasião. Vou seguir em
frente !. (Diário de Campo, 10 ago. 2012)
Vale frisar aqui o contínuo ―tecer‖ do pesquisador, pois, por muitas vezes,
pensando que se havia concluído um capítulo, teve-se de que retomá-lo, rever,
acrescentar, ler e reler até atingir o produto final. Em outros termos, a pesquisa
corresponde a um trabalho artesanal, dotado de esforço, paciência e dedicação
conforme a compreensão de Gondim e Lima (2002).
Dessa forma, ao finalizar este tópico, convém retomar os autores Gondim
e Lima (2002), quando estes esclarecem que as fases constitutivas da pesquisa ―não
se desenvolvem de maneira estanque, mas se retroalimentam mediante o trabalho
sistemático e cotidiano dos artesãos-pesquisadores‖. (P.81). Logo, a pesquisa deve
ser considerada como um processo contínuo e inacabado.
2.3 Compartilhando Algumas Impressões de campo...
Algumas vezes, questionava-se sobre o que a visita suscitaria no
repensamento daquela relação intergeracional, o que as avós participantes sentiam
depois que se saia, no que concerne às revelações feitas por elas sobre histórias tão
intimamente familiares. Entretanto, ouvir esta frase final trazia toda satisfação e
alegria: Quando precisar pode vim. Mesmo que já tenha terminado a pesquisa, passe
para fazer uma visitinha !
Evidencia-se que não é fácil estimular as pessoas a falarem sobre
questões
intra-familiares,
experiências
dolorosas,
acontecimentos
íntimos
e
60
comprometedores ao âmbito familiar, bem como a respeito de temas que a sociedade
rejeita, dentre os quais a velhice. Daí, os constantes silêncios observados nas
narrações, situações que, conforme Alcântara (2010), correspondem a ―abafos
repletos de significados e, é mais do que compreensível, devem ser respeitados.‖
(P.83).
Assim sendo, vale lembrar que na elaboração e reformulação da pesquisa,
cabe ao investigador estar atento às tensões implícitas, como sugere Bosi (2003).
Alguns momentos foram de relatos felizes (acompanhados de risos), embora outros
tinham sido tristes, tensos (entre silêncios, lágrimas e/ou de expressões do próprio
corpo).
É válido frisar que apesar desta pesquisa ser constituída por falas,
verbalizações, está também permeada por silêncios, os quais não podem ser
analisados como involuntários, ou como ―coisas da idade‖, haja vista que, segundo
Orlandi (2002), o silêncio é repleto de significados. Não é visível, é apenas observável,
e, destarte, escorre por entre as falas.
Nesse sentido, semelhantemente à multiplicidade de sentidos presente nas
palavras, o silêncio também exprime sua complexidade no relato da experiência do
indivíduo. Os sentidos desses vazios foram apreendidos por meio de gestos,
movimentos expressos pelo próprio corpo, conforme também abordado por Grossi e
Ferreira (2001), neste estudo, com ênfase nas mãos e rosto das avós entrevistadas.
Quanto à relação entre o narrador e o pesquisador, Bosi (2003) esclarece
que,
O narrador está presente ao lado do ouvinte. Suas mãos,
experimentadas no trabalho, fazem gestos que sustentam a história,
que dão asas aos fatos principiados pela sua voz. Tira segredos e
lições que estavam dentro das coisas, faz uma sopa deliciosa das
pedras do chão, (...). A arte de narrar é uma reação alma, olho e mão:
assim transforma o narrador sua matéria, a vida humana. (P.90).
Portanto, não se poderia deixar de registrar o fato de que, no decorrer
desta investigação, as idas e vindas ao campo foram momentos riquíssimos de
61
experiências, tanto como pesquisadora, quanto como ser humano, ao se ouvir as
vivências dessas avós.
2.4 Sobre As informantes: as avós ...
No
Residencial
Vitória,
35
denominado Faixa Etária Geral
conforme
visto
anteriormente
no
quadro
da população, consta o total de sete pessoas
contempladas com unidade habitacional com idade acima de 59 anos. Considerando o
respectivo perfil dessa pesquisa, no entanto, com vistas a atender os objetivos desta,
foram identificadas três avós. Vale frisar que havia outras avós (velhas) que cuidavam
de netos, mas que, por outras circunstâncias (doença, avanço da idade, ou
emancipação dos netos), já não cuidavam mais...
Ora, se o objetivo macro desta investigação consistia em ampliar o debate
sobre as relações intergeracionais, estudando as avós envelhecidas que cuidam de
netos, e, assim poder-se compreender as características que estas assumem na
reorganização do contexto familiar, o caminho foi partir desse cenário como critério de
escolha. Neste estudo, foram colhidos relatos de mulheres com faixa etária
compreendida entre 61 e 74 anos. Daí por diante, o próprio cotidiano do campo de
pesquisa sugeriu os sujeitos para esta pesquisa, haja vista que se acompanhou parte
do Trabalho Técnico Social (incluindo o antes e pós-entrega dos imóveis).
A aproximação com os sujeitos deste estudo aconteceu de forma tranqüila,
e os primeiros contatos (com as avós pesquisadas) foram mediados pelas assistentes
sociais que trabalham com as famílias do Residencial Vitória. Todavia, essas
profissionais não permaneciam no momento das entrevistas para que as avós se
sentissem ―á vontade‖ para falar. No primeiro encontro, havia toda a preocupação e
sensibilidade da pesquisadora em explicar a pesquisa, bem como fazer o convite às
avós.
Cabe aqui recordar as palavras de Oliveira (1999), quando relata a
importância de um mediador:
O primeiro contato sendo feito por um mediador que é, ao mesmo
tempo, uma pessoa conhecida não oferece constrangimento algum
para eventuais recusas e, no caso de assentimento ao convite,
35
Ver em Cap. 2, item 2.1.4 - Retrato Social dos Moradores.
62
garanta ao pesquisador que os sujeitos estão predispostos a atuar
cooperativamente. Além disso, o pesquisador nunca é confundido
com um fiscal, um assistente social ou profissional qualquer que
possa ser identificado no universo do eles, lembrando Hooggart. (P.
59).
A conquista dos sujeitos ocorreu de forma gradativa. A relação de
confiança e o vínculo com os sujeitos deste estudo cresciam a cada encontro,
surgindo, assim, sempre um ―detalhe a mais‖ nos relatos das vivências destas avós e
seus netos. Nos momentos de campo, durante a elaboração desta pesquisa, se tomou
sempre o cuidado de não ser classificada como ―a assistente social‖, haja vista nunca
ter atuado profissionalmente naquela comunidade.
Embora já tendo o acesso aos cadastros e ao perfil do grupo de moradores
do Residencial Vitória, antes mesmo das visitas de caráter exploratório, permitiu-se
que o próprio ambiente de pesquisa influenciasse na escolha dos sujeitos a serem
trabalhados. Assim sendo, os próprios moradores (diga-se, especificamente, ás
mulheres donas de casa) que pela manhã se encontrava realizando as atividades
domésticas, a elas destinadas, tais quais: lavando roupas, fazendo o almoço, cuidando
da casa e das crianças... Estas também contribuíram no ―apontar‖ dos sujeitos desta
pesquisa; situações confirmadas na fala daquelas profissionais (assistentes sociais e
estagiários de serviço social) que destinavam seu dia a dia de trabalho naquela
comunidade, e, portanto, suas orientações foram imprescindíveis.
Impende relatar-se que, muitas foram as vezes que, ao se chegar ao
Residencial (pela manhã), era-se indagada: ―Você está fazendo a pesquisa das avós,
não é? Muito importante mesmo... uma coisa que vai pra faculdade...Mas, [risos] por
que só pode ser as pessoas velhas?” . Nestas ocasiões, sempre se detinha á atenção
em explicar com detalhes o foco e as categorias desta pesquisa.
Embora se notasse que a informação era compreendida por elas,
observava-se que outras avós (jovens) gostariam também de falar um pouco sobre a
realidade que as cercava. Às vezes, elas não se continham e até comentavam... “eu
também sou avó! mas, ainda não sou velha...”. O fato de ser ainda jovem, e, portanto,
não poder fazer parte desta pesquisa era um consolo, haja vista que a imagem da
velhice é, comumente, identificada, apontada e/ou observada, somente, no outro.
63
Nesse sentido, Bosi (2003) alerta para a noção de que a velhice ―é uma situação
composta de aspectos percebidos pelo outro (...)‖. (P.79).
Convém evidenciar que o contato estabelecido entre a pesquisadora e o
local da pesquisa consiste num fator relevante do trabalho, com vistas a não perder a
oportunidade de enriquecê-lo e aprofundá-lo com outras possibilidades de
conhecimento, conforme orienta Oliveira (1999). Faz-se necessário sentir o campo de
pesquisa, não desconsiderar nada. Assim, Oliveira (1999) destaca que ―(...) a afeição
das pessoas da vizinhança é uma forma de mergulhar na vida dos sujeitos estudados‖.
(P.62)
Sem deixar nada passar despercebido, buscou-se expor no transcurso das
narrativas as impressões, não restrita ao que se conseguia captar nos entrevistados,
no entanto, também ao que se passava no interior.
Sobre tal capacidade, assenta-se, aqui a ponderação de Oliveira (1999):
Isto quer dizer levar sempre em consideração os outros: seus gestos,
seus olhares, seu desprendimento, seus silêncios, seus modos de
relacionamento com seus familiares ou com amigos, sem descuidar
ainda dos objetos à sua volta. (P. 61).
Com pertinência às peculiaridades dos narradores, ou as características
destinadas à categoria que se decidiu estudar, informa-se que estas foram contadas
oralmente e transcritas tal como colhidas de suas vozes. São limites da idade,
partilhados nas entrevistas, bem como observados na fala, dentre outros, fatos estes
abordados por Bosi (2003), ao se fazer opção por este objeto de pesquisa:
E eles encontraram também os limites de seu corpo, instrumento de
comunicação às vezes deficitário. Quando a memória amadurece e
se extravasa lúcida, é através de um corpo alquebrado: dedos
trêmulos, espinha torta, coração acelerado, dentes falhos, urina solta,
a cegueira, a ânsia, a surdez, as cicatrizes, a íris apagada, as
lágrimas incoercíveis. (P. 39).
64
O respeito ao narrador e a atitude do pesquisador, seguidos nesta
pesquisa, foi ponderado por Bosi (2003) e também enfatizado em Oliveira (1999)
quando esse autor alerta sobre os deslizes que devem ser evitados pelo pesquisador,
a saber:
[...] saber esperar, ter paciência, evitar os limites da inconveniência,
aprender a conviver com o tempo dos entrevistados , alimentar as
conversas conforme a receptividade, manter pontualmente os
compromissos e procurar não solicitar dos sujeitos o que eles não
têm, como algo já elaborado, no registro de suas consciências (...).
Todos esses procedimentos não comportam regras fixas. Vão sendo
trabalhados na medida das circunstâncias e da percepção do
pesquisador (...). (P. 59).
Em Bosi (2003), é possível compreender a figura do narrador como ―um
mestre do ofício que conhece seu mister‖, uma vez que seu talento de narrar advém
da experiência, com lições que ele extraiu da própria dor e, por conseguinte,
demonstra dignidade em contá-la até o fim, e sem medo. Para a autora sob menção:
―uma atmosfera sagrada circunda o narrador‖. (P.91).
No caso desta investigação, que teve como foco o segmento da população
envelhecida, com um recorte aos velhos (no eufemismo da sociedade, chamado de
idosos36) avós que cuidam de seus netos, desenvolvida com base em três histórias
orais, faz-se relevante que o pesquisador esteja atento ao que já não se pode ouvir,
que não perca de vista o sentido dessas relações ligando-as não somente em âmbito
individual, todavia, também no coletivo. Nesse sentido, Bosi (2003) colabora,
explanando no seguinte exemplo:
Imagine-se um arqueólogo querendo reconstituir, a partir de
fragmentos pequenos, um vaso antigo. É preciso mais que cuidados
e atenção com esses cacos; é preciso compreender o sentido que o
vaso tinha para o povo a quem pertenceu. A que função servia na
vida daquelas pessoas? Temos que penetrar nas noções que as
orientavam, fazer um reconhecimento de suas necessidades, ouvir o
que já não é audível. Então recomporemos o vaso e conheceremos
se foi doméstico, ritual, floral...(P. 414).
36
Consideram-se como idosos os indivíduos com sessenta anos ou mais, dado ser este o corte etário
utilizado pela Política Nacional do Idoso, (Lei 8.842, de 4 de janeiro, Cap. I, art. 2).
65
Em informações mais amplas sobre do público-alvo deste trabalho, tem-se
este como pessoas que vivem (e algumas vezes, até sobrevivem) de modo simples,
ou seja, oriundos de áreas de riscos e/ou condições mínimas de habitabilidade37.
Possuidores de pouca e/ou nenhuma qualificação profissional (baixo nível
de instrução educacional), estas famílias enfrentam dificuldades no tocante à condição
de ascensão e até mesmo de melhores condições de vida.
Assim sendo, estes
sujeitos expressam, em seu cotidiano, a carência da intervenção do Poder Público,
considerando seus variados níveis de atuação.
Convém destacar a noção de que, no decorrer desse tópico, foram
traçadas linhas que configuram a singularidade de cada uma das informantes, embora
também revelem o coletivo que passeia por esse trajeto. Faz-se necessário ressaltar
que o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido38 foi assinado por todas as
depoentes. Na ocasião, as participantes eram esclarecidas, quanto a este ensaio, e,
por meio deste documento, as avós se declaravam cientes de suas participações na
pesquisa, iniciando, dessa forma, a coleta de dados.
Quanto aos nomes verdadeiros das avós, ora sujeitos deste estudo,
informa-se que foram substituídos por nomes fictícios e comuns39: Ana, Conceição e
Rosa, a fim de resguardar a identificação de cada informante, netos e família, fato este
compreendido nas palavras de Oliveira (1999), quando enfatiza que ―nomes trocados
não invalidam a pesquisa, não distorcem conteúdos e protegem a intimidade dos
sujeitos.‖ (P.64).
Quem são, no entanto, essas avós-personagens de trajetórias em comum?
Então, a seguir uma breve apresentação dessas depoentes...
A Dona Conceição, casada, com 67 anos de idade, evangélica, do lar.
Minha profissão é cuidar de casa. Tem seis filhos, sendo: quatro mulheres e dois
37
Que reúne condições/possibilidades de ser habitado. Conforme consulta, no dicionário Aurélio:
―Qualidade de habitável‖.
38
39
Este se encontra, no final deste trabalho, em ―apêndices‖.
Ao designar nomes fictícios tidos como ―comuns‖ para os sujeitos desta pesquisa, pretendeu-se
proporcionar ao leitor uma aproximação com a realidade do fenômeno investigado.
66
homens, sendo um dos quais adotivo40. A renda familiar corresponde às
aposentadorias do casal, de um salário-41mínimo cada qual, e nada mais. Composição
familiar no domicílio: Dona Conceição, o marido Sr. João, também com 67 anos de
idade e o neto Elias, 09 de nove anos. Convém informar que Elias não é o primeiro
neto que a Dona Conceição ―cria‖, pois, a entrevistada relatou ter “cuidado” de Perla,
filha de outra filha.
- Aqui também tinha uma moça...Mais, ela saiu também de dentro de
casa...Mais, era neta também e eu criei desde novinha. Cuidei desde
pequenininha. Desde a hora que nasceu. Aí, ela namorava com um
rapaz, aí se ajuntou com o rapaz, mora lá pra bando do BoaEsperança. Aí, ficou só eu, o João e o Elias. Ela ainda não tinha
completado os vinte não! (Depoimento concedido por D. Conceição,
67 anos).
A genitora de Perla é a filha mais velha da entrevistada e, atualmente,
mora em São Paulo-SP, após casar-se (pela segunda vez), e, como seu marido foi
trabalhar nesse Estado, ela o acompanhou. Sobre o casal, o homem não é o genitor
de Perla. A Dona Conceição assumiu financeiramente Perla e sua mãe, durante
muitos anos, até que decidiu enfrentar um novo relacionamento e Perla permaneceu
com sua avó.
A mencionada família, antes de se mudar para o Residencial Vitória,
residia no Município de Pacatuba-CE. Durante as visitas, a conversa se desenvolvia
mesmo com a Dona Conceição, que inicialmente estava um pouco receosa em relatar
suas vivências familiares, mas, que depois do primeiro encontro, se demonstrou
comunicativa e interessada na pesquisa.
O Sr. João, sempre estava em casa na hora das entrevistas, todavia, era
mais calado e introvertido. Não participava com palavras, mas sentava-se pertinho de
sua mulher, no sofá da sala, ouvindo toda a conversa. Sempre atenta a ele, não se
perdia um só gesto de confirmação (feito com a cabeça) aos relatos de Dona
Conceição. Em outras vezes, soava baixinho aquele “é verdade !” . Vale ressaltar que
40
―mas, hoje em dia ele sabe quem é a mãe dele, porque eu disse a ele‖ (D. Conceição). Este filho
adotivo, atualmente, tem 28 (vinte e oito) anos de idade, não possui laços de parentesco e/ou de
consangüinidade com a informante. Todavia, é legalmente filho dela, ou seja, ―registrado em cartório‖.
41
Valor do salário-mínimo em vigência: R$ 678,00 (seiscentos e setenta e oito) reais. (Reajustado em
01.01.2013).
67
a Dona Conceição enfatizou, no seu dia adia, cuidar, além do neto, também de seu
esposo que já possui mais idade que ela, e que, anteriormente, sobrevivia e
sustentava a família com a agricultura, mas hoje possui saúde e semblante
desgastados pela dureza das atividades laborais.
Outra é a Dona Rosa com 61 anos de idade, doméstica, mas, atualmente,
não pode trabalhar em virtude de problemas de saúde (câncer). É beneficiária do
auxílio-doença do INSS, o qual corresponde a um salário-mínimo. Viúva há 11 anos.
Antes de morar no empreendimento, local da pesquisa, residia em Fortaleza, no bairro
Messejana.
No domicílio, atualmente, residem ela e o neto Elson, de 11 anos. Ela
também cuidou de outros dois netos, desde que eles nasceram - Bia e César –
respectivamente, com 15 e 16 anos de idade. Dona Rosa, apesar de ser a mais nova
entre as depoentes, sempre mencionou as limitações que a doença lhe proporcionou.
A patologia era citada em todas as conversas, bem como a vontade de viver...e, às
vezes, a desesperança também surgia...
- Eu era muito felliz, né! Mas, depois que eu descobri que eu tinha
essa doença...Eu fiquei assim meia...Assim, parte da minha
vida...(lágrimas). (Depoimento concedido por D. Rosa, 61 anos).
Há seis anos, Dona Rosa foi acometida pela enfermidade acima citada e,
ainda luta contra sua doença trouxe muitas modificações em seu viver, dentre elas a
de necessitar residir três anos com uma filha, logo no início da doença. Contou ainda
que a doença reduziu demasiadamente suas atividades, inclusive a de que ela mais
gostava - cuidar dos netos - haja vista que ela teve que se afastar gradativamente
daqueles netos que criava. Foi tão doloroso quando eu me separei deles, e esta
separação deu-se devido á doença.
Vale frisar, contudo, que, mesmo com o desafio diário de lutar contra essa
doença, a Dona Rosa sempre recebeu muito bem a pesquisa, sorridente, expressiva e
muito atenciosa. Quanto à importância em falar sobre o assunto deste estudo,
Dona Rosa não atendia a visita de vizinhos, nem sequer telefone.
Certa vez, durante uma entrevista, o celular tocou. Mas, ele não quis
atender. Falei para ela que eu aguardaria, e que ela podia atender,
68
caso quisesse. Mas, ao atender sua reação foi: olha eu to fazendo
uma entrevista aqui com a moça. Depois, eu ligo. Pronto ! Diga... e
voltou-se para mim, sem perder tempo. (Diário de Campo, 30 set.
2012)
Com seu jeito simpático, não queria que seu problema de saúde (e a
tristeza que advinha deste) interferisse na qualidade de seus relatos, e, no final de
uma entrevista, expressou:
Eu espero que a história (risos) não seja muito (risos)...Por que a
história é essa daí. E, até hoje, eu ainda sinto falta deles. Mas, num
posso fazer nada. (Dona Rosa, 61 anos)
Dona Ana, viúva, 74 anos de idade, do lar, é a terceira avó que participou
deste estudo. Na residência, moram ela e seu neto, Pedro, de 16 anos. Esta
informante possui oito netos, e destes cuidou42 de dois - Pedro e Maria, ambos
adolescentes. Pedro é o único que ainda mora com ela. Com relação a Maria,
argumenta que até hoje ainda cuido, no sentido de realizar os desejos de consumo e
suprir as necessidades diárias.
Certo dia, ao chegar no Conj. Vitória, a D. Ana não se encontrava em
casa. Interessante é que mesmo com toda a proximidade da
vizinhança, ninguém sabia onde ela estava. Posteriormente, quando
a encontrei, ela falou baixinho (e fazendo gesto de silêncio),
confidenciou-me um segredo...Ela havia ido ao centro comprar um
presente para o neto uma televisão. E, não podia falar alto para não
causar intrigas, nem ciúmes... (Diário de Campo, 04 jan. 2013)
Essa depoente possui limitações, ocasionadas pela idade, bastante
visíveis, bem como mencionadas por ela. Mesmo acometida de artrose, a Dona Ana é
uma das moradoras mais participativas nas atividades e reuniões do Trabalho Técnico
Social, ainda desenvolvido no empreendimento. Vale frisar que essa característica a
acompanha também em outras atividades, como, por exemplo, nas programações da
igreja evangélica, a qual a citada se congrega.
42
Aqui se referindo ao sentido de ―criar‖, pois, conforme ela mesma disse: ―desde o primeiro eu já cuido‖
(sic).
69
Durante as visitas, Dona Ana sempre fazia questão de mostrar seu novo
material de cursos (livros e revistas da Escola Bíblica Dominical) que desenvolve em
sua igreja. O Livro Sagrado, a Bíblia, fazia parte do cenário da sala. Estudiosa,
atenciosa e emotiva, algumas vezes se emocionou durante seus relatos, não podendo
conter as lágrimas naquela ocasião ao falar sobre seu neto.
Faz-se necessário destacar o fato de que, em alguns momentos, sua filha
sentou-se numa cadeira na sala e ficou a escutar a conversa. Não houve interferência
ou qualquer outro contato negativo com relação a esta pesquisa; todavia, se
esclareceu sobre o trabalho e ela disse que já tinha ouvido falar por aqui, referindo-se
ao comentário de outras moradoras.
Algumas vezes, se percebeu nas entrevistadas o sentimento de valor que
elas expressavam no que se refere a fazer parte da pesquisa da faculdade, ao
receberem, mais uma vez a protagonista do estudo em seus apartamentos. Eram
momentos em que se sentiam importantes, como personagens principais da realidade
de experiências com seus netos. E, realmente, o eram.
2.5 Os domicílios
Era-se, frequentemente, bem recebida nas residências das entrevistadas
era sempre bem-vinda. Embora, algumas vezes, se percebesse que o período da
manhã (definido por elas) fosse um tanto quanto apertado haja vista os afazeres
domésticos e as responsabilidades com os netos, ainda conseguiam tempo para
compartilhar suas histórias, pois, conforme avalia Bosi (2003): ―uma pesquisa é um
compromisso afetivo, um trabalho ombro a ombro com o sujeito da pesquisa‖. (P.38)
Este representa fator de enorme relevância, bem como lembrado também
nas palavras de Bosi (2003), quando esta menciona sobre a alegria do velho ao relatar
sua história: ―Sua vida ganha uma finalidade se encontrar ouvidos atentos,
ressonância‖‘. (P.82). Seguindo esse raciocínio, Oliveira (1999) faz a seguinte
indagação: ―Quem ouve o que falam os velhos?‖. Nesta, o autor se reporta à exclusão
que tal segmento recebe da sociedade, o qual, muitas vezes, é semelhante ao que
acontece no ambiente familiar.
Bosi (2003), ao analisar a conversa de um velho, acrescenta ainda que
70
A conversa evocativa de um velho é sempre uma experiência
profunda: repassada de nostalgia, revolta, resignação pelo
desfiguramento das paisagens caras, pela desaparição de entes
amados, é semelhante a uma obra de arte. (P. 82).
Na sucessão das visitas, conforme alerta Oliveira (1999), olhos e ouvidos
estavam atentos a tudo, haja vista a relevância desta interação, no decorrer da
pesquisa. Sobre essas ―faculdades do espírito‖, o autor complementa:
Portanto, se o olhar possui uma significação específica para o
cientista social, o ouvir também goza dessa propriedade.
Evidentemente tanto ouvir como o olhar não podem ser tomados
como faculdades totalmente independentes no exercício da
investigação. Ambas complementam-se e servem para o pesquisador
como duas muletas- que não percamos com essa metáfora tão
negativa – que lhe permitem caminhar, ainda que tropegamente, na
estrada do conhecimento. A metáfora, propositalmente utilizada,
permite lembrar que a caminhada da pesquisa é sempre difícil [...]. (P.
21).
Então, no exercício do olhar em escrita, decide-se repartir com o leitor o
subjetivo das relações representadas em objetos, fotos e seus significados. Os
apartamentos das avós entrevistadas eram todos simples, não significando dizer que
não havia ali um ambiente aconchegante, um ―sentido de pertencer‖, como aborda
Osterne (2001), observado na arrumação dos móveis (alguns poucos móveis), da
disposição dos quadros e das fotografias, do cheiro que exalava dos alimentos
preparados na cozinha, pelas próprias entrevistadas, das cortinas estampadas (que
dividiam ou serviam de portas em outros cômodos).
Ao se adentrar as salas, a organização e os significados dos objetos
impressionavam. Nestas, nem sempre o televisor ocupa lugar de destaque na estante,
a qual tem junto à sua decoração, bibelôs, quadros, fotografias, e a Bíblia, livro
fundamental de orientação, companheirismo, força e fé constantemente relatado nos
encontros com Dona Ana.
As fotografias, em sua maioria, apresentam registro de momentos
marcantes (casamentos, aniversários, dentre outros...) ou lembranças, com retratos de
familiares que residem distante (outras cidades e/ou estados) ou, até mesmo,
já
falecidos. Estes registros fotográficos foram encontrados em todas as salas dos
71
apartamentos das avós entrevistadas, expostos na parede, no móvel da sala ou na
estante.
No apartamento da Srª. Conceição, logo no primeiro encontro, ao contar
sobre o neto caçula que ainda criava, haja vista os demais já terem crescido e/ou
casado, a entrevistada retirou a foto do neto da parede para que se pudesse apreciar,
e, no decorrer da narrativa, não economizava palavras de orgulho por criá-lo, por sua
educação e comportamento; talvez, um sentimento de dever.
Evidencia-se o mosaico de fotos diversas, exposto na parede do
apartamento de Dona Conceição e elaborado por ela própria. Uma arte ! Este foi
cuidadosamente mostrado e explicado, particularizando cada uma das fotografias.
Considera-se que esta passagem ilustra bem a relevância de se manter uma relação
de proximidade com os entrevistados. Assim, compreendeu-se que havia estabelecido
com elas uma relação de confiança. Destaca-se que este vínculo de confiança se
avaliou
como
sendo
bastante
positivo,
também
durante
as
abordagens.
Quanto ao vínculo de amizade e confiança com as entrevistadas, Bosi
(2003) expressa que ele
[...]não traduz apenas uma simpatia espontânea que se foi
desenvolvendo durante a pesquisa, mas resulta de um
amadurecimento de quem deseja compreender a própria vida
revelada do sujeito. (Pp. 37-38).
Ainda sobre a convivência estabelecida entre sujeitos e pesquisador,
Oliveira (1999) abordou muito bem ao mencionar que:
A convivência próxima aos sujeitos da pesquisa permite que os
ensinamentos ultrapassem os limites do que é tematizado (...). Não
importa que se trate de um movimento assimétrico, informalmente
realizado, desencadeado às vezes por pessoas que mal conhecem
as letras. Aqui elas são portadoras de um saber não codificado,
tecidos nos fios da experiência vivida e, por isso, múltiplo e infinito.
Não são lições de casa; são lições de vida. (p.: 266).
72
Convém ressaltar a relevância da comunicação com o cenário da
pesquisa, na compreensão do fenômeno estudado. Conforme expressa Bosi (2003),
―Temos com a casa e com a paisagem que a rodeia a comunicação silenciosa que
marca nossas relações mais profundas.‖ (P.442). Segundo a citada, ―tudo fala!‖.
73
3 DEBATE SOBRE A FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA
―A menos que modifiquemos a nossa maneira de
pensar,não seremos capazes de resolver os
problemas causados pela forma
como nos acostumamos
a ver o mundo"
Albert Einstein
3.1 A família no cotidiano da luta pela sobrevivência
Ao pensar em família, no contexto de uma sociedade capitalista, não se
pode desconsiderar que as desigualdades advindas deste modo de produção, as
quais suscitam a ―questão social43‖, afligem a categoria família, que também é alvo,
portanto, dos reflexos desses condicionamentos e/ou fatores externos.
Abordar o núcleo familiar é situá-lo como espaço indispensável para a
garantia da sobrevivência, de desenvolvimento, bem como de assistência integral dos
filhos e dos demais membros, independentemente do modo de sua organização e/ou
estruturação. Pode-se dizer, destarte, que a família corresponde a um fenômeno
universal, haja vista sua existência, nos mais diversos tipos de sociedade.
A família é constituída pela iniciação de socialização e aprendizado dos
afetos, bem como das relações sociais. Em consonância com esta afirmação, Petrini
(2003) destaca a idéia de que a família surge como lugar ―da gratuidade, do
acolhimento incondicional, que precede os cálculos da convivência, criando ao seu
redor, uma rede de solidariedade (...)‖. (Pp.5-6). Na família, logo, são propiciados os
aportes afetivos e, sobretudo, materiais, necessários com base nos relacionamentos
pessoais.
