(e)voc ações · Seis Escultores em Alcobaça Comemor ar, Expor As comemorações dos 850 anos da fundação do Mosteiro de Alcobaça, que se iniciaram em Outubro do ano passado e se prolongam até finais do corrente, têm vindo a contemplar um leque diversificado de actividades, que se espera possam, por um lado, reencontrar a história e as memórias da abadia, especialmente no modo como se cruzaram, ao longo de séculos, com as aspirações e anseios das comunidades que se desenvolveram à sua volta, e, por outro, relançar a discussão alargada e participada sobre a reutilização desse magnífico espaço monumental, agora integralmente devoluto, em processo de recuperação e aberto a diversas possibilidades funcionais que, por certo, irão atrair novas valências - e também novos públicos - à cidade e a toda a região. Entre as acções de longa duração destinadas a recuperar o importante acervo artístico que a abadia logrou preservar até hoje, destaca-se o projecto de estudo, conservação e restauro da notável escultura cerâmica barroca do mosteiro, que resulta de um protocolo de colaboração com a Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Diversos escultores, coordenados pela Professora Virgínia Fróis, em estreita colaboração com os diligentes conservadores restauradores que integram o projecto, têm procedido, após competente diagnóstico e tratamentos de limpeza e consolidação, a intervenções de reconstituição dos tasselos. Do trabalho realizado até à data resulta uma renovada compreensão do valor intrínseco e da incontornável dimensão artística nacional desse extraordinário património, nem sempre estimado e só revalorizado ao longo da segunda metade do século XX, depois de largas décadas de desprezo, abandono e até destruição. Ora, o trabalho de aproximação, estudo e intervenção curativa numa tão notável colecção de escultura cerâmica barroca como é a de Alcobaça não poderia deixar indiferentes esses profissionais da criação contemporânea, suscitando no seu trabalho de pesquisa plástica interrogações e caminhos de reelaboração artística que, em boa hora, as Direcções do IPPAR e do Mosteiro, num original alargamento do conceito das comemorações, julgaram pertinente registar numa saudavelmente provocatória exposição de intervenções-instalações de seis escultores de diferentes gerações não só sobre - o que seria algo já visto noutras ocasiões - mas utilizando - o que é um risco (obviamente calculado) mas também uma mais valia - o património em estudo e recuperação. Aos cinco escultores inicialmente envolvidos no projecto - Virgínia Fróis, João Castro Silva, Sérgio Vicente, Sara Matos e Vanessa Santos - juntou-se José Aurélio, não apenas por razões de naturalidade, mas porque a sua vasta e multiforme obra tem revisitado, com assídua frequência, o lugar mítico que é a abadia assim como o imaginário barroco que lhe acrescentou dimensão e simbolismo. O Espírito do Lugar e a Necess i d a d e d e Da r - a - Ve r o M o n um e n to Alcobaça é, sem qualquer sombra de dúvida, um dos principais Altos Lugares da Memória Portuguesa, se a quisermos classificar utilizando a feliz e útil definição de Pierre Nora. Se a Batalha está associada à defesa da Independência Nacional e à legitimação da Dinastia de Avis e os Jerónimos à Gesta Marítima ou Mafra ao «sonho brasileiro» de D. João V, Alcobaça surge directamente ligada, no imaginário dos Portugueses, à emergência da Nação e ao passado medieval desta, quando a formação do território implicava não apenas conquista mas povoamento, desenvolvimento económico e administrativo, organização da cultura. Edificação grandiosa, das maiores alguma vez realizadas entre nós no seu tempo e ainda durante vários séculos, Alcobaça foi, com Santa Cruz de Coimbra, um dos dois grandes focos irradiadores de cultura no Portugal Medieval. Lugar de sepultura de diversos monarcas da primeira dinastia, a fama do par de amores contrariados Pedro e Inês, objectivada nos seus magníficos sarcófagos, obras-primas da escultura europeia, cedo suplantou a dos outros régios tumulados, tornando-se um dos principais motivos de visita ao monumento. De resto, a leitura artística e iconográfica desses sepulcros, em particular da controversa autoria e, principalmente, das possíveis referências à história dos trágicos amores entre o rei e a bela dama galega no motivo da «Roda da Fortuna» do túmulo de D. Pedro, tem constituído fonte de cíclico debate na historiografia, só superado pela esgotada polémica em torno do retábulo do altar de S. Vicente da Sé de Lisboa, de Nuno Gonçalves. Até à extinção das Ordens Religiosas, o Mosteiro de Alcobaça foi acumulando bens e