Amor Insólito A pele que habito e a alteridade do corpo Nascido, um corpo me é dado E nele passo a habitar Outro corpo me é imposto E um roubo massacra meu olhar Autores: Pedro da Cunha Ramos(UFF) Paulo Roberto Mattos(UFF) Fernando A. Feitoza Santos(UFF) Mas, por uma fresta se insinua um desejo familiar Quando frente a uma mulher Que torna possível algo reencontrar Somente diante dela renasço Movido por um estranho despertar Paulo Mattos odemos encontrar na arte elementos que representam a experiência humana de maneira muito profunda e intensa. É um fato inegável que esta propriedade do material artístico potencializa reflexões que vão desde a esfera da vida pessoal até os mais variados campos do saber humano, como a ética-científica, a filosofia e a psicanálise. P Por outro lado, se levarmos em conta o final do filme, onde Vicente mata não só Roberto como a mãe deste, também responsável pela tortura que sofreu, temos na sucessão desses acontecimentos uma pista de que existe algo de indelével na saga do sujeito e que no caso de Vicente se revela parcialmente pela radicalidade de seus atos finais. O filme “A pele que habito”, de Pedro Almodóvar, não foge a esta “regra”. Tendo como fio condutor de sua narrativa o corpo humano, demonstra a partir de seu desenrolar que este pode assumir várias formas e sentidos. Na continuidade que é dada a sua fuga, Vicente reencontra uma colega de trabalho que já havia tentado conquistar antes de seu desaparecimento, contudo, sem sucesso. Surpreendentemente, a despeito de seus fracassos anteriores, seu retorno inesperado e se apresentando em um corpo femininos faz com que a moça demonstre certo interesse no “rapaz”, agora habitando a pele de uma mulher. Roberto em seu papel de juiz soberano, não se limita a sequestrar Vicente e mantê-lo em cárcere privado. Realizando uma cirurgia retira-lhe a genitália masculina através de um procedimento que a medicina contemporânea já possibilita na vida real, colocando no lugar uma estrutura anatomicamente semelhante à de um órgão feminino. Através de outras sucessivas intervenções cirúrgicas, Roberto recorta o corpo de Vicente de forma que este vá ganhando cada vez mais formas e contornos femininos, Vicente passa a ter seios e traços mais delicados além de ficar com voz feminina. Em uma transição gradual, mas não por isso menos violenta, Vicente passa a habitar o corpo de uma mulher, exceção feita ao sistema reprodutivo feminino funcional. A riqueza da trama desenhada por Almodóvar ganha força quando notamos que o corpo que Vicente ocupa não é o corpo de uma mulher qualquer, mas um simulacro cuja superficialidade demonstra perfeita semelhança com a esposa morta de Roberto, seu captor. As circunstâncias que vão tomando de assalto a vida de Vicente parecem apontar para o seu próprio desaparecimento. A suposta internalização subjetiva do que agora definiria seu corpo como predominantemente feminino em alguns momentos parece estar ocorrendo de maneira lenta e irreversível. E ntretanto o filme rasga uma sucessão de eventos, deixando evidente a necessidade de se abordar o corpo em uma profundidade maior do que a da pele. Vicente, no limiar do que parecia ser o assujeitamento máximo às demandas imperativas de Roberto, oferece-lhe o amor renascido da imagem forjada da esposa desaparecida. Não é possível, sem comprometer a narrativa, dizer a partir de qual ponto Vicente age premeditadamente visando sua posterior fuga da casa de Roberto, que havia se tornado sua prisão. Vicente faz de seu “novo corpo” uma arma, uma arma capaz de jogar com o desejo de seu próprio criador, mostrando que persiste algo anterior à criação. Quando se fala na possibilidade limite do desaparecimento de Vicente, deve-se ter em vista que tal evento só seria possível num corpo que não pudesse ser marcado pela história, pelo passado e pela linguagem. Sustentar tal possibilidade é tentar enunciar o lugar de um sujeito vazio no sentido reducionista do termo, é em última análise postular que a experiência subjetiva é sobredeterminada necessariamente pela configuração anatômica do corpo. Dos homens essa mulher nada queria saber, mas agora Vicente ressurge interessante ao seu olhar, portando um corpo que lhe desponta atrativos. O filme se encerra sem deixar muitas pistas do que se sucede, fazendo com que nossa imaginação trabalhe e consequentemente produza indagações. N este contexto, o recente trabalho de Almodóvar toca de uma forma inusitada num assunto desafiador para toda clínica que se pretenda contemporânea: a troca de sexo e seus desdobramentos trágicos. É necessário notar que no filme de Almodóvar há sempre uma brecha para o desejo inusitado, cabendo a cada personagem demonstrar qual o movimento de apropriação que será realizado. A partir daí pode ser operada uma busca perversa pelo objeto perdido num sentido literal ou serem enunciadas novas formas de relação desejante a partir dos elementos dinâmicos que confrontam o sujeito, exigindo deste um posicionamento novo ou produzindo seu assujeitamento. Tanto no caso do médico Roberto, quanto no caso da atual onda de obsessão por manipulações cirúrgicas do corpo, o que se idolatra é a imagem do corpo perfeito e, portanto, impossível de ser alcançado, mesmo que em um sentido estritamente material. Em contrapartida, no caso de Vicente o que se busca no final das contas e a despeito de todas as condições adversas que se apresentam, é o que busca todo ser humano: conseguir habitar um corpo, onde possam lhe ser encontradas não as melhores condições, mas simplesmente aquelas que tornam possíveis suscitar o amor. Trocar de sexo não é a garantia de uma vida subjetiva plena e menos sofrível, querer se haver com a verdade de seu desejo muito menos, entretanto a segunda opção oferece ao sujeito a possibilidade de habitar sua própria pele não como uma prisão, mas como uma casa, mesmo que nela habite também um Outro. Bibliografia: FREUD, S. (1923) O ego e o id Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud Vol. XIX Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996. MATTOS, P. M. Os Confins da Psicanálise e a Crueldade das Incertezas. 1ª. ed. Niterói: Eduff, 2008. 1ª. ed. São Paulo: Escuta , 2008. ORTEGA, F. O corpo incerto. Corporiedade, tecnologias médicas e cultura contemporanea. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. Impressão: CEAEX/PROEX/UFF - 2012 A trama se desenvolve a partir do sequestro de um jovem (Vicente) que é aprisionado, julgado e condenado por Roberto, um médico viúvo que após perder a filha acredita ter sido Vicente o culpado de sua perda. CONFINS - Lugar de Trabalho Clínico e Pesquisa em Psicanálise e Psicopatologia Fundamental(UFF) Rua Marques de Paraná, 303(Hospital Universitário Antônio Pedro - Centro - Niterói - Rio de Janeiro - Brasil - CEP: 24033-900 Contatos: [email protected]/[email protected]/[email protected]