43
Definida por Iamamoto (2004) como, ―o conjunto das expressões das desigualdades da sociedade
capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho
torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação de seus frutos mantém-se privada,
monopolizada por uma parte da sociedade‖. (P. 27)
74
Alcântara (2010) contribui neste debate, acentuando o que exprime Pierre
Bourdieu para que
[...] o ‗espírito de família‘ como o estado de integração mútua entre os
membros da família, no qual se estabelece em um cotidiano de
trocas, ajuda mútua, festas comemorativas registradas nos álbuns
fotográficos, produto de um consistente trabalho simbólico e prático.
Nesse sentido, um verdadeiro trabalho de coesão, quer dizer, o de
perpetuação do ‗sentimento familiar‘, um exercício de manutenção
desempenhado principalmente pelas mulheres. (P. 98)
Convém mencionar que a instituição família se encontra em constante
mudança e dinamismo, decorrentes da própria estrutura, bem como conjuntura da
sociedade. Nas famílias mais pobres, como, por exemplo, os interlocutores desta
pesquisa, as trajetórias e movimentos traçados no meio intrafamiliar ocorrem, muitas
vezes, do modo traumático, em razão da ditadura estabelecida, tanto pelas próprias
condições econômicas quanto na luta diária pela sobrevivência, quer seja individual ou
familiar. Cruz (2012) destaca ser esta uma ―época em que reina a luta pela
sobrevivência e, portanto, o individualismo (...)‖. (P.266).
Nos relatos de Dona Ana, sempre foi possível constatar a participação
dessa avó no que concerne à preocupação em proporcionar melhores condições
econômicas, mesmo aos netos que não residiam com ela. Durante os encontros com
esta entrevistada, a expressão ―mensalidades‖ era frequentemente usada, aludindo à
ajuda financeira que ela prestava, inclusive, aos netos que residiam em outras cidades
do interior do Ceará. Já no caso de Dona Conceição, tal auxílio aos demais netos
ocorria por meio de alimentos, ou mandando para as residências deles ou reunindo os
netos em sua casa nos horários das refeições principais.
A não naturalidade e a mutabilidade são características descobertas por
estudiosos acerca da instituição família. Para Bruschini (1990), estudar família é despila de sua ―aparência de naturalidade percebendo-a como criação humana mutável‖.
(P.50). Vale frisar que essa autora defende família, não como instituição natural,
porém como um conjunto de indivíduos unidos por diferentes elos, podendo ser estes
constituídos por sangue, adoção ou aliança (casamento e/ou união estável).
75
Assim, a família consiste numa elaboração social e simbólica, cujas
relações de parentesco são estruturantes da vida social. Nas palavras de Bruschini
(1990), ao pesquisar esta temática, deve-se considerar que
Se de um lado, portanto, o conceito de família se refere a um grupo
social e empiricamente delimitável, de outra parte ele remete também
a um modelo cultural e sua representação. A análise da família deve
por isso mover-se nos planos das construções ideológicas e de seu
papel na organização da vida social. (1990: p. 34).
Lasch (1991) ressalta a importância da família como locus privilegiado de
vivência autônoma, da intimidade e de proteção
das pessoas ante o poder
normatizador e repressivo das instituições políticas e econômicas. Esse estudioso
concorda ainda com o pensamento de Szymanski (2003), quando esta declara que a
família, por dinamismo e contradição, também reproduz conflitos, violências e
rejeições.
A situação que envolve a realidade das famílias se caracteriza, também,
por problemas sociais de ordens diversas, como, por exemplo, as barreiras
econômicas, sociais e culturais que afetam diretamente o desenvolvimento integral de
seus componentes. Portanto, a família, como forma específica de agregação44, possui
dinâmica de vida própria, afetada também pelo desenvolvimento socioeconômico.
Neste sentido, Szymanski (2003) complementa, assinalando que refletir sobre família
é articular as idéias referentes a ela, no viver cotidiano.
Assim sendo, pode-se observar que a família está suscetível as pressões
internas (provenientes de mudanças evolutivas de seus membros), e externas
(oriundas das exigências para se adaptar às instituições sociais significativas, as quais
possuem impacto sobre os componentes da família). Responder a estas exigências,
tanto de dentro como de fora, demanda transformação constante nos membros desse
grupo primário, em relação um ao outro, de maneira que possa crescer, enquanto o
sistema familiar mantém continuidade.
44
Vale salientar que, ao núcleo familiar, novos membros se agregam, nascem, saem alguns para
constituição de outras famílias, para enfrentarem o mercado de trabalho, assim como morrem. A família,
portanto, corresponde a um processo interagente não só da vida, mas também das trajetórias individuais
de cada um de seus membros.
76
Ante as considerações ora expostas, torna-se possível compreender que a
família não é composta, apenas, por um grupo de pessoas unidas por afinidade e/ou
consangüinidade, todavia, como um espaço onde são atendidas as necessidades
vitais, bem como materiais, de seus membros. Tal afirmação é ratificada nas palavras
de Bruschini (1990):
[...] a família também persiste como universo vital porque nela
necessidades da vida material são satisfeitas a partir de relações
pessoais nas quais as emoções desempenham papel decisivo.
Desejo, afeto, amor, ódio, desgosto, prazer, são sentimentos
presentes nas relações entre cônjuges, pais e filhos e demais
parentes. (P. 28).
Sobre os ―demais parentes‖, destacado nas palavras de Bruschini (1990),
destaca-se também a participação dos avós na atualidade, compreendidos, também
no campo das emoções, e, muitas vezes, por exercerem papel decisivos na vida de
seus netos. Peixoto (2000), complementa destacando que ―os avós brasileiros
participam intensamente da vida dos netos‖. (P.110). Convém salientar que esta
participação dos velhos, em seu núcleo familiar, aparece em duas vertentes:
subjetivas (amor, carinho...) e/ou materiais (garantia dos mínimos para a existência).
Neste experimento, estes mínimos foram relatados pelas avós de várias formas, como
alimentos, dinheiro, medicação e apoio no próprio domicílio.
Ainda se reportando à família e suas modificações ao longo do tempo,
Peixoto (2000) acrescenta:
De todo modo, contrariamente às aparências de desordem,
apontadas na variação dos indicadores demográficos, as famílias
continuam a contribuir para a reprodução biológica e social da
sociedade, função que podemos considerar do ponto de vista
socioantropológico como sendo universal. (Pp. 7-8)
Osterne (2001) contribui para este debate, ao analisar e definir a categoria
família:
[...] algum lugar seja o ‗lar‘, ‗a casa‘, ‗o domicílio‘, ‗o ponto focal‘, onde
se possa desfrutar do sentido de pertencer, onde se possa
experimentar a sensação de segurança, afetiva e emocional, onde se
possa ser alguém para o outro, apesar das condições adversas
mesmo independente das relações de parentesco e consangüinidade.
(apud Osterne. P. 92)
77
É lícito evidenciar que a convivência cotidiana familiar entre os pobres45 é
garantida, muitas vezes, a duras penas, como estratégia imprescindível à
sobrevivência não apenas material, mas também afetiva. Consoante o raciocínio de
Yazbek (2012), o adentrar no universo denominado pobreza, observa-se que este é
[...] marcado pela subalternidade, pela revolta silenciosa, pela
humilhação e fadiga, pela crença na felicidade das gerações futuras,
(...) e, sobretudo pelas estratégias para melhor sobreviver, apesar de
tudo. Embora a renda se configure como elemento essencial para a
identificação da pobreza, o acesso a bens, recursos e serviços
sociais, ao lado de outros meios complementares de sobrevivência
precisa ser considerado para definir situações de pobreza‖. (P.292)
Ainda refletindo sobre a pobreza e suas dimensões, convém destacar as
situações, bem como ás estigmatizações46 a que é submetida esta parcela da
“sociedade de escassez”, conforme a análise de Yazbek (2012), se referido à
população que procura por trabalho, por local para dormir, sobreviver...Ou seja, ―gente
que fica à espera em longas filas ‗para receber benefícios: uma cesta ‗um saco de
leite, uma consulta, um lugar no ônibus para ir ou voltar do trabalho, para obter um
documento, para conseguir um emprego, reivindicar um direito....‖ (P. 292)
Observando a realidade das famílias menos ―favorecidas‖, ou seja,
denominadas pobres, residentes em Maracanaú, constata-se que a pobreza é
expressa neste Município, não somente pelo desemprego, mas também em virtude de
acesso aos serviços públicos, podendo-se destacar educação, saúde, saneamento e
habitação.
Esta dificuldade, ou até mesmo, falta de acesso aos serviços públicos, foi
também identificada na fala das entrevistas, como se pode constatar:
- Agora, pra nós aqui nesse Conjunto, tá meio ruim pra nós...Nós tem
só um agente de saúde. Mas, Não tem médico. Chega no médico
sem conhecer mesmo, e pronto ! Você me atende, você me atende,
45
A noção de pobreza é ampla. A pobreza, compreendida como categoria multidimensional, não se
limita, somente, pelo não acesso a bens, mas se expressa também através da carência de direitos, de
oportunidades, de informações, de possibilidades e de esperanças. Convém mencionar que abordar a
problemática familiar em todas as suas dimensões e singularidades constitui uma tarefa difícil e
complexa, conforme esclarece Montãno (2012).
46
Inseridos numa ordem social que os desqualifica, os pobres passam também a ser marcados por
clichês, do tipo: inadaptados, marginais, problematizados, portadores de alto risco, casos sociais, dentre
outros, conforme Yazbeck (2012)
78
fulano me atende, é assim... Mas, a gente tem que dá graças a Deus
por isso ! (Depoimento concedido por Dona Ana)
Neste fragmento, pertencente a uma das avós entrevistadas, verifica-se a
falta de compromisso do Poder Público para com o próprio segmento populacional, a
que já atende, ou seja, que reúne necessidades constatadas pela equipe técnica
social municipal para intervenção pública, com maior atenção e continuidade.
Em decorrência das dificuldades enfrentadas na realidade diária, conforme
expresso no capítulo anterior, as famílias maracanauenses encontraram como
alternativas, de enfrentamento à sobrevivência (e, por que não dizer, garantia de
sobrevivência), os trabalhos esporádicos, ou seja, informais, também denominados
―bicos‖.
- Nós vendia era tapioca pra interar o salário que era pouco pra
sobreviver...Quando ele era vivo (o esposo), ele ajudava até a ficar
com eles (os netos) enquanto eu saia pra vender...tinha que ser!
(Depoimento concedido por Dona Ana)
Neste caso, acima apresentado, tem-se a seguinte situação: o bico é
realizado até mesmo pelos mais velhos, ou seja, a própria entrevistada, a fim de
complementar a renda familiar, haja vista de ter o compromisso tanto com a filha, que
retornou para casa, quanto para o neto. Mesmo já velhos, os genitores mantinham (ou
mantêm) as responsabilidades domésticas com suas diminutas aposentadorias.
Atualmente, apenas com uma aposentadoria, pois Dona Ana está viúva.
Cruz (2012) expressa, por oportuno, a noção de que ―em tempos da plena
fetichização do capital, reificado na fase atual pela hegemonia da globalização
financeira que tem como uma de suas expressões sociais o desemprego cultural (...)‖.
(P.242)
Neste espaço de incertezas, advindas do próprio capital, pode-se lembrar
das palavras de Bauman (2001), ao evidenciar o argumento de:
O capital pode viajar rápido e leve, e sua leveza e mobilidade se
tornam as fontes mais importantes de incerteza para todo o resto.
Essa é hoje a principal base da dominação e o principal fator das
divisões sociais. (P. 145).
79
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2001) em sua obra denominada
Modernidade Liquída, chama a atenção para a transição de uma Modernidade ―leve‖,
―fluida‖, que suplantou infinitamente a Modernidade ―sólida‖, de modo a ocasionar
intensas alterações em todos os aspectos da vida humana, inclusive nas relações,
fator este que causa preocupação também para os estudiosos da categoria família.
Em suas análises, Bauman (2001) abordou também o assunto referente às estratégias
de sobrevivência das famílias frente às teias da Modernidade.
Prado (1985) e Peixoto (2000) argumentam não se poder negar que o ato
de solidariedade, entre estas famílias, ainda é muito forte. Prado (1985) também
salienta que a família não corresponde, exclusivamente, a ―um tecido fundamental de
relações, mas também um conjunto de papéis socialmente definidos.‖ (P.23).
Por conseguinte, a família também pode ser compreendida como um
sistema complexo de relações, no qual seus componentes partilham um mesmo
contexto social de pertencimento. Conforme Fichter (1967), a família pode ser
interpretada como ―uma configuração ou combinação de padrões de comportamentos,
compartilhado por uma coletividade, e centrado na satisfação de algumas
necessidades básicas, do grupo‖. (P. 173)
Brushini (1990), todavia, chama a atenção para o fato de que ―não há
completa harmonia e unidade interna na família.‖ (P.77). Tal situação foi observada
nas três famílias das avós entrevistadas. Nas palavras de uma delas, no que
concerne a conflitos internos, considerou que: isso é coisa de família mesmo...é coisa
comum! (Dona Ana)
Acrescenta, ainda, que a família é um grupo social formado por pessoas
que se relacionam diariamente, produzindo uma dinâmica e complexa trama de
emoções, não consistindo numa soma de indivíduos, mas num conjunto vivo e
conflitante de pessoas com personalidade e individualidade próprias. É neste espaço,
possível de transformações, que deve ser ressaltada a dinâmica familiar, ponderando
também as peculiaridades da história de cada família, marcada pelos diversos
contextos sociais.
Enfocando o cotidiano das famílias, na batalha pela sobrevivência, Vitale
(2002) esclarece que
80
Inúmeros são os desafios que permeiam a vida da família
contemporânea. Podemos pensar em temáticas como violência intra
e extra familiar, desemprego, pobreza, drogas e tantas outras
situações que atingem a dolorosamente a família e desafiam sua
capacidade para resistir e encontrar saídas. (P. 45).
É válido explicar que os impactos desses desafios e mudanças sobre o
cotidiano das relações familiares atingem também a população envelhecida, ou seja,
os velhos de
cada família, de maneira a atribuir-lhes novas cobranças ante as
imposições que a própria dinâmica do sistema lhes expõe. Perceber a família como
um processo social, em elaboração e modificação, é alargar os horizontes para os
novos arranjos que surgem no interior destas.
Assim, aflora a participação do velho, representado nesta pesquisa pelo
recorte das avós, haja vista este contexto favorecer a mudança de papéis para estes.
Desse modo, observa-se que o papel do indivíduo velho foi modificado, tanto no
âmbito social quanto familiar
Torna-se, porém, salutar mencionar que as transformações sociais e,
consequentemente, familiares, que se expressam nos dias atuais, ocorreram de modo
gradativo mascarando uma realidade demasiadamente complexa. Neste trabalho, as
estratégias de sobrevivência estão, intrinsecamente, ligadas à compreensão das
relações pessoais que na sua base, com ênfase na inetergeracionalidade.
3.2 Organização familiar: da diversidade dos modelos aos dias
atuais
As diversas mudanças ocorridas no plano socioeconômico e cultural,
pautadas na globalização da economia capitalista, refletem também em interferências
no âmbito da estrutura familiar, ocasionando alterações em seu padrão tradicional de
organização. Assim sendo, a categoria família passa a demonstrar novas
características, ou seja, outra configuração em sua forma de estrutura e composição,
sendo, portanto, desconstituído o modelo de família tradicional ideal.
81
Abandona-se, portanto, o modelo patriarcal e cede-se lugar aos modelos
diversos, dos quais se originaram os também designados ―novos arranjos familiares‖.
Desse modo, não se pode falar em família, contudo, em ―famílias‖, de modo que se
possa tentar observar a diversidade de relações que a envolvem, do Brasil-Colônia à
sociedade atual.
Observa-se a família como categoria historicamente determinada, em que
as mudanças nela ocorridas correspondem a reflexos das modificações sucedidas na
própria sociedade. Assim, Benincá e Gomes (1998) concordam com Bruschini (1990),
ao defenderem o argumento de que ―a família é um organismo mutável, que
transforma e é transformado pela sociedade‖. (P.178). Tal fato chama a atenção,
principalmente, no tocante aos desafios surgidos para os avós do século XXI,
compreendidos como sujeitos desta pesquisa.
Em anuência ao pensamento de Benincá e Gomes (1998), Petrini (2003)
colabora neste estudo, ao exprimir a intenção de que:
A família encontra-se me constante mudança por participar dos
dinamismos próprios das relações sociais. O processo social dos
últimos séculos acelerou as mudanças, com conseqüências
substanciais em todos os aspetos da convivência humana. A família,
integrada
nesse
contexto,
necessariamente
passa
por
transformações de tal magnitude, que parece prestes a desaparecer.
(P. 60).
Faz-se necessário ressaltar que, além da variedade de modelos de família
entre as classes, e no interior dos grupos familiares, existe uma diversidade de
experiências familiares e de modos de organizações plurais ao longo da história, bem
como para diferentes modos de atribuir significados aos agrupamentos familiares47.
É mprescindível destacar entretanto que, a instituição família não perdeu
sua relevância, nem seu papel na sociedade. conforme Benincá e Gomes (1998),
Bruschini (1990), Petrini (2003) e Peixoto (2000). Portanto, faz-se relevante entender a
família não apenas como matriz da sociedade, mas feita um sistema em constante
transformação.
47
Como as famílias monoparentais, reconstituídas de pessoas sozinhas, os ―ninchos vazios‖ de velhos,
dentre outros mais visíveis na atualidade, dado seu crescimento demográfico.
82
Petrini (2003) faz uma excelente consideração, ao explicar que, no
decorrer da evolução histórica, a família persiste como matriz do processo civilizatório.
Compreendendo a família como sendo o fundamento da sociedade, referido autor
complementa, acentuando essa idéia:
Muitos estudiosos observam que a estrutura familiar continua
presente nas diversas culturas, em todos os períodos históricos,
como forma de relação social constitutiva da espécie humana. Esta
encontra no ambiente da família, não só os elementos favoráveis à
sobrevivência, mas as condições essenciais para o desenvolvimento
e a realização da pessoa. (P. 65).
Consoante ao que pensa Petrini (2003), Mello (2003) indica ser possível
identificar o movimento e a diversidade inerentes à instituição família, quando
assegura que ―em todas essas situações a família não está desorganizada, mas
organizada de maneira diferente, segundo às necessidades que lhe são peculiares‖.
(P.58). Torna-se, portanto, imperativo salientar que, neste movimento (de organização,
desorganização ou reorganização) do grupo familiar, as relações se modificam
constantemente, resultando no surgimento de outras atribuições.
Ao explorar a instituição família, sob a óptica relacional, pode-se perceber
que esta funciona com suporte numa interação mútua de seus membros (ou seja, as
partes), de modo tal que o conjunto (o todo) se torna mais que do que somatório das
partes, e que a alteração de uma destas modifica todo o produto. A família
corresponde, por conseguinte, a um sistema vivo, haja vista sua constante
transformação, conforme consideram Mello (2003), Petrini (2003), Szymanski (2003),
Benincá e Gomes (1998) e Bruschini (1990).
Para Petrini (2003), os vínculos familiares são capazes de traduzir uma
relação entre o indivíduo e a totalidade de sua existência:
Um grupo de pessoas é reconhecido como família quando se
configura como uma relação de plena reciprocidade entre os sexos e
entre as gerações. Trata-se de um recíproco pertencer, na maioria
das vezes não simétrico, constituído através de processos de
48
vinculação desenvolvidos em contextos diádicos . (P.72).
48
Referência do próprio autor: Donati, 1998; Bronfenbrenner, U. A ecologia do desenvolvimento humano:
experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
83
Ainda com relação à diversidade de formas que a categoria família pode
ostentar, Szymanski (2003) complementa:
O mundo familiar mostra-se numa vibrante variedade de formas de
organização, com crenças, valores e práticas desenvolvidas na busca
de solução para as vicissitudes que a vida vai trazendo.
Desconsiderar isso é ter a vã pretensão de colocar essa
multiplicidade de manifestações sob a camisa-de-força de uma única
forma de emocionar, interpretar (...). (P.27).
Assim sendo, constata-se que não é fácil definir ou mesmo compreender
claramente o que é a instituição família, como esta se compõe ou se relaciona, haja
vista não existir ―família regular‖, ou um modelo, como se pensava outrora. Curioso é
que apesar das alterações, a imagem da família ideal e estruturada, com base no
modelo nuclear, ainda possui influência nos dias de hoje.
Nas falas de Dona Rosa e Dona Conceição, narrando suas histórias,
percebeu-se que este ―modelo‖ ainda era idealizado e desejado. Na circunstância de
Dona Conceição, duas de suas filhas foram mães solteiras, e o desejo de vê-las com
família constituída, estruturada (ou seja, marido e filhos) fazia parte, inclusive, de suas
orações. Atualmente, a citada sente-se ―confortada‖ no sentido de suas filhas terem
casado novamente. Os frutos do primeiro relacionamento, todavia, ficaram sob a
responsabilidade da avó.
Ao estudar família, há de se perceber a existência de uma diversidade
(histórica e cultural) presente nas formas como as pessoas organizam sua vida
privada, as relações afetivo-sexuais, a prática de criação de filhos, a divisão das
tarefas domésticas, bem como de papéis, no grupo familiar. Assim sendo, faz-se
necessário observar que, dentro de cada cultura, a organização da vida privada pode
expressar formas e processos diferenciados.
3.2.1 Famílias brasileiras: História e dinamismo
Desde o início do período colonial49 brasileiro, o assunto família ocupa um
papel de grande relevância na História do País. Conforme a expressão empregada por
49
Nessa época, a família era popularmente conhecida como ―patriarcal‖ (focada na figura do pai), a qual
se tornou base para caracterizar a família brasileira. A família possuía uma composição o qual configurou
um padrão de ―família nuclear burguesa‖ que obrigatoriamente apresentava a existência de um homem,
uma mulher e filhos, todos com papéis sociais definidos.
84
Costa (1989), no período focalizado, a família era popularmente conhecida como
―patriarcal50‖, a qual se tornou fundamento para caracterizar os grupos familiares
nacionais.
Quanto às análises sobre a família, na sociedade atual, é imprescindível
ressaltar que estas constituem um mosaico que reflete os diferentes significados que
essa instituição, tão básica quanto complexa, pode assumir.
No tocante aos modelos de família, Samara (1986) chama a atenção para
um detalhe importante, referente às ―famílias extensas do tipo patriarcal‖, ao
esclarecer que estas não foram predominantes no Brasil, sendo, portanto trivial
encontrar aquelas com menor número de integrantes. Acrescenta ainda que a família
do tipo patriarcal adquiriu configurações regionalmente diferentes e mudou com o
tempo. Convém frisar que para alguns autores, o modelo patriarcal foi historicamente
analisado como insuficiente para dar conta das modificações peculiares às
organizações familiares no Brasil, da Colônia ao Império.
Durante os três primeiros séculos do período de colonização, o termo
família estava exclusivamente relacionado à ―família latifundiária‖ segundo Costa
(1989), porquanto, na época da organização/estrutura familiar, advinha todo poder
social, administrativo, político e econômico. Da família patriarcal derivou toda a
formação social do País.
Destaca-se a idéia de que, além da diversidade, quanto aos modelos
apresentados pela categoria família, havia também a presença de um arquétipo
dominante (ou padrão), compreendido no modelo patriarcal. Osterne (2001) defende o
argumento de que este modelo não existiu sozinho51, embora tenha exercido
importante papel em determinada época.
Ainda sobre o arquétipo do tipo patriarcal, Osterne (2001) corrobora com
este estudo, quando ensina o seguinte:
A famosa ‗família patriarcal‘ era decididamente uma forma dominante
de constituição social e também política. Obviamente não consegue
ser a única em termos de ordenamento social, uma vez que com ela
50
51
Definição no decorrer deste subcapítulo.
Conforme Osterne (2001), o modelo de família patriarcal passou a ser dominante ao se sobrepor às
formas oficiais existentes ao longo da história, as quais não foram compartilhadas pela maioria da
população brasileira.
85
competiam as leis e uma burocracia polarizada que correspondia à
ordem constitucional da sociedade. Não se pode negar é que o
modelo patriarcal, enfim, tenha exercido sua dominação além de ser
possuidor de expressiva visibilidade social, em razão do seu poder e
da capacidade dos seus elementos em exercerem o controle dos
recursos de poder no meio social. (P. 65)
Na família do tipo patriarcal, as funções eram deliberadas, sobretudo, em
razão do sexo. Assim sendo, mulheres e filhos ocupavam lugar de inferioridades em
face da figura masculina52, ou seja, do pai que tinha a obrigação de sustentar a família,
bem como de zelar pela sua unidade. À mulher, por sua vez, era reservado o papel de
mãe. O homem/marido era o provedor. A mulher/mãe a dona de casa.
Observa-se que a lenta transformação, no tradicional modelo familiar
(casal e filhos), aponta para alterações relevantes na família. Convém mencionar que
as mulheres, nos dias atuais, sobretudo nas camadas populares, possuem maior
responsabilidade pela gestão do orçamento familiar, conforme evoca Peixoto (2000).
Retomando o debate sobre a diversidade de modelos, Costa (1989)
explica que a família latifundiária, até o século XIX, incidia numa ―unidade de produção
e consumo‖. A família fabricava tudo de que necessitava (dos utensílios domésticos
aos objetos de uso pessoal) no próprio lar, ou seja, na casa-grande, marco dessa
estrutura familiar. De acordo com esse autor, sentimentos de intimidade ou
privacidade eram desconhecidos ou ausentes neste ambiente familiar.
Com base na obra do sociólogo Gilberto Freyre, no Prefácio à primeira
edição de seu sublime livro Casa-Grande e Senzala, a importância da casa-grande
pode ser constatada na afirmação do autor pernambucano, quando mencionar:
A casa-grande, completada pela senzala, representa todo um sistema
econômico, social e político: de produção (a monocultura
latifundiária); de trabalho (a escravidão); de transporte (o carro de boi,
o bangüê, a rede, o cavalo); de religião (o catolicismo de família, com
capelão subordinado ao pater famílias, culto dos mortos, etc.); de vida
sexual e de família (o patriarcalismo polígamo); de higiene do corpo e
da casa (o ―tigre‖, a touceira de bananeira, o banho de rio, o banho de
52
A este eram devidos respeito e obediência. Modelo tradicional da família patriarcal em que a expressa
dominação masculina lhe garantia privilégios. Vale lembrar que para as mulheres restavam-lhes ideais,
tais como: castidade e submissão (ver item 4.3 deste estudo).
86
gamela, o banho de assento, o lava-pés); de política (o
compadrismo). Foi ainda fortaleza, banco, cemitério, hospedaria,
escola, santa casa de misericórdia amparando os velhos e as viúvas,
recolhendo órfãos (1983: XXXVII).
Mediante transformações ocorridas na vida rural e na emergente
urbanização do sistema econômico, conforme estudos feitos por Osterne (2001), a
família patriarcal adentra a decadência, passando a ser exceção na organização da
Pátria social brasileira. Bruschini (1990) ratifica o pensamento da autora há instantes
mencionada ao exprimir que ―exceções ao modelo, porém, não reforçam sua
elasticidade como também a riqueza da realidade empírica, que de longe o extrapola‖.
(P.37)
No final do século XIX, num quadro ainda predominantemente latifundiário
e escravista, surge o tipo família burguesa ou modelo nuclear de família. Este era
fundamentado no triângulo pai, mãe e filhos, bem como numa complexa combinação
de autoridade e amor paternal. Observa-se que, com a chegada da Corte Lusitana ao
Brasil, o molde patriarcal, gradativamente, foi sendo substituído pela família nuclear
urbana, resultante de um conjunto de adaptações de regras importadas da Europa.
Conquanto, porém, essa organização familiar tenha se tornado ―moderna‖,
ela não nega as características patriarcais, pois, como ilustra Almeida apud Osterne
(2001),
A família nuclear burguesa, esse modelo ideal, surge no marco da
ascensão da burguesia industrial (...). (...) A família intimista, fechada
para si, reduzida ao pai, mãe e alguns filhos que vivem sós, sem
criados, agregados e parentes na casa, eis o modelo de modernidade
no limiar do século XIX. A mulher, ‗rainha do lar‘, mãe por instinto,
abnegada e vivendo em osmose com os bebês, sendo ela o canal da
relação entre eles e o pai, que só se fará presente para exercer a
autoridade. Essa família, é bom que se diga, continua patriarcal: a
mulher ‗reina‘ no lar dentro do privado da casa delibera sobre as
questões imediatas dos filhos, mas é o pai quem comanda em última
instância. Ou seja, no padrão ideal, ele deve comandar (...). (P. 69).
Ainda quanto à organização familiar, pode-se esclarecer que os grupos
familiares se mostram como diversificados, quanto ao parâmetro de composição.
Tomando como critério de análise a unidade doméstica, esta categoria pode ser
87
formada por famílias biparentais, famílias monoparentais, famílias compostas de várias
gerações, unidades ampliadas53, dentre outros.
Ante esta exposição a respeito dos arquétipos de família, verifica-se que
as expectativas em relação à família, existentes no imaginário coletivo, ainda se
expressam saturadas de idealizações, e, dessa forma, a família nuclear passa a ser
considerada como um dos símbolos, ou seja, a forma tradicional de se pensar família.
Samara (1986) admite que a família do tipo patriarcal marcou a sociedade com
vestígios de sua organização.