equipamentos, segredos técnicos e produtivos e tradições variadas, assim como preciosos códices, livros e obras de arte, além de ter continuado a desempenhar papel de relevo em quase todos os grandes momentos da História Nacional. Com as leis centralizadoras de1834, a transferência de bens culturais e artísticos terá salvo muitos deles da destruição ou descaminho. Mas a incúria do Tempo e dos Homens não impediu a progressiva degradação de muito do recheio que ainda sobrevivera in situ assim como a reutilização de largos sectores do edifício para fins nem sempre muito compatíveis com a dignidade e a História deste símbolo da Identidade Nacional. Ainda no século XX, à luz de critérios de recuperação monumental que persistiam em «apagar» as marcas da história dos edifícios, em nome de um mirífico «regresso à pureza original» dos mesmos, se desmontaram e parcialmente destruíram ou dispersaram altares e conjuntos escultóricos das épocas maneirista e barroca que eram peças absolutamente essenciais na grande narrativa da Arte Portuguesa. Mesmo assim, o que se conserva do que ao longo de séculos foi o recheio artístico deste monumento, ainda que nem sempre nas melhores condições (e para reverter essa situação se tem vindo a trabalhar com afinco), apresenta-se, aos olhos de qualquer historiador e até do público mais informado, como uma panóplia de testemunhos absolutamente indispensáveis no esforço musealizador que permita dar-a-ver o monumento no seu máximo esplendor possível, ou seja, no respeito pela integralidade do espírito do lugar, desde a excelentemente conservada arquitectura medieval ao vasto território que foi modelado pela acção produtiva da instituição, passando por todas as transformações que o edifício foi sofrendo para o adaptar às exigências de cada tempo e do gosto de cada época. Diga-se, desde já, que, quando se pretende dar-a-ver um qualquer monumento se está no plano do «apresentar», do «mostrar», ou seja, no amplo terreno da museologia, pelo que a tentativa legislativa de acabar com um Museu de Alcobaça em favor de um confuso conceito de «monumento com núcleo museológico» (mas não se percebe que «núcleo» quer dizer centro?!) será sempre e tão só um mero adiamento da plena musealização da Abadia e de toda a sua envolvente. Ora, nessa magna tarefa de musealização que urge (re)lançar haverá que distinguir o peso relativo de cada um dos sectores artísticos em que se divide o recheio «móvel» ou «aplicado» no monumento. Sem desprimor para o que resta de Pintura, em que se contam interessantes exemplares das épocas maneirista e barroca, importantes para documentar a actividade mecenática do mosteiro nesse domínio ao longo desse tempo, os conjuntos escultóricos subsistentes constituem, na sua maioria, especímenes incontornáveis da História da Arte Portuguesa, tornando Alcobaça um dos lugares maiores da Escultura do nosso país, o que, por si só, definirá aquela que, no nosso entender, deverá ser uma das principais vocações museológicas do monumento no futuro: a apresentação de um contínuo da melhor escultura portuguesa, desde a tumulária da Idade Média (com notáveis exemplares que se estendem do romano-gótico à primeira época áurea da nossa escultura medieval, o século XIV) até ao final da época barroca, com amplas possibilidades de estabelecer vários diálogos com outras épocas, nomeadamente com a contemporaneidade. Com efeito, para além da imaginária avulsa dispersa ou dos fragmentos arquitectónicos e de escultura monumental recolhidos no andar superior do Claustro, a seleccionar, haverá que não esquecer a presença da escultura monumental do Manuelino, na sua versão mais hiper-naturalista, nas portas da Sacristia e da Capela do Senhor dos Passos, ou do emergente gosto renascentista na delicada bacia da fonte do Lavabo. Ou os outros conjuntos ainda quinhentistas, não os infelizmente desaparecidos (como o monumental cadeiral de cento e cinquenta assentos, realizado por Mestre João Alemão, nos finais da época manuelina, peça maior de uma empreitada que contemplava, ainda, o relicário, que seria substituído, na época barroca, pelo actual) mas os desmantelados, em que se destacam os grandes retábulos escultóricos realizados entre 1591 e 1594 para os altares de S. Miguel e da Ressurreição, desmontados já no século XX, mas de que se conservam, além dos registos fotográficos, as esculturas originais, monumentais peças de vulto perfeito, de boa modelação, dentro de um classicismo algo retardatário, e de escala maior que o natural, atribuídas por Vitor Serrão ao escultor maneirista Gonçalo Rodrigues, que executou a boa estatuária em pedra da igreja da Luz, em Lisboa. O