Estratégias de realidade no programa Linha Direta – o jogo de modalidades discursivas no texto de um reality show1 Maura Oliveira Martins2 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos Resumo Com o presente artigo, pretende-se analisar os níveis de realidade televisiva operados no programa Linha Direta, conforme conceito trabalhado por Elizabeth Bastos Duarte. A partir de uma abordagem semiótica através das categorias sígnicas entendidas pela Teoria Geral dos Signos e da recuperação da idéia de jogo desenvolvida por Algirdas Greimas, intenta-se explicitar a especificidade do programa pela observação das estratégias constantes em sua experiência discursiva. Para tanto, o trabalho procura investigar essas estratégias numa edição de Linha Direta, veiculada no dia 4 de dezembro de 2003 e entendida aqui como representativa desse tipo de narrativa midiática. Palavras-chave Linha Direta; reality show; semiótica; jogo comunicacional. Cena do programa Linha Direta Justiça3 , veiculado no dia 25 de setembro de 2003: um ator a interpretar o cirurgião plástico Hosmany Ramos, hoje condenado por oito inquéritos a 47 anos de prisão (pela razão de ter trocado “o bisturi por uma arma”, conforme enunciado no programa), é mostrado durante um dos assaltos que realizou em sua breve carreira de criminoso. Ao fim do ataque, Hosmany depara-se com um espelho e tem um déjá vu (construído com o recurso estilístico do flashback), lembrando de seus tempos de estudante ambicioso e vil (idéia que perpassa todos os momentos da reconstituição de sua história) quando, também à frente de um espelho, sussurrou “eu quero ser o melhor”. Na especificidade dessa cena, assiste-se a dois tipos de reconstrução discursiva, realizados em um programa cujo tema central é a dramatização de crimes envolvendo pessoas comuns ou ilustres, e o incentivo a denúncias sobre o paradeiro dos acusados foragidos: uma é a reconstrução do assalto, o fato baseado na denúncia oficial da justiça, 1 Trabalho apresentado ao NP 07 – Comunicação Audiovisual, do IV Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom Jornalista, bacharel em Comunicação Social pela UFSM (2002), atualmente mestranda no Programa de PósGraduação em Ciências da Comunicação da UNISINOS. Endereço eletrônico: [email protected] 3 Edição mensal do programa Linha Direta, exibido pela rede Globo às quintas-feiras à noite; diferencia-se da versão padrão do programa por apresentar casos já solucionados pela justiça e nacionalmente conhecidos. 2 1 o crime como discurso histórico documentado com pretensões de objetividade e de correspondência a uma verdade tida como exterior, apoiada em elementos de natureza indicial; a outra pode ser entendida como a reconstrução subjetiva das personagens, a apresentação icônica de eventos sobre os quais ocorre o processo criminal em questão, e que não podem ser capturados de maneira indiscutível, sendo assim potencialmente lugar natural para a interferência discursiva por parte de seus produtores (em relação a outras formas do discurso midiático, nas quais a intervenção ao real realizada na instância produtiva obedece a critérios claramente sistematizados e exigidos pelo jornalismo informativo) e para a instalação de suas intenções e estratégias de sentido. Assim, o reality show4 em questão sugere configurar em um interessante evento discursivo para a análise das formas de representação do real nos produtos hodiernos da mídia, em especial os elaborados pela linguagem televisiva. Interessa-nos aqui entender de que forma Linha Direta constrói um relato que se pretende verdadeiro através de um complexo jogo realizado entre modalidades discursivas diferentes, concernentes aos aspectos factuais (dependentes da referencialidade ao real, o mundo em si), às estruturações ficcionais (pertencentes à construção discursiva da realidade, desenvolvida e manifestada concretamente no texto midiático em questão), e às meta-referenciações (as remissões que Linha Direta realiza a si mesmo e ao seu processo produtivo). A partir do aparato teórico-metodológico da semiótica, das configurações de realidade televisiva definidas por Duarte (2003) e da idéia da comunicação como jogo oferecida por Greimas (1998), pretende-se compreender a especificidade do programa e de que maneira suas estratégias discursivas manifestam-se em sua estrutura. 