Convém salientar que a categoria família possui características e normas
baseadas nos costumes, como religião, hábitos, valores morais, que podem ser
diferenciados, todavia, os laços afetivos não se alteram. Na opinião de Prado (1985), a
família é ―uma instituição social que varia através da História e apresenta até formas e
finalidades diversas numa mesma época e lugar, conforme o grupo social que esteja
sendo observado‖. (P.12)
Não há como negar ser a família a unidade social que enfrenta uma série
de tarefas de desenvolvimento. Estas divergem junto com parâmetros das diferenças
culturais, entretanto possuem raízes universais, como defende Tepedino (1997), ―(...)
uma espécie de aspiração à solidariedade e a segurança que dificilmente pode ser
substituída por qualquer outra forma de convivência social‖. (P.326).
É importante ressaltar que não se está a considerar os tipos de família,
reconhecidas pelo ordenamento jurídico, tais como o casamento, a união estável,
família monoparental e sim, a essência da família lato sensu, considerando que todas
têm o fundamento principal que as originou, que é o aspecto emocional-afetivo.
Hinoraka (2001) manifesta- se, neste sentido:
[...] biológica ou não, oriunda do casamento ou não, matrilinear ou
patrilinear, monogâmica ou poligâmica, monoparental ou poliparental,
não importa. Nem importa o lugar que o indivíduo ocupe no seu
âmago, se o de pai, se o de mãe, se o de filho; o que importa é
pertencer ao seu âmago é estar naquele idealizado lugar onde é
possível integrar sentimentos, esperanças, valores, e se sentir, por
53
Onde além de pai, mãe e filhos existem outros componentes.
88
isso, a caminho da realização de seu projeto de felicidade pessoal (P.
72).
Consideradas como grupos sociais concretos, as famílias são unidades
sintetizadas, haja vista que a realidade cotidiana não se enquadra por inteiro em
qualquer que seja o modelo sugerido. Dessa forma, percebe-se que a categoria família
se mostra numa pluralidade de formas e sentidos, conforme aponta Alcântara (2010):
A instituição família comporta uma diversidade de práticas, maneiras
de organizar valores e visões de mundo diante das mudanças
socioeconômicas e políticas, e não ponderar essa multiplicidade de
expressões é incorporar o modelo hegemônico da ‗família pensada‘,
imposto por um discurso oficial – seja o das instituições, o da mídia
ou o de profissionais; tal discurso reforça a imagem da família nuclear
burguesa – isto é, monogâmica, composta de mãe, pais e filhos –
como um valor. (P. 92).
Vale frisar que, na atualidade, a família não se mostra decadente,
degradada e/ou desvalorizada, entretanto, inegavelmente é, diferente em seu modo de
organização e enfrentamento do cotidiano. Carvalho (2003) faz uma consideração
relevante, ao mencionar a necessidade de ―olhar a família em seu movimento‖,
considerando-a como um grupo social, em que seus movimentos de organização,
desorganização ou reorganização mantêm um estreito vínculo com o contexto
sociocultural.
Szymanski (2003) corrobora com a afirmação de Carvalho (2003) e alerta
para a importância de apreender o cotidiano familiar, o qual exprime regras e códigos
próprios, num modelo que passa a ser elaborado historicamente, ou seja, a ―família
vivida‖. Importante destacar que a autora opta pelo afastamento de arquétipos rígidos
e preestabelecidos, dando ênfase às particularidades dos grupos ou organizações
familiares.
Assim sendo, ao se estudar a vida privada, é possível notar o quanto é
difícil acompanhar a natureza das mudanças em curso. Carvalho (2003) defende o
argumento de que tal dificuldade sucede em razão da complexidade e amplitude das
situações que permeiam este fenômeno de movimento. Ao longo das leituras sobre a
temática família, é válido enfatizar que se torna impossível atribuir a esta um formato
singular, um modelo único ou ideal, que possa abranger as relações humanas, e, por
89
conseguinte, a complexidade do debate sobre família. Estudar família é compreendêla como processo mutável, e não como um sistema pronto e finalizado.
Nesse sentido, Alcântara (2010) reforça que:
Os estudos antropológicos advogam o reconhecimento das relações
familiares como um constante processo de grande complexidade
social, no qual se constrói uma pluralidade, na qual gênero, geração e
sexo operam como categorias fundamentais para o estudo da família.
Tomar tal fenômeno sob a perspectiva de normas estabelecidas
impossibilita a apreensão de um universo tão heterogêneo e
dinâmico. (P. 93).
Ao lado, porém, da variabilidade dos tipos de família, observa-se, portanto,
a existência relevante de alterações nos padrões familiares, haja vista que a
particularidade de como cada núcleo familiar cuida de seu equilíbrio e sobrevivência
interage com os relacionamentos interpessoais, bem como intergeracionais de seus
membros. Em oposição à família pautada em padrões normativos, foi regida esta
pesquisa de modo a ser considerada, portanto, a ‗família vivida‘.
3.3 A modernidade e suas consequências na família
Nos dias atuais, não se pode falar em modelo familiar único, haja vista a
evidente heterogeneidade das configurações familiares encontradas no cenário social,
conforme mostrado no tópico anterior.
Ao longo deste estudo, identificou-se a instituição família como alvo de
constante mudança decorrente da própria estrutura e conjuntura da sociedade. Como
diz o poeta Carlos Drummond de Andrade, citado por Iamamoto (2004): ―Este é tempo
de divisas, tempo de gente cortada‖. (P. 17).
Iamamoto (2004) ratifica essa exposição, ao ressaltar que a sociedade
atual passa por profundas transformações, tanto em sua estrutura econômica quanto
nas relações sociais, fato também expresso por Bauman (2001).
90
Nas palavras da autora Iamamoto (2004), tal situação vivenciada
corresponde a tempos difíceis, em que o emprego e o subemprego expressa
nitidamente o adensamento da questão social. Sobre estes novos tempos, Bauman
(2001) acrescenta que ―a vida de trabalho está saturada de incertezas‖. (P.169).
É válido salientar serem diversos os estudos elaborados acerca de
mudanças ocorridas na instituição família. Alguns destacaram questões que afetam as
relações de parentesco, como também os laços biológicos e familiares. Convém
destacar que as alterações ocorridas no seio familiar, as quais podem ser facilmente
notadas no mundo contemporâneo, trouxeram consigo novos desafios à população
identificada como velha, principalmente no recorte da figura das avós cuidadoras de
seus netos.
Seguindo esse raciocínio, Alcântara (2010) ressalta que ―a esta nova
configuração atribui-se a rapidez das mudanças (...)‖. (P. 102); mudanças estas
consequências da emergência sociedade pós-industrial, as quais suscitam na
sociedade contemporânea um processo de redefinição em diversos âmbitos, ou seja,
são novos valores que configuram outra visão de mundo, de sociedade, de momento
histórico que se instala globalmente.
Bauman (2001) aborda, em seu conceito de Modernidade líquida, as
constantes mudanças expressas pela população, na sociedade global; transformações
estas que também podem ser mostradas como caráter negativo e influenciador direto
das relações humanas; e, por que não dizer, de parentesco e/ou papéis?
Numa linha próxima de pensamento, Ferrigno (2003) explana:
A mudança de comportamento dos idosos, ao que parece,
acompanha a mudança de hábitos da sociedade como um todo. Se a
modernidade caracterizou-se por uma organização, classificação,
ordenação do ciclo de desenvolvimento humano, uma certa
‗desorganização‘ da vida social e familiar é vista por certos autores
como indício de um outro momento histórico que apenas está
iniciando e que alguns chama de Pós-modernidade. (Pp. 61-62).
Vitale (2005) colabora com esta discussão, ao alertar para a idéia de que
―as condições socioeconômicas imprimem organização material à vida cotidiana dos
idosos e atribuem significados ao seu vínculo com os netos.‖ (P.104). A elevação do
índice da convivência entre avós e netos, atualmente, toma grandes proporções, bem
91
como inquietações para os curiosos e/ou estudantes do assunto, haja vista a
amplitude desse ―cuidado‖ no dia a dia, o qual perpassa situações como: fornecer
recursos financeiros, apoio emocional, dentre outras implícitas nas relações de
parentesco. Neste contexto, Peixoto (2000) alude que os avós passam a ―ser o apoio
com que os netos podem contar‖ (P.110)
Ainda sobre a abordagem da relação entre a Modernidade e suas
ingerências no meio familiar, Petrini (2003) ressalta que o horizonte (ou a lógica) do
mercado influi constantemente nestas, à medida que
Realiza atualmente, com um radicalismo inédito, a sua vocação
originária de ser ―auto-regulado‖, e invade todos os aspectos até
mesmo os recantos mais íntimos da vida familiar e da consciência
pessoal, difundindo seus critérios, valores, (...) realizando a mais
ampla ―colonização do mundo da vida.” (P. 178).
Assim sendo, pode-se destacar que as transformações sociais por que a
família contemporânea passa a influenciam a redefinição dos laços familiares, e,
consequentemente, altera o cotidiano das relações destas enfatizando, assim, a figura
da pessoa velha na sociedade atual, ou seja, dos avós, no contexto social.
Ainda de acordo com Bauman (2001), a Modernidade e suas incertezas
produzem consequências em todas as relações, direcionando famílias na adoção de
estratégias, até mesmo de sobrevivência, para enfrentar os desafios impostos pela
sociedade contemporânea. O autor evidencia, em seu conceito de Modernidade
líquida, as transformações vivenciadas pela população inserida no mundo globalizado.
Seguindo o raciocínio de Bauman (2001),
A nova instantaneidade do tempo muda radicalmente a modalidade
do convívio humano – e mais conspicuamente o modo como os
humanos cuidam (ou não cuidam, se for o caso) de seus afazeres
coletivos, ou antes, o modo como transformam (ou não transformam,
se for o caso) certas questões em questões coletivas. (P. 147).
Yazbeck (2012) compartilha da análise ora exposta, e aborda a pobreza
como um dos produtos da questão social, e, portanto, expressão direta das relações
vigentes na sociedade capitalista e desigual.
92
Os ‗pobres‘ são produtos dessas relações, que produzem e
reproduzem essa desigualdade no plano social, político, econômico e
cultural, definindo para eles um lugar na sociedade. Um lugar onde
são desqualificados por suas crenças, seu modo de se expressar e
seu comportamento social, sinais de ‗qualidades negativas‘ e
indesejáveis que lhes são conferidas por sua procedência de classe,
por sua condição social. Este lugar tem contornos ligados á própria
trama social que gera a desigualdade e que se expressa não apenas
em circunstâncias econômicas, sociais e políticas, mas também nos
valores culturais das classes subalternas e de seus interlocutores na
vida social. (P. 289).
Retomando a globalização e seus efeitos, tanto Bauman (2001) quanto
Giddens (1991), autores que trabalham com a Modernidade, tema de grande
relevância nos debates das Ciências Sociais, reconhecem as dificuldades que o
mundo globalizado impõe às pessoas, neste estudo refletido como transformador,
inclusive, nas relações de parentesco.
Nas exposições de Petrini (2003), verifica-se que, em meio às turbulências,
a família se empenha em reorganizar, na sociedade contemporânea, aspectos de sua
realidade que o ambiente sociocultural vai desgastando. Na opinião do referido autor,
tal situação acontece por estarem as famílias ―reagindo aos condicionamentos
externos, e ao mesmo tempo, adaptando-se a eles, a família encontra novas formas
de estruturação que, de alguma maneira, a reconstituem (...).‖
Assim como Petrini (2003), Bauman (2001) admite que o núcleo familiar
seja atingido por fatores externos a ele, ao abordar os efeitos de uma ―modernidade
liquída‖, em que, por meio desta, é possível estabelecer uma relação no que concerne
a esta ―liquidez‖ também em diversos âmbitos, que passa a afligir também as relações
interpessoais cotidianas.
Ao considerar o fenômeno da liquidez, proposta por Bauman (2001), é
possível compreender que os liquídos não possuem formas, e desse modo, passam a
se acomodar/adaptar conforme os invólucros que os contêm. Assim é a família, nos
dias atuais, em seu ajustamento aos desafios que lhe são instituídos.
Estudar as transformações ocorridas na sociedade, inclusive nas relações
diversas (trabalho, família e comunidade), em Bauman (2001), é compreender que o
contexto de todas estas relações deixam de ser concretos, passando a ser líquidos e
relativos ao espaço, ao tempo, dentre outros. Portanto, reportar-se às conseqüências
93
da Modernidade, seguindo o pensamento desse autor, consiste em ponderar também
sobre sentimentos diversos, sejam eles medo, ansiedades e incertezas.
3.4 A fluidez nas relações: a participação dos avós no contexto
familiar
No Brasil, pesquisas revelam a diversidade ocorrida na organização
familiar, tanto no que se refere à sua composição quanto no que concerne às formas
de sociabilidade que vivificam em seu interior, as quais trazem consigo mudanças
também em suas relações. Aqui, há de se avaliar entrelaçamento da vida privada com
a pública.
Ante a elevação da expectativa de vida, os papéis familiares foram
alterados, dada a complexidade de circunstâncias criadas por fatores socioculturais e
econômicos, os quais afetaram diretamente a dinâmica da estrutura familiar,
contribuindo, assim, de modo relevante, na composição e recomposição da família
moderna.
Nessa perspectiva, Peixoto (2000) indica: ―(...) notamos que nunca a vida
privada apresentou tanta porosidade vis-à-vis a vida pública. Isso se manifesta pelo
fato de que a primeira é cada vez mais atravessada por mecanismos de
funcionamento próprios da segunda.‖ (P. 8). Para a autora, a instituição família não
está enfraquecida, todavia, se deparando com o surgimento de novos modelos
familiares, constituídos com base nos fenômenos sociais, como: transformações nas
relações entre os sexos, inserção massiva da mulher no mercado de trabalho, dentre
outras.
No que se relaciona à revolução na escolaridade das mulheres e a relação
com as transformações ocorridas no âmbito familiar, Peixoto (2000) exprime a noção
de que:
Uma das revoluções mais marcantes do século XX foi certamente a
progressiva escolaridade das mulheres e a possibilidade de elas
obterem os mais diversos diplomas e especializações. O acesso das
94
mulheres à instrução afetou o conjunto de seus comportamentos.
Apesar de persistirem importantes desigualdades profissionais e
familiares entre os gêneros, a escolarização das mulheres contribuiu
para atenuar os efeitos desses fenômenos, autorizando-as a utilizar
estratégias que colocam em questão a ordem vigente. Cada vez mais
diplomadas, as mulheres participam ativa e maciçamente da vida
profissional e têm acesso a empregos mais qualificados do que no
período precedente. Tais mutações são acompanhadas de profundas
transformações pessoais e familiares, que se traduzem sobretudo em
um aumento do número de mulheres solteiras e em uma
reinterpretação dos modelos conjugais e familiares. (P. 63).
Contrariamente, destacam-se aqui as melhores condições de vida que
demonstrou as pessoas envelhecidas, as quais por meio delas, se torna evidente sua
elevada participação no mundo associativo e é visível uma melhor integração na rede
familiar. Peixoto (2000) elabora, todavia, os seguintes questionamentos: ―que papel
ainda desempenham os avós no seio da família? São eles os transmissores das
histórias familiares, dos comportamentos e dos saberes ?‖ (P.96)
Importa levar em conta o fato de que tais transformações sociais
enfrentadas pela categoria família contribuíram para o crescimento do número de
famílias nas quais coexistem três ou quatro gerações, e, portanto, a assistência
financeira do domicílio atravesse uma mobilidade social geracional. Assim sendo, os
avós passam a contribuir para melhorar a condição de vida das famílias.
Tal subsídio, ofertado pela população mais velha aos mais jovens (filhos
e/ou netos) pode dizer respeito tanto as aposentadorias, quanto o próprio trabalho da
pessoa velha para complemento, ou até mesmo sustento do núcleo familiar. Nas
histórias das três avós, abordadas nesta investigação, todas foram responsáveis por
suprirem, além das necessidades das suas filhas, também as de seus netos.
- Eu é quem sustentava tudim. É.. Eu trabalhava. Eu ganhava salário.
Eu trabalhei quatro anos numa casa lá de uma senhora. (Depoimento
concedido pela Dona Rosa, 61 anos)
Desse modo, é mister mencionar a situação a que estão expostos os avós
no século XXI, que não se constitui isoladamente, portanto, está inserida nos desafios
da contemporaneidade. A evidência expressa por Petrini (2003) é de que nesse
panorama de mudanças, também observado nas palavras de Mello (2003), pode-se
destacar o novo modelo que assumem as relações intergeracionais na atualidade.
95
Vale frisar que, no contexto da estrutura proposta pelo núcleo familiar, devem ocorrer
as interpretações54 presentes nas inter-relações.
Compreende-se a família como uma rede de parentesco, cujos membros
se organizam com objetivo cotidiano de existência e sobrevivência, valendo ressaltar,
portanto, a participação das mulheres avós na vida de seus netos, com ênfase nas
famílias pobres. Neste sentido, Sarti (2003):
Essa rede que constitui a família pobre, através da qual as relações
familiares se atualizam, permite revitalizar o sentido do papel central
das mulheres na família, reiteradamente destacado na literatura
sociológica e antropológica sobre as famílias pobres no Brasil. (P.70)
Ainda no que concerne às relações intergeracionais, nesta conjuntura,
Petrini (2003) expressa opinião:
Nesse cenário de mudanças, é necessário compreender os novos
arranjos familiares, as novas características que as relações
intergeracionais assumem e os sistemas de referência disponíveis
para pessoas e famílias nos diversos momentos do ciclo da vida, bem
como as funções que assume a família na atualidade, sua relação
com os dinamismos sociais, em ambiente caracterizado por
pluralismo ético, cultural e religioso. As relações entre os sexos e as
gerações constituem o fulcro da realidade familiar, ao redor do qual
diferentes modelos se estruturam e se decompõem, em
conseqüência de circunstâncias históricas e sociais, culturais e
ideológicas diversas, dando origem ora a modelos nos quais
prevalecem a cooperação, a reciprocidade, a solidariedade, a
negociação, ora a modelos nos quais prevalecem a disputa, a
competição, ou a indiferença, a estranheza e o conflito. (P.62)
Considerando a contribuição das relações intergeracionais no contexto
familiar na contemporaneidade, Szymanski (2003) acrescenta que não se pode
―desconsiderar a inegável influência das inter-relações pessoais na infância e
adolescência‖.
Convém destacar o fato de que alterações ocorridas no seio familiar
trouxeram consigo rearranjos de papéis e funções. Osterne (2001) afirma que, no
mundo contemporâneo, as mudanças ocorrentes na família possuem para estas
certas conseqüências como a perda do sentido da tradição.
54
Petrini (2003) chama a atenção para as novas características que estas relações passam a ostentar,
além das funções que toma para si a família na atualidade.
96
Vale ressaltar que transformações socioculturais e históricas ocidentais
são fatores de relevantes contribuições, no que se refere às mudanças por que passa
a categoria família, tanto em sua estrutura quanto em sua função. Não se pode
desconsiderar que a elevação do fenômeno da longevidade corresponde a um dos
aspectos que cooperam para as modificações na família, influenciando os
relacionamentos entre as gerações, bem como diversificando as funções da pessoa
velha na dinâmica familiar.
Quanto à relação entre estudar as categorias velhice e família, Alcântara
(2010) faz excelente explanação, ao esclarecer que
É improvável abordar a questão do envelhecimento no contexto
brasileiro, hoje, sem contemplar a família. Assim, pensar a velhice,
tomando a família como perspectiva, é adentrar no âmbito das
relações, de maneira a conhecer os modos pelos quais os indivíduos
lidam com as peculiaridades de cada geração, além dos papéis que
cada um desempenha no grupo (...). (P. 94)
Compreende-se que esta intensa participação das avós, no seio familiar, é
uma realidade complexa que demanda estudos que busquem apreender as
transferências intergeracionais, haja vista estas velhas-avós emergirem, no cenário
contemporâneo, como personagens centrais na vida de seus familiares.
Com efeito, no que se diz respeito às transformações ocorridas nos
―novos‖ papéis intergeracionais, Camarano (1999) exprime seu ponto de vista assim:
[...] os padrões de assistência entre as gerações devem ser vistos no
contexto dinâmico do curso de vida das pessoas e das mudanças nas
relações familiares (...) as novas imagens do envelhecimento, que
expressam as mudanças sociais e redefinem identidades, vem
acompanhadas de uma rediscussão sobre a família, envelhecimento
e sobre a dialética entre dependência/interdependência entre
gerações. (P.86)
Vitale (2005) e Camarano (1999) compartilham da mesma idéia quanto à
relevância dos avós no contexto familiar contemporâneo e a relação entre eles e seus
netos. Nos dias atuais, é comum identificar crianças e/ou adolescentes ―criados‖ por
avós, considerando o sentido mais amplo da palavra, haja vista que esta relação
aconteça de lares cujos pais são ausentes ou em lares multigeracionais (ou
97
transgeracional55), isto é, compostos por pais, avós e até mesmo bisavós. Assim
sendo, os avós velhos, no século XXI, passam a atuar como pais.
Nas histórias das avós, abordadas neste estudo, o verbo cuidar toma
proporções mais amplas, haja vista envolver situações como cuidados básicos e
diários (desde o nascimento), preocupação com acompanhamento médico, compra de
remédios, realização de desejos de consumo, o ato de educar, de aconselhar, o
acompanhamento escolar, bem como o carinho e atenção.
Os aconselhamentos ou ―noções recebidas pelos avós‖ (p.73), de acordo
com Bosi (1994), foram também características registradas nos rotineiros encontros
com as entrevistadas, principalmente nas conversas com Dona Ana, a avó mais velha
que participou do estudo. Ela gostava de confidenciar ―alguns mimos‖ (compras de
presentes mais caros) que fazia para o neto que mora com ela. Tais relatos eram
contados em forma de segredo, segundo ela própria. E a razão para isso? Não
despertar nos demais netos sentimentos de inferioridade ou ciúmes.
O fato que chama a atenção é a presença ou o contato das genitoras em
todas as situações. Não foram, porém, todas as avós que consideraram as mães
como responsáveis, pelo menos no sentido moral, por seus filhos. Na opinião de Dona
Conceição, ser uma avó cuidadora de neto é ser uma mãe...Mas, eu sou mais mãe
dele do que ela, do que ela que teve né ? Já na opinião de Dona Rosa, sua filha
sempre fez opção por más companhias, pessoas erradas...vagabundas !
Atualmente, observa-se ser expressiva a presença dos avós no espaço
doméstico como cuidadores de netos, sem desconsiderar, portanto, outras funções
que eles, os avós, podem também assumir. Vale lembrar que as relações e as
dependências intergeracionais, nesta pesquisa, compreendem o relacionamento entre
avós-netos.
Contribuindo neste debate, Fonseca (2002) adverte para essa idéia:
Os primeiros nascidos de uma geração freqüentemente passam seus
primeiros anos com uma avó que, cuidando deles, cumpre as únicas
obrigações familiares. Vinte anos depois, quando a obrigação se
55
Refere-se à coexistência/convivência de duas (ou mais) gerações dentro de uma mesma família.
98
transforma em direito, a vó pode muito bem reivindicar, na sua
velhice, a companhia de um dos netos mais novos. (P.32)
Indagadas quanto à existência ou não de diferença, no que se concerne ao
cuidado dedicado ao primeiro neto em relação aos demais, as avós entrevistadas
foram unânimes em dizer que não havia, contrariando, dessa forma, parte da
explanação de Fonseca (2002).
- Tem diferença não. Todos eu quero bem. Tudo é uma coisa só.
(Depoimento concedido por Dona Conceição, 67 anos)
- Não, minha filha. Não tem diferença ! (Depoimento concedido por
Dona Ana, 74 anos)
- O amor é igual. Ser avó que cuida é como ser uma segunda mãe.
(Depoimento concedido pela D. Rosa, 61 anos)
Consoante a perspectiva de Fonseca, ―ao cuidar de um neto, por exemplo,
uma mulher justifica sua demanda de apoio e afeto aos seus próprios filhos‖. (P.33).
Assim sendo, constata-se que o desempenho do papel ampliado que
assumem os avós no âmbito familiar contemporâneo excede a imagem que outrora
ocupava o imaginário coletivo, ou seja, a dos avós como exclusivos transmissores de
legados geracionais, conforme ressalta Vitale (2005): ―a herança simbólica, a
transmissão da memória familiar‖. Ela complementa, dizendo que ―os avós que estão
em nossa volta ou os que alguns de nós somos hoje tendem a se distanciar dos
modelos guardados em nossas lembranças‖. (P. 93)
Ao falar em imaginário, interessante é destacar uma personagem clássica
do escritor Monteiro Lobato56 - Dona Benta - é um dos componentes de uma das obras
de maior destaque na literatura infantil, o famoso: Sítio do Picapau Amarelo, produção
esta que atravessa gerações. Nesta literatura, Dona Benta é uma avó cujos netos são
Pedrinho e Narizinho (crianças protagonistas da história que se desenvolve no sítio da
avó, denominado de Sítio do Picapau Amarelo). A avó desta fabulosa história referese a uma senhora simpática, de cabelos brancos presos em coque e um livro na mão.
Esta personagem foi utilizada como padrão para as avós brasileiras, durante muito
tempo.
56
Um dos mais influentes escritores brasileiros do século XX, José Bento Renato Monteiro Lobato, na
literatura, destacou-se no gênero ―conto‖. Nascido em Taubaté-SP, em 18.04.1882, referido escritor
faleceu aos 66 anos de idade, no dia 05.07.1948.
99
Saltando da ficção para a realidade, convém acrescentar que esta relação
passa, antes de tudo, pelos circuitos constituídos internamente na família, portanto,
pela dinâmica de vida familiar. Tal transformação presente na relação avós-netos foi
abordada também por Peixoto (2000) e Vitale (2005).
Vivenciando uma circunstância que, muitas vezes, lhe aparece como
inesperada, a população velha, aqui representada pelos avós, assume nova função na
sociedade contemporânea: a de provedor ou pilar econômico do grupo familiar.
Camarano (1999) salienta que tais transferências intergeracionais ganham importância
no seio familiar. Na opinião dessa autora, a nova configuração familiar em que muitos
velhos estão inseridos advém:
[...] não só pelo mencionado aumento da longevidade, mas também
por novas realidades sociais resultantes de igualmente profundas na
estrutura da família, no mundo do trabalho, [...] e em várias outras
dimensões da economia e da sociedade. (p. 254).
Destarte, pode-se observar em dias atuais que a responsabilidade e/ou
colaboração dessas avós-velhas, seja financeira ou moral, sobrepõe-se a elegância
dos cabelos brancos, os quais anteriormente representavam, apenas, respeito,
afetividade, companheirismo e tranquilidade. Por conseguinte, no interior das famílias,
a relação de cuidados das avós para com os netos também é alvo de modificações
culturais e sociais, como diz Vitale (2005), ao classificar os avós como uma espécie de
―pais adotivos‖, considerando aqui o sentido mais amplo da palavra.
Lopes e Park (2005) confirmam a ideia ora apresentada por Vitale (2005),
ao destacarem que existem ―avós que são pais‖ e ―avós que são avós‖. No primeiro
caso, ambos fazem alusão ao cuidado desses avós num sentido amplo e complexo, o
qual não se define, apenas, na posição geracional, mas também no significado social
que assumem para o grupo, em seu cotidiano. Já no segundo caso, reportam-se a um
modelo anterior em que o amor, o interesse e a participação sem responsabilidade
estavam atrelados aos avós.
Na relação avós-netos, pode-se observar a existência de uma relação de
troca entre estas duas gerações, tão distintas e próximas ao mesmo tempo, parecendo
até mesmo uma relação de complementaridade. Para Peixoto (2000), ―os laços entre
avós e netos se tecem pouco a pouco‖. (P.98). Sobretudo no que tange ao
desenvolvimento dos seus netos a influência é recíproca. Desse modo, se pode
100
acentuar que a relação entre essas duas gerações possui caráter mutuamente
relevante.
Vale frisar que, ao analisar a relação dependência e velhice, Camarano
(1999) adverte que, embora haja uma associação estabelecida entre estas, haja vista
o indivíduo consumir mais do que produz, a partir de determinada idade, que se
convenciona chamar de ―idosa57‖, no caso do Brasil a situação é diferente.
Essa autora argumenta que na, evidência empírica da realidade brasileira,
não se observa clara a associação ora descrita. Com efeito, Camarano (1999)
considera que a população velha (vista como, socialmente, ―beneficiária58‖), na
atualidade, passa da condição de assistida a assistente. Sobre este assunto, Vitale
(2005) concorda com a exposição de Camarano (1999), quando assinala que os netos
ou filhos adultos também são assumidos, em todas as áreas, haja vista que,
[...] levando em conta as dificuldades experimentadas pelos adultos
jovens dessa década, o idoso, (...) tem crescentemente recebido em
seu domínio filhos adultos e crianças classificadas como parentes, os
quais na maioria das vezes são netos. (P.304).
Compreendendo, portanto, que a família é o grupo social concreto por
meio do qual são realizados os vínculos, os avós constituem uma espécie de elo entre
as gerações. Assim sendo, eles podem dedicar uma contribuição considerada rica e
até mesmo complexa aos seus netos. Tal aporte pode ser encarado tanto de forma
emocional quanto econômica.
Muitos são os fatores que colaboram para este estatuto de ―pais reservas‖,
dirigido aos avós (cuidadores de netos) nos dias atuais, como gravidez na
adolescência, morte dos genitores, envolvimento com drogas, dentre outras situações
que fazem dos avós figuras relevantes na socialização, como também na criação dos
netos.
57
Informa-se que nesta pesquisa opta-se por utilizar a palavra velho para fazer alusão aos sujeitos desta,
haja vista que eufemizar a situação (ou os sujeitos) não é interesse da pesquisada.