trabalho de conservação e restauro em curso dessas esculturas vai permitir fruí-las na sua surpreendente grandiosidade. Curiosamente, o «parente pobre» de todo esse extraordinário recheio artístico tem sido a numerosa escultura barroca dos chamados «barristas de Alcobaça», espalhada por diversos locais do mosteiro. À excepção dos conjuntos ainda in situ, como a Morte de S. Bernardo, excepcional «cenografia sacra» que foi alvo de uma extensa intervenção de conservação e restauro nos anos setenta, o Relicário, também alvo de intervenções de limpeza e conservação nos anos oitenta, ou a estatuária de exaltação nacionalista e monástica da Sala dos Reis, sofrivelmente preservada e em curso de tratamento, o que resta do monumental e magnífico altar-mor barroco da igreja, depois de barbaramente desmantelado, ou foi barbaramente reutilizado na infelicíssima decoração (?!) de uma rotunda na cidade (grande parte dos fustes das colunas da estrutura arquitectónica) ou foi dispersado pela Sacristia e pela Sala do Capítulo (a soberba estatuária, de uma escala sem par na sua época). Só o presente Projecto de Restauro da Escultura Cerâmica, entre outras acções de conservação que ainda decorrem, está a resgatar do olvido e até da paulatina destruição esse conjunto de imagens de excepcional qualidade. Os trabalhos de conservação e restauro criterioso já realizados vieram revelar uma vigorosa e personalizada modelação assim como uma capacidade de encenação da figura e dos panejamentos que vão obrigar a historiografia a reescrever a história da escultura em Portugal no século XVII. Seis Leitur a s · Seis Intervençõ e s S o b r e o Pat r i m ó n i o. É fundamentalmente sobre esse Património esquecido da Escultura Cerâmica de Alcobaça que os seis escultores se debruçaram, nas seis diferentes intervenções artísticas que nos propõem. Alguns traços comuns podem ser detectados na salutar diversidade das soluções, todas elas assumidamente performativas dentro da inegável indiossincrasia de cada um dos autores. Em primeiro lugar, a apropriação criativa e a reutilização das obras de arte do passado, não deixando de, por um lado, lhes conservar aquilo que W. Benjamim definiu como «aura», mas, por outro, as integrar em narrativas em que o «então» é lido à luz do que «hoje» nos preocupa. Em segundo lugar, a interpelação do lugar do espectador, entidade que se não concebe como mero fruidor mas como construtor da significação e até enquanto personagem do próprio «drama» encenado ou pelo menos ficcionado... Atribuímos a cada intervenção uma frase que, sem apagar a importância do «titulo» com que cada autor nomeou a sua proposta, fazendo-a existir antes mesmo da sua realização material, nos vai ajudar a interrogar com mais acutilância os pressupostos da leitura original que cada uma delas propõe do Património de que tão engenhosamente «se apropriou». José Auré lio: E u Espectador me Co n f e s s o. . . A instalação de José Aurélio será aquela que, pretendendo relacionar a escultura com o espaço, dentro de algumas das suas mais recorrentes preocupações de escultor, porventura mais interroga os hábitos de leitura do espectador ao confrontá-lo com as diferentes percepções proporcionadas por quatro esculturas do Apostolado, situadas a diferentes alturas num simulacro de altar feito de um material bem diferente do que, na origem, servia de enquadramento a essas imagens de culto. Vem-nos à memória a célebre frase de André Malraux que nos precavia contra alguns usos museológicos das obras de arte, lembrando-nos que «un crucifix roman n’était pas d’abord une sculpture, la Madone de Cimabue n’était pas d’abord un tableau...». O espectador encontra-se diante de diversos conceitos temporalmente diferenciados mas tornados presentes de artisticidade, desde os que valorizam a «obra» como materialidade e processualidade, quando ela se encontra à nossa escala e nos apropriarmos dela, como se pudéssemos reconstituir a sua factura, até aos que a identificam na sua distanciação de ícone religioso, veículo de emoções dirigidas ao Absoluto, passando por aquelas que têm sobretudo em conta o valor plástico da sua presença nos novos templos que são os Museus como obra de arte, tomada individualmente como «escultura», ou na sua relação com a envolvente, como «mobiliário» de uma arquitectura. O que a instalação de José Aurélio vem inequivocamente demonstrar, na sua própria realização, é que, longe de se excluírem, essas leituras são absolutamente complementares e interdependentes! E em reforço de uma aproximação «processual» da escultura dos «barristas» de Alcobaça, José Aurélio compôs também alguns «relicários» (ou