2.1. Estratégias constantes no discurso de Linha Direta Na grade de programação da Rede Globo há quase cinco anos – sua primeira edição data de maio de 1999 –, Linha Direta configura um formato que pode ser considerado novo na emissora, descendendo de programas americanos de estrutura 4 Esse gênero é representado aqui através do programa Linha Direta, exibido pela Rede Globo desde 1999, cuja inserção nessa categoria discursiva justifica-se no fato de que o programa, além de reconstituir fatos criminais baseados na denúncia oficial da justiça (o que é de interesse legitimamente social), reserva parte de sua narrativa à reconstrução subjetiva das personagens envolvidas no processo. Esse aspecto configura como o centro da experiência dos reality shows: o enfoque de situações anteriormente consideradas particulares e reconhecidas como autênticas, fato que encontra respaldo numa nova tendência à aceitação da exibição do privado, fenômeno que se repete em diversas outras mídias. Não se entende aqui, portanto, que os reality shows devam unir os papéis discursivos e sociais nos mesmos sujeitos; uma reconstituição feita através de atores contratados também pode pertencer a esse gênero midiático. 2 semelhante. Seu discurso, portanto, não é inaugural, e contrai relações, segundo terminologia de Verón (1987), sintagmáticas com os textos que o procedem ou sucedem (como programas americanos no estilo 60 minutes, ou mesmo o extinto Aqui Agora, exibido entre 1991 e 1997 pela rede SBT), e associativas ou paradigmáticas através de analogias com os gêneros5 e estilos que recupera ou combina em seu formato. Como estrutura de produção televisiva, Linha Direta condiciona-se aos modos de recepção do meio a que pertence – ou seja, é configurado conforme os processos de assistência da televisão que, ao ser consumida prioritariamente em ambientes domésticos, divide permanentemente o foco da atenção com outras situações circundantes. Por não presumir condições dominantes de recepção (como o cinema, por exemplo), a televisão se vê incitada a criar formas de expressão seriadas, de maneira a manter o seu espectador conectado e a viabilizar uma produção ágil e econômica. Sob essa perspectiva, Linha Direta apresenta-se como exemplo de narrativa seriada através de episódios unitários, conforme terminologia de Machado (2000, p. 40): suas edições conservam apenas o “espírito geral das histórias ou a temática”, mudando, a cada episódio, a história, as personagens, os atores, os cenários e, por vezes, até mesmo os roteiristas e diretores. Segundo argumenta Verón (1987), o conceito de discurso caracteriza-se por uma configuração espaço-temporal de sentido; sendo determinado contextualmente, um conjunto discursivo não pode ser analisado apenas em si mesmo, mas através das marcas das condições produtivas que carregam e do sentido produzido em sua materialidade. Assim, torna-se necessário um entendimento das situacionalidades da instância produtiva explicitadas na configuração do texto do programa. O formato de Linha Direta, conforme argumenta Mendonça (2002), alarga o conceito do chamado “padrão Globo de qualidade”, dando lugar a um discurso que mistura linguagens jornalísticas e dramáticas. Esse novo espaço na grade da emissora, dessa forma, reflete uma tendência na Rede Globo a buscar audiência entre um determinado nicho de 5 Machado, recuperando o conceito de Bakhtin, entende o gênero como uma força aglutinadora e estabilizadora dentro de uma determinada linguagem, de forma a orientar o seu uso dentro de um determinado meio e garantir a comunicabilidade dos produtos midiáticos. Funcionam como indicativos de uma produção discursiva, sendo reconfigurados e reatualizados constantemente; assim, “o gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo. O gênero renasce se renova em cada nova etapa do desenvolvimento da literatura e em cada obra individual de um determinado gênero” (Machado, 2000, p. 69). 3 público, adepto a programas sensacionalistas6 produzidos com maior freqüência por outras emissoras. O programa ainda encontra respaldo numa idéia disseminada culturalmente de falência da instituição judiciária, reproduzindo uma sensação de insegurança e possibilitando que Linha Direta utilize como estratégia de validade uma espécie de auto-delegação da tarefa de fazer justiça. Assim, o programa toma para si um sentido de força paralela em relação ao poder executivo. Esse arranjo formal tem como resultado uma ótima audiência, que aponta o programa como um dos mais vistos da emissora7 . Greimas (1998) constata a existência de formas universais de organização do discurso, permitindo assim a elaboração de um método de análise da construção de sentidos nos textos. A teoria greimasiana, dessa forma, propõe-se a perceber como o homem faz para estruturar e expressar o conteúdo do que diz. Seu método é perpassado constantemente pela idéia de jogo comunicacional, referindo-se ao caráter manipulador de todo jogador (no caso, o enunciador) que, quanto mais competente for, melhor conhecerá as regras desse jogo para movimentar-se dentro e através delas. Assim, o jogador hábil é o que identifica previsões de resposta de seu interlocutor já prevendo sua resposta à resposta a ser recebida, sendo possuidor de uma competência manipulatória direcionada a fazer esse interlocutor a reagir de acordo com as intenções pretendidas na enunciação. O estrategista