58
Aludindo ao período/fase da aposentadoria, como pondera Ferrigno (2003), ao esclarecer que ―(...) para
cada etapa da existência há um conjunto de normas e de expectativas próprias de cada sociedade.‖
(p.74)
101
- E o pai dele é um...Bixovéi lá da banda do Maracanaú. Mas, aí
depois ele... Eu descobri que ele vive nas drogas. Aí, um dia, ele
falava que eu não levava o menino lá e eu levei o bichinho. Lá, achei
foi ele drogada lá... Pensa que o menino quer ir mais lá ? quer não !
(Depoimento concedido por Dona Conceição, 67 anos)
Nas histórias abordadas neste estudo, a gravidez na adolescência e o uso
de drogas foram identificados como motivos fortes para que esses netos passassem a
conviver na companhia de suas avós. No caso das filhas de Dona Conceição, as
citadas estabelecem novos relacionamentos, os quais deram origens a outros filhos
que permaneceram com seus genitores.
Já a filha de Dona Rosa, segundo a entrevistada, constitui vários outros
relacionamentos e ainda não se firmou com ninguém. Assim a responsabilidade das
avós entrevistadas entrou em cena e não contou também com ajuda dos genitores dos
netos, haja vista o envolvimento deles no mundo obscuro das drogas. Retomando o
fator socialização na relação avó e netos, Bosi (1994) se manifesta, declarando que
―eventos considerados trágicos para os tios, pais e irmãos mais velhos são
relativizados pela avó‖. (P. 73). Convém frisar que, durante as conversas, foi possível
perceber que tal atitude possuía dois significados, estabelecidos elas mesmas (as
avós): proteger e amenizar os impactos que estas histórias pudessem trazer para a
vida de seus netos.
O retorno à casa dos pais, segundo Peixoto e Luz (2007), não se refere a
um fenômeno recente. Então, a novidade consiste na elevação dos números destes
arranjos por parte dos jovens oriundos de classes sociais, tanto popular quanto média.
Este exemplo de rearranjo familiar também pode receber o nome de ―famílias
ampliadas‖. Nos dias atuais, tornam-se frequentes os tipos de rearranjos familiares em
que os indivíduos denominados ―velhos‖ estão incluídos.
Com efeito na avaliação de Camarano et al. (1999), avalia que ―(...) não se
sabe se, por exemplo, se do ponto de vista dos idosos os arranjos familiares
predominantes estão refletindo as suas preferências ou se são resultado de uma
‗solidariedade imposta‘‖ (p.145), ou seja, a formação de famílias contendo três ou mais
gerações não pode ser simplesmente elucidada por preferências, mas pode ser fruto
de razões econômicas, cabendo aos mais velhos prestar apoio material aos filhos e
netos dependentes.
102
No enfoque das relações intergeracionais, Vitale (2005), em conformidade
com Camarano (1999), ressalta a figura das avós, em um contexto de modificações
dos laços familiares, os quais lhes demandam novas funções e exigências. Nos dias
atuais, as avós passam a ser responsáveis diretas, inclusive, no tocante ao sustento
dos netos, independente da presença ou ausência dos genitores dessas crianças e ou
adolescentes, por motivos diversos.
Concluindo este raciocínio, Vitale (2005) pondera:
Cuidar, educar ou ser responsável ? Disciplinar, ser companheiro das
brincadeiras, contar histórias, oferecer pequenos presentes, passeios,
guloseimas, conselhos, ouvir sentimentos, segredos, acolher, suprir
algumas necessidades infantis, ajudar a sustentar, transmitir as
histórias familiares...esses e tantos outros aspectos indicam a
diversidade de situações que envolvem os avós. (P. 95).
O ato de cuidar corresponde a uma atribuição, prioritária, do gênero
feminino. Mascaro (1997) destaca que no Império Romano, as famílias abastadas
―confiavam sua casa de campo e seus filhos aos cuidados da avó ou de uma parenta
idosa, virtuosa e responsável‖. (P. 27). Assim, verificou-se que as mulheres foram as
primeiras cuidadoras e que estas desempenhavam seu papel no seio familiar,
principalmente na função de mãe.
E por que não citar as escravas e amas, as governantas, as babás, as
religiosas, as avós, bem como as demais mulheres que exerciam e/ou cumprem o
papel de cuidadoras ?
Neste trabalho, que reflete sobre a família, as atenções se dirigem para a
figura da avó, muito significativa, todavia, pouco reconhecida na sociedade, e até
mesmo no âmbito acadêmico, conforme verificado por estudantes e autores da
temática. O destaque dado à figura da avó é também expresso no ditado popular: ―ser
mulher-avó e ser mãe duas vezes‖. Considerando esta premissa, Leite (2004) enfatiza
que ser avó ―significa também ter cumprido todas as etapas da vida de uma mulher na
sociedade e na família‖. (P. 54).
103
Tomando por exemplo a análise feita por Dona Conceição, uma das avós
entrevistadas, no que concerne à ênfase na figura da avó cuidadora de netos, ela
expressou: Eu sou mais mãe do que ela !
Nesta perspectiva, Bacelar (2002) assinala que o estudo da figura da avó
se torna complexo também ―pela carência de informações a seu respeito‖. E
complementa:
[...] os estudiosos lamentam a escassez de estudos sobre muitos
aspectos referentes à família, entre os quais destacamos aqueles
pertinentes aos avós, especialmente à presença da avó, tão marcante
na constelação familiar e que necessita de maiores esclarecimentos
além da rotina no cotidiano das famílias: cuidar dos netos ou ajudar a
filha nas tarefas domésticas. (Pp.26-27).
Vitale (2005), em conformidade com Ferrigno (2003) e Bacelar (2002),
reforça a noção de que embora haja ―reconhecimento inegável da importância e das
implicações do envelhecer na sociedade, os avós não ocupam lugar privilegiado de
discussão‖. (P. 94).
Ou seja, pouca é a visibilidade desses agentes sociais, até
mesmo em pesquisas sociológicas.
A elevação do número de netos que vivem com as avós é fato. Um dos
fenômenos registrados pelo estudo Perfil dos Idosos Responsáveis pelos Domicílios
no Brasil, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), é o crescimento do
número de netos e bisnetos que vivem com os avós, em geral, criados e/ou
sustentados por eles.
Diversas são as razões que compreendem este acontecimento, mas o fato
é que, nos últimos anos, o número de pessoas que têm a oportunidade de conviver
com suas avós e bisavós é crescente. Conforme Lopes, Neri e Park (2005), a
significativa elevação da expectativa de vida, em razão da melhoria da qualidade
desta, corresponde a um dos fatores que melhor colabora para a elucidação desta
realidade.
Na língua portuguesa, a expressão cuidar possui significados diversos, tais
como: zelar, desvelar, ter cautela, ter atenção. Ostenta ainda características unívocas
de outros termos como, por exemplo: meditar, imaginar, pensar, empregar atenção ou
interessar-se por. Esta palavra, todavia, representa muito mais do que um momento
104
de atenção, constituindo, na realidade, atitude de ocupação, preocupação,
responsabilização, além da implicação afetuosa com o ser a quem se destina o
cuidado. (REMEN, 1993; WALDOW, 1998; BOFF, 1999).
- O Elias aqui é muito bem cuidado, minha filha! E eu quero muito
bem a ele. É bem cuidado de carinho, é de tudo! Tudo que ele
precisa a gente dá Só se a gente não puder...Mais a gente podendo,
agente dá. (Depoimento concedido por Dona Conceição, 67 anos)
Nesta parte da pesquisa, foi abordada a situação da avó tanto como
mulher já velha, quanto a sua atuação na família contemporânea. Atualmente, é
significativa a presença das avós no espaço doméstico como cuidadoras de netos,
sem desconsiderar, portanto, outras funções que estas velhas avós podem também
assumir, haja vista que elas, além de participarem da economia familiar, atuam na
educação dos netos, assumindo cuidados parciais e/ou até mesmo integrais.
Destaca-se, porém, que essa situação não se estabelece isoladamente,
está, portanto, inserida nos desafios da contemporaneidade, como se pode observar
nas declarações de Camarano (1999), quando acentua que ―(...) os padrões de
assistência entre as gerações devem ser vistos no contexto dinâmico do curso de vida
das pessoas e das mudanças nas relações familiares‖. (P. 86).
Conforme Dellman-Jenkins, Blanemeyer e Olesh (2002), os papéis das
avós foram ―expandidos‖ ao longo do século XXI, pois, além de responsáveis pelos
cuidados básicos e diários de seus netos, passaram a ser responsáveis pelo sustento
financeiro daqueles que moram em sua companhia.
É comum observar, então, que muitas avós cuidam de seus netos
enquanto os genitores destes trabalham, e, dessa forma, participam também do
processo educacional de infantes e/ou adolescentes. As avós são os membros mais
próximos e frequentes no auxílio ao cuidado dos netos. Responsáveis por seus netos
de forma mais complexa, ou seja, além de bancar o sustento dos citados, estas avós
assumem obrigações quanto à educação dos netos em período integral, dessa forma,
representando até mesmo a principal referência adulta para os mencionados.
D. Conceição é quem acompanha Elias também na
escola, compra o material escolar, participa das reuniões, às vezes o
leva para o colégio. Na escola, a professora sabe que ela (D.
Conceição) é avó e mãe e repassa também os elogios para ela: A
105
professora disse que no colégio ele é um ótimo aluno. (Diário de
Campo, 30 jul. 2012)
No que concerne à classificação de cuidadores, Santos (2003) pondera
que,
[...] cuidadores secundários são representados por outros elementos
que podem desempenhar o mesmo tipo de tarefa dos cuidadores
primários, mas que não têm o mesmo grau de envolvimento e
responsabilidade pelo cuidado. Os terciários são aquelas pessoas
que auxiliam, esporadicamente ou quando solicitdas, no
desenvolvimento de atividades instrumentais da vida diária mais
relacionadas às tarefas especializadas. (SILVERSTEIN e LITWAK,
apud SANTOS, p.17).
Convém ressaltar que as avós, provavelmente, podem ser classificadas
como cuidadoras primárias quando assumem o neto em situações de negligência ou
abandono por parte da genitora, sendo, portanto, responsáveis por toda a educação e
subsistência; E, como secundárias, quando prestam cuidado aos netos na ausência
dos pais, seja em razão de trabalho, viagem, dentre outras; e como terciárias, nos
casos em que são requeridas para uma atividade específica.
Observa-se que o desempenho do novo papel que assumem os avós, no
âmbito familiar moderno, ultrapassa a imagem que outrora ocupava o imaginário
coletivo, ou seja, a dos avós como exclusivos transmissores de legados geracionais,
como ressalta Vitale (2005): ― a herança simbólica, a transmissão da memória
familiar‖. A referida autora complementa esta afirmação, destacando que ―os avós que
estão em nossa volta ou os que alguns de nós somos hoje tendem a se distanciar dos
modelos guardados em nossas lembranças‖. (P. 93). Portanto, os avós são
geralmente caracterizados e lembrados por meio do lugar que ocuparam na família,
bem como do próprio lugar.
Assim sendo, torna-se notável, nos dias atuais, o fato de que a
responsabilidade e/ou colaboração dos velhos, seja financeira e/ou moral, sobrepõese à elegância dos cabelos brancos, os quais anteriormente representavam, apenas,
respeito, afetividade, companheirismo e tranquilidade. Por conseguinte, no interior das
famílias, a relação de cuidados das avós para com os netos também é alvo de
modificações culturais e sociais, como expressa Vitale (2005), ao classificar os avós
106
como uma espécie de ―pais adotivos‖, considerando aqui o sentido mais amplo da
palavra. Peixoto (2000) corrobora essa afirmação, quando diz que os avós
―recomeçam uma segunda carreira de pais‖.
Tal situação pode ser observada nas seguintes falas:
- Ela me chama de mãe e ele de pai. Os pais que ela conhece é ele e
eu. A mãe dela ela chama é de ‗Ninha‘. Ela não chama de mãe, não !
(Depoimento concedido por Dona Conceição, 67 anos)
- A mãe dele mesmo, ele chama é de ‗fia‘. Mas, ele sabe quem é a
mãe dele mesmo, porque eu passo para ele. (Depoimento concedido
por Dona Conceição, 67 anos)
Nos casos dos netos Elias e Perla, suas genitoras constituíram novos
relacionamentos e famílias. Na medida em que é possível, auxiliam financeiramente,
embora seja pouco. Quanto aos contatos com suas genitoras, a mãe de Elias o visita:
Ela visita! E ela vem pra cá, quando eu não posso ir com ele lá, ela vem aqui, leva ele
pra lá, nas férias. Já no caso de Perla, o contato é mais restrito, pois sua mãe reside
em outro estado.
Esse cuidado ―de forma ampliado‖, se é que se pode dizer assim, também
foi identificado na narração de Dona Rosa, quando se pronunciou sobre sua condição
de avó cuidadora de neto, antes de seu problema de saúde, o qual já foi relatado em
capítulo anterior:
- Eu acho muito importante, viu ! É muito ... eu trabalhava muito né !?
Sofri muito para criar eles por que
a mãe deles não tinha
responsabilidade, e era tudo comigo. Eu trabalhava, dava comida,
dava tudo a eles. Tudo era meu. Tudo era eu, por que ela né !? A
vida dela era viver jogada aí pelo mundo. Agora é que ela se aquietou
mais, depois que eu...Mas, toda vida eles foram comigo para escola.
Ia buscar e ia deixar. Pra médico. Pra tudo! tudo! Ela nunca fez nada
por eles não. (Depoimento concedido por Dona Rosa, 61 anos)
- Eu gostava de cuidar dos meus netos. Eu adorava cuidar deles. Eu
ia trabalhar de manhã, eu me levantava às 05:00 horas, aí fazia três
mamadeira de mingau, uma para cada qual, né! Aí, dava o mingau
deles e ia trabalhar. E eu gostava muito...Me separei deles por causa
de doença, mas...Se eu não tivesse adoecido e ...Eu num tinha me
separado deles não. Porque eu não podia trabalhar mais e meu
marido não tinha pensão. Não tinha como eu sustentar eles. E a mãe
deles era uma irresponsável (e ainda é) e não tinha como sustentar
os bichim, né! (Depoimento concedido por Dona Rosa, 61 anos)
107
O cuidado faz parte da vida, perpassando etapas diversas, as quais
compreendem, desde a concepção, desenvolvimento e até o momento final da vida.
Costenaro e Lacerda (2002) consideram que ―ter cuidado com alguém ou com alguma
coisa é um sentimento inerente ao ser humano, ou seja, é natural da espécie humana,
pois faz parte da luta pela sobrevivência e percorre toda a humanidade‖. (P. 29).
Retomando
as
considerações
referentes
aos
novos
papéis
intergeracionais, Camarano (1999) entende que:
[...] as novas imagens do envelhecimento, que expressam as
mudanças sociais e redefinem identidades, vem acompanhadas de
uma rediscussão sobre a família, envelhecimento e sobre a dialética
entre dependência/interdependência entre gerações. (P. 86).
Desse modo, considera-se que a presença das avós na família se
modifica, ao mesmo tempo em que se intensifica, no contexto da sociedade atual.
Karl Marx (1989) menciona que, ―na produção social da própria vida, os
homens contraem relações determinadas necessárias e independentes de suas
vontades‖. (P. 136). Assim, observa-se que há nas trocas/relações intergeracionais o
sentido de contribuição/colaboração à própria dinâmica social da vida humana.
Destarte, não se pode desconsiderar que os avós cuidadores de netos, sujeitos desta
pesquisa, assumem também, em suas múltiplas funções, a de educar. Cuidar também
é educar.
Passando a vivenciar uma situação que, muitas vezes, lhes aparece como
inusitada, a população envelhecida assume também outra função na sociedade
contemporânea: a de cuidador dos netos. Segundo Osterne (2001), os avós se
interessam, cada vez mais, por solicitar a guarda judicial59 de seus netos, além da
tendência a incorporarem as características maternas e ou paternas na relação com
esses infantes e/ou adolescentes, embora a resposta biológica de seu organismo já
esteja de forma lenta e debilitada.
59
Sobre a Guarda Judicial, o Estatuto da Criança e do Adolescente- ECA, no artigo 33º, esclarece que: ―a
guarda obriga à prestação de assistência material, moral e educacional à criança e ou adolescente,
conferindo a seu detentor o direito de opor-se à terceiros, inclusive aos pais.‖ (2000: p.311)
108
Esta condição a que estão expostos os avós do século XXI, de acordo com
Vitale (2005) e Petrini (2004), caracteriza a família como espaço de mudanças entre
gerações, no qual os avós participam diretamente da organização da nova estrutura
familiar, oficializando ou não este cuidado. No tocante às novas dimensões da vida
familiar e à presença das avós nestas cenas, Vitale (2005) acrescenta:
Por sua vez, essas famílias, desprovidas de proteção social, têm
necessidade de incrementar as trocas intergeracionais para
responder às exigências dos diversos momentos de seu ciclo de vida.
Os avós, como já foi apontado, participa ativamente dessas trocas.
(P.100).
Desse modo, na atualidade, os avós oferecem aos seus netos muito mais
do que simples proteção, pois se tornam cuidadores integrais e até legais de seus
netos, ocupando, realmente, posição de pais substitutos dos netos, inclusive, também
no campo das discussões. Assim sendo, pode-se perceber que o sentido da palavra
cuidar se torna vasto neste debate. Impõe que se ressalteo fato da obrigação
educacional também está prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente- ECA,
enfatizando assim o grande caráter de responsabilidade conferido ao detentor da
guarda judicial.
Há, portanto, de se considerar a relevância da palavra educar para estes
avós, os quais diferem dos avós de outrora, e que, além da transmissão de legado
geracional, contribuem, cotidianamente, na formulação do saber (ou seja, do
conhecimento) de seus netos.
Para Durkheim (1955), os resultados, aprendizados e experiências de uma
geração são repassadas por seus descendentes, quase que de forma conservada,
graças aos livros e monumentos figurados, tradição oral, dentre outras. Quanto ao
termo educação, o autor francês o reserva para a ação que uma geração de adultos
exerce sobre infantes, jovens e adolescentes, caracterizando-a como uma influência
toda especial.
Pode-se, com efeito, perceber que o novo papel que os avós passam a
exercer, nos dias atuais (o de cuidadores de netos), implica a estes avós um sentido
mais vasto da palavra cuidado, haja vista que a função educadora também se faz
presente neste cuidado. Assim sendo, as avós assumem também a função de
transmissores de comportamentos e saberes, bem como das histórias familiares.
109
Durkheim (1995) ressalta, ainda, não ser possível educar os filhos da
forma como pretendem seus genitores. E, acrescenta que a função educativa também
possui papel de ―preparar as crianças‖. (P.39). Ele acresce à ideia de que a sociedade
se refere a uma entidade moral duradoura, a qual liga as gerações e o legado de cada
uma, conservado e acrescentado.
Vitale (2005) faz uma relevante e inquietante reflexão ao se referir às
novas funções que os avós assumem na atualidade, no âmbito familiar, ao ponderar
que a condição de ser avô ou avó se transforma ao longo do decurso de vida,
inclusive, podendo ser substituída por tempos mais complicados. ―Ser avós ou chefes
de família?‖, esta é, portanto, uma indagação que aflige os avós no século XXI.
A população velha é um segmento em constante crescimento no contexto
mundial. Este aumento, entretanto, também trouxe novos desafios a essa categoria na
contemporaneidade. Hoje, os avós passam a ser os responsáveis diretos para com
seus netos. Na redefinição dos laços familiares, eles assumem um papel de
protagonistas principais na vida desses descendentes, inclusive, no tocante ao seu
sustento, independente da presença ou ausência dos genitores dessas crianças e/ou
adolescentes.
Camarano (1999), ao apresentar sua pesquisa sobre o velho brasileiro,
acentua seu papel na família e mostra que esse tende a passar da condição de
dependente para a de provedor. Algumas avós sentem-se, até mesmo, obrigadas a
cuidar de seus netos pela própria situação de dependência econômica em que se
encontram seus filhos, recebendo em sua casa tanto os filhos adultos quanto os netos.
Observa-se, portanto, que os arranjos familiares, em que estão inseridas estas
pessoas já velhas, organizam- se para enfrentar situações diversas e adversas, tais
como: o que fazer em face do envelhecimento populacional, de maior dependência
dos jovens e do próprio ―enxugamento‖ do Estado.
- E foi uma confusão...elas namoravam, e arrumaram esses
namorados, e caíram na besteira de arrumar bucho...Aí, ficaram
dentro de casa e eu aconselhava...Bem novinha elas...(Depoimento
concedido por Dona Conceição, 67 anos)
- O pai da Perla nunca ajudou em nada. Nunca deu nem um kilo de
açúcar. Os outros avós nunca deram nada a ela. E eu, eu ajudei foi
as duas. (Depoimento concedido por Dona Conceição, 67 anos)
110
No decorrer dessa pesquisa, observou-se que as avós maternas
eram as ―maiores responsáveis‖ em assumir seus netos. Em algumas
vezes, a genitora da criança (ou adolescente) trabalhava para ajudar,
como no caso da mãe de Perla. Todavia, a contribuição da avó (seja
financeira e/ou afetiva) esteve sempre presente nestas relações.
(Diário de Campo, 30 jul. 2012).
No caso de D. Ana, a qual tem uma outra filha que mora no
apartamento vizinho ao seu, a entrevistada enfatizou que do
momento que ela retornou para a casa de seus genitores com o filho
(neto da informante) até os dias de hoje, ela (a filha) é alvo de
preocupação e dependência econômica da entrevistada. D. Ana, por
várias vezes, evidenciou sua apreensão com o futuro desta filha,
principalmente, após sua morte. (Diário de Campo, 26 set. 2012).
No que se refere à função das avós na família contemporânea, Vitale
(2005) compreende que:
No entanto, as mudanças dos laços familiares e a vulnerabilidade que
atinge as famílias demandam novos papéis, novas exigências para
essas figuras, personagens que ganham relevo não só na relação
afetiva com os netos, mas também como auxiliares na socialização
das crianças ou mesmo no seu sustento, mediante suas contribuições
financeiras. (P. 94).
Concordar com Magalhães (1989) é compreender que, no contexto da
contemporaneidade, são atribuídas responsabilidades mais complexas às avós no que
concerne a ―cuidar‖ de seus netos, quando o referido autor considera que as
especificidades de papéis e significados, atribuídos à velhice, foram distintos e em
consonância com cada período histórico. Assim, os padrões concernentes a esse
cuidado e a relação avós-netos estão estabelecidos tanto cultural quanto socialmente.
Ao pensar sobre idade e períodos históricos, Motta (1998) destaca:
As sociedades, em diferentes momentos históricos, atribuem um
significado específico ás etapas do curso de vida dos indivíduos:
infância, juventude, maturidade, velhice. Também estabelece as
funções e atribuições preferenciais de cada grupo de idade na divisão
social do trabalho e dos papéis na família. (P. 225).
Ante a atual conjuntura, observa-se que os avós que passam a cuidar de
seus netos, os provêem de sustento diário e de sua contribuição como educadores,
direcionando um processo civilizatório e até mesmo estabelecendo comportamentos e
111
normas que direcionarão os netos por sua vida adulta, atuando na formação de
valores, padrões e regras. Considera-se aqui, portanto, a amplitude que assume o
vocábulo cuidar para as avós, na atualidade.
Ainda sobre a transmissão de valores na relação avós e netos, bem como
dos estudos que versam sobre esta temática, Peixoto (2000) assim se posiciona:
Eles aproveitam para transmitirem alguns valores morais e sociais
(respeito aos outros, sobretudo aos mais velhos; honestidade;
importância dos laços familiares, o valor do trabalho, as histórias da
família ...), pois muitos deles acham que os pais de hoje são muito
negligentes nessas questões. No Brasil, essa temática tem sido,
entretanto, pouco debatida, tanto nos estudos sobre as questões da
família contemporânea como naqueles que pesquisam e tratam do
envelhecimento. (P.107).
Sob essas condições, na sociedade moderna, as avós oferecem aos seus
netos muito mais do que simples proteção e carinho. Assim sendo, este experimento
suscita o interesse em conhecer e analisar a inserção das avós (mulheres
envelhecidas) na família, bem como na sociedade, discutindo a relação que envolve
envelhecimento e família.
Nas considerações de Peixoto (2000),
[...] as noções de avô e de avó são relativamente recentes. Na
60
Europa, até o século XVIII, a imagem da grand-parentalité estava
vinculada à velhice, á decadência e à morte. Ao longo dos anos,
observa-se a transformação do papel dos avós, conseqüência do
aumento da esperança de vida e do recuo do modelo patriarcal até
então assimilado á uma autoridade forte da geração mais velha e,
assim, à uma distância afetiva. As relações afetivas entre avós e
netos emergem nos anos de 1930, quando os primeiros se tornam
auxiliares dos pais na socialização das crianças. (Pp.97-98).
Quanto
aos
assuntos
abordados
nesta
pesquisa,
não
se
pode
desconsiderar o surgimento de alguns questionamentos, como este: haverá, portanto,
uma inversão de papéis para essas avós que tiveram seus papéis ―ampliados‖ ante o
contexto da globalização e suas conseqüências?
60
Termo usado em francês para caracterizar o estudo dos avós.
112
Nesta perspectiva, os/as avós surgem como protagonistas nas cenas das
relações familiares no mundo contemporâneo, cujo vínculo vai além, haja vista a
complexidade que envolve esta relação (avós-netos). É mister evidenciar que, na
contemporaneidade, a significativa presença dos avós pode ser constatada em
diversas situações, que os envolvem de forma complexa e/ou até mesmo subjetiva,
conforme se observa no raciocínio de Vitale (2005):
Por essas razões, a figura clássica da vovozinha sentada na cadeira
de balanço, cabelos brancos, fazendo tricô ou crochê, presente nos
livros infantis, pouco corresponde ao perfil dos avós atuais,
possivelmente em todos os segmentos sociais, considerando-se as
mudanças por que passou a família, em especial a partir da segunda
metade do último século. (P.101).
Compreendendo a complexidade da teia familiar, Petrini (2003) aflui ao
debate, considerando a família como complexo simbólico importante, e acrescenta que
―o complexo simbólico da família é o primeiro ponto de apoio, o primeiro cimento da
sociedade.‖ (P.72). Nesta perspectiva, Vitale (2005) acrescenta ainda, que os avós
―parecem se apresentar como rede de apoio concreta, mesmo para aqueles mais
pobres, como laços dentre as gerações que conferem a identidade à história familiar‖.
(P.54).
Assim sendo, convém destacar o fato de que a família conta com a
colaboração dessas pessoas mais velhas de formas diversas, seja no cuidado diário
com os netos, seja em circunstâncias mais complexas que envolvem as relações
intergeracionais, como suporte afetivo e socioeconômico tanto para os filhos, quanto
para os netos, conforme evidenciam Peixoto (2000) e Vitale (2005). Nesta pesquisa,
observou-se que Dona Rosa e Dona Conceição foram surpreendidas com situações
que não imaginaram para as filhas, ou seja, elas serem mães na adolescência e ela
ainda assumir a responsabilidade financeira destas, mesmo durante a vida adulta.
Vitale (2005) faz uma importante, bem como preocupante reflexão, ao
destacar as atribuições que os avós, principalmente, para o sexo feminino61,
assumem na atualidade, ao mencionar que: ―a condição de ser avô ou avó se modifica
ao longo do percurso de vida: os belos anos de ser avós podem dar lugar a anos mais
61
Ao considerar o cuidado como uma atribuição do sexo feminino, conforme será abordado no decorrer
desta pesquisa, especificamente no tópico 4.3 denominado: Cultura X natureza do feminino.
113
difíceis‖. (P. 98). Acrescenta que ―As relações intergeracionais e de gênero compõem
o tecido para se pensar a condição de ser avô (ó)‖. (P.104)
Ante as questões até aqui discorridas, surge, portanto, a relevância de se
estudar alguns pontos ligados à velhice, na sociedade brasileira contemporânea, e sua
interação no contexto das relações entre gerações; destarte, problematizar o decurso
do envelhecimento na contemporaneidade reveste esta pesquisa de relevância tanto
acadêmica quanto social.
Suscitadas algumas considerações acerca da categoria família e da
contribuição das relações intergeracionais, no contexto familiar, no capítulo a seguir,
buscou-se apresentar um debate sobre a categoria velhice e sua importância no
contexto da contemporaneidade.
114
4 ABORDAGENS SOBRE A TEMÁTICA VELHICE
―A tarefa não é tanto ver aquilo que ninguém viu,
mas pensar o que ninguém ainda não pensou
sobre aquilo que todo mundo vê.‖
Arthur Schopenhauer
4.1 Velhices: entre conceitos e preconceitos
Da década de 1960 em diante, a temática velhice/envelhecimento passou
a ser estudada pelas Ciências Sociais, embora de maneira tímida. Já na década de
1980, o fenômeno do envelhecimento passou a ser vislumbrado de fato, inclusive, com
relevância teórica.
Tanto o descaso quanto a escassez de material teórico, em relação a esse
assunto foram evidenciados e denunciados por Beauvoir (1970), autora de destaque
no estudo da temática, ao expressar que havia uma ―conspiração de silêncio‖, pois, à
medida que não possuíam um lugar social, os velhos também não conquistavam lugar
teórico.
As especulações sobre o envelhecimento humano são, de tal modo
antigas que remontam à própria história da humanidade. Em períodos históricos,
sociedades e culturas diferentes, o debate em si sempre foi alvo de controvérsias e
reflexões. Pode-se, pois, dizer que não há unanimidade a respeito do assunto.
Os conceitos elaborados sobre a velhice surgem como produtos de
determinada época. No plano individual, envelhecer significa aumentar o número de
anos vividos. Convém ressaltar, entretanto, que as especificidades atribuídas a este
conceito variam de acordo com cada momento histórico, bem como da sociedade em
que se está inserido, simultaneamente, influenciada por outros aspectos62.