serão caixas de jóias?) para fragmentos de esculturas dessa magnífica escola... João C a stro Silva: Quero Tr an s c e n d e r a Fi n i t u d e ! Diante do Santuário ou Relicário, memória de santidades protagonizadas por homens como nós mas que do comum se distinguiram pela virtude, João Castro Silva interrogou-se, dentro da linha que motivara a sua anterior exposição intitulada «Encenações sobre a Morte», sobre a dupla condição dos homens eternos e dos homens efémeros que habitaram os espaços da Abadia, em ambos os casos reduzidos hoje aos despojos ósseos, quer os que foram integrados nos «bustos» de figuras sagradas do Santuário, quer os que têm vindo a ser exumados em escavações arqueológicas. Mesmo os Santos foram efémeros na sua corporeidade, só se tornando «eternos» no plano espiritual, ainda que a eficácia da sua acção intercessora seja suscitada pela materialidade da sua presença na relíquia e através da imagem da sua efígie. Ao centro de uma oval formada por vinte e quatro bustos, colocados sobre plintos construídos de um modo que evoca a processualidade típica do escultor ao abordar a madeira, levantase a reconstituição de um enterramento encontrado durante as prospecções arqueológicas realizadas no mosteiro: um dos muitos anónimos que também fizeram Alcobaça. Face aos «despojos da Morte» e às imagens da Santidade, João Castro Silva vem, afinal, afirmar que só a Arte pode resgatar do olvido as imagens dos Homens, sejam eles eternos ou efémeros, e projectar num infinito a inexorável finitude da existência. Sar a Matos: Apoteose e Mácul a Tocada pelo tema «ascensional» da Virgem da Assunção que domina os registos centrais do Relicário, Sara Matos propõe uma instalação que faz do percurso do espectador a própria istoria ou acontecimento encenado. Atravessando um corredor de molduras, que não são mais do que puros limites de espaços virtuais de representação, na qual o espectador «entrou», não como Alice, para lá do espelho, mas como se estivesse numa máquina do Tempo que o faz regressar ao universo teatralizado da mundividência barroca, entre irrealidade e apelo do concreto, chegamos à visão apoteótica da Virgem Imaculada, imagem encenada feita de barro, como todos nós, mas da qual, como mácula inesperada, o rosto foi roubado pelo Tempo, como se desígnios superiores nos impedissem de ver com os olhos da terra mas nos incitassem a ver com a Imaginação o Rosto da Mulher que contemplou Deus. Sérgio Vicente: Pa ssagem Aérea Pa r a a Pr ó x i m a Ex p o s i ç ã o O Anjo, criatura celestial, de aparência humana mas de carácter divino, sendo mensageiro da Sua Vontade, convocou em Sérgio Vicente a consciência, muito humana, do peso da «materialidade» confrontada com o desejo tempestuoso de «voar». Mas não estamos tão somente diante de imagens patrimoniais, de objectos «museológicos»? A própria construção «modular» dessas estátuas - e a do Anjo em particular - , feitas de tasselos sobrepostos, tão sugestiva para o habitual modo de conceber do escultor, permite uma «divisão» mecânica, entre um «alto» e um «baixo» da imagem, metáforas da matéria que prende e do desejo que solta... Mas não é, afinal, nessa pertença à matéria que radica o desejo? Por isso, a parte de baixo que se desmaterializa no espaço graças ao reflexo especular e a parte de cima que se clausura na caixa de transporte... Ou seja, as viagens que esta estátua pode realizar situam-se, por um lado, na sua «circulação museológica», de uma exposição para outra, de um espaço para outro de um museu, e, por outro, na sugestão de outros voos à imaginação criadora, a partir, por exemplo, da sua própria processualidade, com o trabalho sobre os módulos que será ponto de partida para outras peças... de museu. Vanessa Santos: In Principio.. . No princípio era tão só uma encruzilhada de caminhos e o ponto de encontro de dois rios, terão pensado os monges que fundaram o mosteiro há 850 anos e os que depois o fizeram crescer, desenvolver-se e transformar-se na reconfortante Memória que é hoje... A intervenção de Vanessa Santos será a única a evocar explicita e directamente esse momento fundacional, em que um caminho literalmente levantou voo para a utopia! Foi esse «farol» da Cultura Portuguesa que se chamou Fernando Pessoa que um dia proclamou, a propósito dos Descobrimentos: Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. (Mensagem, II, O Infante). Assim aqui aconteceu, mas ao invés de celebrar os altos desígnios, a obra idealizada ou o hercúleo esforço dos construtores, Vanessa Santos optou, como tem sido habitual no seu percurso de criadora, pelo «caminho que se faz ao caminhar», como