LOCAÇÃO NÃO RESIDENCIAL AÇÃO DE DESPEJO POR FALTA DE PAGAMENTO – ARBITRAMENTO DO ALUGUEL – INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 3.º, PARÁGRAFO ÚNICO, E 6.º E PARÁGRAFOS DO DECRETO‐LEI N.º 4, DE 7 DE FEVEREIRO DE 1966 Sérgio Sérvulo da Cunha Professor de Direito Civil da Faculdade Católica de Direito de Santos 1. Em novembro de 1964, com a lei n.º 4.494, pretendeu o Governo regular definitivamente, ou ao menos por dez anos, o problema da locação de imóveis. As sucessivas leis de inquilinato haviam cerceado de tal modo os direitos dos proprietários, que se fazia mister descongelar gradativamente os aluguéis. Contudo, nem bem posta em vigor a nova lei, e já um ano após, em 29 de novembro de 1965, dois artigos introduzidos sub‐repticiamente na lei de estímulo à construção civil (lei n.º 4.864, arts. 17 e 28) vieram restaurar, para certos tipos de locação, o regime de absoluta liberdade consagrado pelo Código Civil. Nesse regime merecem atenção especial dois dispositivos, contidos nos arts. 1.194 e 1.196: Art. 1.194: “A locação por tempo determinado cessa de pleno direito findo o prazo estipulado, independentemente de notificação ou aviso.” Art. 1.196: “Se, notificado o locatário, não restituir a coisa, pagará, enquanto a tiver em seu poder, o aluguel que o locador arbitrar....” Face à avalancha de notificações que invadiu os pretórios logo em seguida, gerando grave inquietação, viu‐se o Governo obrigado a voltar atrás, em parte, restringindo a liberdade dos locadores. Editou, assim, o decreto‐lei n.º 4, de 7 de fevereiro de 1966, aplicável às locações não residenciais, que visou humanizar a aplicação da faculdade conferida pelo art. 1.196 do Código Civil. 2. Esse decreto‐lei, como qualquer outro entre os recentemente publicados, que não diga respeito à segurança nacional, fere à Constituição e ao Ato Institucional n.º 2. Não é nosso propósito, porém, examiná‐lo desse ponto‐de‐vista. Os nossos juízes vêm‐lhe dando aplicação, e principalmente nas ações de despejo por falta de pagamento, levantam‐se polêmicas quanto à sua interpretação. 1 Tentamos deslindar, nesse estudo, a aparente contradição existente entre seus arts. 3.º, parágrafo único, e 6.º e seus parágrafos. Determina o art. 3.º em seu parágrafo único: “Se, notificado, o locatário não restituir o prédio, pagará, enquanto o tiver em seu poder, o aluguel que o locador arbitrar, cujo valor máximo não poderá, entretanto, exceder o valor da correção monetária do aluguel, calculada, a partir do início desse aluguel, de acordo com os índices fixados pelo Conselho Nacional de Economia.” 3. Esse dispositivo vinha sanar, afinal, uma lacuna existente em nossa legislação, a respeito do alcance do arbítrio do locador, ao fixar o novo aluguel. Discutira‐se muito, em torno do art. 1.196 do Código Civil, se era ou não ilimitado aquele arbítrio, sendo afirmativa, a princípio, a maioria das opiniões e julgados, com base principalmente na lição de Clóvis Bevilaqua: “O Código não estabelece limite algum para o aluguel arbitrado pelo locador, neste caso, por que este preço elevado é um meio de coagir o locatário a cumprir sua obrigação e restituir a coisa alugada, finda a locação. A continuação arbitrária do locatário na posse da coisa alugada é um ato injusto, uma ação abusiva, contra a qual a lei arma o locador desse recurso extraordinário, além do comum da ação para lhe ser restituído o que, sem direito, continua em poder do locatário” (“Código Civil”, Ed. Freitas Bastos, vol. 4, pág. 298). É o que se vê nas decisões insertas na “Rev. dos Tribs.”, vols. 124/235, 147/218, 149/193, 151/798, 154/659, 196/540, 209/491, algumas do Supremo Tribunal Federal. Moderando essa interpretação, presa a uma concepção