62
Sendo eles de natureza social, biológica, cronológica e psicológica.
115
É oportuno mencionar que não há uma definição exata de velhice,
porquanto existe uma multiplicidade de aspectos, indissociáveis uns dos outros, que
esta assume. Assim, o envelhecimento não procede de um só fator, mas representa
diversos fenômenos funcionando conjuntamente.
Beauvoir (1990) ratifica o pensamento ora exposto, ao esclarecer que a
velhice não corresponde a um fato estático, e sim ao resultado e ao prolongamento de
um processo. Envelhecer relaciona-se à idéia de mudança, caracterizada por um
declínio, e envolve também aspectos biológicos, psicológicos, existenciais e culturais.
Segundo a referida autora:
[...] Mas a vida do embrião, do recém-nascido, da criança é uma
mudança contínua. Caberia concluir daí, como fizeram alguns, que
nossa existência é uma morte lenta? É evidente que não. Um tal
paradoxo desconhece a essencial verdade da vida; esta é um
sistema instável no qual, a cada instante, o equilíbrio se perde e se
reconquista: é a inércia que é sinônimo de morte. Mudar é a lei da
vida. É um certo tipo de mudança que caracteriza o envelhecimento:
irreversível e desfavorável – um declínio. (P. 17)
Mascaro (1997) corrobora o pensamento da autora acima ao afirmar que:
Ao lado dos fatores genéticos, os aspectos sociais e
comportamentais também são muito importantes. O processo de
envelhecimento humano precisa ser considerado num contexto mais
amplo, no qual circunstâncias de natureza biológica, psicológica,
social, econômica, histórica, ambiental e cultural estão relacionadas
entre si. (P.50)
Envelhecer está inserido num processo complexo e multidimensional, que
começa a ser determinado no nascimento. Alguns autores defendem o argumento de
que este processo se inicia no útero materno. Outros consideram o envelhecimento
como o tempo de vida em que o organismo passa por consideráveis transformações
visivelmente expressadas no declínio de sua força, disposição e aparência, as quais
podem ou não incapacitar/comprometer o desenvolvimento vital.
Estudar ―as velhices‖ é considerá-las em seu contexto plural e também
real, ante as multiformes manifestações da questão social, num contexto
contemporâneo rico de desafios. Ferrigno (2003), em conformidade com Beauvoir
(1990), alerta sobre essa ―pluralidade de formas de envelhecer‖. Definir velhice é,
116
portanto, compreendê-la em sua particularidade e complexidade, sem desconsiderar o
significado e importância dela nos dias atuais.
Segundo Ferrigno (2003), corroborando a percepção de Beauvoir (1990),
sobre as características singulares da velhice, tem-se que:
Principalmente a partir da segunda metade da vida o ser humano vai
mudado sua forma de orientação no mundo; vai deixando de ser
orientado externamente para ser orientado cada vez mais pelo seu
interior. Com isso e graças ao acúmulo de experiências singulares, ou
seja, que somente ele vivenciou, vai formando uma subjetividade
única. Portanto, as idiossincrasias de cada idoso tendem a se
manifestar de modo cada vez mais exuberante. Como decorrência
desse processo de diferenciação ou de singularização, cada um se
torna na velhice mais e mais incomparável a qualquer outro ser idoso;
torna-se cada vez mais ele mesmo. (Pp.135-136)
Convém ressaltar que a velhice compõe um das etapas do ciclo natural da
vida, sendo este nascer, crescer, amadurecer, envelhecer e morrer; e as alterações
que a caracterizam têm origem no próprio organismo, e acontecendo de forma
gradual. Seguindo este raciocínio, em Ferrigno (2003), citando Bobbio, constata-se
que ―a velhice não está separada do resto da vida que a precede: é a continuação de
nossa adolescência, juventude e maturidade‖. (P. 81)
Como, porém, identificar a idade da velhice?
Responder a esta indagação não é tão simples assim, haja vista que, em
períodos históricos diferentes, em sociedades e situações sociais distintas, a pessoa
pode ser considerada velha com 70, 60 e até mesmo, aos 40 anos de idade. Nas
palavras de Bosi (1994),
Além de ser um destino do indivíduo, a velhice é uma categoria
social. Tem um estatuto contingente, pois cada sociedade vive de
forma diferente o declínio biológico do homem. (P. 77).
No que se refere a limite de idade estabelecida legalmente, no Brasil, temse a Lei 10.74163, de 1º de outubro de 2003, dispondo sobre o Estatuto do Idoso e
63
Conforme Art 118. A lei entrou em vigor decorridos 90 (noventa) dias de sua publicação, ressalvado o
disposto no caput no art. 36, que vigorou a partir de 1º de janeiro de 2004.
117
dando outras providências, estabelece como idoso todo aquele com idade igual ou
superior a 60 anos.
Relevante é compreender que a velhice corresponde a um fenômeno
biológico, um processo heterogêneo e individual, sofrendo por sua vez influência do
meio sociocultural. Sobre este assunto, Fraiman (1991) contribui no debate:
A idade é uma das variáveis que regulam o comportamento social e
as relações entre indivíduos e grupos, em todas as sociedades. Ela
conglomera e torna homogêneas grandes classes de indivíduos,
submetendo-os às normas sociais que não apenas os beneficiam,
mas também estigmatizam e até os prejudicam, por desconsiderar as
diferenças individuais. (P.19).
Fraiman (1991) ressalta que, para o senso comum, velho é aquele que
possui muitos anos de idade e uma vasta experiência acumulada, diferenciando-o
assim dos demais. Muitos são os termos utilizados para se reportar a este importante
estágio de vida, podendo destacar, por exemplo: idoso, terceira idade, quarta64 idade,
nova idade, idade avançada, geração de cabelos brancos, melhor idade, feliz idade,
velho, velhote, dentre outros. Vale frisar que tais palavras surgem não como
sinônimos, todavia, como uma forma de eufemizar a palavra velho, haja vista esta ser
associada ao que ―se joga fora‖, a algo desprezível. Nas palavras de Ferrigno (2003),
―a palavra ‗velho‘ não é agradável‖. (P.68).
Relevante mencionar que as análises sociológicas, e até mesmo
demográficas, seguem a mesma modificação conceitual, haja vista que estas
terminologias, embora vinculadas a processos biológicos, são elaborações de cunhos
sociais ou culturais.
Ainda quanto às nomenclaturas, Peixoto (1998) acrescenta que
O termo ‗velho‘ tem assim uma conotação negativa ao designar,
sobretudo, as pessoas de mais idade pertencentes às camadas
populares que apresentam mais nitidamente os traços do
envelhecimento e do declínio. (P.78).
64
Para Ferrigno (2003), alguns gerontólogos chamam a velhice avançada de Quarta idade, identificado-a
pela ―decorrência da acentuação das limitações físicas e da presença mais provável de patologias,
inclusive mentais‖. (P. 74).
118
Evidencia-se que tais termos são responsáveis pela constituição de uma
identidade estigmatizada. Há, portanto, o surgimento de terminologias diversas para
se tratar do assunto velho ou velhice. Releva destacar, ao abordar esse contexto, que
segundo Peixoto (1998) a expressão ―terceira idade‖ teve origem na França, em 1962,
ao ser inserida uma política de integração social da velhice, a qual objetivava a
alteração da imagem dos indivíduos envelhecidos, haja vista que, até este período, a
velhice era considerada exclusão social. Em outras palavras, aos velhos destinava-se
o asilo.
Quanto às palavras velho e velhote, a autora acrescenta ainda que estas
eram aplicadas para aqueles que não detinham o status social, ou seja, os
despossuídos e/ou indigentes, de modo a reforçar suas condições de exclusão. Já a
designação de idoso era mais polida, se assim é possível dizer. Era reservada aos
sujeitos que possuíam status social proveniente das seguintes circunstâncias65:
experiências em cargos políticos, posição financeira privilegiada ou de alguma outra
atividade de destaque na sociedade.
Tais classificações, de acordo com Peixoto66 (1998), nasceram num
período histórico em que nas relações de produção, a força de trabalho, era o bem
precioso, cujas categorias menos favorecidas tinham para vender. Com a diminuição
desta força, o sujeito inseria-se na categoria de velho (sem atividade laboral e
desassistido pelo Estado, situações que legitimavam seu estado de pobreza). Por isso,
ainda hoje, associa-se velhice à invalidez e à decadência.
Assim como Peixoto (1998), Beauvoir (1990) e outros autores analisados
neste estudo, Ferrigno (2003) apresentou a ideia de decadência relacionada à velhice,
e posiciona-se quanto a isso:
65
Ou seja, determinadas categorias, tais como: os ricos, os dirigentes políticos e/ou religiosos, os
inetelectuais, dentre outros que possuíam valor social.
66
Segundo a autora, a partir dos anos 60, surge uma nova política social francesa, voltada para a velhice,
que elevou o valor das pensões, e conseqüentemente, o prestígio dos aposentados. Os vocábulos velho
e velhote foram substituídos por idoso, em textos oficiais. Assim, as pessoas envelhecidas passaram a
ser tratadas com maior respeito. No final da década de sessenta, tais transformações chegaram ao Brasil
que assimilam a noção francesa de idoso, passando a utilizar o termo em alguns documentos oficiais.
Desse modo, Terceira Idade passa a ser a nova fase da vida, compreendida entre a aposentadoria e o
envelhecimento, caracterizando um envelhecimento ativo e independente. Vale frisar que a expressão
Terceira Idade traz consigo um convite a práticas de atenção e cuidados com a saúde, ou seja, a boa
qualidade de vida. O termo Terceira Idade (troisième age) foi cunhado pelo gerontólogo francês Huet.
119
Nessa perspectiva a velhice é tida como sinônimo de decadência,
daquilo que já foi ou que ‗já era‘ expressão bastante usada,
principalmente pelos jovens. Em minha opinião, devemos falar de
adultos jovens e adultos velhos. O idoso não deixa de ser um adulto,
continua sendo um adulto, um adulto mais velho. (P. 52).
Ainda no que tange a esse descaimento vinculado à velhice, convém
salientar que, sob essa óptica de ponderação, predomina a visão do envelhecimento,
ou seja, em seu aspecto biológico e suas implicações em estado individual.
Ante o debate sobre o conceito de velhice, vale frisar que se torna tarefa
árdua atribuir uma definição exata para velhice, principalmente quando se quer
caracterizar uma pessoa como velha, utilizando, apenas, o critério da idade. Beauvoir
(1990) pondera que a categoria velhice não expressa uma realidade bem definida. E,
acrescenta que o processo de envelhecimento resulta da interligação do sujeito com a
sociedade, ao mencionar que velhice é
Um fenômeno biológico com conseqüências psicológicas que se
apresentam através de determinadas condutas consideradas típicas
da idade avançada. Modifica a relação do homem no tempo e,
portanto, seu relacionamento com o mundo e com sua própria
história. Por outro lado, o homem nunca vive em estado natural: um
estatuto lhe é imposto também na velhice, pela sociedade a que
pertence. (P. 11).
A autora postula a noção de que a idade modifica a relação do indivíduo
com o tempo. Destaca a definição de velho como alguém que possui longa vida por
trás de si, e adiante uma expectativa de sobrevida em demasiado limitada. Os velhos
têm suas perspectivas reduzidas pela sociedade, pelas
restrições decorrentes da
própria idade. Segundo a autora, porém, ―(...) a relação com o tempo é vivida
diferencialmente, segundo um maior ou menor grau de deteriorização do corpo‖.
(P.15).
Apesar de Beauvoir (1990) admitir não ser fácil descrever a categoria
velhice, a mencionada alvitra defini-la a partir de três dimensões, sendo estas:
biológica, psicológica e existencial. De acordo com a autora, ―o que torna a questão
complexa é a estreita interdependência desses diferentes pontos de vista‖. (P.15).
Assim sendo, concebe a velhice numa perspectiva de totalidade.
120
Na análise elaborada por Fraiman (1991), a idade pode ser conceituada
em quatro dimensões: cronológica, biológica, social e existencial. A primeira foi
instituída, principalmente, em funções de práticas administrativas, ou seja, relacionase à definição de papéis ocupacionais. É marcada pela data de aniversário da pessoa.
Seguindo o raciocínio de Fraiman (1991), corrobora com esta percepção
Ferrigno (2003) ao destacar esse pensamento:
No caminho em direção à fase da Terceira Idade, em decorrência de
inúmeros fatores culturais contemporâneos, os contatos sociais,
tendem a rarear, isto é assiste-se a um progressivo esvaziamento de
papéis, fato que determina ao idoso um crescente isolamento ou
recolhimento ao espaço doméstico. A aposentadoria, a viuvez, a
perda de amigos, e a chamada ‗síndrome do ninho vazio‘, esta última
caracterizada pela debandada dos filhos emancipados, são
fenômenos que impõem aos mais velhos uma expressiva diminuição
de funções. (P.52).
Ainda que seja, todavia, um fator importante, objetivamente mensurável, a
idade cronológica não é considerada suficiente para definir o ser velho, pois não
expressa a condição da pessoa, haja vista que o fundamental não é o mero transcurso
do tempo, contudo a qualidade deste, o que se vivenciou e a qualidade do ambiente
que a cercaram.
Na perspectiva de Fraiman (1991),
Por si só a idade cronológica de um indivíduo nada nos revela sobre
sua existência, personalidade, intelectualidade, produtividade e
energia vital. A Pessoa é muito mais do que a simples expressão de
suas atuais condições físicas e de saúde, uma vez que a dimensão
mental, experiencial também age, se modifica a cada instante. (P.21).
Esta realidade que supera as limitações físicas do corpo, ao tentar
evidenciar a energia vital e intelectiva, foi evidenciada na fala de Dona Ana, ao
mencionar que,
- Eu acho ruim é porque eu não posso andar quase, por causa da
artrose, né! Tenho problemas nas pernas, no corpo todinho. Mas,
Hoje, eu fui pra oração e na volta, um rapaz que anda num carro me
trouxe até aqui. Tem também a minha bengala...E, mesmo assim, eu
vou pra reunião. (Depoimento concedido por Dona Ana, 74)
121
Neste relato, a entrevistada frisou que faz uso da bengala para auxiliá-la
no deslocamento diário, e, mesmo assim, a citada é bastante participativa nas
reuniões do condomínio, bem como nas atividades da igreja evangélica a qual é
congregada, afirmando gostar de participar de tudo.
Convém destacar que, para o início da velhice, nos países em
desenvolvimento, foi estabelecida a idade de 60 anos, e para os países desenvolvidos
65 anos, perspectiva definida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), assim como
utilizada como referencial pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Conforme a autora anteriormente citada, a idade biológica se refere às
condições orgânicas, ou seja, transformações fisiológicas, anatômicas, hormonais e
bioquímicas do organismo, consideradas símbolos da idade avançada. Na opinião de
Mascaro (1997), o envelhecimento biológico é, em regra, descrito pela exposição de
uma série de insuficiências, perdas e limitações.
Nesse período, alguns aspectos mais visíveis são diminuição do vigor
físico, esquecimento, dificuldade de locomoção, falta de firmeza nas pernas e mãos,
enrugamento da pele, cabelos brancos, dentre outros. Estes podem provocar rejeição
da própria imagem. Marcas peculiares da velhice são também observadas na
respostas da seguintes avós:
- Às vezes, eu me esqueço das coisas. Não é toda vida não, né! Às
vezes, vou botar uma coisa ali num canto, aí não sei coma foi que eu
botei. Aí, depois, com um bom pedaço, né!? Que eu vou, eu fico
sentada ali, que eu fico com a cabeça (...) aí, eu me lembro aonde é
que fico com a cabeça (...), aí eu me lembro aonde é que ta. È
pouco, num é muito não. Mas, já to me esquecendo já... (Depoimento
concedido por Dona Rosa, 61 anos).
- O que eu tenho pra dizer é assim... Porque agora eu não sou mais
como eu era, porque aqui e acolá, eu tenho assim um problema...
Tenho pressão alta...Uma vez eu fui extrair um dente que eu tenho
aqui, que tá bem molim, aí eu cheguei lá, não pude nem extrair
porque eu tava com a pressão muito alta, acredita ? (Depoimento
concedido por Dona Conceição, 67 anos).
- E, ás vezes, não tenho... Eu fico sem coragem de ir para igreja. É
assim... Às vezes eu vou...ás vezes num vou...É assim...cansada
né!?. Sinto muita dor nas pernas. (Depoimento concedido por Dona
Conceição, 67 anos.
Convém lembrar, entretanto, que este conjunto de transformações físicas
não ocorre a um tempo só, haja vista que o envelhecer é processual, assim, as
122
mudanças físicas vão surgindo paulatinamente e em si mesmas, variando de pessoa
para pessoa. Conforme Bosi (1994), ―antes do afastamento definitivo há um declínio
lento, intermitente, acompanhado de dolorosa lucidez.‖ (P.76).
O envelhecimento como fenômeno biológico é um processo básico,
consequência de uma evolução contínua, iniciada com o nascimento e com término na
morte. De acordo com Mascaro (1997), a idade biológica é definida pela herança
genética, bem como pelo próprio ambiente.
A idade social, por sua vez, está relacionada com a participação do
individuo na vida produtiva, e, por que não mencionar, laboral. Nesta, a sociedade dita
as regras. É determinada por normas67 e expectativas sociais, sob as quais as
pessoas são categorizadas em termos de seus direitos e deveres como cidadãos.
Mascaro (1997) complementa, ressaltando que a idade social se refere às normas,
crenças, estereótipos e eventos sociais que controlavam pelo critério de idade a
função dos velhos.
É cediço dizer que, nas sociedades ocidentais, é comum associar o
envelhecimento com a egressão da vida produtiva pelo caminho da aposentadoria.
Bosi (1994), ao analisar a velhice na sociedade industrial, ressalta que a rejeição
sofrida pelo ser humano velho se vincula à perda da força de trabalho, porquanto ―(...)
ele já não é produtor nem reprodutor‖. (P.77). E acrescenta ainda que ―quando se vive
o primado da mercadoria sobre o homem, a idade engendra desvalorização‖. (P.78).
Quanto à idade existencial, Fraiman (1991) pondera ser esta a soma de
experiências pessoais e de relacionamento, adquirida e acumulada no decorrer do
tempo:
A idade social, determinada por regras e expectativas sociais,
categoriza as pessoas em termos dos direitos e deveres que têm
como cidadãos, atribuindo tarefas a ser desempenhadas, mais ou
menos relacionadas às idades cronológica e biológica. (P. 20)
Ainda sobre os ―marcos da idade‖ ou ―idades da vida‖, Mascaro (1997)
acrescenta que, embora seja estipulada por uma sociedade, deve-se tomar como
67
Para Mascaro (1997), as normas dão origem ao relógio social o qual determina o que os indivíduos em
determinadas épocas históricas, sociedade e cultura devem ou não fazer. Exemplos: de escolher uma
profissão, de casar, de ter filhos, de começar a trabalhar, de se aposentar, de ir para escola, de sair do
colégio, dentre outros.
123
maior relevância o fato de que ― ‗a idade da velhice‘ é relativa e não tem o mesmo
significado para todas as pessoas‖. (P.42). A autora defende a ideia da existência da
singularidade do processo de envelhecimento.
A referida autora define a idade psicológica como uma das componentes
das ―idades da vida‖. Esta é mais abrangente e envolve mudanças de comportamento,
consequências das modificações biológicas do envelhecimento. É influenciada por
regras e perspectivas sociais, bem como por componentes de personalidade.
Importa referir a noção de que, para conceituar o fenômeno em alusão, a
velhice, faz-se necessário compreendê-la num âmbito complexo, considerando a
interdependência de seus múltiplos aspectos. Vale frisar que, neste segmento, estão
incluídos indivíduos diferenciados entre si, acrescentando os pontos de vista
socioeconômico, demográfico e epidemiológico. Quanto aos indicadores sociais deste
grupo populacional, Parahyba (1998) destaca que os diferenciais via renda, sexo e
educação costumam ser bastante significativos.
Beauvoir (1990) e Loureiro (2000) apoiam esta reflexão, ao alertarem para
o fato de que a velhice só deve ser compreendida em sua totalidade, porque esta não
representa, apenas, um fato biológico, mas também cultural. Deste modo, pode-se
perceber que a forma de imaginar, bem como de viver o envelhecimento, depende da
conjuntura histórica, dos valores e do lugar que este velho ocupa na sociedade.
Assim sendo, observa-se que a velhice corresponde a uma invenção
68
social
historicamente produzida. Destarte, pode-se mencionar que existe grande
diversidade de velhices, as quais variam de acordo com a classe social, condição
biológica, sexo, estado funcional, dentre outros aspectos. Com efeito, ao pesquisar
sobre ―as imagens da velhice‖ com a pretensão de apresentar uma definição para esta
categoria, é conveniente expressar que não há modelos de envelhecimento e/ou de
velhice.
Ao abordar as tentativas de definir a velhice, Leonardo Boff
69
, em seu
artigo designado Oficialmente Velho faz excelente e sábia consideração, ao dizer que
68
69
Conforme Magalhães (1989).
Leonardo Boff é teólogo, professor e membro da Carta da Terra. Doutor em Filosofia da Religião, pelo
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Uiversidade Federal do Rio de Janeiro. Para maiores
124
―Este é o desafio para a etapa da velhice. Então nos damos conta de que
precisaríamos de muitos anos de velhice para encontrar a palavra essencial que nos
defina‖.
Assim sendo, percebe-se que os estudos que versam sobre a velhice
reportam diversidade. Muitas teorias antigas compreendiam o envelhecimento como
um declínio e/ou fraqueza do organismo, considerando a velhice, portanto, como uma
doença. Desse modo, associada à patologia, os cientistas tentavam descobrir a cura
para seus males.
Sobre esta questão, Mosquera (1993) ensina que ―velhice em si não é
anormalidade nem doença, é apenas uma fase da vida humana enquadrada na
grande dimensão da ‗adultez‘70. A velhice é uma conseqüência natural do
desenvolvimento humano‖. (P. 15).
Todavia, não se pode negar que existam definições deturpadas, as quais
ocasionam o surgimento de estigmas e estereótipos, que desvirtuam a realidade e
colaboram para emergência de fatores negativos, como preconceito e discriminação,
conforme analisado no próximo tópico.
4.1.1 Sob as lentes do estereótipo
Vista sob este ângulo, a velhice pode ser avaliada sob a óptica do mito e
das ideias errôneas, tanto no que diz respeito ao processo de envelhecimento, quanto
à própria velhice individual. Vale salientar que, ao iniciar os registros para escrever seu
livro sobre a velhice, Simone de Beauvoir relata que escutava, frequentemente, a
seguinte frase: ―mas que assunto triste!...‖
informações, acessar o site www.leonardoboff.com . Quanto ao artigo Oficialmente Velho, este se
encontra na íntegra, em anexo, ao final deste trabalho.
70
Mosquera (1993) divide a velhice em três etapas, a saber: ―adultez‖ velha inicial (de 65 a 70 anos de
idade), ―adultez‖ velha plena ( varia entre 70 e 75 anos de idade) e ―adultez‖ velha final (vai dos 75 anos
de idade até a morte).
125
Na abordagem da temática do envelhecimento, convém exibir também,
dentre outros aspectos (sociais, econômicos, culturais), uma forma de pensamento
denominada preconceito, a qual atinge o segmento longevo. No que se refere a esta
atitude de ―natureza universalizante‖, Ferrigno (2003) corrobora com o presente estudo
quando diz:
[...] nossa sociedade desenvolveu pouca tolerância e compreensão
em relação aos ‗diferentes‘, aos ‗desviantes‘, ou as chamadas
‗minorias‘. A esse conjunto quase infindável de tipos de pessoas
podemos incluir categoriais sociais como: judeu, negro, mulher,
homossexual, pobre, idoso, etc. Paradoxalmente e ironicamente,
verificamos que as minorias somadas constituem-se na grande
maioria da população! No entanto, ainda que minoritários, os padrões
de comportamentos, eleitos como ideais pela civilização, têm uma
força gigantesca e surpreendente. (Pp.132-133).
Corroborando a percepção de Ferrigno (2003), Éclea Bosi (1994) destaca:
Em nossa sociedade de classes, dilacerada até as raízes pelas mais
cruéis contradições, a mulher, a criança e o velho são, por assim
dizer, instâncias privilegiadas daquelas crueldades – traduções do
dilaceramento e da culpa. (p. 11)
Por se fazer referência a preconceito, torna-se assinalado dizer que, na
sociedade contemporânea71, há exacerbada valorização do novo, do belo, do jovem,
e, que fácil é observar a velhice no outro. Ao não se reconhecer em sua velhice, é
mais comum (talvez mais simples, menos doloroso) comentar a velhice identificada no
próximo, como se pode verificar na dificuldade de defini-la na fala das próprias avós:
- Eu digo assim por que...eu acho que depende da...da situação da
pessoa, porque a minha avó, minha sogra velhinhas elas viviam tão
bem. Eram bem cuidadas pelos filhos, né! E até que ela já faleceu...
Ela faleceu com noventa anos... mas, ela era uma velhinha feliz . A
gente chegava lá, e ela era alegre, e conhecia a gente, e eu espero
quando chegar na minha velhice ser assim né ? (risos). Eu espero...
Eu espero chegar lá, se Deus me permitir, né! Entendeu?
(Depoimento concedido por Dona Rosa)
- Lá pros sessenta e sete anos, lá pros oitenta é que a gente vai
ficando velha... (pausa). E as mudanças.... eu acho que muda,
porque a gente não é mais do jeito de como era mais nova...assim
71
Corpo ágil, saudável e forte é valor presente na sociedade contemporânea. Portanto, a perda desse
―conjunto‖ também consiste numa forma de banimento e discriminação da velhice.
126
pra caminhar...sei lá! Numa coisa e noutra... (Depoimento concedido
por Dona Conceição)
Além da dificuldade de falar sobre a própria velhice, esta imagem é
fortemente associada à ideia de morte. Dona Conceição era sempre a mais resistente
sobre este assunto, todavia, deixava escapar em sua fala planos vinculados à
preocupação com o neto, bem como proximidade da morte
- Velhice? O que eu sei sobre negócio de velhice é assim ...[silêncio!]
Eu acho assim... [silêncio!] Ah! Eu penso assim...já falei até para mãe
do Elias, eu disse ‗Fia‘ quando eu ficar bem velhinha ou quando eu
morrer, aí é o tempo de tu cuidar dele, viu ! (Depoimento concedido
por D. Conceição, 67 anos)
É salutar exprimir que a veiculação dos estigmas da velhice ocorre de
formas diversas, como, por exemplo, propagandas, novelas, programas de humor,
exibição do corpo jovem e saudável, da moda, produções literárias que tratam o velho
com deboche72, bem como permeia as relações sociais.
Desenvolvendo um raciocínio parecido, Bosi (1994) menciona a existência
de uma ―ferida aberta em nossa cultura‖, reportando-se à velhice oprimida, despojada,
banida e desvalorizada. No que se refere a outras formas de ―opressão da velhice‖, as
quais Oliveira (1999) denominou de ―movimentos invisíveis e reais da opressão‖, Bosi
(1994) acrescenta:
Oprime-se o velho por intermédio de mecanismos institucionais
visíveis (a burocracia das aposentadorias e dos asilos), por
mecanismos psicológicos sutis e quase invisíveis (a tutelagem, a
recusa do diálogo, e da reciprocidade que forçam o velho a
comportamentos repetitivos e monótonos, a tolerância de má-fé que,
na realidade, é banimento e discriminação), por mecanismos técnicos
(as próteses e a precariedade existencial daqueles que não podem
adquiri-las), por mecanismos científicos (as ―pesquisas‖ que
demonstram a incapacidade e a incompetência sociais do velho). (P.
18).
72
Caduco, ancião, avançado em anos, idoso, são algumas formas, mais ou menos, pejorativas, que se
reporta à pessoa velha.
127
Se a tolerância com os velhos é entendida assim, como uma
abdicação do diálogo, melhor seria dar-lhe o nome de banimento ou
discriminação. (P. 78).
Vale frisar que, considerando a categorização pela idade cronológica, na
organização social brasileira, essa, além de privilegiar os sujeitos mais jovens em
detrimento dos mais velhos, haja vista refletir o sistema de produção vigente73,
também subsidia crenças e opiniões negativas acerca do indivíduo envelhecido.
Nesse sentido, Ferrigno (2003) alerta para a noção de que a
predominância da imagem jovem é tão forte que, em algumas situações, se chega até
a induzir nos mais velhos caricaturas do que seria caracteristicamente juvenil, de
modo tal que o velho tem que negar a velhice e identificar-se com o jovem. Sobre esta
perniciosa tendência de ―juvenilização‖, Ferrigno (2003) pensa desse modo:
Em torno da figura do jovem foi criado durante as últimas décadas um
marketing bem definido. O conceito de juventude está fortemente
associado a mercadorias e serviços que prometem vitalidade, beleza,
sensualidade e liberdade. Assim, os consumidores de qualquer idade,
mesmo os mais velhos, sonham com a possibilidade de adquirir
alguns dos propalados atributos juvenis. (Pp.64-65)
Imagens negativas ou até mesmo de não aceitação desta fase da vida
denominada velhice também foram referidas em textos, contos, poesias e poemas
elaborados por escritores famosos. Como exemplo, pode-se destacar74: Lygia
Fagundes Telles (ao mencionar que ―a velhice é um horror!‖), Rubem Alves (ao
escrever ―A Pior Idade‖), Cecília Meireles (em sua poesia denominada ―O Retrato‖),
Vinícius de Moraes (em seu poema ―Velhice‖), dentre outros. Alarcon75 (2008),
baseado em Norbert Elias, chama a atenção para a necessidade da sociedade
contemporânea afastar-se de suas fantasias e de seu tabu ao se acercar de certos
fenômenos, como por exemplo: o envelhecimento.