visa, pois, sempre à eficácia, concretizada no com-vencer (não apenas vencer, mas fazer-se crer). O triunfo cabe a quem manipula melhor os signos, pois há sempre um rearranjamento de toda a configuração discursiva dentro de cada ação nesse processo. Ressalta-se, com essa teoria, o propósito persuasivo e manipulatório de todo ato comunicacional. Por natureza, o texto midiático opera no intuito de se pretender verdadeiro (ou, no caso das narrativas explicitamente ficcionais, verossímil ou convincente), objetivo esse que é perseguido através das estratégias discursivas configuradas em seu processo de produção. Como estratégia entende-se aqui com o percurso explorado pelo enunciador, em razão de suas razões e interesses, para produzir determinado efeito de sentido (que pode ser bem sucedido ou não, caso o efeito visado 6 Pedroso entende o jornalismo sensacionalista como um segmento específico e próprio da imprensa popular. Caracteriza-se “pela maneira própria de engendramento discursivo, (que) estrutura, representa e permite o acesso ao mundo da liberdade pela exploração dos temas agressivos, homicidas e aventureiros, que não podendo realizar-se na vida cotidiana, submetida à lei e à censura, tendem a realizar-se, projetivamente, na leitura” (Pedroso, 2001, p. 51). 7 Em reportagem de 1999 da revista Época (disponível em http://epoca.globo.com/edic/19991129/cult3.htm), Linha Direta foi apontado como terceiro programa mais assistido da emissora, perdendo em números de audiência apenas para o Jornal Nacional e a novela Terra Nostra. 4 coincida com o alcançado) através de formatações discursivas selecionadas na instância produtiva. Linha Direta realiza-se através de uma complexa trama entre estratégias em diferentes níveis discursivos. Sua estrutura narrativa mistura jogos comunicativos entre papéis narrativos (as personagens personificadas pelos atores contratados, que se desvinculam de sua história para encenar a vida de outras) e atores sociais (as verdadeiras pessoas a serem representadas no texto, os depoimentos das testemunhas, a mediação significativa do apresentador). Essa estruturação constata o fato de ambos os níveis realizarem uma fusão entre os papéis discursivos e sociais já indicam o embaralhamento de certos limites entre as instâncias reais e ficcionais. Torna-se conveniente, assim, observar que níveis de realidade televisiva são trabalhados no texto do programa Linha Direta. Os níveis de realidade televisiva configurados em Linha Direta Duarte (2003) define os níveis da realidade televisiva em três: a meta-realidade, nível subordinado às ocorrências do mundo natural, exterior, englobando aqui os textos televisivos com caráter prioritariamente informativo, baseados nos índices que denotam sua referência direta ao real; a supra-realidade, submetida apenas à coerência interna do seu discurso (aos princípios que garantem sua verossimilhança e às questões de gênero), sendo aqui o caso dos programas abertamente ficcionais; e a para-realidade, designado pela auto-referenciação televisiva, a qual alude a um “real paralelo” (DUARTE, 2003, p. 73) artificialmente construído8 . Nessa constante dualidade entre referencialização e ficcionalidade, que permeia toda a sua experiência, Linha Direta apresenta-se como um formato híbrido, recuperador tanto de características do mais convencional dos telejornais quanto de padrões de dramatização já explorados em inúmeros programas ficcionais derivados do gênero melodrama9 (do qual as novelas aparecem como maiores expoentes, sendo um formato de absoluta importância dentro da grade da emissora), ao mesmo tempo que refere-se à eficiência de seu modelo discursivo a todo instante. Sendo assim, o programa 8 François Jost também entende esse terceiro nível como o jogo do mundo lúdico, as situações em que o signo se auto-refere, retornando-se a si próprio. 9 Entende-se aqui melodrama como o gênero surgido com os folhetins encontrados nos jornais do século XIX e logo recuperado nas radionovelas e telenovelas. Baseado na estética romântica, tem como constantes a exploração de temáticas vinculadas às emoções e na eterna oposição entre o bem e o mal (desequilíbrio sempre resolvido sempre com a punição do mal no desfecho da narrativa). 