individualista da propriedade, erigiram‐se outros acórdãos no sentido de que o novo aluguel, arbitrado pelo locador, não poderia exceder ao dobro do devido anteriormente. Isto porque, nos termos do art. 920 do Código Civil, o valor da pena não pode exceder ao dobro da obrigação. A tese de que se trataria, no caso, da aplicação de cláusula penal, foi rejeitada pela doutrina e jurisprudência, que se fixaram, finalmente, na opinião de Filadelfo Azevedo, traduzido em acórdão publicado na “Rev. dos Tribs.”, vol. 199/226: “Essa majoração, todavia, deve limitar‐se ao dobro, não da renda antiga, e sim da que justamente caiba ao tempo da restituição.” Para conhecimento dessa evolução, leia‐se Luís Antônio de Andrade, que lhe traça a história em “Locação e Despejo” (Ed. Forense, Rio de Janeiro, 2.ª ed., 1966, n.º 36, pgs. 35 e segs.). 4. Do parágrafo único do art. 3.º, conclui‐se, portanto, à primeira vista, que o arbítrio do locador ficaria limitado a fixar o aluguel até um teto, correspondente ao valor do aluguel, corrigido monetariamente. 2 A leitura, porém, do art. 6.º, enseja entendimento diverso: “Se a ação de despejo tiver por fundamento a falta de pagamento de aluguel arbitrado pelo locador, na conformidade do parágrafo único do art. 3.º deste decreto‐lei, o juiz, contestado o pedido, fixará previamente o novo aluguel (Código de Processo Civil, arts. 254 e 248), e o homologará por sentença.” Daí a dúvida, ainda não resolvida. O mesmo Luís Antônio de Andrade (op. cit., n.º 96, pág. 90) assim explica essa confusão: “Na sua tramitação pelos gabinetes ministeriais, sofreu o anteprojeto, entretanto, modificações que alteraram substancialmente a idéia que presidiu a sua feitura. Nele foi introduzida a norma que hoje constitui o parágrafo único do art. 3.º, alterando o alcance do art. 1.196 do Código Civil, mas com a mesma finalidade visada pelo art. 6.º, resultando daí um “bis in idem” que torna quase sem sentido esse último dispositivo. E conclui que esses textos, com orientações diversas, têm a mesma finalidade. Essa explicação, porém, não desfaz o impasse, que persiste conforme reconhecido pelo mesmo autor: “Realmente, por que e para que fixar o juiz o aluguel cominado e homologá‐lo, se tal aluguel, nos termos do parágrafo único do art. 3.º, não pode exceder o resultante da correção monetária do aluguel primitivo? Por que e para que a perícia a que alude a parte final do art. 6.º? Para que a opção conferida ao locador pelo § 1.º, se ela vai coincidir, necessariamente, com o aluguel cominado?” (Ibidem). Fazendo remissão aos arts. 254 e 258 do Código de Processo Civil, o art. 6.º indica que o novo aluguel será fixado pelo juiz, se contestado o pedido, através da realização de prova pericial. Para que a prova pericial? Para simples verificação da aplicação dos índices de correção monetária? Claro que não. Se fosse para esse fim, o juiz remeteria os autos ao contador, e a lei não precisaria fazer referência à perícia, cujo objetivo, segundo o art. 254 do Código de Processo Civil, é a prova de fato que dependa de conhecimento especial. Portanto, a finalidade da perícia, no caso, não pode ser outra que a de apurar o aluguel real, ou aluguel justo. E isto é evidente porque, ainda mais tratando‐se de locações não residenciais, o aluguel justo nem sempre corresponderá à mera correção monetária do aluguel primitivo, sendo necessário cogitar, para sua fixação, de outros fatores, tais como a valorização do imóvel, mercê de melhoramentos públicos, valorização do ponto, destinação da locação, aumento da 3 carga tributária, etc. Seria o caso, por exemplo, de um imóvel alugado há muitos anos na Rua Augusta, em São Paulo, ou na Praia do Boqueirão, em Santos. O § 1.