Essas reflexões, referentes à negação da velhice, são passíveis de
observação na fala das entrevistadas, ao se reportarem sobre suas compreensões
quanto à velhice, na sequência:
73
Inserido num processo de globalização, marcado pela instantaneidade e descartabilidade de modo a
favorecer o culto à juventude, à virilidade e à força, em detrimento da velhice associada à decadência.
74
Esses textos e/ou poesias encontram-se ao final deste trabalho compondo o item ―Anexos‖.
75
Professor dos cursos de História e Geografia, da Universidade Federal de Campina Grande.
128
- O que eu entendo por velhice (silêncio). Vixe, eu nem sei te dizer.
Isso aí eu não sei nem lhe responder (risos). Sei não. Isso aí eu não
penso. Isso aí não...É porque eu ainda não cheguei no tempo de
pensar isso aí não...esse negócio de velhice, não! (Depoimento
concedido por Dona Conceição, 67 anos)
- Mais, por enquanto, eu não tenho como dizer né ? (silêncio). Só se
for ainda daqui pra frente...eu não sei como explicar como é, porque
hoje em dia eu me sinto bem. Por enquanto, eu ainda resolvo, né?.
Minhas coisas eu ainda resolvo só...é...negócio de médico...negócio
de resolver alguma coisa aí, né? Eu resolvo só. Ainda to né (risos).
Eu ainda sei (risos). (Depoimento concedido por Dona Rosa, 61 anos)
Contribuindo nesse debate, sobre esse aspecto negativo da sociedade
perante a velhice, Beauvoir (1990) expõe que, para esta imagem social, se registra:
[...] a do velho louco que caduca e delira e de quem as crianças
zombam. De qualquer maneira, por sua virtude ou por sua objeção,
os velhos situam-se fora da humanidade. Pode-se, portanto, tratá-los
sem escrúpulos, recusar-lhes o mínimo julgado necessário para levar
uma ida de homem. (P.10).
Em sua obra A Velhice, Beauvoir (1990) esclarece que não há mudança
significativa na forma como a sociedade lida com os mais velhos, referindo-se ao
Período Medieval e o Moderno, haja vista que em ambos o ser humano velho era visto
como tendo valor social reduzido. No primeiro, porém, o longevo era considerado
adulto, e, só posteriormente surgiu sua condição de ser percebido como velho.
Na condição de Alarcon (2008), ainda ressaltando os estigmas negativos
sofridos pelos velhos, o autor exprime a idéia de que há uma força viva permeando a
sociedade no que concerne ao ―poder dos jovens em relação aos velhos‖, poder este
expresso pelo autor com arrimo em Bobbio, na ―crueldade que se expressa na
zombaria dos velhos desvalidos‖. (p.394). Todavia, é expresso bem como pela
constituição de uma imagem de fealdade reservada aos personagens da velhice.
Em tal direção, conforme avaliação de Ferrigno (2003), em consonância
com Alarcon (2008), avalia que:
Tudo que é novo é bom, bonito e interessante. Tudo que é velho é
ruim, feio e desprovido de interesse. O antigo tem de lutar para
sobreviver: seja um ser humano, uma casa, uma praça, uma rua.
Tudo tende a ser destruído e substituído pela última moda. (...) Tudo
se destrói com rapidez e sem escrúpulos. Tudo se alija sem maiores
129
discussões em nome da expansão econômica e do progresso. De
que progresso? O progresso que interessa ao consumo inesgotável e
à destruição de tradições e valores e bens urbanos e rurais (P.56)
Sob o ponto de vista de Elias, a modernização das relações não conseguiu
abolir a desvalorização absoluta da velhice. Segundo ele, isso não seria plausível, haja
vista o envelhecimento trazer consigo uma dimensão resignada pela sociabilidade
moderna. Ainda sobre essa recusa social, quer seja esta explícita ou não nos dias
atuais, Alarcon (2008) pondera:
Cada vez mais sabemos sobre o corpo e a velhice e, ao mesmo
tempo, isolamos a morte no espaço privado e privatizado no interior
das câmaras inacessíveis dos hospitais. Mais que isso: somos cada
vez menos capazes de nos sensibilizar frente ao momento em que o
corpo dá sinais de que se transforma. O nosso desejo é a
permanência, é a vida eterna, é a eterna juventude, é a rigidez, a
força e a beleza. Os nossos maiores temores são o inesperado e a
finitude, e deles nos afastamos com vigor. (P.398)
É digno de se exprimir a idéia de que, até mesmo de uma forma
involuntária, com de atitude considerada ―positiva‖, todavia movida pelo preconceito,
esta pode ser ofensiva à pessoa velha. Como exemplo disso, pode-se ressaltar a
crônica do educador, escritor e psicanalista Rubem Alves, chamada ―Gestos
Amoros76‖ (publicada no Jornal Folha de São Paulo, em 27.05.2008), quando o citado
descreve seu sentimento de inferioridade ante de um ato ―simples‖ e cortês de uma
jovem.
Ainda sobre as imagens negativas imputadas à velhice, observa-se,
também, que a elaboração do significado de velhice é permeada por um conjunto de
fatores (crenças, mitos, preconceitos e estereótipos), os quais nesta sociedade se
revelam por meio de representações pejorativas e/ou apelidos depreciativos, que
abrangem tanto o fenômeno do envelhecimento, quanto o indivíduo que envelhece,
inflingindo-lhes
sentimentos:
vergonha
e
inferioridade,
levando
a
atitudes
77
preconceituosas e de exclusão para com esse segmento etário da população.
76
Rubem Alves, excelente cronista, também tratou o tema velhice . A crônica relata quando o autor
depara, pela primeira vez, a velhice e proporciona ao leitor uma reflexão sobre o tratamento que recebem
as pessoas mais velhas. Referida crônica também consta no item ―Anexo‖.
77
No item designado ―Anexo‖ também está o poema denominado ―Como se Morre de Velhice‖, no qual
em poucas palavras a autora Cecília Meireles expõe a dor da indiferença que se sofre, muitas vezes, na
velhice.
130
Assim, convém salientar que o rechaço sofrido pelo segmento etário
denominado velho está intrinsecamente vinculado à fuga dos ―padrões‖ estipulados
e/ou cultuados pela sociedade vigente, em que um corpo velho que não produz nem
reproduz (biologicamente e capitalistamente) está fadado à marginalização. Dessa
forma, percebe-se que a opressão da velhice ocorre numa multiplicidade de maneiras,
sendo algumas explicitamente brutais e outras tacitamente permitidas.
No item denominado ―Anexos‖, compartilha-se com o leitor a sugestão do
filme intitulado: Stardust – O Mistério da Estrela, no qual é possível identificar
situações abordadas neste segmento, como: o culto à beleza, à jovialidade, a imagem
da bruxa representada pela mulher envelhecida, a negação da velhice, dentre outras.
4.2. Laços intergeracionais
Ao abordar este assunto, inicialmente, faz-se necessário destacar o
sentido ativo que assume o termo ―geração‖. A definição desta palavra corresponde à
ação de gerar, de engendrar um ser vivo, um período de vida, bem como a produção
ou desenvolvimento de alguma coisa. Família, linhagem, genealogia são alguns dos
substantivos que associam significados ao vocábulo geração.
É fato que aumento da longevidade ocasiona uma coexistência maior no
decorrer do tempo, beneficiando bisnetos, netos, filhos, pais, avós e bisavós. Convém
destacar que os laços geracionais podem chegar a quatro, ou até mesmo cinco
gerações. A aproximação geracional possibilita troca mútua, no contexto familiar do
cenário contemporâneo e suas nuances. São gerações distintas, como por exemplo,
avós e netos convivendo no tempo. Fato este que possibilita à geração mais velha
também a adquirirem novos conhecimentos, tais como: utilizar aparelho celular,
realizar cursos de informática para usar o computador com seus netos, dentre outras.
No âmbito intergeracional da família seus membros se estabelecem como
sujeitos e seres sociais. É com origem na família que se pode compreender o
comportamento de cada pessoa, à luz da organização e funcionamento de um sistema
131
de relações, cuja conjuntura demarca e atribui sentido a tudo o que acontece no seu
interior.
A ideia de geração traz consigo o conceito de parentela. Os sistemas de
parentesco são concebidos como estruturas formais da sociedade. Leite (2004)
aborda estes sistemas, e sobre eles esclarece que são constituídos a partir dos
arranjos e combinações de três relações básicas: as de descendências (entre
pais/filhos e/ou entre mães/filhos), de consanguinidade (entre irmãos) e de afinidade
(firmada com o casamento).
As funções do núcleo familiar, concedidas com base em sua organização
em termos de parentesco, são relevantes tanto para a família quanto para a sociedade
em que está inserida, haja vista ser a ela (a família) o principal vínculo entre indivíduo
e sociedade, conforme esclarecem Leite (2004) e Vitale (2002).
Quanto à força e coesão existentes nos laços de parentesco, Bosi (1994)
pondera que:
De onde vem, ao grupo familiar, tal força de coesão? Em nenhum
outro espaço social o lugar do indivíduo é tão fortemente destinado.
Um homem pode mudar de país; se brasileiro, naturalizar-se
finlandês; se leigo, pode tornar-se padre; se solteiro, tornar casado;
se filho, tornar pai; se patrão, tornar-se criado. Mas, o vínculo que o
ata à sua família é irreversível: será sempre o filha da Antônia, o João
do Pedro, o ―meu Francisco‖ para a mãe. Apesar dessa fixidez de
destino nas relações de parentesco, não há lugar onde a
personalidade tenha maior relevo. (P.425).
É preciso evidenciar que a socialização é fator importante no estudo das
relações intergeracionais78, haja vista a técnica de transmissão do mundo social dar-se
por via das relações. Importante é imprimir destaque ao fato de que a herança
simbólica familiar é transmitida através das gerações. Destaca-se, por adequado, que
à figura dos avós é atribuída esta responsabilidade de perpetuar o legado geracional.
No tocante à transmissão, Vitale (2003) aponta que:
78
No item ―Anexos‖, compartilha-se com o leitor a indicação do filme denominado UP, Altas Aventuras.
Neste, é possível verificar a relevância das relações intergeracionais (com destaque para avós e netos).
De uma maneira lúdica e divertida, análises realizadas na presente pesquisa são também identificadas no
citado filme.
132
As relações intergeracionais compõem o tecido de transmissão ,
reprodução e transformação do mundo social. As gerações são
portadoras de história, de ética e de representações peculiares ao
mundo. As gerações, no entanto, estão construídas umas em relação
às outras. (P.91).
Ainda sobre esta transmissão das experiências vividas, Ferrigno (2003)
complementa este debate, acentuando que:
[...] a transmissão de ensinamentos a partir do vivido fica mais
imediatamente clara quando se fala de uma contribuição das
gerações mais velhas para as mais novas. Vários autores se referem
aos idosos como agentes de preservação da memória cultural.
(P.177)
Quanto aos conteúdos recebidos e enunciados por gerações mais velhas,
a autora alerta ao dizer que estes podem ser coligados em: legados de ordem (os
quais se referem à organização, educação e responsabilidade), legados de
solidariedade (os quais fazem alusão ao amor, respeito, colaboração, senso de justiça,
amizade...) e legados de fé (que compreendem à espiritualidade). Entende-se que tais
legados representam as bases da vida familiar para as avós, conforme explana a
autora anteriormente citada.
Destarte, torna-se evidente perceber que as transições entre gerações
pressupõem
ou
provocam
processos
peculiares
de
transmissão,
formação,
socialização, ensino e aprendizagem. No que se refere às variáveis que influenciam
as relações entre avós e netos, Dias (2002) assinala que estas são distintas e
compreendem ―idade, gênero, mediação dos pais, distância geográfica, trabalho e
saúde dos avós, o nível sócio-educacional da família, ocorrência de eventos
destrutivos (separação, crises, doenças), entre outros‖. ( P. 2).
No caso da Dona Ana, avó entrevistada, todos residiam na mesma casa,
ou seja, os genitores e seu neto, o qual nasceu doente com problemas respiratórios e
teve maior atenção de sua avó materna, desde que nasceu. Esse cuidado da avó, no
entanto, era compartilhado com os genitores do garoto. Dona Ana preocupava-se em
esclarecer sempre a seguinte situação: Nós que cuidamos dele. Nós tudim ! Eu, a mãe
dele e o pai dele. Nós tudo!
133
Ainda conversando sobre esse cuidado partilhado entre a avó e os
genitores do garoto, Dona Ana verbalizou que Pra num desagradar ninguém, eu
chamo ele é nosso filho, por que ele é filho de nós três.
Na inteligência de Oliveira (1999), a situação pela qual avós e netos se
percebem juntos, em sentido trivial, comporta uma multiplicidade de conflitos que
envolvem a vida interior dos sujeitos, bem como as relações mais amplas com a vida
social, haja vista que, em algumas situações, a união desfeita passa a insinuar um
descompromisso dos pais em relação à criação de seus filhos.
A aproximação de avós e netos para uma vida em comum, embora
muitas vezes não pareça, traz junto de si uma gama variada de
conflitos. Alguns são nítidos, como no caso dos netos cujos pais se
separam, outros mais velados, quando os pequenos ficam apenas
uma parte do dia com os avós, enquanto os pais estão fora
trabalhando. Não menos conflitivas são ainda as situações vividas
por crianças que são criadas junto com os netos consangüíneos, elas
que praticamente foram abandonadas pelos pais. Estes todos, porém,
são conflitos internos, vividos dentro de uma dada relação
interpessoal. Outros, de natureza externa, relacionados com a
condição social dos sujeitos, também merecem ser considerados no
desenvolvimento do tema. (P. 266)
É delicado o debate acerca de como se originou a situação de os
avós assumirem a criação dos netos ou, conforme o caso, dos
pequenos deixados aos seus cuidados por pessoas que recusam a
paternidade ou a maternidade, com os inúmeros compromissos
decorrentes. (P. 267)
Sobre esta a relação entre a separação dos genitores (dentre outros
fatores) e a aproximação entre avós e netos, tem-se as particularidades nos seguintes
discursos:
- Por que a mãe deles é daquelas pessoas que não quer nada com a
vida. É assim...gostava das pessoas erradas. Só gostava de
vagabundo. Aí, o primeiro que ela gostou, teve logo dois filhos, que é
o César e a Bia. Aí, ela deixou ele e foi morar mais nós, dentro de
casa. Aí, ela pegou e e arranjou outro que é o pai do Wilson .
Vagabundo também. Aí o meu marido morreu. Ela vivia jogada pelo
mundo, pra cima e pra baixo, com o menino né ! ...Aí, eu peguei e
botei dentro de casa. Aí, ficou comigo morando. Já o Wilson veio pra
minha companhia logo que nasceu. Mas, eu criei todos três todos
bem pequenininhos. (Depoimento concedido por Dona Rosa, 61
anos).
134
- Foi assim... Ele nasceu, o menino...quando foi com dois ou três
meses, ele pegou uma gripe que começou a cansar e nunca mais
ficou bom. Nós que cuidamos dele. Nós tudim. Eu (avó materna), a
mãe dele e o pai dele...Nós tudo !!!(Depoimento concedido por Dona
Ana, 74 anos).
Nesse caso, mesmo ambos genitores sendo presentes, a atenção, os
cuidados diários e até o auxílio financeiro dedicados pela avó (D.
Ana) não foram dispensados...Digamos que o cuidado foi,
inicialmente, compartilhado... (Diário de Campo, 09 ago. 2012).
Nesta ocasião, relatou que possui cuidado com seus netos como se
fossem seus filhos. Ficou emocionada, e começou a chorar ao
verbalizar seu amor e atenção...Sobre os outros netos, mesmo os
que não moram (ou nunca moraram com ela, ela disse: ―eu ajudo, por
que eu ajudo eles tudo, né!‖. A referida ao mencionar que ajuda à
todos, referiu-se ao caçula, um bisneto com oito meses de vida, o
qual não vive em sua companhia. Todavia, também é ajudado
financeiramente por ela. “Desde o primeiro eu já cuido”. Euforia ao
falar dos netos, de seu amor para com eles, de seu sentimento em
ser útil e de cuidar... (Diário de Campo, 09 ago. 2012).
- Foi assim, por que eu tinha uma filha e ela tava namorando com um
rapaz, aí ela saiu grávida dele. Aí ela ficou dentro de casa, aí depois,
ela começou a gostar de outro. Aí, ela foi falou pra mim que queria se
ajuntar com esse rapaz. Aí, eu fui e disse assim: vá se ajuntar, mas o
menino eu vou ficar com ele, por que... Eu era muito pegada com o
menino. Aí, eu tive medo por que podia ele ir par companhia desse
homem, dele não ser pai dele e bater nele. Aí, ela disse: tá certo mãe!
Pode ficar com ele ! Aí, eu fui fiquei criando ele. (Depoimento
concedido por Dona Conceição, 67 anos).
-O pai dele não manda nada. Um tempo a mãe dele (avó paterna)
mandou um recado pra levar ele (o garoto) lá. Aí, eu conversei com a
mãe dele, e ela disse: é mãe leva ele lá!‘ Aí, nós levemos. Quando
nós cheguemos lá, minha filha, ele tinha levado uma pisa tão grande
da polícia. E o menino já grande, o menino vendo tudo. O bichim viu
ele com o corpo todo cheio de peia. Aí, ele perguntando assim: ‗E o
que foi isso vózinha (avó paterna)?‘ E, eu fiz assim com o olho pra ela
não dizer. Aí, ela disse: ‗ Não, meu filho foi que ele levou ...assim,
assim....Aí, ele botou aquilo na cabeça e só vivia
perguntando,perguntando...Aí, outra vez, eu levei ele lá de novo, que
ele queria ver ele pra dá uma bicicleta. E aí, que quando nós
chegamos lá, aí ele tava preso. Aí, eu conversei com ele... Elias...eu
não vou levar mais você lá não, e nem ele pise lá em casa, por que a
gente vai e você vê é coisa feia lá ...é peia...é preso. E ele
perguntou: ‗ por que?‘. Aí, eu fui e disse para ele que era porque ele
‗coisa‘ droga. Aí, ele disse: ‗mãe, nunca mais no mundo eu quero ir
lá...E, não foi ais não! (Depoimento concedido por Dona Conceição).
A ênfase que esta entrevistada concedeu à palavra medo foi consolada
quando a genitora do infante disse que a Dona Conceição poderia permanecer com
ele. A genitora do garoto tinha 15 anos de idade quando deu à luz seu primeiro filho.
Atualmente, a citada tem outro filho (uma menina), fruto de seu segundo companheiro
135
e que mora com o casal. Quanto ao menino, criado pela avó materna, foi cogitado por
sua genitora que o registro de nascimento fosse elaborado no nome da avó. Tal
solicitação, contudo, não foi permitida pelo cartório, segundo Dona Conceição.
- Acho que ela imaginou assim... Eu penso que ela imaginou
assim...que o marido dela não é o pai do Elias, né? E, pensou assim
também, mas a mãe cuidou dele desde novinho... Ela saía pros
cantos e eu ficava com ele... Também ela imaginou assim...Eu acho
que eu vou deixar é ele com a mãe mesmo. E quando ela foi pra
casar, ela disse assim: ‗É mãe eu não vou levar não. Fica pra mãe !
Fica pra mãe! (Depoimento concedido por Dona Conceição, 67
anos).
Convém salientar, com suporte nas relações entre avós, filhos e netos, que
é possível refletir sobre a situação social destas interações. Consoante a autora
supracitada, o grupo familiar ―(...) visto do prisma de parentesco, se constitui em laços
de compromissos e lealdade entre os seus membros, tanto na linha de descendência
como na de ascendência‖. (P.37).
Considerando as trocas nestas relações, Fonseca (2002) alerta:
Os primeiros nascidos de uma geração freqüentemente passam seus
primeiros anos com uma avó que, cuidando deles, cumpre as únicas
obrigações familiares. Vinte anos depois, quando a obrigação se
transforma em direito, a vó pode muito bem reivindicar, na sua
velhice, a companhia de um dos netos mais novos. (P. 32).
Vitale (2002) defende o argumento de que a figura dos avós, na
contemporaneidade, expressa uma importância de forma a fazê-los emergir como
protagonistas nas cenas das relações familiares, no mundo globalizado.
Na contemporaneidade, a significativa presença dos avós pode ser
constatada em diversas situações, as quais os envolvem de forma complexa e/ou até
mesmo subjetiva. Ao compreender a diferença entre a avó no passado79, e a avó do
presente, Vitale (2005) ressalta que,
Por essas razões, a figura clássica da vovozinha sentada na cadeira
de balanço, cabelos brancos, fazendo tricô ou crochê, presente nos
79
Mascaro (1997) menciona esta imagem da avó em tempos passados, contando histórias para os netos
e apresentando marcas, como cabelo preso num cocó, bengala, dentre outros.
136
livros infantis, pouco corresponde ao perfil dos avós atuais,
possivelmente em todos os segmentos sociais, considerando-se as
mudanças por que passou a família, em especial a partir da segunda
metade do último século. (P. 101).
O âmbito familiar é local onde são recriados os códigos, ensejando, dessa
forma, uma teia de relações significativas para seus membros. Mediante o sistema de
parentesco são criados os vínculos sociais e é suposta uma ligação afetuosa (seja
mais intensa ou mais diluída), entre os componentes da família, conforme o nível de
parentesco. A família é um sistema complexo de relações, haja vista que nela seus
membros partilham um mesmo contexto social de pertença. Falar de família também
se refere a memória e transmissão.
É bom ressaltar que os laços de afetividade, determinados pelas regras
que permeiam as relações sociais familiares, também exprimem sua contribuição com
vistas a manterem unidos os membros da família. Conforme Vitale (2002), ―(...) a rede
social e as trocas intergeracionais, ou seja, as solidariedades familiares ajudam a
existência destas famílias‖. (P. 54).
Na oportunidade, D. Conceição lembrou de falar sobre outros netos
que residem nas proximidades do Residencial Vitória e que, no
horário das principais refeições (almoço e jantar), eles sempre estão
por aqui. ... (Diário de Campo, 26 jul. 2012).
Em conversa com D. Ana, ela revelou também que conzinha pra
muitos, pois na hora do almoço a casa é cheia. Pois, ela faz o almoço
e aqueles netos que moram próximo vem buscar a misturinha deles.
A entrevistada tem sempre a mesma preocupação com os netos no
cotidiano, a sobrevivência, a alimentação...Ao lado do apartamento
de D. Ana mora uma das filhas dela. Constatou-se também que o
apartamento de D. Ana é uma espécie de ponto de apoio, dentre
outros momentos, principalmente, nas horas de refeições. (Diário de
Campo, 25 set. 2012).
No tocante às relações intergeracionais, Petrini (2003) expressa que, em
meio a um cenário de mudanças, faz-se necessário destacar o surgimento de outros
arranjos familiares, diferentes, bem como das características que as relações
intergeracionais passam a ostentar, além das funções que toma para si a família na
atualidade. Desenvolvendo um raciocínio parecido, Ferrigno (2003) expõe :
Se as gerações são continuamente construídas, desconstruídas e
reconstruídas, a relação entre elas está sempre sendo refeita. Novas
137
relações, por sua vez, determinam novos comportamentos das
gerações, num envolvimento dialético e de retroalimentação
permanente. Ficamos, então, instigados a saber o que ocorre na
relação entre gerações. Conflito ? Competição ? Cooperação ?
Afetividade ? Indiferença ? Autoritarismo ? Igualitarismo ?. (Pp. 4546).
Vitale (2002), corroborando os pensamentos de Petrini (2003) e Ferrigno
(2003), evidencia que o núcleo familiar se organiza de forma peculiar no
enfrentamento dos ―percalços do cotidiano‖.
Faz-se necessário ressaltar que a
singularidade da forma que cada família encontra para manter (ou cuidar) de seu
equilíbrio e sobrevivência interage com os relacionamentos interpessoais e
intergeracionais de seus membros.
Na relação avós-netos, focalizada neste trabalho, pode-se observar a
existência de um vínculo de troca entre estas duas gerações, tão distintas e próximas
ao mesmo tempo, parecendo até mesmo uma relação de complementaridade.
Sobretudo no que tange ao desenvolvimento dos seus netos, a influência é recíproca
nesta relação. Segundo Ferrigno (2003), ―todavia, não há como negar a reciprocidade
de influências nas relações entre as gerações‖. (P.144).
Assim sendo, é possível afirmar que a relação entre essas duas gerações
possui caráter mutuamente relevante. Vitale (2002), assim como Ferrigno (2003),
defende a ideia de que a rede de parentesco é caracterizada por um ―sistema de
trocas de ajudas mútuas‖.
Interessante...durante as conversas com a D. Ana ele sempre fazia
menção „as mensalidades‟ dos netos. Nas primeiras visitas não
compreendi. Mas, posteriormente a situação foi clareando...Estas
referiam-se ao auxílio financeiro que a entrevistada para os netos,
mesmo aqueles que não moravam com ela, residindo na mesma
cidade que ela morava ou até mesmo no interior, D. Ana ia
deixar...Com o passar do tempo, a doença e o avançar da velhice já
não mais contribuíam para que ela viajasse para ver os netos e deixar
„as mensalidade pra comprar alguma coisa pra eles‟. (Diário de
Campo, 08 jan. 2013).
É no cotidiano que avós e netos se descobrem, modificam- se,
completam- se e influenciam- se. Esta relação entre gerações é fundamental para o
desenvolvimento global do neto, principalmente no que se refere aos aspectos
culturais, psicoevolutivos e formativos, como pensa Andrade (2008).
138
Na concepção de Peixoto (2000),
Os avós têm muito a transmitir. Às memórias individuais se conjugam
às memórias coletivas e as lembranças não se limitam às suas
trajetórias pessoais nem à vida familiar; seus relatos falam de
acontecimentos políticos e sociais assim como das transformações
do bairro e da cidade e da evolução dos costumes. (P.108).
Conforme essa autora, na esfera cultural, os avós representam a voz da
experiência, ou seja, o passado, desconhecido por aqueles que não vivenciaram (os
netos). Fator importante para compreensão intelectual de fatos atuais, tanto na vida
pública quanto na privada.
Na compreensão de Vitale (2005), por meio da figura das avós pode-se
observar que ―as mulheres têm tido papel privilegiado nos processos de transmissão
da cultura familiar. Nesse sentido, as avós emergem como elo entre as gerações e
revelam um tempo familiar e coletivo‖. (P.102)
A imagem dos avós, através do aporte de sua experiência, surge também
como estimulante à criatividade, à motivação e à linguagem, para com seus netos.
Andrade (2008) ratifica esta premissa, ao considerar que:
Esta troca cultural é também uma troca afetiva entre o avô e o neto
que além de estimular a potencialidade intelectual e relacional de
ambos, favorece a manutenção da memória histórica permitindo a
redescoberta de uma presença ativa do velho na família, riqueza
esta que a sociedade nem sempre reconhece e aprecia. (P.10).
Quanto ao apoio psicoevolutivo, a autora acima mencionada esclarece que
esta relação exerce função positiva na constituição do EU de seus netos,
principalmente em situações, como processos projetivos, suporte, autonomia, perdas,
lutos, separação dos genitores, próprios de cada fase de crescimento e
desenvolvimento tanto do infante quanto do adolescente.
Já no aspecto formativo, esta relação assume caráter de apoio na
compreensão da vida, bem como na experiência de separação e de morte. Tal suporte
apresenta relevância para a formação dos netos no que diz respeito ao enfrentamento
de situações diversificadas, no decorrer das fases da vida.
139
Nas relações com os netos, é possível identificar o surgimento da
linguagem do afeto, criando-se uma relação de cumplicidade entre estas duas
gerações, permitindo que avós e netos usufruissem da liberdade de expressões de
carinhos e brincadeiras.
- Quando a Rita saí de casa que ele fica aí, ele não gosta de sair
não...De primeiro ele não fazia isso não. Mas, agora ele faz. Ele num
gosta de sair que é pra não me deixar só. Eu quero muito bem a ele.
(Depoimento concedido por Dona Ana, 74 anos).
Pode-se perceber aqui que a entrevistada enfatizou a atenção que o
neto tem por ela. A recíproca também é verdadeira. Existe entre eles
uma reciprocidade (Diário de Campo, 25 set. 2012).
O amor e carinho dos avós cuidadores de netos é sempre
expressado, quer no dito, como também no não-dito. No caso da
D.Conceição, ela gostava de repetir sempre em suas narrações: Ele é
meu bem querer. Quero muito bem a ele. (Diário de Campo, 30 jul.
2012).
Leite (2004) defende o argumento de que existem duas situações, as quais
permitem estabelecimento de verdadeiros laços entre avós e netos, a saber: cuidar e
criar. Segundo a mencionada, estas favorecem o desenvolvimento de múltiplas trocas,
considerando os mais diversificados domínios, os quais podem ser expressos nas
mais variadas esferas,
como,
por
exemplo:
conselhos,
passeios,
ajudas80,
confidências, dentre outras. Nas relações estabelecidas entre avós e filhas ou avós e
netos, é inevitável surgirem questões de cuidados com os netos.
Sobre o ato de aconselhar, Bosi (1994) pondera:
Aquilo que se viu e se conheceu bem, aquilo que custou anos de
aprendizado e que,a final, sustentou uma existência, passa (ou
deveria passar) a outra geração como um valor. As idéias de
memórias e são afins: memini e moneo , ‗ eu me lembro‘ e ‗eu
advirto‘, são verbos parentes próximos. (P.481).