5 demonstra pleno domínio das regras referentes aos três âmbitos de realidade configuradas pela televisão – podendo, dessa forma, mover-se competentemente no jogo comunicacional a que se propõe a participar e concretizar os efeitos pretendidos no momento de sua produção. Como elementos a dar respaldo à meta-realidade, pode-se identificar a presença de atores sociais convocados a dar depoimentos sobre os casos exibidos: vozes oficiais como promotores, advogados de defesa, secretários, testemunhas oculares, e a figura fundamental do Ministério Público, cuja menção das denúncias intenta legitimar a veracidade de toda simulação a ser apresentada no programa. Tratam-se de elementos vinculados ao caráter documental do programa, denotando a relação intrínseca com o jornalismo informativo e conferindo efeitos de objetividade e credibilidade ao relato televisivo. É pela profusão desses elementos indiciais10 que Linha Direta aponta de modo inegável ao real, convencendo-se como texto verdadeiro e comprometido com o relato policial a que se propõe reconstituir. Ainda sobre a abordagem à meta-realidade verificada em Linha Direta, destacase o papel do apresentador, personificado na figura do repórter Domingos Meirelles. Elemento discursivo típico do telejornalismo tradicional, o apresentador costuma participar da narrativa midiática como modelo de imparcialidade, atuando apenas no momento de proferimento da notícia e deixando aos entrevistados e testemunhas a função de dotar os acontecimentos de sentido (Duarte, 2003, p. 85). A atuação de Meirelles rompe com esse caráter de neutralidade do apresentador, mas não com o papel de opinador – de voz editorial do meio ao qual está associado – dando espaço à profusão de notações observadas tanto na linguagem verbal quanto não-verbal de que faz uso. São elementos icônicos e indiciais, presentes no olhar severo do apresentador, em sua gestualidade, nas pausas, na expressão cerrada e nos efeitos causados pelo texto verbal, como momentos de fala irônica e a escolha de termos valorativos para definir os fatos, que o colocam como elemento semiótico orientador da interpretação normal a ser gerada a partir dos fatos mostrados. Deste modo, em Linha Direta, o apresentador desempenha papel central no discurso, pois participa da determinação do entendimento simbólico do programa. 10 O elemento indicial é entendido aqui através do conceito proposto pela semiótica peirceana, ou seja, como elemento cuja função é de contextualizar a existência concreta do fato, numa relação causal, real e eficiente entre signo e objeto. Assim, o índice é definido pela “sua contigüidade de tipo espacial, temporal ou causal com seu objeto, sem a qual o índice não pode funcionar (...). O poder indicial arrasta-nos física e irresistivelmente, como num ato de hipnose, em direção a isto que é assinalado” (Andacht, 2003). 6 Vale observar que, embora Linha Direta faça uso de elementos típicos do telejornalismo informativo, também rompe com alguns procedimentos comuns nesse tipo de discurso, como a questão da atualidade. Verón (1987) atenta a esse ponto, o qual considera como o resultado de um processo produtivo, possibilitando que haja muitos modelos de atualidade – assim, em relação ao jornalismo tradicional, esse conceito é expandido em Linha Direta, que prioriza não a urgência dos fatos a relatar, mas seu pertencimento às condições implícitas para a seleção dos casos (em sua grande maioria, crimes ainda não resolvidos, de caráter passional, envolvendo paixão, inveja ou traição) ou a razões externas, referentes à exposição dos casos (o princípio de Linha Direta Justiça, que enfoca crimes já resolvidos que tornaram-se nacionalmente conhecidos). Outro elemento do jornalismo informativo com o qual Linha Direta rompe é a questão da pluralidade de vozes, utilizada para dar aparente espaço a todas as versões do fato, no intuito de causar um efeito de neutralidade e de obtenção da verdade do acontecimento. Mesmo em casos ainda em aberto, em que ainda não há confirmação oficial da justiça, o que se nota é que acusados ou pessoas relacionadas a eles raramente têm direito à fala no programa, assim como suas versões, que quase nunca são simuladas. Os depoimentos selecionados são os que, de alguma forma, corroboram com o sentido pretendido pelas representações, ou seja, a culpa indiscutível do acusado e a inocência da vítima. Nos poucos momentos em que o acusado tem voz ou tem sua versão reconstituída, recebe um espaço restrito e menos privilegiado em relação ao que concerne à versão oficial ou das pessoas relacionadas à vítima – seja pelos aspectos indiciais que acompanham a reconstituição (como expressões e interpretações dos atores que representam a cena, a ausência de depoimentos que reiterem a versão), seja pelo constante aviso de que se trata de uma “versão da acusação”, enunciado que, no contexto do programa, perde seu crédito por jamais coincidir com a versão da justiça. Apenas as vítimas têm passado – os acusados têm precedentes. Os momentos de inserção na supra-realidade referem-se às construções estéticas, ao uso de efeitos de gravação e edição típicos de programas ficcionais, à escolha de atores, à trilha sonora incidental (que remete aos filmes de suspense e policial), à necessária seleção e reconstituição de traços psicológicos das personagens enquadradas, às referências aos textos clássicos da literatura (efeito explorado com grande freqüência em Linha Direta Justiça) – em síntese, a todos os elementos