º desse artigo vem confirmar tal entendimento: “Será dispensada perícia, para efeito de fixação de que trata este artigo, se o locador aceitar como novo aluguel o resultante da aplicação do índice de correção monetária fixado pelo Conselho Nacional de Economia, ao aluguel primitivo.” Se o locador aceita cobrar o aluguel corrigido monetariamente, dispensa‐se a perícia. Mas se, ao contrário, pretende aluguel mais alto, este será fixado, então, mediante prova pericial. Assim, ao inverso do que se depreende à primeira leitura do art. 3.º, parágrafo único, o aluguel corrigido monetariamente não constitui um teto à pretensão do locador. A expressão categórica nele empregada: “cujo valor máximo não poderá, entretanto, exceder o valor da correção monetária”, deve interpretar‐se como estabelecendo um teto às pretensões como estabelecendo um teto às pretensões do locador, sempre que o aluguel for por ele mesmo arbitrado, sem o concurso da autoridade judiciária, isto é, sempre que o inquilino, acedendo em pagar aumento, quiser pagar “o aumento emitido em lei”. Note‐se a diferença entre os dois casos: O art. 3.º, parágrafo único, fala no “aluguel que o locador arbitrar.” E o art. 6.º refere‐se a que “o juiz... fixará... o novo aluguel”. Poder‐se‐ia dizer, todavia, impugnando essa interpretação, que é a própria cabeça do art. 6.º que faz menção a “aluguel arbitrado pelo locador na conformidade do parágrafo único do art. 3.º”. A necessidade de conciliação entre os dois textos impõe que se veja, na expressão “na conformidade”, referência ao requisito da prévia notificação, e não à fixação de um teto. O que está, aliás, em consonância com o art. 1.195 do Código Civil, pois sem prévia notificação o locador não poderá exigir o aluguel majorado. Na prática, como se ajustaria a lei, face a esse entendimento, às várias hipóteses que se podem verificar? 1. O locador arbitra o aluguel novo de acordo com os índices do CNE, e passa a cobrá‐lo sem oposição do inquilino. 2. O locador arbitra o aluguel de acordo com esse índice, e encontrando oposição inquilino, move‐lhe ação de despejo por falta de pagamento. O inquilino, ao contestar, alega que o cálculo está incorreto, e os autos são remetidos ao contador. 4 3. O locador exige aluguel superior ao corrigido monetariamente e move ação de despejo. O locatário, ao contestar, alega que o aluguel reclamado é abusivo, e requer realização de perícia. Tal interpretação, como vemos, além de conciliar os dois dispositivos, alinha‐se também com o espírito que norteou as modificações efetuadas na legislação do inquilinato. Não nos cabe, aqui, julgar do significado social dessas reformas. Mas, dentro do novo sistema instaurado, essa interpretação, que à primeira vista contraria os interesses dos inquilinos – pois permite a fixação de aluguéis em níveis superiores aos da mera correção – vem em seu benefício. Explico: na nova sistemática, restauradora do Código Civil, pode o locador exigir o prédio alugado, findo o prazo contratual, se lhe convier, independentemente de necessidade, ou de prova de necessidade. É óbvio que, podendo obter aluguel mais alto, nas condições do mercado, se lhe for negada a via judicial que permita a sua fixação, não se conformará com a percepção apenas do aluguel corrigido monetariamente, e despejará o inquilino através de ação ordinária. Assim, a fixação de aluguel inferior seria, para este, uma vantagem provisória, anulada mais tarde com a perda da locação. ‐ ooo0ooo ‐ Locação não‐residencial. Ação de despejo por falta de pagamento. Arbitramento do aluguel. Interpretação dos artigos 3º, parágrafo único, e 6º e parágrafo do Dec. lei nº 04, de 07 de fevereiro de 1966 – Revista dos Tribunais n.º 382 – pág. 38 – agosto/67 5