Tais recomendações, advertências e/ou conselhos foram também
identificado nas falas das avós entrevistadas neste trabalho, os quais podem ser
verificados nas falas a seguir:
80
Relevante é considerar que estas ajudas podem assumir tanto o caráter físico (através dos cuidados
diários), quanto financeiro.
140
- Eles tem respeito e educação. Eu ainda dou carão. Eles pode ta
fazendo qualquer coisa e quando algum diz: ‗lá vem a vó!‘ (risos)...
(Depoimento concedido por Dona Ana, 74 anos).
Este relato a D. Ana conta com muito orgulho, haja vista já ser velha
e com dificuldades para andar, enfatiza que ainda possui moral e
destaca sua autoridade com seus netos para chamar-lhes atenção e
advertir, mesmo para aqueles que não moram mais com ela e já são
adultos. (Diário de Campo, 25 set. 2012).
- É responsabilidade, viu! ...ter cuidado pra saber como é que eles
andam...É assim! E eu e o Elias...eu quebro muito minha cabeça
com o Elias porque eu sou doente da pressão, e quando ele vai pro
colégio aí é que eu recomendo um bocado de coisa. Eu digo: cuidado
lá no colégio! Não queira brincadeira. Quando sair de lá, é no
caminho de casa. Aí, não queria brincadeira com ninguém. Olha as
arenga! É assim... Quando for passar num canto, cuidado ! Repare! É
assim... E enquanto ele não chega eu não sossego. É assim..E ele
atende! (Depoimento concedido por Dona Conceição, 67 anos).
Considerando o sistema de trocas intergeracionais, são evidenciados os
fenômenos da solidariedade e de apoio (tanto emocional quanto financeiro) entre as
gerações familiares, apontado por Ferrigno (2003), bem como demonstrado nas
palavras de Vitale (2002), quando a citada menciona que os avós surgem:
[...] como personagens-chaves diante das fragilidades conjugais, da
recomposição familiar e monoparentalidade. Eles parecem se
apresentar tanto como rede de apoio concreta, mesmo para aqueles
mais pobres, como laços dentre as gerações que conferem
identidade à história familiar. (Pp.53-54)
Assim sendo, pode-se constatar que as redes familiares proporcionam
alguma forma de apoio, de acordo com seus desenhos de classes, bem como suas
possibilidades situacionais. Andrade (2008) ressalta que a responsabilidade de cuidar
de netos, muitas vezes inesperadas nesta etapa de vida dos avós (ou seja, na
velhice), impacta sobre a saúde física-emocional desses avós, podendo, inclusive,
afetar sua qualidade de vida.
Considerando tal relação em duas vertentes, sendo elas o risco e o afeto,
a citada autora pondera que: ―Contudo, as relações com os netos envolvem também
sentimentos, senso de obrigação familiar, e satisfações que em muitos casos
sobrepõe-se sobre o ônus que o cuidar de netos pode acarretar‖. (P.19).
141
- Eu tenho tanta pena dele...(choro). Por que ele não tem pai. O pai
que ele conhece é esse aqui (avô paterno). Na igreja, ele se ajoelha
orando pela ‗fia‖ (mãe biológica). Ele fica de joelho orando pela mãe
dele. (Depoimento concedido por Dona Conceição, 67 anos).
- É muito bom a gente cuidar de neto! (pausa) Dá um trabalho...Mas,
a gente...é a segunda mãe, né? Como é um segundo filho pra gente,
né? Eu amo meus netos mais do que amo meus filhos. Eu adoro
meus netos. Aliás, eu tenho aí um pequenininho que...ave Maria...é
tudo pra mim! (lágrimas). (Depoimento concedido por Dona Rosa, 61
anos).
- Aonde eu to, se eu sentir que ele ta faltando alguma coisa...Eu ligo
logo pra mãe dele pra saber se ela já resolveu...(Depoimento
concedido por Dona Ana, 74 anos).
No caso de D. Ana, os genitores do garoto nunca se ausentaram.
Dessa forma, o cuidado era compartilhado... Conforme narra a D.
Ana, Essa família aí sempre morou comigo, em Viçosa do Ceará,
depois Fortaleza, depois Maracanaú. Observei também que mesmo
já velha e com as limitações decorrentes da própria idade, D. Ana
exerce as tarefas domésticas, e sempre durante os momentos de
conversas estava atenta ao fogo da panela, à panela de pressão e,
preocupada se a comida estava boa. (Diário de Campo, 25 set. 2012)
Sobre esse ―senso de obrigação familiar‖, no sentido de cuidar dos netos e
seu sentimento de missão cumprida, Dona Ana contou que gostaria de ser lembrada
pela família pela seguinte frase: Aí vai uma véinha heroína !, referindo-se ao dia de
sua morte e ao apoio, bem como suporte familiar, por ela dedicado no âmbito
doméstico.
Outro fator importante, abordado por grande parte dos estudos sobre as
relações familiares, refere-se à proximidade geográfica que pode influenciar nas
relações entre membros da família. A distância espacial se revela como elemento
essencial para a solidariedade familiar, bem como para a criação dos laços afetivos.
Ressalta-se, todavia, que este feito não pode ser compreendido como regra geral, haja
vista que outras situações diferenciadas podem ser encontradas81.
Apesar de D. Ana afirmar que “não tem diferença” no que se refere ao
cuidado ofertado ao primeiro neto (e o que reside mais próximo) e os
demais netos, descobri que ela sempre se dedicou mais a este neto,
e que ele é criado, inclusive, com alimentação diferenciada. ―É por
que ele não come toda coisa...já se acostumou a comer assim umas
coisas...”. A avó se preocupa também em proporcionar uma
alimentação de melhor qualidade, além de ajudar em outras coisas
também (material escolar, dentre outros...). ― Ah! Eu ajudo com roupa,
81
A distância espacial nem sempre significa distanciamento afetivo, entretanto, pode influenciar nessa
relação (avós-netos).
142
ajudei muito na medicação, com os remédios, e no cuidado de dar
conselhos...”. (Diário de Campo, 25 set. 2012).
A relação entre avós e netos, além de aproximar gerações, ensejam uma
releitura de vida entre os membros da família, sem desconsiderar aqui o sentimento de
continuidade da vida expressa por meio do nascimento dos netos.
Assim sendo, sobre esta relação, Peixoto (2000) considera:
Transmissões materiais, transmissões afetivas, e apoios diversos
formam o circuito das solidariedades e das transmissões entre as
gerações e constituem elementos de base da reprodução familiar. Os
avós são o apoio com que os netos podem contar, ainda que não
compartilhem concepções de vida semelhantes. (p.110)
Embora, alguns estudos que abordam as relações avós e netos realcem os
benefícios direcionado aos netos, há de se compreender, portanto, a existência de
uma reciprocidade, conforme Ferrigno (2003), nos benefícios originados pelo
relacionamento entre essas duas distintas gerações.
4.2.1 Avosidade: o tornar-se avó ...
Neste ensaio universitário, foi considerada como necessária a inclusão
deste tópico no intuito de apresentar a visão de alguns autores sobre a função de ser
avó (ou avô), etapa humana esta também denominada de avosidade ou vovozice. A
avosidade consiste num termo cunhado pela Psicogerontologia (campo da psicologia
relacionado ao estudo do envelhecimento). Semelhante à palavra maternidade82, a
expressão avosidade define um conjunto de transformações relevantes na vida adulta,
o qual compreende também o modo de o indivíduo se relacionar com seus filhos,
família, e consigo mesmo.
Podendo ser definida como laço de parentesco, a avosidade83 está
intimamente vinculada às funções materna e paterna, das quais, contudo, se distingue
82
83
Exposto em tópico anterior: 4.3 – Cultura e natureza feminina.
O uso do termo avosidade não é muito comum, situação esta que passa a ser compreendida, para
Redler (1986), como sendo um tipo de resistência e/ou enfrentamento ao tema.
143
desempenhar papel categórico na formação do sujeito. (OLIVEIRA; VIANNA;
CARDENAS, 2010). Araújo (2002) e Guedes (2000) complementam, acentuando que
a avosidade se localiza nas filiações trigeracionais do ponto de vista pessoal, social e
familiar.
Ter um neto (a) significa um novo laço geracional e, até mesmo, promessa
de vida. No que concerne à relação entre família e intensidade dos laços, Peixoto
(2000) pondera:
A concepção da família como pilar fundamental da organização da
existência dos indivíduos revela simultaneamente a intensidade dos
laços que as unem ao ambiente familiar e sua singularidade,
implicando uma forte solidariedade entre seus membros. (Pp.66-67).
Retomando o assunto sobre avosidade, tem-se que esta corresponde ao
momento em que as relações intergeracionais são enfatizadas e que o núcleo familiar
assume novas formas ou características, as quais também irão influenciar nas
dinâmicas relacionais, principalmente na contemporaneidade, haja vista que a ―nova
família‖, ao abranger uma geração a mais, pode reunir respostas imediatas a
situações (sociais, econômicas...) a que ela foi ou passa a ser submetida.
Convém destacar que o fato de se tornar avó ou avô, em qualquer
circunstância, implica alteração no lugar em que se ocupa na família e/ou própria
dinâmica, fato este que poderá ter conotação positiva e enriquecedora, negativa e
relacionada à perda (como, por exemplo, da liberdade e do descanso), bem como de
―peso‖ (ao vivenciar uma ―dupla maternidade‖), considerando a complexidade dessa
responsabilidade. O relacionamento de avosidade se aproxima bastante dos
sentimentos maternos e paternos.
Dessa forma, pode-se dizer que a avosidade compreende a lógica do
apoio familiar, haja vista que este não significa, apenas, uma obrigação, pois
―representa um princípio de vida e um elemento fundador das relações familiares‖.
(PEIXOTO, 2000).
Vale salientar que a relevância da reciprocidade na relação estabelecida
entre avós em netos foi reconhecida, principalmente, durante a década de 1980 e,
desde então, o interesse pela avosidade acendeu consideravelmente. Dentre outros
144
fatores que colaboraram para esta situação, está a elevação da expectativa de vida, a
qual proporciona maior tempo de permanência dos sujeitos na função de avós,
conforme versam Oliveira; Vianna; Cardenas,(2010).
Lembra-se, contudo, que a condição de avó (ou avô) ao se fazer presente,
independe da anuência do indivíduo, conforme pondera Freitas (2006). Destarte, tal
função requer a elaboração do questionamento do próprio papel como filho e como
mãe, no sentido de que não se repitam os erros e se compensem as faltas, de acordo
com Gerondo (2006).
Vale frisar que o ser avó84 (avô) surge no cotidiano familiar carregado de
idealizações e planejamentos junto á chegada do novo neto (a). O fenômeno da
avosidade, no entanto, também é considerado singular e pessoal, pode não ser tão
natural quanto se pensava, e, portanto, surgir acompanhado de conflitos e angústias.
E este momento, a chegada do neto, poderá suscitar novas responsabilidades, as
quais poderão ser de natureza efêmera ou não.
Diante do exposto, convém evidenciar a relevância do exercício da
avosidade nos dias atuais, haja vista a diversidade dos modos de vida no âmbito das
famílias, fato este que, conforme Peixoto (2000), não significa que as trocas
intergeracionais tenham se elevado ou se reduzido, todavia, ocorre é que as relações
adquiriram outras formas em face das exigências e das circuntâncias.
4.3. Cultura e natureza feminina
Conforme abordado anteriormente, a experiência do envelhecimento
retrata heterogeneidade, compreendendo a diferença também entre os sexos
(feminino
e
masculino).
Neste
tópico,
buscou-se
analisar
a
imagem
do
envelhecimento, bem como as peculiaridades vinculadas ao gênero feminino.
84
É válido lembrar que o ―Ser avó‖, nos dias atuais, pode implicar não ter ―muita idade ou idade
avançada‖, haja vista a existência de avós jovens, fato este recentemente observado na personagem
Lucimar (interpretada pela atriz Dira Paes), na novela Salve Jorge, que está no ar pela emissora Rede
Globo, todavia, elas (as avós jovens ou jovens avós) não são o foco deste estudo.
145
Estudos que discutem sobre o envelhecimento populacional conferem
(dentre outros tópicos), destaque à chamada ―feminização da velhice‖, segundo Debert
(1999) e Peixoto (1997), fato este que emerge do menor índice de mortalidade entre a
população idosa do sexo feminino. A redução da mortalidade favoreceu, então, ambos
os sexos, todavia, foi mais expressiva entre as mulheres, resultando, assim, em maior
representatividade entre elas.
Conforme visto anteriormente85, falar da velhice, principalmente, da velhice
feminina, é também mencionar o desprestígio atribuído a esta, em diferentes épocas e
sociedades. Ao abordar as narrativas mitológicas86 e a história87, verifica-se que a
relevância e a valorização da mulher estavam associadas estreitamente ao seu papel
de mãe e procriadora. Na sociedade contemporânea, ainda é possível observar
expressões de estereótipos e preconceitos em relação à pessoa envelhecida.
Quanto ao sexo masculino, este é vinculado à imagem de força e
mantenedor da família. Tal análise é reforçada nas palavras de Sarti (2003), quando
ela menciona o ―lugar de homem e lugar de mulher‖, destacando que o papel
masculino corresponde ao ―de prover teto e alimento, do qual se orgulham os
homens.‖ (p.62)
Analisando concepções de caráter genérico, na sociedade atual, verificase que a função reprodutora atribuída à mulher, de forma a compreendê-la a partir da
potencialidade de gerar filhos, lhe confere uma série de outros valores, os quais
passam a ser aceitos como inerentes à natureza de mulher, ou seja, atributos de sua
condição feminina, segundo esclarece Leite (2004).
Considerando essa percepção, convém salientar que a maternidade é
compreendida como natural. Em outras palavras, própria do status maternal da
mulher, ou, ainda, conforme a autora acima mencionada, ―a sua própria natureza de
mulher a faz ser maternal, dedicada‖. (P.45).
85
Assim sendo, o ser mulher está
Alusão ao item 4.1.1, do presente estudo, intitulado : ―Sob as lentes do estereótipo‖.
86
―As narrativas mitológicas contam-nos que a mulher idosa, infértil, não se identificaria mais com a
Grande mãe, que tem poder de fecundação e de nutrição.‖ (MASCARO, 1997: p.17).
87
―No folclore brasileiro, a bruxa é também vista como uma mulher velha, magra, enrugada, feia, suja e
coberta de trapos, que perambula misteriosamente pela noite fazendo maldades e assustando as
crianças. Os sertanejos do nordeste imaginam a fome na figura de uma velha esquelética, que espalha
miséria por onde passa.‖ (MASCARO, 1997: p.18)
146
intrinsecamente relacionado ao fato de ser mãe, imputando-lhe assim ilusões, ou seja,
construções sociais de naturalidade à maternidade.
Ainda quanto a este papel atribuído ao sexo feminino, Sarti (2003)
acrescenta que ―a autoridade feminina vincula-se à valorização da mãe, num universo
simbólico em que a maternidade faz da mulher mulher, tornando-a reconhecida como
tal, senão ela não será uma potencialidade, algo que não se completou‖. (P.64).
Beauvoir (1980) corrobora esse pensamento, ao esclarecer que tais
concepções vinculadas ao papel feminino, na sociedade, conferem a este gênero
características adquiridas no seu cotidiano, como, por exemplo, o de ser paciente e
calma. Também a expressão de ―naturalidade‖ das atividades ligadas ao lar são
designadas às mulheres, conforme demonstra Beauvoir (1980):
Cotidianamente a cozinha ensina-lhe paciência e passividade; é uma
alquimia; cabe-lhe obedecer ao fogo, á água; esperar que o açúcar
derreta, que a pasta fermente e também que a roupa seque, que as
frutas amadureçam. Os trabalhos caseiros aparentam-se a uma
atividade técnica; mas são por demais rudimentares, por demais
monótonos para convencer a mulher da causalidade mecânica. Aliás,
mesmo nesse terreno, as coisas têm seus caprichos, há tecidos que
encolhem e outros que não encolhem ao serem lavados, manchas
que desaparecem e outras que não, objetos que quebram sozinhos,
poeiras que germinam como planta. (P. 364).
Observa-se que, a crença naturalista engloba e institui relações de
causalidade natural-lógicas, as quais irão definir todas as relações sociais da mulher,
de modo a afirmar a capacidade biológica feminina de gerar filhos, fator este que para
Leite (2004) implica uma série de atribuições, a saber:
a) O cuidado e a criação das crianças de forma praticamente
exclusiva e individual por parte da mãe biológica;
b) Uma mística maternal baseada no amor incondicional aos filhos,
que constitui uma gratificação suprema para a mulher
(basicamente aos filhos próprios);
c) O acesso à maternidade e às experiências emocionais
provenientes desse fenômeno como fatores essenciais para a
constituição da feminilidade (ser mulher é ser mãe);
d) Uma série de atributos da personalidade feminina como ternura,
compreensão, tolerância, intuição, passividade, cuidado com os
outros, que são esperados, primordialmente, na conduta das
mulheres em todas as suas relações humanas, pelo fato de
serem mães. (Pp. 45-46).
147
É fato que a identificação do sexo feminino é composta por um legado de
atribuições sobre as mulheres que norteou (e ainda acompanha) a experiência de
todas elas. Ao considerar o feminino como experiência e não particularidade, pode-se
compreender que desde a infância as diferenças infligidas pela sociedade permeiam,
nitidamente,
o
dia
a
dia
destas
relações
com
modelos
comportamentais
préestabelecidos.
Desse modo, observa-se que as responsabilidades que incidem sobre a
mulher são inculcadas desde que estas ainda são crianças, ou seja, nos primórdios da
educação familiar. As crianças são instigadas a se identificarem com modelos do que
é feminino e masculino (com brinquedos, cores, dentre outros...) para melhor
exercerem os papéis correspondentes e as atribuições de cada sexo.
Apoiando as afirmações anteriores expressas também no pensamento de
Leite (2004) e Beauvoir (1980), destacam-se as declarações de Osterne (2001):
O cotidiano das meninas, primeiro na família, depois na escola e nas
relações sociais, é permeado por ofertas de modelos de
comportamento mais dóceis, mais delicados, com caminhos pouco
definidos no mundo das decisões, mas muito fortes no que se refere
a papéis secundários e submissos. Já dos meninos, são esperados a
iniciativa, a agressividade para enfrentar os fatos corriqueiros, o
constante acerto nas investidas sexuais, a escolha de caminhos
característicos de pessoas fortes e vencedoras- os provedores.
Inculca-se nos meninos a crença na existência de um homem viril,
corajoso, forte, esperto, conquistador e imune às fragilidades,
inseguranças e angústias da vida. (P.121).
Tratando sobre a distinção entre natureza e cultura, torna-se imperativo
mencionar que aos homens foram associados às conquistas e participações no mundo
público, como vivências no mundo da cultura. Às mulheres, porém, tocaram as
atividades que ―parecem ser irrelevantes‖. Assim sendo, a posição da mulher na
sociedade passa a ser proveniente de suas funções biológicas, e reservam-se à esfera
privada.
Tais oposições, identificadas em preceitos culturais, atribuem ao homem
tudo o que é construído, ordenado e valorizado. Em síntese, o significado de ―cultura‖,
enquanto à mulher (definida por símbolos que reforçam suas funções sociais e
biológicas) o de ―natureza‖. Alguns autores apontam que para as mulheres, mais que
os homens, estava o envolvimento com materiais ―sujos‖ e perigosos da vida, dando à
148
luz e lamentando a morte, respectivamente, além de cozinhar, desfazer-se de fezes,
dentre outras circunstâncias análogas e submissas, limitadas ao âmbito doméstico.
Segundo Laplantine (2000), ―a cultura é o conjunto dos comportamentos,
saberes e saber-fazer característicos de um grupo humano ou de uma sociedade
dada, sendo essas atividades adquiridas através de um processo de aprendizagem e
transmitidas ao conjunto de seus membros‖. (P.120).
Assim sendo, de maneira adquirida, a cultura permite que as pessoas
aprendam
com
seus antepassados modos de viver
e imputar
valores
a
comportamentos, além de discernir o que pode ou não ser adequado, conforme os
parâmetros de cada sociedade. As atitudes de cada indivíduo são consideradas
símbolos, com um significado distinto, fundamentados na cultura em que cada sujeito
está inserido.
Ainda quanto às questões suscitadas a respeito da relação natureza e
cultura entre os sexos, Leite (2004) evidencia que,
[...] o papel social feminino faz com que as mulheres criem a partir de
sua própria essência, enquanto o homem é livre para ou forçado a
criar artificialmente, isto é, através dos meios culturais e dessa
maneira manter a cultura.
Por essas razões as mulheres são identificadas ou simbolicamente
associadas com a natureza, em oposição aos homens que são
identificados como cultura. Conseqüentemente, elas se vêem como
os outros as vêem, e reproduzem o que a sociedade quer que elas
sejam. Dentro do princípio, ‗ser mulher é ser mãe‘ e ‗ser mulher-avó é
ser mãe duas vezes. (P.47).
Em rejeição ao determinismo biológico, surge o termo gênero, o qual
passou a ser utilizado na década de 1970, com o intuito de produzir uma reflexão
acerca da diferença sexual. Para Osterne (2001), ―foram as feministas americanas as
primeiras a usar o termo com o objetivo de destacar o caráter fundamentalmente
social das distinções baseadas no sexo‖. (P.117).
Quanto à posição da figura feminina no contexto familiar, no passado era
comprometida com o lar, designada ao casamento e à educação dos filhos. Já nos
dias atuais, as mulheres saem de casa para exercer atividades laborais fora do
ambiente doméstico, colaborando com uma parcela indispensável da renda para
149
manutenção da casa, ou até mesmo chefiam famílias. Em suma88, conforme alerta
Osterne (2001), há de se considerar ―a presença da mulher na complexidade social‖.
Neste sentido, Vitale (2005) corrobora no debate, ao esclarecer que:
Nas famílias mais empobrecidas, há hoje uma elevada proporção de
mulheres mais velhas que, sem terem tido melhores possibilidades
educacionais, trabalham recebendo, conseqüentemente menor renda.
Essas são, entretanto, chefes de família, provedoras de um grupo
familiar que, com freqüência tem poucas pessoas trabalhando.
(P.101, apud CAMARANO 1999)
Há de se considerar, portanto, que a contemporaneidade trouxe novos
desafios e/ou até mesmo conflitos para as mulheres no que tange às transformações
no contexto familiar, liberdade sexual, bem como alterações nas formas de procriação
e educação da prole. A cultura ainda se faz forte, contudo, ao vincular a imagem
feminina às tarefas domésticas, a ser a guardiã do afeto e da moral da família, e ao
ato de cuidar, o qual ainda tende a ser imputado às mulheres como sendo
constitutivos de sua condição feminina. Vale frisar que, embora não sendo prescritos,
estes papéis são assumidos.
Assim sendo, com âncora no juízo moral, estabelecido na sociabilidade
89
burguesa , valores como altruísmo e maternagem90 tornam-se presentes no cotidiano
das mulheres, as quais passam a acumular uma dupla jornada de trabalho. Às
mulheres impõe-se a responsabilidade de cuidar de seus familiares (sejam eles
crianças, adolescentes, velhos e/ou enfermos...) a fim de cumprir normas
historicamente elaboradas e interpretadas como próprias da índole feminina.
Ainda em conformidade com Leite (2004), Beauvoir (1980) e Osterne
(2001), Ferrigno (2003) colabora nesta discussão: ―percebi que as mulheres tendem a
88
Importante destacar, no Brasil, a partir de 1970, o impulso dos movimentos feministas.
89
Conforme Szymasnky (2003), dentre as teorias e modelos que versam sobre a categoria família,
destaca-se aquele que faz alusão à família nuclear burguesa, ou seja, o que compreende a seguinte
composição: pai, mãe e filhos. A citada autora acrescenta ainda que ―fora desse contexto as famílias são
consideradas incompletas ou desestruturdas‖. (P. 24).
90
Bandinter (1985) estabelece uma importante diferença entre os termos maternagem e maternidade.
Segundo a referida autora, o primeiro compreende a capacidade de cuidar de um infante, educá-lo
moralmente para a vida em sociedade. Tal capacidade está associada ao cuidado geral desempenhado
pela mulher, haja vista esta condição ser socialmente aprendida no decorrer da vida de uma mulher
(como por exemplo: cuidar de parentes em períodos de doença). Sendo fruto de uma condição sóciohistórica, o estigma da maternagem é vinculado ao campo feminino, embora podendo ser exercida
também pelo sexo masculino. Quanto à maternidade, a condição de gerar e parir uma criança,
corresponde a uma característica essencialmente feminina.
150
manter uma preocupação maior com a família e efetivamente cuidam mais de seus
familiares, ou seja, mantêm os papéis de cuidadoras que a cultura forjou para elas‖.
(P.171)
Verificam-se, destarte, declarações, no campo do senso comum, de que o
vínculo da figura feminina como sendo cuidadora independe do lugar que a citada
ocupe na teia familiar - cônjuge, companheira, irmã, tia, mãe, filha, avó. Desde que
seja mulher, sua ―missão‖ de cuidar está predestinada pela sociedade, de modo que o
ato de cuidar do outro esteja presente em seu cotidiano, como ação naturalizada,
rotineira ou repetitiva.
Vitale (2005) complementa tal exposição:
No esteio das relações intergeracionais, os avós, mais especialmente
a mulher, podem conviver não só com o cuidado das crianças, mas
também com o dos mais idosos da família. Da mulher se espera e se
delega à assistência à geração mais nova e às mais velhas. (P.101).
Sarti (2003), em concordância com o pensamento de Vitale (2005),
esclarece que a mulher ―é quem cuida de todos e zela para que tudo esteja em seu
lugar‖. (P .64). É importante perceber que, para o sexo feminino, o mundo da casa,
compreendido na esfera privada, foi o projeto de vida imposto pela sociedade, de
modo que assumi-lo e administrá-lo fizesse parte das suas atividades cotidianas pelo
simples fato de ter nascido mulher.
O desempenho do papel das mulheres na esfera familiar realça o processo
de legitimação dessas ações/atividades entrelaçadas aos códigos de cada época e/ou
sociedade em que se vive. Assim sendo, Sarti (2003) argumenta que ―o homem é
considerado o chefe de família e a mulher a chefe de casa. Essa divisão
complementar permite, então, a realização das diferentes funções da autoridade na
família”. (P.63).
Quanto ao ―toque feminino‖ impresso nas mais diversas relações sociais,
Vitale (2005) prioriza o recorte da figura dos avós, e sustenta que,
As relações de gênero imprimem um perfil na relação avós-neto. Diz
o ditado popular que ser avó é ser mãe duas vezes; e ser avô é ser
pai com açucar. Abranda-se o modelo paterno, perpetuam-se os
cuidados femininos. Talvez as coisas não sejam assim tão lineares:
151
os modelos de atenção e vínculo com as crianças são revisitados,
transformados e/ou mantidos com o nascimento dos netos. Mas, por
certo, os avós, homens e mulheres, dão um sentido diferente a essa
relação,
segundo
suas
experiências
familiares
e
seus
relacionamentos sociais de gênero. (P.101).
É fato que o envelhecimento populacional significa mudanças de pesos
dos diversos grupos etários no total da população, em decorrência da queda da
fecundidade e da mortalidade. É esta última que veio seguida, porém, de avanços nas
condições de saúde e ocasionou transformações em todo o ciclo da vida, até mesmo
nos papéis sociais atribuídos a cada idade e sexo.
Enfocando as relações intergeracionais e de gênero, indaga-se qual o
papel desempenhado pelas avós, no âmbito familiar de hoje, ao considerar um
contexto de mudanças dos laços familiares, os quais lhes demandam novas
exigências e funções.
Neste sentido, Camarano (1999) aponta que as mulheres envelhecidas, na
atualidade, além de suporte familiar, assumem também papéis não esperados, fato
que lhes possibilita, no contexto de uma sociedade contemporânea (forjada pelas
desigualdades sociais e/ou pela trajetória das reformulações do próprio lugar da
mulher na sociedade), tornarem- se importantes agentes de mudança social.
Assim sendo, no cotidiano das famílias, faz-se significativa a presença da
avó, sendo necessária a identificação de mais esclarecimentos sobre estas velhasavós, tornando o ambiente familiar campo significativo a ser questionado e elucidado,
além de ser preciso compreender quais outros aspectos estão em volta dos sujeitos
desta pesquisa.
152
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
―São momentos que eu não me esqueci
Detalhes de uma vida,
histórias que eu contei aqui.
(...) Se chorei ou se sorri,
o importante é que emoções eu vivi...‖
Roberto Carlos
Confidencia-se o fato de que, embora enfrentado qualquer expensas,
durante a investigação em tela, esta se revelou, tanto no caminhar acadêmico quanto
pessoal, como experiência ímpar. Isto porque, embora se continue na busca pelo
aperfeiçoamento do conhecimento, tendo como alvo o mesmo objeto de pesquisa,
relembra-se as palavras de Bosi (1994) ao mencionar que ―(...) não se lê da mesma
forma o mesmo livro‖. (P. 58).
A elevação do número do segmento populacional denominado velhice
reflete em mudanças muito mais do que demográficas, pois se relaciona com outros
fatos e acontecimentos sociais relevantes, como, por exemplo, alterações na
economia e no modo de vida, que têm como consequência a reconfiguração dos
modos de solidariedade entre as gerações na família. Para Vitale (2005), estas
transformações atingem também as funções dos membros no âmbito familiar.
Discutir relações intergeracionais, família e as mudanças ocorridas nesta
torna-se tarefa complexa. Durante este estudo, observou-se que muitos autores
buscaram desconstituir a concepção do modelo ideal que permeou a sociedade
brasileira por um longo período, fazendo compreender-se que o conceito de família
possui dimensão social e simbólica, e, portanto, esta instituição passou (e passa) por
várias transformações. Todavia, na fala das entrevistadas foi possível constatar, ainda,
fortes características da família nuclear burguesa ao desejarem que suas filhas
consigam constituir “famílias estruturadas”.