disse outro poeta, reinventando os tapetes cerâmicos originais e do esquecido chão de partida fez a rampa de lançamento do sonho que se foi fazendo obra transformadora e duradoura na vida dos homens: in principio..., como reza o Genesis ou o Evangelho de S. João! Virgínia Fróis: Do Lugar Sinto a P u l saç ã o Os últimos serão sempre os primeiros! A intervenção de Virgínia Fróis pode ser a primeira e a última que se aborda no percurso desta exposição. E, como dupla síntese, do trabalho da autora e do sentido último da própria exposição, a sua proposta reintegra diversos media em diferentes espaços deste sector do edifício que permitem a encenação de um itinerário de redescoberta, pelo visitante, do «espírito do lugar». Em primeiro lugar, o tema da metamorfose dos materiais, dos temas e das formas, tão caro à escultora, em que a associação entre o som e a imagem circunscreve um espaço de evocação do binómio Morte e Ressurreição, inspirado na cenografia sacra da «Morte de S. Bernardo». Esse espaço é só aparentemente «fechado» por uma «porta» colocada em eixo noutra sala, frente a uma parede deixada em tosco. Essa peça, em metal e vidro e de rigorosa geometria, é preenchida pelos materiais de eleição de Virgínia - a terra, o trigo, a água e o sal - que se compensam numa metáfora do equilíbrio primordial entre espírito e matéria. Daqui se parte, num movimento ascensional de ascese, pela escadaria cheia de luz, tutelados pelas palavras de S. Bernardo, ao encontro do último núcleo, já no exterior, na cisterna do pátio, cerrada do contacto visual por uma porta de cera, deixando, todavia, ouvir os murmúrios de vozes que o Tempo nunca poderá apagar. Nesta epifania do espírito do lugar, os sentidos nunca desertam! Fer n a n d o A n t ó n i o B a pt i sta P e r e i r a Faculdade de Bel a s Artes da Univer sidade de Lisboa João C a stro Silva · [ Lisboa, 1966 ] Licenciou-se em Artes Plásticas-Escultura pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa, em 1992, e é, desde 1995, Assistente de Escultura na mesma Faculdade. Frequentou, em 1994, o curso de «Bronze Casting» no Royal College of Art de Londres. Mestre em História da Arte pela Universidade Lusíada, em 2001. Realizou, desde 1996, mais de uma dezena de exposições individuais, em Portugal e no Brasil, e participa em exposições colectivas desde 1991. Trabalhos seus foram galardoados diversas vezes, destacando-se o 1º Prémio do Concurso «Os Jovens e Arte» (Amadora, 1993) e o 2º Prémio do II Simpósio Internacional de Escultura em Ferro (Abrantes, 1998). É autor de intervenções em arte pública em Cascais (Rotunda da Areia, Quinta da Marinha), na Auto-Estrada do Oeste (Área de Serviço Shell), em Queluz de Baixo (Sede da Braun Medical), na Amadora (Fábrica da Cultura), em Torres Vedras (Rotunda do Bairro da Vila Morena) e em Abrantes (Parque do Alto de Santo António). Encontra-se representado em várias colecções portuguesas. A obra de João Castro Silva documenta uma enorme fascinação pela forma-volume exterior dos corpos, tanto da figura humana como da figura animal. Parte de imagens de representação ilusória da tridimensionalidade em que essa «pele exterior» se encontra como que geometrizada ciberneticamente para, através dos tradicionais processos da escultura - a construção, a adição e a subtracção -, passar de um «oco» a um «cheio». Algumas das suas obras, até de arte pública, exploram essa dialéctica entre vazio interior e forma exterior. Quase sempre ou, pelo menos, ultimamente, parte das silhuetas de figuras de perfeição anatómica clássica (ou melhor, como a visão da «sociedade pós-industrial» as redesenhou), em madeira, e, de seguida, «enche-as» para obter um volume tridimensional que finalmente esculpe, retirando a matéria até chegar ao resultado final. Apesar do carácter projectual que preside à processualidade deste trabalho escultórico é na execução manual sobre a matéria que encontra a forma final. Nas suas últimas exposições(«Relações» e «homens k ñ andam», ambas de 2002), depois de ter revisitado o binómio eternidade//efemeridade na mostra «Encenações sobre a Morte» (Galeria Trema, Lisboa, 1999), abordou, com grande eficácia expressiva, o complexo imaginário humano da cultura cibernética e da terrífica problemática da clonagem, assim como as questões que se levantam à comunicação entre os seres na era da globalização, em que se tornou aparentemente mais fácil e até verdadeiro enviar sms do que dizer as coisas cara a cara ou olhos nos olhos... FABP José Aurélio · [ Alcobaça, 1938 ] Frequentou o curso de Escultura na então Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Realizou, a partir de 