da estrutura narrativa que não correspondem ao relato oficial dos crimes (conforme registrados na “denúncia do 7 Ministério Público”, enunciado sempre presente nas simulações montadas e exibidas pelo programa) e dependentes de concepções subjetivas. A supra-realidade, assim, refere-se aos espaços do texto de Linha Direta que dependem necessariamente da interferência da instância produtiva, já que não podem ser precisados objetivamente, pela razão de sua própria natureza dessa espécie de construção discursiva impedir a busca da exatidão e do incontestável. É nessa instância que a preocupação estética – em montar cenários e figurinos atrativos, verossímeis e coerentes com o que pretendem representar – manifesta-se no texto concreto do programa. São elementos de natureza icônica11 , ou seja, que operam através de relações de semelhança ou similaridade em algum aspecto com seu objeto – no caso, a representação estética que possibilita que os casos sejam reconstituídos. É interessante observar que grande parte dos efeitos de sentido ocorrem dentro desse nível, possibilitando assim a concretização das intenções do programa. É na reconstituição psicológica dos envolvidos por atores que se materializa o viés maniqueísta da narrativa, a qual sempre é dividida em pólos antagônicos entre acusados e vítimas. Essa construção de personagens planas configura-se como uma estratégia discursiva que visa a legitimar o caráter justiceiro proposto por Linha Direta – assim, reduz-se a potencial polissemia que as construções poderiam gerar, justificando os atos decorrentes do programa ao caráter (mostrado sempre como indubitavelmente condenável) dos acusados, sempre construídos como perfeitos vilões de programas ficcionais, ou seja, supra-reais. Ao mesmo tempo, Linha Direta chama a atenção sobre a eficiência de seu modelo discursivo com grande freqüência, num processo de auto-referenciação fundamental em sua estrutura padrão – ou seja, falando sobre si mesma, seu discurso insere-se no nível da para-realidade. Tratam-se de momentos em que o programa passa a um movimento de reflexão interna, apontando a eficiência de sua configuração discursiva e a conseqüente concretização de seu objetivo explícito maior – a legitimação de seu sentido institucional, ou seja, da concretização final de sua ação por “justiça”, representada, no caso, através da captura dos foragidos exibidos no programa. O espectador é incitado a interagir e a fazer sua denúncia que, quando resulta na prisão do 11 Para Peirce, um ícone “é um signo que se refere ao objeto que denota apenas em virtude de seus caracteres próprios, caracteres que ele igualmente possui, quer um tal objeto exista ou não (...). Qualquer coisa, seja uma qualidade, um existente individual ou uma lei, é ícone de qualquer coisa, na medida em que for semelhante a essa coisa e utilizado como signo seu” (apud Santaella, ano, p. 144). 8 acusado, é ostentada com veemência nas edições seguintes. Essa convocação é direta e intimista, feita pelo apresentador Domingos Meirelles que, encarando o espectador, chamando-o de “você”, requer a participação no programa e à adesão implícita a um grupo que “age por justiça”. Assim, ao final de cada edição, é veiculado o quadro “Plantão”, no qual essas prisões são exibidas e é feita uma breve recuperação do caso já apresentado. Enfatiza-se o tempo levado entre a exibição no programa e a captura (principalmente caso o tempo possa ser medido em horas, evidenciando a agilidade de seu modelo), o lugar da prisão e o provável destino do acusado, e uma breve entrevista com o mesmo (normalmente, recorta-se dessa conversa os momentos em que o acusado se contradiz, demonstra insegurança ou arrependimento). A estratégia é concluída pela imagem do prisioneiro, já enclausurado, com tomadas em que as barras da cela apareçam e, quando possível, reproduzindo o som da cela sendo fechada – completando uma semiose construída desde a primeira edição de Linha Direta e instalando, em definitivo, o sentido de justiça feita. Essa proposta de interação com a instância de recepção estende-se para além dos limites semanais nos quais o programa é enquadrado. Ao acessar o site do programa (http://www.globo.com/linhadireta/), observa-se um quadro em que se lê o “número de capturados12 até o momento” (279 pessoas no instante de acesso) e a seção “Outros destaques”, na qual se encontra descrição detalhada da captura dos foragidos já encontrados, além de uma enquete que requisita a opinião moral dos espectadores, inserindo discussões éticas nas questões implicadas pelos casos retratados13 . Tratam-se de estratégias destinadas a reiterar a eficácia do modelo comunicacional estabelecido no programa, sendo essa uma previsão concretizada do jogo oferecido, e a partilha do triunfo de sua proposta. Em suas edições, Linha Direta ratifica o encontro entre as idéias entendidas por Greimas e Duarte: fazendo uso de suas estratégias de veracidade do discurso proferido, o programa recorre a um sistema de valores culturalmente assimilados e, através do encadeamento dos diferentes níveis de realidade, adota formas discursivas que se manifestam nestas articulações. Jogando com 12 Nota-se aqui que a palavra “capturados”, substituindo a expressão “acusados”, remete a um sentido de caça, de legitimação da prisão do inimigo, naturalmente merecedor do cárcere; assim, conota significações de acontecimento bem sucedido, resultado feliz e justificável. 