O Direito Constitucional e o Castelo de
Cartas da política
Por Rafael Tomaz de Oliveira
Quando se trata de explorar os fundamentos constitutivos do direito
constitucional moderno, muitos manuais repetem com alguma frequência
uma velha tentativa didática que procura retratar as várias possibilidades
de concepções teóricas sobre aquilo que sejam, em sua essência, as
Constituições. Nesse sentido, afirma-se ser possível observar uma
concepção puramente jurídica de Constituição, uma concepção
puramente sociológica de Constituição e uma concepção puramente
política de Constituição.
No primeiro caso, estar-se-ia diante de uma forma, por assim dizer,
kelseniana de representar a Constituição. Assim, esta última seria apresentada como pura
norma jurídica, vale dizer, independente das relações fáticas de poder consideradas
determinantes naquela específica comunidade política. Sendo mais claro: nesse contexto, a
análise jurídica acerca da Constituição estaria restrita à descrição dos elementos que compõem
a forma jurídica do Estado, destilando-se dessa projeção teórica os fatores políticos e
sociológicos.
Por outro lado, no âmbito da concepção sociológica, atribuída a Ferdinand Lassalle, a forma
jurídica da Constituição seria retratada apenas e simplesmente como uma “folha de papel” que,
como tal, poderia ser rasgada com facilidade pelos fatores reais de poder, segundo as
conveniências e necessidades de uma determinada realidade estatal.
A tentativa (jurídica) de limitação do poder político seria uma vã ilusão: aquele que deseja
descrever, com objetividade, o que seja a Constituição de um Estado deve estar atento às
condições reais de poder existentes na sociedade que analisa.
Por fim, ter-se-ia a concepção puramente política de Constituição. Nesse ambiente,
Constituição — escrita assim como o “C” maiúsculo — seria apenas a decisão política
fundamental que determina, de forma concreta, a existência da unidade política. O resto, as
regras escritas de Direito Constitucional, seriam leis constitucionais. Atribui-se essa concepção
à Carl Schmitt e a seu peculiar decisionismo político.
No segundo pós-guerra, contudo, é possível observar um outro movimento teórico. Nesse
caso, o marco seria o clássico opúsculo A Força Normativa da Constituição, de Konrad Hesse,
que se coloca desde o início como uma verdadeira antítese à proposta sociológica de Lassalle.
Porém, se a recusa de Hesse a Lassalle é um fato incontestável, também o é a colocação de
uma ideia de normatividade que se apresenta para além daquela defendida por Kelsen. O alvo
de Hesse é, na verdade, a velha díade kantiana que separava ser e dever-ser. Em sua
proposta, ser e dever-ser apresentam-se em uma relação de circularidade no interior da qual se
interpenetram. Assim, uma Constituição que seja puramente normativa é tão irreal quanto uma
Constituição puramente sociológica. A proposta de Hesse, para um kelseniano, seria
metodologicamente um equivoco imperdoável. E, Para um sociologista, apenas uma reedição
do velho mito da “folha de papel”.
De todo modo, a ideia semeada por Hesse em A Força Normativa da Constituição influenciou
muita gente no âmbito do Direito Constitucional. E gente grande, se me é permitido o
trocadilho. Friedrich Müller e J.J. Gomes Canotilho seriam algumas dessas pessoas. Dentre
tantas outras.
Trata-se, a toda evidência, de um intrincado problema teórico. O inusitado é que, no Brasil, ele
acaba vulgarizado. Divirto-me com aquelas propostas que dizem que o problema das três
clássicas concepções de Constituição diz respeito à sua unilateralidade. Assim, seria muito
simples solucioná-lo: bastaria não se defender, com rigor, nenhuma delas. Mas, sim, um mix de
todas. Desse modo, as Constituições não seriam nem exclusivamente jurídicas, nem
sociológicas ou, tampouco, políticas. Seriam, na verdade, um pouco de cada coisa e nenhuma
delas ao mesmo tempo. Fantástico, não?!
Lembrei-me de todo esse inventário de ideias por conta de uma série que estreia, em fevereiro,
sua segunda temporada. Cuida-se de House of Cards. Algo como “Castelo de Cartas”. Na
verdade, no modo como se coloca na série, há um certo índice de ambiguidade na expressão
na medida em que House of Cards poderia também referir-se ao Congresso estadunidense e
às ações que são levadas à cabo em seu interior.
Vi a primeira temporada de uma vez só. Não conseguia deixar a trama de lado para continua-la
em outro momento. Queria saber qual seria o próximo passo do maquiavélico personagem
vivido por Kevin Spacey (em soberba atuação, por sinal): o congressista estadunidense Francis
J. Underwood.
A todo instante em que assistia aos 13 episódios da primeira temporada, martelava em minhas
ideias esta questão tão cara ao constitucionalismo e ao direito constitucional: quais sãos as
possibilidades de, por meio do direito, limitarmos a política?