1959, diversas viagens de estudo e trabalho, em diferentes países da Europa e da Ásia e no Brasil. Vive e trabalha em Alcobaça desde 1980. Realizou mais de três dezenas de exposições individuais, desde 1964, e participou em numerosas exposições colectivas a partir de 1958. Em 1978/79, foi Bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian. Tem desenvolvido novas formas de expressão no campo da medalhística e da joalharia desde 1966. Entre 1969 e 1974, concebeu, construiu e orientou a Galeria Ogiva, em Óbidos. Foi galardoado com numerosos prémios nacionais e estrangeiros, tanto na área da esultura como da medalhística. Entre 1997 e 1999, realizou o projecto plástico do Elevador da Boca do Vento, em Almada. Encontrase representado em colecções e museus de Portugal, Brasil, França, Holanda USA, Japão e Inglaterra. É autor de numerosa obra pública, com destaque para o Monumento ao General Humberto Delgado, de 1976, na Cela Velha, o Padrão do 8º Centenário da Fundação da Abadia de Alcobaça, de 1978, as Gárgulas da Torre do Tombo, em Lisboa, de 1988, o Retrato de Camões, na Assembleia da Republica, a Escultura «7 Rios», junto à estação do Fertagus do mesmo nome, a Escultura do Parque da Paz, em Almada, e o Presépio de Fátima, todos de 1999, e a Porta de Abril, em S. Paulo – Brasil, em 2001. A vasta produção de José Aurélio coloca-o, já desde há várias décadas, como um dos principais escultores portugueses do nosso tempo e aquele que, sem sombra de dúvida, apresenta uma obra mais profundamente multímoda e, consequentemente, contrastante e multifacetada, como se o artista tivesse, de algum modo, encarnado uma quase «pessoana» heteronimia, sem identificação necessária de outros «eus», manifestando-se os seus distintos e criativos modos ao sabor das escalas, dos materiais, das próprias temáticas e da ocasião da intervenção. De todos os materiais em que trabalha - com destaque para a pedra, o bronze, a madeira, os arames, o betão ou o ferro - é, porventura, no ferro pintado e no aço (nas variantes inox ou corten), mas também na pedra (Gárgulas da Torre do Tombo), que, na escala monumental da praça ou do edifício públicos ou dos amplos espaços urbanos de ar livre, a sua obra revela toda a sua indiossincrasia: de um lado, a poderosa organização estrutural, assente numa rigorosa disciplina geométrica, na procura de uma essencialidade algo minimal da presença e do gesto, e, do outro, a irrupção aqui e além de uma figuração surreal, a reutilização muito conceptual de engenhos e múltiplos «objets trouvés» ou, ainda, a reverberação das superfícies texturadas, não só por uma processualidade que revela a sensualidade das matérias como também pelo Tempo, e, finalmente, o apelo do movimento, que faz interagir o espectador com a obra/monumento. Um dos universos temáticos que o escultor tem visitado e revisitado, com frequência, é o da Literatura e da Poesia, ora realizando aproximações muito diversas da obra de um só autor, como acontece com Fernando Pessoa, ora utilizando diversificadas estratégias figurativas e escalas ou media igualmente variados na abordagem de poetas contemporâneos ou de poderosas imagens literárias, como O Princepezinho ou O Pescador, magnífico projecto de monumento sonhado com Alves Redol, nos inícios dos anos sessenta, que bem merecia ser realizado. FABP Sar a Matos · [ Leiria, 1978 ] Licenciou-se em Artes Plásticas-Escultura pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa, em 2001. No ano seguinte, frequentou a Pós-graduação em Curadoria e Organização de Exposições, organizada pela FBAUL com o apoio da Fundação Gulbenkian. De 1999 a 2002 participou em diversos workshops sobre Fundição e Escultura Cerâmica e sobre Arte Pública e Desenho Urbano, tanto em Lisboa e no Porto (Faculdades de Belas Artes) como em Montemor-o-Novo (Oficinas do Convento). Em 2001 e 2001 desenvolveu trabalho no âmbito da produção do evento urbano «Lisboa Capital do Nada - Marvila» e da organização de exposições («Quando não dizem amo-te», Alcobaça e FBAUL). Participa em exposições colectivas desde 1998. É, desde 2002, estagiária do Projecto de Investigação Escultura Cerâmica, tendo integrado a equipa de escultores da FBAUL que realizou intervenções de restauro em duas esculturas em terracota do Mosteiro de Alcobaça. Alguns dos seus trabalhos foram distinguidos, destacandose o 1º Prémio de Escultura no «JovArte» (Loures, 2001) e o 1º Prémio - Artes Plásticas do Prémio Carpe Diem (Alcobaça, 2001-2002). Está representada nas colecções da Câmara Municipal de Loures. A curta mas significativa obra de Sara Matos documenta uma atitude conceptual e projectual que não