13 Vale observar que os resultados das enquetes tendem a coincidir com o caráter “justiceiro” das construções textuais do programa, priorizando as opções extremadas. Como exemplo, uma enquete realizada sobre a discussão gerada pelo assassinato dos adolescentes Felipe Caffé e Liana Friedenbach, em torno da inimputabilidade de menores de 18 anos: a resposta mais votada (79,8 %) defende a redução para 16 anos a idade penal em todos os crimes. 9 essas modalidades, Linha Direta ampara o objetivo pronunciado em seu produto concreto (tomar para si uma tarefa realizada de forma incompetente pelas instituições judiciárias), deixando transparecer assim o intuito final do programa, ou seja, o de convencer sobre sua eficiência discursiva e provar-se válido como experiência televisiva e social. Análise na estrutura efetiva de uma edição do programa Com o intuito de verificar a existência das estratégias apontadas acima no texto concreto de Linha Direta, pretende-se analisar a presença de tais percursos em uma edição representativa do modelo discursivo configurado pelo programa (um caso típico de história envolvendo um crime passional, com desfecho em aberto à época de sua exibição). Trata-se do primeiro caso apresentado na edição veiculada em 4 de dezembro de 2003, no qual assistiu-se à reconstituição de uma história introduzida por Domingos Meirelles sob o nome de “o casamento frustrado”. Apresentou-se, na ocasião, a história de Jaqueline, filha de um pastor evangélico da cidade de Novo Gama, em Goiás, assassinada seis dias antes de seu casamento por um dos seus amigos, Anderson, que a teria matado por ciúmes. Há uma vinculação tangencial entre a personalidade do acusado e o crime ocorrido: Anderson é mostrado desde sua juventude como possuidor de um caráter vil, um adolescente envolvido desde cedo com drogas e bebidas – sua personalidade é confirmada por depoimentos de parentes da vítima, e por elementos icônico-indiciais, como o constante enfoque nas tatuagens do acusado e gestualidades do ator discursivo. Jaqueline, ao contrário, é representada como a própria antítese de Anderson, uma jovem correta, decente – na voz do narrador do programa, como “a única pessoa que consegue controlar o amigo”. Observando a relação que os textos contraem com outros textos, Hjelmslev (1975) categoriza as formas de diálogo entre textos como paradigmáticas ou sintagmáticas. É interessante notar que, embora conserve forte relação paradigmática com narrativas pertencentes ao gênero suspense, na unidade efetiva do programa (no nível sintagmático) há modificações significativas em relação ao tipo de texto com o qual se relaciona. Linha Direta rompe com o gênero ao sistematizar como formatação padrão da narrativa o começo pelo momento clímax do suspense, ou seja, a resolução da história (que, na versão pura do gênero, tende a aparecer no final). 10 Assim, Linha Direta gera uma narrativa que reconfigura certos padrões do relato jornalístico convencional – no caso, faz uma espécie de uso do elemento lead, que coloca o momento principal da história como necessariamente o primeiro instante do relato. Dessa forma, quebra-se uma percepção linear de narrativa: a história contada aqui começa pelo momento em que o pai da vítima fica sabendo de sua morte, enquanto celebrava um culto evangélico; em seguida, após essa introdução pelo final, entra a reconstituição de um passado carregado de pistas e indícios sobre as razões do crime. No que concerne ao espaço trabalhado no nível de meta-realidade, a ênfase é dada na denúncia do Ministério Público, cujo poder como instituição legitima as cenas nas quais o crime – o assassinato em si – ocorre presencialmente. São nesses momentos que a marca distintiva de “simulação” é anunciada antes de sua exibição e ostentada graficamente durante toda a duração da cena, conferindo um efeito de autoridade e seriedade à construção promovida pelo programa. Partes que se referem à construção de uma personalidade problemática ao acusado, por exemplo, não requerem tal rótulo – sugerindo, dessa forma, serem menos perniciosas caso possam ser provadas como falsas. A seleção dos atores sociais a falar sobre o caso demonstram que o compromisso jornalístico com a pluralidade de vozes é logo subvertido: o espaço é cedido para parentes da