House of Cards é um tipo de série que faz sucesso atualmente. Baseia-se em um protagonista
que se apresenta, na verdade, como um anti-heroi: um político com um código moral bastante
flexível e que pauta suas ações mais em fatores de êxito pessoal do que, propriamente, em um
senso de comunidade ou de pertença comum. Nesse particular, guarda semelhança com outra
série de igual prestígio: Breaking Bad. Aqui também temos um anti-heroi como protagonista:
um pacato professor de química que, em um rompante; em uma “ruptura total”, atravessa as
margens da legalidade e da moralidade para viver uma vida completamente diferente,
temperada pela produção e pelo tráfico de metanfetamina. O curioso é que, em Breaking Bad,
o que está em questão não é apenas o tráfico de drogas e o modo como ele se infiltra na
“normalidade” de nossas vidas. O primeiro episódio da primeira temporada é uma verdadeira
obra prima. Afinal, como é possível vivermos em uma sociedade em que os professores são
humilhados pelos alunos e em que necessitam duplicar a jornada de trabalho para aumentar o
rendimento de sua família? E o professor se transforma à medida em que se aproxima da
esfera do ilícito e da “imoralidade”... Defende o filho com unhas e dentes de um babaquinha
preconceituoso que havia feito bullying com sua situação de paralítico e, no final, até sua vida
sexual com a própria esposa parece ter tido um upgrade. E tudo depois da “ruptura total”.
Em House of Cards, todavia, o tema é mais, por assim dizer, universal. Não se prende a essas
particularidades de nosso tempo mas avança em direção a situações e sentimentos que
acompanham a humanidade desde priscas eras. O particular fica, aqui, por conta do sistema
político que se apresenta como pano de fundo das ações: uma democracia constitucional que
se anuncia como “a terra dos livres e o lar dos bravos”.
Nessa série, realidade e ficção interpenetram-se em um grau que, em alguns casos, vai além
da mera coincidência. O presidente recém eleito, em seu discurso de posse, apresenta um
gestual muito peculiar. Por outro lado, o carro chefe da pauta legislativa do novo governo é a
implementação de um programa nacional de regulação de um direito social que é... a
educação, evidentemente.[1]
A tarefa de levar a cabo tal regulamentação e conseguir sua aprovação no Congresso acaba
nas mãos de nosso protagonista, Francis Underwood. E ele não a recebe como prestígio
político perante o governo, mas, sim, como uma espécie de troféu de consolação. Na verdade,
o governo, que ele havia ajudado a eleger, prometera-lhe o cargo de secretário de Estado.
Todavia, entregaram-lhe, efetivamente, a missão de promover a mediação dos interesses do
governo dentro do Congresso.
No desenrolar dessa trama, assistimos a
é exercido. Desde manobras para conter
professores até a criação de factoides
posições politicamente estratégicas, mas
de Underwood.
um bombardeio das condições reais em que o poder
a ação de lobistas que representam os sindicatos de
na impressa para derrubar aqueles que estão em
que não se afinam, por algum motivo, aos interesses
A apresentação daquilo que pode ser considerada a essência do pensamento desse
protagonista aparece já na primeira cena: um cachorro é atropelado. Ao fundo é possível ouvir
os grunhidos de dor do animal. Um segurança lhe relata o acontecido e, na sequencia, deixa o
local. Underwood aproxima-se do cão desfalecido e, olhando para a câmera, diz que às vezes,
quando a dor se instala, é preciso tomar medidas drásticas para que ela possa ser jogada para
longe. No momento seguinte, ele sacrifica, com as próprias mãos, o cão desfalecido. Em
arremate, anuncia algo que, no frigir dos ovos, soa da seguinte maneira: “alguém sempre terá
que fazer o trabalho sujo”. Não deixa de ser instigante o fato de, na cena seguinte, Underwood
aparecer lavando as mãos...!
E, certamente, muitas vezes ele se colocará na condição daquele que aceita o destino de fazer
o (necessário?) “trabalho sujo”: manobras internas, dentro do próprio congresso; criação de
vários factoides; ocultação de outros tantos fatos; questões virtualmente ilegais envolvendo o
financiamento de campanhas, eis, entre tantos outros itens, o cardápio de variedades que
estão no leque de suas ações.
No desenrolar desse teatro, o funcionamento do sistema político parece passar diante de
nossos olhos. Mas, o inevitável seria perguntar: e o direito constitucional diante disso tudo?
A resposta: ele continua lá. No mesmo lugar que lhe é reservado. O da conformação do melhor
governo; das regras que condicionam a vida política em sentido amplo. Muitos disseram, ao
longo da história, que as Constituições representavam tentativas vazias de limitar um poder
que, por natureza, é ilimitado. Folha de papel, carta de propósitos, programas, muitos foram os
termos pejorativos que foram a ela impingidos. Já ouvi gente afirmar que o constitucionalismo é
uma “ideologia”. Estariam certos? Creio que não. Todo esse Castelo de Cartas da política pode
ser desmontado por elementos que os constitucionalistas tentam explicar há anos. Hesse, nos
anos 1950, falava em vontade de Constituição. Pablo Lucas Verdú, mais para o final do século
XX, anunciava a necessidade de construção de um sentimento constitucional. E nós,
habitantes do século XXI, o que podemos dizer desse elemento que se apresenta como o
amálgama que une a comunidade política e que desagua nesse instrumento jurídico chamado
Constituição? A identificação da palavra pode estar em aberto. Mas a indicação dos mestres do
passado é clara: a concretização do projeto constitucional é uma tarefa da qual todos, sem
exceção, somos titulares!
[1] Ressalte-se que o governo Obama, já em seu primeiro ano, anunciou a implementação de
um sistema de saúde como uma de suas prioridades máximas. Educação e Saúde guardam
uma semelhança entre si: são direitos sociais. Mera coincidência?! Talvez.
Rafael Tomaz de Oliveira é advogado, mestre e doutor em Direito Público pela Unisinos e
professor universitário.
Revista Consultor Jurídico, 25 de janeiro de 2014
Fonte:
http://www.conjur.com.br/2014-jan-25/diario-classe-direito-constitucional-castelocartas-politica
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