hesita em confessar uma clara fascinação pelo carácter austero e «clean» do design. Utiliza a processualidade do design para chegar à depuração formal e à exactidão, recorrendo a materiais «industriais» como o ferro e o vidro e nunca ao barro. Contudo, uma vez que possui oficina própria para trabalhar o ferro e acompanha a produção até ao fim, os processos podem alterar-se durante a execução e obter resultados não previstos no início. Assim, a própria ideia ou conceito vão sendo construídos através da processualidade. Tematicamente, Sara Matos tem uma ostensiva preferência pelo tratamento de situações-limite, em espaços patrimonialmente não-neutros, por vezes com introdução de alguma ironia, como acontece em Pena Suspensa, imagem terrificamente ambivalente de cama ou instrumento de tortura num dormitório fradesco, ou em Entre a Espada e a Parede, em que se procura uma deliberada interactividade com o espectador, pela relação estabelecida entre este, os espelhos e um elemento pontiagudo, contra a parede do Claustro. Noutros casos, como em Gemini, aborda a intrínseca igualdade humana através da lenta metamorfose dos materiais (água e sais) numa recriação de um certo imaginário de laboratório (vasos comunicantes), ou revisita o relicário de Alcobaça inventando um novo contentor de ferro e luz que apresenta moldagens em vidro de ossos, sob a égide do famoso mote do túmulo de D. Pedro, A:E: Fim do Mundo. FABP Sérgio Vicente · [ Lisboa, 1969 ] Licenciou-se em Artes Plásticas-Escultura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, em 1994. Em 1995-1996 efectuou uma pós-graduação em escultura na Universidade de Belas Artes e Música de Tóquio, para a qual beneficiou de uma Bolsa do Ministério da Educação do Governo do Japão. Nos anos de 1999-2000 efectuou uma pós-graduação em Design Urbano, organizada pelo Centro Português de Design, em colaboração com a FBAUL, a Univ. Barcelona e o Barcelona Centre Disseny. Foi também bolseiro da Fundação Gulbenkian para os anos de 20002001. Desde 2001 que é Assistente Convidado na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Expõe individualmente desde 2001 e participa em exposições colectivas desde 1995. É autor de obras de escultura pública resultantes de concursos públicos (Monumento à Vida, 1997, Almada; III Milénio, 2000, Vale de Cambra). E projectos desenvolvidos para Câmara Municipal de Palmela, Sentidos em Vila Amélia, 2001; para a Câmara Municipal de Vale de Cambra, Progresso, 2002; e Curled Sculpture, para Multi Development Corporation no Montijo em 2003. A obra de Sérgio Vicente combina, de forma original, uma atitude conceptual e projectual que sofre uma clara contaminação do design e uma aproximação «minimal» às formas orgânicas da Natureza, não as directamente visíveis mas as que resultam de observação microscópica ou de estádios sucessivos de metamorfose. Há uma clara interdependência entre o orgânico e o geométrico, em que a estrutura íntima do primeiro está no segundo. Daí a busca de uma essencialidade que se resolve num trabalho de modulação das formas, que parte de um módulo inicial e define até onde pode chegar a extensão máxima da variação. A todo este trabalho projectual segue-se uma realização técnica que nega a produção directa e manual do objecto, mesmo quando se recorre a um forno de sal para o vidrado do grés sugerindo valores de textura que jamais se sobrepõem à depuração geométrica da forma. O intuito claro do escultor é fazer perder a relação emotiva entre o autor e a obra produzida, entregando-a a uma livre e multiforme apropriação pelo espectador individual ou colectivo. Esta atitude parece estar mais adequada à intervenção em espaços públicos e, de facto, as principais obras de Sérgio Vicente são concebidas preferencialmente para esse fim, desafiando relações espaciais complexas, tanto ao nível da composição como ao nível da integração no lugar. No entanto, os desenhos e as maquetes - que podem ser realizadas em materiais definitivos - permitem igualmente uma fruição intimista desta escultura. FABP Vanessa Santos · [ Lisboa, 1978 ] Licenciou-se em Artes Plásticas-Escultura pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa, em 2002, tendo sido bolseira do Programa Sócrates/Erasmus na Academia de Belas Artes de Atenas, de Março a Junho de 2001. De 1999 a 2002 frequentou diversos workshops sobre Arte Pública e Desenho Urbano, sobre Fundição e Escultura Cerâmica e sobre Gravura, tanto em Lisboa (Faculdade de Belas Artes) como em Montemor-o-Novo (Oficinas do Convento). Em 2001 e 2001 desenvolveu trabalho no âmbito da coordenação executiva de eventos urbanos, como o «Café Design 