vítima (pai, irmã, cunhada, noivo viúvo) que, em seus depoimentos, concedem ao caso um aspecto de “sonho que estava perto de se realizar”. Não há depoimentos favoráveis ao assassino: apenas ressalta-se que sua mulher preferiu não se pronunciar sobre o caso. Como voz oficial da justiça, há a fala de uma promotora, que não se refere ao crime conforme está documentado, mas à especulação do fato de que Anderson “tinha uma paixão doentia e secreta por Jaqueline” – provocando, assim, encontros entre o discurso estritamente documental (a voz da justiça personificada na promotora) e o discurso subjetivo, suposto, explicitado em termos valorativos (a observação psicológica sobre as razões do crime). Mas a inserção definitiva no aspecto jornalístico que a meta-realidade pressupõe é observada através da abundância de elementos indiciais, utilizados profusamente no discurso de Linha Direta. Desde o primeiro instante apresentado da história em questão, são enfatizados elementos que, antes de tudo, atestam a existência do caso como acontecimento concreto: a data do crime (17 de maio de 2003, no dia das mães), a cidade (Novo Gama, em Goiás, a 40 quilômetros de Brasília), o mapa que aponta a localização exata do município, a foto selecionada de Anderson (com um olhar 11 desafiador como se zombasse das autoridades), as precisões secundárias mas fundamentais no sentido dramático que se pretende construir (o fato de a vítima ter sido morta seis dias antes do casamento, dado ressaltado quatro vezes durante a veiculação do caso). Trata-se de um elemento típico do jornalismo informativo que, nesses detalhes, indicações espaciais, temporais e em quantificações em geral, apontam a uma apuração minuciosa do fato e a imposição de um real concreto, incontestável e passível de comprovação. Ao mesmo tempo, essas notações desempenham uma função típica dos relatos da cultural oral primária – com a qual a linguagem televisiva está profundamente relacionada –, de associar o conhecimento expresso com referências mais ou menos próximas da vida cotidiana real. Não se aborda, simplesmente, crimes ocorridos e documentados pelo Ministério Público, e sim crimes em cidades determinadas, localizadas em determinadas regiões, envolvendo membros de determinadas famílias. Essa construção factual, no entanto, é materializada através dos recursos provenientes do nível da supra-realidade – ou seja, nos cuidados da produção de Linha Direta para reconstruir uma história convincente, esteticamente verossímil, e que trabalhe em favor dos sentidos que o programa pretende causar. A configuração suprareal, portanto, refere-se aos momentos dos casos reconstituídos que não podem representados de forma independente à interferência da instância produtiva. No caso em questão, esses momentos manifestam-se na montagem dos cenários, na trilha sonora selecionada (incluindo prioritariamente temas tensos de filmes de suspense), na escolha dos atores e demais elementos constituintes da encenação estética do programa; ou em cenas que explicitam experiências pessoais subjetivas – podendo ser representadas apenas através de suposições, mas nunca objetivamente – que operam como estratégia fundamental da estruturação de sentido aspirada. Esse quesito é trabalhado, por exemplo, na exposição do começo do flerte entre Jaqueline e Nilson, seu noivo, na troca de olhares entre o casal na igreja; ou no olhar invejoso da personagem Anderson enquanto Jaqueline ocupa-se dos preparativos do casamento. O apuro dedicado à supra-realidade sustenta-se no fato de que este nível colabora intensamente para que a história contada mostre-se plausível, como possuidora de veridicidade enquanto reconstituição. É na mimese de elementos indiciais vinculados aos atores sociais em questão (mostrados seja por fotos, no caso da vítima, ou por imagens de sua casa, na aparência dos familiares que depõem no programa, nas classes 12 sociais a que remetem) e facilmente reconhecíveis na instância de recepção que Linha Direta convence-se como verdadeiro. Assim, no caso de Jaqueline, o sotaque interiorano, as vestimentas simples, os cenários circundantes tanto aos atores sociais quanto discursivos apontam indícios de que se trata de uma família de baixa renda, de classe popular. Essas referências encontram respaldo em rituais tipicamente brasileiros, como um chá de panela de que a noiva participa. Para Amossy e Pierrot (2001, p. 45), esses estereótipos são empregados na produção midiática para delimitar formas de reconhecimento de suas mensagens, e funcionam como mecanismos de autoridade – já que reproduzem hierarquias de superioridade e inferioridade entre as imagens e figuras difundidas, funcionando como meio de homologar a supremacia de grupos dominantes. Após o encerramento da reconstrução do caso (a conclusão é dada pelos índices do choro do pai, da irmã e do noivo, como um extravaso