Ante a atual conjuntura, no que se refere aos ajustamentos da categoria
família, ressalta-se que estes funcionam como uma espécie de ―estratégia‖ traçada
para o enfrentamento dos desafios impostos pelo cotidiano, objetivando, assim,
garantir a sobrevivência de seus membros, no interior dos grupos familiares. Nos
153
relatos apresentados, nesta pesquisa, percebeu-se que tanto o amparo material
quanto o afetivo compõem estas estratégias.
Compartilha-se com os consulentes deste estudo o fato de que, ao longo
desta produção científica, foram observadas, nas histórias das avós entrevistadas,
marcas diversas, das quais umas apregoavam tristezas, em outras, sentimentos de
solidariedade, amor, carinho, pena, proteção, responsabilidade e, até mesmo, o de
dever cumprido. Assim sendo, constatou-se que o cenário familiar também é
permeado por tensões e divergências.
As particularidades da vida moderna cooperam para a formulação de um
novo perfil de relações entre avó e netos, nos dias atuais. Nos depoimentos das avós
entrevistadas foi possível perceber que quem antes recebia os netos para os almoços
de domingo, hoje em dia, faz parte da dura rotina destes, por motivos distintos que
fortalecem os laços entre estas duas gerações. Nos termos de Alcântara (2010), ―a
convivência entre os velhos e seus familiares permite repensar as trocas, as
interações e a forma como são engendradas no espaço doméstico‖. (P. 107).
Neste estudo, constatou-se também que as adversidades da vida
obrigaram a se mudar o foco da estrutura da família nuclear, transformando o modo de
vida dentro das famílias contemporâneas, as quais passam a criar articulações entre
as gerações, elaborando outros códigos que mantêm certo substrato básico de
gerações anteriores. Portanto, falar em relações intergeracionais na família é adentrar
num mundo complexo.
Assim sendo, destaca-se a participação cada vez mais ativa das avós, já
velhas, no âmbito doméstico. Ao perceber a existência de três ou quatro gerações no
mesmo domicílio, a assistência financeira também passa por uma mobilidade
geracional. Na atualidade, os velhos passaram de dependentes a provedores
principais numa sociedade capitalista, portanto, consumista. Tal situação foi percebida
nos relatos das avós que passaram a ser o amparo de suas famílias, auxiliando os
netos que moram em suas companhias (e também os que não moram) com dinheiro,
e, até mesmo, com alimentos.
154
É fato, porém, que a família, bem como a sociedade moderna, privilegiam
o jovem em detrimento do velho. Cabe aqui a seguinte reflexão: quem é o jovem e
quem é o velho, nesse contexto, senão os netos e os avós ?
Triste é perceber que a imagem de ser velho hoje, numa sociedade
utilitária, é permeada por mitos e preconceitos, incorporados e transmitidos por
gerações. Esta situação foi constatada na fala e abordagens com os sujeitos
entrevistados, sempre numa mesma perspectiva: a negação de sua velhice e a
facilidade de identificá-la e aceitá-la, apenas, no outro. A percepção de velhice
vinculada à rejeição foi homogênea entre elas (as avós). Talvez, como mecanismo de
defesa, para não encarar a própria morte, ou para maior aceitação social.
Nesta pesquisa notou-se que a relação geracional vai além de um simples
―cuidar de netos‖. Assim, há, portanto, uma complexidade que pode ser denominada
de rede de relações, a qual é mobilizada para resolver aquilo que é urgente. O ―ser
avó‖, por definição, está implicado numa relação tríáde, que envolve avós, filhos e
netos. A avosidade é um tema ainda pouco estudado, e a relevância dessas avós na
atual conjuntura permite também que seja analisado o pano de fundo que se
apresenta e/ou norteia estas relações.
No ambiente familiar, a figura da avó demonstra importância, no apoio
afetivo, educacional, financeiro, bem como em ocasiões de drama familiar, haja vista a
fluidez de seus vínculos, como, por exemplo: separação dos pais, novos
relacionamentos ou, até mesmo, a morte de um dos genitores.
Geralmente, as avós cuidam dos netos para colaborar com os filhos. Em
ocasiões distintas, como podemos conhecer nesta pesquisa, tais necessidades
motivaram o acolhimento desses netos, a saber: irresponsabilidade, incapacidade dos
pais em assumi-los. Nestas circunstâncias, as avós incorporam a responsabilidade
materna e se consideram as principais substitutas para essa atribuição, como
constatadas aqui.
O ato de cuidar toma proporções mais extensas haja vista o fato de que
este se vincula também à preocupação de ensinar moralmente o que é correto aos
seus netos, responsabilidade esta que as avós cultivam na formação da personalidade
155
de seus netos. Vale lembrar que um bom legado deixado pelos avós pode ser decisivo
para a constituição dos valores de seus netos.
Verificou-se que, em nenhum dos casos abordados havia situação
regularizada, no que concerne à oficialização do cuidado, mediante o pedido de
guarda judicial; todavia, existe anuência de, pelo menos, um dos genitores dessas
crianças e ou adolescentes com relação ao neto ser cuidado pela avó.
Sobre a guarda judicial, o artigo 33 do Estatuto da Criança e do
Adolescente enfatiza que: ―a guarda obriga à prestação de assistência material, moral
e educacional à criança e ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de oporse a terceiros, inclusive aos pais.‖ (2004: 311). O detentor da guarda tem o dever de
assegurar à criança ou adolescente total assistência. Nos casos aqui estudados,
embora não formalizados perante a Justiça, observou-se que as avós cuidadoras de
netos preenchem todos os requisitos há pouco expostos.
Diferentemente de outrora, hoje, as famílias passam a receber de volta, no
sentido de apoiar ou até mesmo sustentar, seus filhos adultos, os quais retornam para
a residência dos genitores, na maioria das vezes, trazendo netos para a população
mais velha. Tal situação não decorre, em grande parte, de questões afetivas, e, sim
por necessidades, impactos das questões sociais que, como não são fatos isolados,
refletem na população jovem na figura dos filhos e, por consequência, estende-se aos
netos. A falta de recurso financeiro, o desemprego e a maternidade precoce são
alguns dos fatores que contribuem para o retorno a esses domicílios. Com efeito, em
relação às modificações nos caminhos de vida dos mais velhos e de seus filhos
adultos, a influência das avós cresceu.
Conquanto as avós tentem negar as aparências, o cuidado com os netos,
não disfarçam as evidências de uma sociedade com características do mundo
globalizado, onde a redução do Estado propicia consequências em áreas distintas,
tanto nas vidas e nas relações entre pessoas e entre as gerações. As limitações
físicas também existem e foram evidenciadas, neste estudo, nos depoimentos das
avós.
Convém mencionar que estes velhos, apesar da precariedade do benefício
da aposentadoria, assumem o suporte econômico familiar, de modo a garantir-lhe a
156
sobrevivência, no contexto social que estão inseridos, como verificados nos resultados
desta pesquisa, mesmo quando são, apenas, aposentados com rendimentos
diminutos. Dessa forma, a imagem das avós da atualidade vai além daquela da
vovozinha na cadeira de balanço, contando histórias, representando, apenas, respeito,
companheirismo e tranquilidade.
No que respeita à prioridade de políticas públicas e/ou garantia de direitos
(condições de saúde, aposentadoria digna) para esse segmento populacional,
percebe-se que estes ainda deixam muito a desejar, haja vista que, muitas vezes, o
discurso referente à ―primazia‖ não se concretiza ou deixa ambiguidades. Tal
circunstância terá, pois ligação com a capacidade da sociedade em reafirmar (de
maneira consciente ou não) a exclusão para com seus velhos?
Não se pode negar, contudo, que para os avós, a companhia dos netos
traz consigo a volta dos sonhos destas, demonstrando, em algumas ocasiões, até um
maior sentido afetivo para suas vidas. O relacionamento entre avós e netos pode ser
marcado pelo prazer e trocas intensas, principalmente de cuidados.
Considera-se que há nesta relação (avós e netos) a reciprocidade, ou seja,
para os netos surgem oportunidades como entender o ciclo vital, ampliar a noção de
família, permanecer no seio da família biológica (mesmo não tendo seus genitores
como seu responsável) e aprender a respeitar os mais velhos. Enquanto isso, para os
mais velhos, os benefícios desta relação podem ser compreendidos como sendo:
melhor socialização e utilização do tempo ―livre‖ da aposentadoria, além da
possibilidade de voltar a fazer planos.
O maior o contato entre avó-neto possibilita uma relação mais intensiva
entre estes sujeitos. Embora neste estudo as avós não tenham verbalizado claramente
tal relação, as atitudes, demonstrações de preocupação e atenção permitiram esta
conclusão. Assim, pode-se compreender que a responsabilidade e o carinho foram
estabelecidos com base na convivência entre estes, de modo que a distância
geográfica, conforme elucida Dias (2002), influencia diretamente na relação avós e
netos.
Atualmente, os avós passam a ser os responsáveis diretos por seus netos,
pois na redefinição dos laços familiares, assumem o protagonismo na vida destes,
157
inclusive, no tocante ao sustento, independentemente da presença ou ausência dos
genitores dessas crianças e ou adolescentes. Deste feito, conforme Peixoto (200),
criar netos, assim como substituir os pais, passam a ser exigências das circunstâncias,
fato confirmado nos depoimentos das avós ora entrevistadas.
Interpretando
por
este
prisma,
a
rede
de
parentesco
na
contemporaneidade parece funcionar bem, tendo a solidariedade entre os membros da
família como ápice. Não é bem assim, entretanto, pois, nesta pesquisa, as avós
cuidadoras de seus netos vivenciam esta circunstância muito mais por uma falta de
opção do que mesmo por escolha.
Assim, por intermédio desta investigação, pretendeu-se ampliar o debate
sobre as relações intergeracionais, suas contribuições e implicações, na perspectiva
das relações e reorganizações familiares, na contemporaneidade. Acredita-se que foi
possível responder positivamente às hipóteses de investigação propostas, bem como
atingir os objetivos do presente estudo.
Ante o conteúdo ora desvendado, compreende-se ser impossível pensar
numa sociedade sem a presença de seus velhos. Destarte, problematizar o processo
de envelhecer, na atualidade, reveste esta pesquisa de relevância, tanto acadêmica
quanto social. Desse modo, considera-se que seria de fundamental importância se
designar, desde a infância, mediante conteúdo programático e/ou eventos escolares,
novas visões sobre a imagem da velhice, desvinculando-a de idéias negativas, como
incapacidade e descartabilidade.
Espera-se, então, que este trabalho contribua para uma análise apropriada
das temáticas abordadas, no contexto da sociedade contemporânea, bem como do
debate de questões que deste trabalho possam advir, sem qualquer pretensão de
esgotar a discussão, haja vista não ser este o objetivo.
158
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169
ANEXOS
170
Fotos da Maquete Virtual - Projeto Salgadinho
(Residencial Vitória)
FIGURA 09: Frente do empreendimento
Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação/SEINFRA, 2009.
FIGURA 10: Visão aérea dos blocos
Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação/ SEINFRA, 2009.
171
FIGURA 11: Visão aérea completa do empreendimento
Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação/ SEINFRA, 2009.
FIGURA 12: Visão aérea do Salão de Festas e Área de Lazer
Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação/ SEINFRA, 2009.
172
IGURA 13: Salão de Festas do Residencial Vitória
Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação/ SEINFRA, 2009.
FIGURA 14: Área de Lazer do Residencial Vitória
Fonte: Serviço Social da Coordenadoria de Habitação/ SEINFRA, 2009.
173
IDADE DA PEDRA
―Sou da idade da pedra lascada.
A velhice é um horror.
Era uma jovem tão bonita.
Mas para não envelhecer
Você tem que morrer jovem.
E ninguém quer morrer jovem‖.
Lygia Fagundes Teles
174
A PIOR IDADE
03/02/09
Deve ter sido um demônio zombeteiro disfarçado de anjo que inventou que a velhice é
a "melhor idade". Chamar velhice de "melhor idade" só pode ser gozação ou ironia.
O que me faz lembrar o acontecido há muitos anos. Naqueles tempos não havia o
orgulho em ser negro. As alusões à cor eram tão proibidas quanto as sugestões
sexuais. "Ela está grávida" -ninguém dizia isso, a palavra "grávida" era obscena, chula.
Em vez da verdade nua e crua, uma expressão que todo mundo entendia sem que a
palavra obscena fosse pronunciada era "Ela está num "estado interessante‘"…
Pois uma família protestante se preparava para receber a visita de um conhecido
pastor negro. (Um parêntese. Nos Estados Unidos, a palavra "negro" era e é ofensiva.
Em vez de "negro" ["nigro"] usa-se "black", "black is beautiful". A palavra "negro" era
mais ofensiva ainda na sua forma corrompida "niger".
As crianças eram educadas para o racismo como se fosse a coisa mais natural, e
eram ensinadas a cantar numa brincadeira "Eeny, meeny, miny, moe, catch a niger by
his toe" -"Agarre o crioulo pelo dedão…").
Acontecia que o tal pastor -isso era bem conhecido de todos- sofria de um humilhante
complexo por causa da sua cor. Os hospedeiros ficaram angustiados diante da
possibilidade de que sua filha de seis anos -um doce de menina- fizesse
inocentemente alguma referência a esse fato. Trataram então de adverti-la: "Não diga
jamais que o reverendo Clemente é negro…".
A menina ouviu e aprendeu. O hóspede chegou, tudo estava correndo às mil
maravilhas, a menina doce se apaixonou pelo reverendo Clemente e, num momento
de carinho, assentada no seu joelho, ela tomou a sua grande mão negra nas suas
minúsculas mãos brancas e disse: "Sua mão é branquinha, sua mão é branquinha…".
É precisamente isso que acontece quando os alto-falantes das salas de embarque nos
aeroportos anunciam: "Terão prioridade para o embarque gestantes, crianças,
pessoas com dificuldade de locomoção e pessoas da melhor idade".
Já reclamei com os funcionários, dizendo-lhes a minha irritação. Eles me disseram que
nada podiam fazer porque as ordens vinham de cima. Concluo que "em cima" não há
nenhum velho.
O que é melhor? Ser respeitado ou ser desejado?
Velhice é quando a gente começa a ser tratado como "objeto de respeito" e não como
"objeto de desejo". Mas o que quero não é ser olhado com respeito, mas com
desejo…
175
Aconteceu faz 25 anos, uma tarde, no metrô, vagão cheio, tudo bem, eu me via jovem,
pernas fortes, segurei-me num balaústre. Meus olhos começaram a passear pelo rosto
dos passageiros -cada rosto é mais misterioso que um universo- até que meus olhos
se encontraram com os olhos de uma jovem que me olhava, eles, os seus olhos,
sorriam para mim e eu fantasiei que ela me desejava. Ficamos assim por alguns
segundos trocando olhares de namorado até que ela, num gesto delicado, se levantou
e me ofereceu o seu lugar… Seu gesto me disse sem palavras: "O senhor é velho. Eu
o respeito. Eu lhe dou o meu lugar…". Nesse momento percebi que a minha idade era
a pior de todas. A melhor idade era a dela, da mocinha que me deu o lugar…
Sugiro um nome diferente para essa idade, que não é ironia, mas poesia: "Pessoas
portadoras de crepúsculos no seu olhar…".
Rubem Alves
176
Retrato
"Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha face?―
Cecília Meireles
177
GESTOS AMOROSOS
“Idoso” é palavra de fila de banco e de supermercado; “velho”, ao contrário,
pertence ao universo da poesia
DEI-ME CONTA DE que estava velho cerca de 25 anos atrás. Já contei o ocorrido
várias vezes, mas vou contá-lo novamente. Era uma tarde em São Paulo. Tomei um
metrô. Estava cheio. Segurei-me num balaústre sem problemas. Eu não tinha
dificuldades de locomoção. Comecei a fazer algo que me dá prazer: ler o rosto das
pessoas.
Os rostos são objetos oníricos: fazem sonhar. Muitas crônicas já foram escritas
provocadas por um rosto -até o mesmo o nosso- refletido no espelho. Estava eu
entregue a esse exercício literário quando, ao passar de um livro para outro, isto é, de
um rosto para outro, defrontei-me com uma jovem assentada que estava fazendo
comigo aquilo que eu estava fazendo com os outros. Ela me olhava com um rosto
calmo e não desviou o olhar quando os seus olhos se encontraram com os meus.
Prova de que ela me achava bonito. Sorri para ela, ela sorriu para mim… Logo o
sonho sugeriu uma crônica: ―Professor da Unicamp se encontra, num vagão de metrô,
com
uma
jovem
que
seria
o
amor
de
sua
vida…‖
Foi então que ela me fez um gesto amoroso: ela se levantou e me ofereceu o seu
lugar… Maldita delicadeza! O seu gesto amoroso me humilhou e perfurou o meu
coração… E eu não tive alternativas. Como rejeitar gesto tão delicado! Remoendo-me
de raiva e sorrindo, assentei-me no lugar que ela deixara para mim. Sim, sim, ela me
achara
bonito.
Tão
bonito
quanto
o
seu
avô…
Aconteceu faz mais ou menos um mês. Era a festa de aniversário de minha nora.
Muitos amigos, casais jovens, segundo minha maneira de avaliar a idade. Eu estava
assentado numa cadeira num jardim observando de longe. Nesse momento chegou
um jovem casal amigo. Quando a mulher jovem e bonita me viu, veio em minha
direção para me cumprimentar. Fiz um gesto de levantar-me. Mas ela, delicadíssima,
me disse: ―Não, fique assentadinho aí…‖ Se ela me tivesse dito simplesmente ―Não é
preciso levantar‖, eu não teria me perturbado. Mas o fio da navalha estava
precisamente na palavra ―assentadinho‖. Se eu fosse moço, ela não teria dito
―assentadinho‖. Foi justamente essa palavra que me obrigou a levantar para provar
que eu era ainda capaz de levantar-me e assentar-me. Fiquei com dó dela porque eu,
no meio de uma risada, disse-lhe que ela acabava de dar-me uma punhalada…
178
Contei esse acontecido para uma amiga, mais ou menos da minha idade. E ela me
disse: ―Estou só esperando que alguém venha até mim e, com a mão em concha, bata
na minha bochecha, dizendo: ―Mas que bonitinha…‖ Acho que vou lhe dar um murro
no
nariz…‖
Vem depois as grosserias a que nós, os velhos, somos submetidos nas salas de
espera dos aeroportos. Pra começar, não entendo por que ―velho‖ é politicamente
incorreto. ―Idoso‖ é palavra de fila de banco e de fila de supermercado; ―velho‖, ao
contrário, pertence ao universo da poesia. Já imaginaram se o Hemingway tivesse
dado ao seu livro clássico o nome de ―O idoso e o mar‖? Já imaginaram um casal de
cabelos brancos, o marido chamando a mulher de ―minha idosa querida‖?
Os alto-falantes nos aeroportos convocam as crianças, as gestantes, as pessoas com
dificuldades de locomoção e a ―melhor idade‖… Alguém acredita nisso? Os velhos não
acreditam. Então essa expressão ―melhor idade‖ só pode ser gozação.
Folha de São Paulo, 27 de Maio de 2008.
Rubem Alves
179
COMO SE MORRE DE VELHICE
Como se morre de velhice
ou de acidente ou de doença,
morro, Senhor, de indiferença.
Da indiferença deste mundo
onde o que se sente e se pensa
não tem eco, na ausência imensa.
Na ausência, areia movediça
onde se escreve igual sentença
para o que é vencido e o que vença.
Salva-me, Senhor, do horizonte
sem estímulo ou recompensa
onde o amor equivale à ofensa.
De boca amarga e de alma triste
sinto a minha própria presença
num céu de loucura suspensa.
Já não se morre de velhice
nem de acidente nem de doença,
mas, Senhor, só de indiferença.
Cecília Meireles
180
OFICIALMENTE VELHO
Neste mês de dezembro completo 70 anos. Pelas condições brasileiras, me torno
oficialmente velho. Isso não significa que estou próximo da morte, porque esta pode
ocorrer já no primeiro momento da vida. Mas é uma outra etapa da vida, a derradeira.
Esta possui uma dimensão biológica, pois irrefreavelmente o capital vital se esgota,
nos debilitamos, perdemos o vigor dos sentidos e nos despedimos lentamente de
todas as coisas. De fato, ficamos mais esquecidos, quem sabe, impacientes e
sensíveis a gestos de bondade que nos levam facilmente às lágrimas.
Mas há um outro lado, mais instigante. A velhice é a última etapa do crescimento
humano. Nós nascemos inteiros. Mas nunca estamos prontos. Temos que completar
nosso nascimento ao construir a existência, ao abrir caminhos, ao superar dificuldades
e ao moldar o nosso destino. Estamos sempre em gênese. Começamos a nascer,
vamos nascendo em prestações ao longo da vida até acabar de nascer. Então
entramos no silêncio. E morremos.
A velhice é a última chance que a vida nos oferece para acabar de crescer, madurar e
finalmente terminar de nascer. Neste contexto, é iluminadora a palavra de São Paulo:
"na medida em que definha o homem exterior, nesta mesma medida rejuvenesce o
homem interior"(2Cor 4,16). A velhice é uma exigência do homem interior. Que é o
homem interior? É o nosso eu profundo, o nosso modo singular de ser e de agir, a
nossa marca registrada, a nossa identidade mais radical. Esta identidade devemos
encará-la face a face.
Ela é pessoalíssima e se esconde atrás de muitas máscaras que a vida nos impõe.
Pois a vida é um teatro no qual desempenhamos muitos papéis. Eu, por exemplo, fui
franciscano, padre, agora leigo, teólogo, filósofo, professor, conferencista, escritor,
editor, redator de algumas revistas, inquirido pelas autoridades doutrinais do Vaticano,
submetido ao "silêncio obsequioso" e outros papéis mais. Mas há um momento em
que tudo isso é relativizado e vira pura palha. Então deixamos o palco, tiramos as
máscaras e nos perguntamos: Afinal, quem sou eu? Que sonhos me movem? Que
anjos que habitam? Que demônios me atormentam? Qual é o meu lugar no desígnio
do Mistério? Na medida em que tentamos, com temor e tremor, responder a estas
indagações vem à lume o homem interior. A resposta nunca é conclusiva; perde-se
para dentro do Inefável.
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Este é o desafio para a etapa da velhice. Então nos damos conta de que
precisaríamos muitos anos de velhice para encontrar a palavra essencial que nos
defina. Surpresos, descobrimos que não vivemos porque simplesmente não
morremos, mas vivemos para pensar, meditar, rasgar novos horizontes e criar
sentidos de vida. Especialmente para tentar fazer uma síntese final, integrando as
sombras, realimentando os sonhos que nos sustentaram por toda uma vida,
reconciliando-nos com os fracassos e buscando sabedoria. É ilusão pensar que esta
vem com a velhice. Ela vem do espírito com o qual vivenciamos a velhice como a
etapa final do crescimento e de nosso verdadeiro Natal.
Por fim, importa preparar o grande Encontro. A vida não é estruturada para terminar
na morte, mas para se transfigurar através da morte. Morremos para viver mais e
melhor, para mergulhar na eternidade e encontrar a Última Realidade, feita de amor e
de misericórdia. Aí saberemos finalmente quem somos e qual é o nosso verdadeiro
nome.
Nutro o mesmo sentimento que o sábio do Antigo Testamento: "contemplo os dias
passados e tenho os olhos voltados para a eternidade".
Por fim, alimento dois sonhos, sonhos de um jovem ancião: o primeiro é escrever um
livro só para Deus, se possível com o próprio sangue; e o segundo, impossível, mas
bem expresso por Herzer, menina de rua e poetisa:"eu só queria nascer de novo, para
me ensinar a viver". Mas como isso é irrealizável, só me resta aprender na escola de
Deus. Parafraseando Camões, completo: Mais vivera se não fora, para tão longo ideal,
tão curta a vida.
Leonardo Boff
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STARDUST- O Mistério da Estrela
Sinopse e detalhes do filme
Este filme baseia-se na história de Neil Gaiman e conta a trajetória de Tristan, um
jovem que passa a procurar uma estrela cadente que ele prometeu à sua amada, a fim
de conquistar o seu amor, até a data de seu aniversário. A jornada o leva a uma terra
esquecida e mística. Na Terra Encantada, Tristan descobre que a estrela é uma linda
garota chamada Yvaine. Mas, durante a busca, ele descobre que não é o único que
deseja encontrar a referida estrela, pois, príncipes competindo pelo trono e bruxas
obcecadas pela beleza e eterna juventude, também parecerem querer algo dela.
Com lançamento no dia 12.10.2007, este é um filme norte-americano e obedece às
seguintes classificações de gênero: fantasia, aventura, drama e família. Apresentando
humor inteligente e efeitos especiais, possui tempo de duração de 127 (cento e vinte e
sete) minutos.
O filme Stardust - O Mistério da Estrela consiste num conto de fadas moderno,
direcionado ao público adulto, que reúne romance, comédia e aventura. Neste, é
possível observar, além de outros aspectos, alguns fatores apresentados na pesquisa
em alusão, dos quais podem ser elencados:
A imagem da bruxa representada pela mulher envelhecida
O culto ao belo
A busca incessante pela juventude eterna
A identificação da velhice no outro
A velhice como um mal (ou uma doença)
A cobiça da jovialidade
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Imagens do filme
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Up, Altas Aventuras
Sinopse e detalhes do filme
O filme narra uma história de ação, a qual tem como protagonista Carl Fredricksen, um
vendedor de balões que, aos 78 (setenta e oito) anos de idade, mora sozinho, e, que
está prestes a perder a casa em que sempre viveu com sua esposa, a falecida Ellie.
Ocorre que o terreno onde a casa está localizada desperta interesse num empresário,
que deseja construir no local um edifício.
Após um incidente em que acerta um homem com sua bengala, Carl passa a ser
considerado uma ameaça pública, e, portanto, é forçado a ser internado num asilo.
Como estratégia para impedir que isto aconteça, ele enche milhares de balões em sua
casa, fazendo com que ela levante vôo.
O objetivo de Carl é viajar para uma floresta na América do Sul, num local onde ele e
Ellie sempre sonharam morar, mas nunca foi possível. Entretanto, quem o acompanha
nessa aventura é Russell, um menino de 8 (oito) anos de idade, escoteiro e amante da
natureza. O enredo conta também com a participação de outros personagens
divertidos: Kevin (a ave tropical) e Dug (um golden retriever falante).
Inicialmente, a relação entre ambos (velho e menino) não se dá de maneira natural,
tendo em vista que Carl Fredricksen evita Russell. Contudo, posteriormente, o garoto
ensina-o uma outra maneira de ver vida, novos sonhos, novas expectativas. Então, a
relação intergeracional compreendida neste filme, embora de caráter lúdico, leva-nos a
algumas reflexões no que se concerne ao objeto de estudo da presente pesquisa.
O filme Up, Altas Aventuras é a 10ª longa-metragem de animação. Produção da
Disney Pixar e apresentado em Digital 3-D. É um filme norte-americano (lançado nos
Estados Unidos em 29.05.2009), corresponde ao gênero animação e possui duração
de 96 (noventa e seis) minutos. Revelou também sucesso de bilheteria.
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Imagens de cenas do filme
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APÊNDICES
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APÊNDICE 1
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
CUIDAR OU SER RESPONSÁVEL ?
UMA ANÁLISE SOBRE A INTERGERACIONALIDADE
NA RELAÇÃO AVÓS E NETOS
AUTORA: Sâmea Moreira Mesquita Alves (Discente do Mestrado Acadêmico de Poíticas
Públicas e Sociedade da Universidade Estadual do Ceará – UECE).
a
ORIENTADORA: Prof . Dra. Maria do Socorro Ferreira Osterne (Professora da
Universidade Estadual do Ceará – UECE).
SUMÁRIO DO PROJETO: Refere-se de uma pesquisa qualitativa, com vistas à obtenção
do título de Mestra, cujo objetivo é: Analisar a intergeracionalidade presente na relação
entre avós (que cuidam de netos) e netos, bem como compreender o contexto dessa
relação nas camadas populares.
CONSENTIMENTO: Com base no exposto acima, afirmo que aceito participar da pesquisa
em alusão, de forma voluntária, e também para a divulgação dos dados por mim fornecidos.
____________________________________ Data: ____ / ____ / _______.
Assinatura do participante
Debati este projeto com o participante, utilizando linguagem compreensível e adequada.
Avalio ter propiciado as informações necessárias para os depoentes, conforme os
princípios éticos da pesquisa, considero também que eles tenham compreendido meus
esclarecimentos. Informo que o entrevistado (a) não pagará e nem será remunerado por
sua participação. Acrescento ainda que as informações fornecidas serão utilizadas,
exclusivamente, para os fins desta pesquisa.
____________________________________ Data: ____ / ____ / _______.
Assinatura do responsável
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ESTRUTURA DA ENTREVISTA / DEPOIMENTOS
1. PERFIL
1.1 Sexo: (
)M
(
)F
1.2 Idade:
1.3 Profissão:
1.4 Situação Conjugal:
1.5 Renda
1.6 Religião:
1.7 Iidade de seu neto (a) :
2. QUESTÕES SUBJETIVAS
2.1 Onde residia anteriormente com sua família ?
2.2 Qual a compreensão de velhice, na sua percepção ?
2.3 Qual a/as motivações que a levaram a ser cuidadora de seu neto(a) ?
2.4 Quando ele (a) passou a ser cuidado por você ?
2.5 O que é ser cuidador para você ?
2.6 Qual a origem do rendimento familiar?
2.7 Participa de alguma Programa de Política Social?
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cuidar ou ser responsável ? uma análise sobre a