0002» e o «Lisboa Capital do Nada - Marvila». É, desde 2002, estagiária do Projecto de Investigação Escultura Cerâmica, tendo integrado a equipa de escultores da FBAUL que realizou intervenções de restauro em duas esculturas em terracota do Mosteiro de Alcobaça. O universo de interesses artístico-culturais de Vanessa Santos não se esgota na escultura e, em particular, na cerâmica, componente de formação em que se especializou, já que a coordenação e a participação em eventos urbanos de carácter inter e pluridisciplinar, envolvendo desde a reabilitação de espaços florestais e urbanos até à reformulação da sinalética, passando por visitas guiadas, exposições e a criação de info-pontos, lhe deu a dimensão por vezes não prioritária da intervenção artística na escala da intervenção urbana. O seu trabalho escultórico apresenta-se, assim, como um contraponto mais intimista da sua participação em projectos pluridisciplinares. Nele joga com as noções de «jóia» e «brinquedo» aplicadas a elementos da estrutura corpórea - os ossos - apresentando peças de porcelana de grande depuração formal em que referências ósseas nos surgem inesperadamente como jóias. Esta ironia combina-se com uma estratégia performativa e estende-se a outro tipo de peças, em que parte de referências do imaginário da cultura de massas, como a Estátua da Liberdade de Nova Iorque ou o Cristo Redentor do Corcovado, e executa teatrinhos-relicários ou um jogo com peças em bronze a serem colocadas em mapas das respectivas cidades. Vanessa Santos desenha e executa as suas peças, gosta da manipulação dos materiais e procura deliberadamente a proximidade com a construção. FABP Virgínia Fróis · [ Rio Maior, 195 4 ] Licenciada em Artes Plásticas-Escultura pela então Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, em 1988, iniciou funções docentes nessa escola no ano imediato e, após a realização de provas de agregação, é, desde 1997, Professora Auxiliar na que é hoje a Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Ligada a experiências de animação pedagógica ainda nos anos setenta, desenvolveu posteriormente, a par do seu trabalho escultórico, actividade no âmbito da cenografia e concepção de figurinos, tendo-se igualmente dedicado à medalhística (Municípios do Corvo e de Loures) e à arte pública, com intervenções em Almada (Monumentos ao Associativismo Popular, inaugurado em 1994, e ao Poder Local Democrático, em 2001), Lisboa (Tribunal Administrativo) e Arraiolos (Tribunal Judicial). Realizou mais de uma dezena de exposições individuais desde 1992 e participou em numerosas colectivas a partir de 1987. Fundou, em 1996, com outros artistas, a Associação Cultural de Arte e Comunicação Oficinas do Convento, em Montemor-o-Novo. Nesta cidade, organizou, de 1996 a 2001, os 1º, 2º e 3º Simpósios Internacionais de Escultura em Terracota. A obra de Virgínia Fróis parte dos conceitos e da processualidade da chamada arte povera, fazendo do corpo e dos elementos fundamentais da paisagem tópicos de memória e de metáfora existencial. Os materiais que abundantemente utiliza - a terracota, o ferro, o xisto, a madeira e, por vezes, o bronze - não apenas dão corpo aos universos temáticos recorrentes na sua obra - a água, a luz, o ar, o céu, a mulher-que-é-casa-e-vaso, assim como os múltiplos mecanismos e veículos da imagem e da comunicação, como os espelhos - , através de uma directa envolvência da criadora no acto e no prazer do fazer, numa perfeita fusão entre conteúdo e processo, mas também participam da nomeação temática, tal como os temas, por sua vez, se transformam em materiais da escultura, numa original interactividade entre a matéria, a referência, o processo e a fruição. Os constantes jogos entre o contentor e o contido, entre a forma que molda/modela e a fluidez ou evanescência de certos elementos vitais como a água, o sangue, o sal e as sementes ou das matérias que desaparecem sob a combustão, deixando sulcos, conduzem à subtil metamorfose dos materiais, que se tornam outros, assim como as formas de certos vasos se transmutam ou simplesmente se tornam metáforas dos habitáculos transformadores, sejam eles as corolas das flores, o útero feminino, o forno ou a casa-mãe. Essa quase obsessiva atracção pela transmutação de todas as coisas não é mais do que a representação simbólica da incessante metamorfose dos elementos primordiais de uma Natureza e de uma Humanidade que, na obra de Virgínia Fróis, aparecem como se fossem feitas de uma permanente e eterna transformação do Ser, sempre passageiras e viandantes, algo efémeras e fugidias, mas simbolica e artisticamente presentes para todo o sempre. FAB P