após o clímax concretizado na cena da morte de Jaqueline), é posto em cena o apelo da para-realidade: volta a tocar a trilha sonora que identifica o programa e Domingos Meirelles requer a participação do público. Esse apelo é direto, imperativo, e ressalta o vínculo do programa com autoridades superiores (“suas informações serão levadas às autoridades”). Através da identificação corpórea de Anderson pela única foto sua que é exibida, e pela descrição de suas tatuagens (com destaque a uma folha de maconha no braço esquerdo – reiterando o caráter delinqüente do acusado), o telespectador é convidado a participar e a concluir o jogo comunicativo proposto por Linha Direta: concretizar a captura dos foragidos e legitimar a força do programa como instituição judiciária. Dessa forma, ao jogar habilmente com os diferentes níveis de realidade televisiva, o programa Linha Direta constrói o seu discurso e concretiza um texto convincente, que convence como verdadeiro e verossímil. Ao mesclar elementos factuais, ficcionais e auto-referenciais, arquiteta-se um produto midiático híbrido e carregado de estratégias persuasivas; a realidade discursiva, através da referência incontestável do documental registrado pela denúncia oficial, e da sedução já consagrada dos recursos dos gêneros ficcionais (em especial, no caso desse programa, das telenovelas), materializa-se como relato fiel dos fatos aos seus espectadores. Com a reiteração constante sobre a eficiência desse modelo, as estratégias propostas se concretizam por definitivo e colocam Linha Direta como um programa bem sucedido nos objetivos que pretende. 13 Considerações sobre a eficiência discursiva de Linha Direta Verón discute a crença dada pela audiência a eventos que não pressupõem formas de experiência vivida, mas uma experiência vicária, exercida pelos media. Assim, a confiança concedida aos discursos midiáticos “se apoia no seguinte mecanismo: o discurso em que cremos é aquele cujas descrições postulamos como as mais próximas às descrições que nós mesmos faríamos no acontecimentos caso tivéssemos uma experiência direta”14 (Verón, 1987, p. V). Ao se apropriar de gêneros já culturalmente assimilados pelo público televisivo – como os padrões discursivos do jornalismo, o melodrama das novelas, as características do suspense, a autoreferenciação sempre presente nas emissoras – Linha Direta constrói um texto reconhecível, facilmente assimilável, atraente e convincente dentro de sua proposta. Esse trabalho persuasivo e competente da instância produtiva, porém, não se opõe à sua pretensão de retratar o crime tal qual ele ocorreu. Não se discute aqui a capacidade (ou mesmo a intencionalidade) de Linha Direta de ser fiel à realidade em suas representações, mas sua competência para construir um produto midiático que, discursivamente, faz-se aceitar como verdadeiro. Como experiência televisiva, Linha Direta expõe-se como duplamente eficiente: tanto na interação imediata concretizada pela captura dos foragidos quanto no retorno conferido pelos índices de audiência, o programa demonstra saber executar suas pretensões e objetivos, de persuadir enquanto re-construidora de realidades factuais e subjetivas. Ao embaralhar certos limites entre os diferentes níveis de realidade, Linha Direta consegue convencer ao público e apresentar-se como experiência válida e merecedora de audiência por parte de seus espectadores. No cruzamento operado entre modalidades de realidade televisiva configuradas no texto efetivo do programa, pode-se notar ênfases na justaposição de algum dos níveis sobre os outros: enquanto a meta-realidade serve como documento incontestável (sendo a própria razão de ser de Linha Direta) e a supra-realidade concretiza tal documentação, a para-realidade justifica sua existência e configura o formato e o estilo do programa. De certa forma, a para-realidade é sobreposta aos demais níveis para legitimar e confirmar essa experiência televisiva – ou seja, ao referir-se à eficácia de seu discurso, conclui-se um jogo discursivo e o programa compartilha seu triunfo com o público. 14 Tradução pessoal da versão em espanhol. 14 Talvez, sem o apelo desse nível, a experiência do programa não conseguisse autenticar seu apelo à justiça. Nas palavras de Eco (1989), sua instância produtiva sabe que toda prática discursiva é um jogo entre game e play: apenas conhecendo muito bem as regras (sabendo reconhecer e trabalhar os diferentes níveis e gêneros televisivos), pode-se manipulá-las e criar estratégias para utilizá-las (o texto midiático concreto – o play). Como jogador discursivo, ao dominar essas regras, Linha Direta revela-se um bom estrategista, conhecedor das gramáticas midiáticas e competente executor de seu produto. Referências AMOSSY, R.; PIERROT, A.H. Estereotipos y clichés. Trad. Lelia Gándara. 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