Catarina Botelho - Contratempo
13 junho | 13 julho
“…a memória involuntária não se opõe simplesmente à memória consciente,
aquela que informa sem fazer reviver.”
(Claude Lévi-Strauss in Olhar, Escutar, Ler)
“…A superfície é o que aí está
E nada pode existir excepto o que aí está.
Não há recantos no aposento, só alcovas, (…)”
(John Ashbery in Auto-retrato num espelho convexo e outros poemas)
As 4 fotografias - “projeto Lisboa” - em Contratempo inscrevem-se numa série em processo, o que
significa que Catarina Botelho continua e continuará a registrar excertos, trechos de espaços
arquitectónicos institucionais (e públicos) por muito acumulo ainda. Não se prevê a exaustão pois estas
fotografias, acrescidas do conjunto das demais existentes (aqui não viajadas), aguardam as vindouras.
Assim, se estabelecem a fortiori, numa compilação de fragmentos organizado como todo. Trata-se de um
projeto em desenvolvimento, como sublinha a artista portuguesa, dominado por uma vontade
irreversível, mesmo perante as múltiplas dificuldades de acesso aos locais de tipologias diversas:
escolas, repartições, tribunais…todos eles devolutos.
“ Penso que esta série relaciona-se com uma ideia de arqueologia dos espaços, sendo os
objectos corpos, quase esculturas. Dentro dos edifícios sobrepõem-se vários tempos, na
arquitectura e em todos os vestígios de utilizações prévias.
Interessam-me estes espaços como uma espécie de orgãos internos da cidade. Lugares
aos quais não temos acesso mas que são vitais para o seu funcionamento.”
(Catarina Botelho)
No “Contra(o)tempo” deslocado até ao Rio de Janeiro, as fotografias remetem, pois, para um olhar
seletivo e detalhista sobre edifícios/imóveis (institucionais) degradados, de Lisboa. Nada impede que o
exercício desse olhar incisivo e crítico da fotógrafa gere imagens radicadas a partir de outros lugares e
países, abrindo o mapeamento e alargando arquivo, assim propondo um incremente e polissemia de
teor societário, ideológico e estético – portanto cultural.
Se por um lado, a substância das imagens remeta para uma situação de negligência, decadência e/ou
deterioração de unidades arquitectónicas, por outro lado, as respectivas fotografias evidenciam uma
força quase sublime.
Verifica-se a implicação epistemológica, quanto metodológica que supõe um primado categorial que é
denotativa das exigências contemporâneas e atuais plasmadas em conhecimentos/estudos relacionados
(e solicitados entre si): inventário sócio-histórico e patrimonial; catalogação estética; arquivo
antropológico-simbólico…
A amplitude desta matéria conceitual (compósita) autentica o escopo estipulado pela autora, ao eleger
uma “arqueologia” individualizada e coletiva, a entrelaçar o impulso recoletor – espécie de proclamação
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latente - que carece (para se expandir e atingir os seus propósitos) do dinamismo de espectadores que a
queiram e saibam rececionar. Sobre estes conteúdos é urgente elaborar reflexões: ação estética de cariz
colaborativo, propugnando a consciencialização do espectador ativo (Antoni Tàpies), com afinidade ao
operador estético (José Ernesto de Sousa), convertendo-se (talvez) em agente/espectador emancipado
(Jacques Rancière)…
As fotografias cativam “paisagens restritas”, escolhidas que são excertos iconográficos situando-se num
espaço/tempo em suspensão. Residem numa zona em que “ainda ser…algo” é condição quase paradoxal.
Pertencem a uma plataforma - por assim dizer – de translucidez crítica, onde se pensa algo que já deixou
de ser (por relação ao que inicialmente lhe estava atribuído) e que persiste em contrariar o inevitável
destino suposto: o “estado devoluto” irreversível. Os conteúdos iconográficos dizem: “ainda” está vivo,
“ainda” é vivo, pelo exercício (passivo?) do existindo (daseind)… Será, porventura essa acepção
ontológica a convergir, pelo encaminhamento humano que se rege pelo/para o absurdo.
No contexto da história das artes e das idéias, e no que respeita às designações (terminologia e
nomenclatura) de “Stillleben” versus “Nature morte” – atribuída a um gênero pictórico durante muito
tempo considerado como “menor” (traduzido, neste caso, para uma incidência categorial do universo
fotográfico), constata-se que, nestas derradeiras décadas, tem adquirido legitimamente e com coerência,
adeptos convictos e inteligentes. Neste “recorte”, o Stilleben subverteu a sua matriz categórica,
denunciando estas “naturezas-mortas” edificadas que também são “paisagens”. Tratando-se de um
subgênero menosprezado e de valência “acessória”, consolidou-se – pela sua artisticidade - em palco de
experimentações desencadeadas, logo, nas vanguardas históricas de inícios do séc.XX. Não fosse alheio o
fato do olhar dos artistas incidir sobre os objetos que lhes rodeavam o quotidiano, explorando
definições de duração e remanescência em torno de si mesmos. Acharam-lhes empatia e familiaridade.
Giorgio Morandi consignou-os de razão metafísica, quiçá mais ôntica…subtraiu-lhes sombra, sem que
por tal lhes retirasse “existência”, contrariando a crença mitológica.
Na atualidade, esses “objetos” adquiriram – como se evidencia nestas fotografias – a qualidade de
“fragmentos de resistência”. Sendo atributos, rastros ou vestígios, os objetos assinalados e isolados,
simbolizam o humano nos seus equívocos e potencializam interpretações ambíguas, convocando
disciplinas concomitantes – em contexto epistemológico, científico, quanto sociológico e ideológico. São
evidências históricas, qualificativo ao qual não se podem subtrair. O plasmar de objetos in situ, cativados
em ação direta, sem intervenção cenográfica ou, de alguma forma, construída (leia-se idealizada) é uma
efetividade que assiste a séries fotográficas, caso da metodologia, procedimento e decisão de Catarina
Botelho.
Desde há anos que a fotógrafa portuguesa trabalha uma metodologia de série/projetos, cujos
protagonistas (nuns casos) e as personagens (em outros) são objetos iludindo esse reconhecimento de
“natureza-morta” – em ato de remissão voluntariosa pois intencionalizada.
Os conteúdos semânticos das suas fotografias implicam uma atitude de perseverança, exercitando a
acuidade visual, quanto da razão e pensamento. Além de uma evidência, camada visual de adesão e de
assunção poéticas, a sustentação testemunhal predomina.
Os autores contemporâneos que na história recente da fotografia se perfilam, enquanto adeptos deste
recorte estético (polissêmico), procedem mediante suportes diferentes e em consonância a outros
tantos registos – o que garante a maior consistência e certeza, quanto aos princípios ativos que
pretendem colmatar.
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A captação (cativação) de episódios dispersos em objetualidade (sincrética) é relevante e cumpre um
desígnio humanista urgente. Diga-se que os objetos presentificados carregam uma radicação
(simbólica), plasmada em estruturas antropológicas transpostas, imprescindíveis para o correto
argumentar sobre a situação da humanidade em estado contemporâneo e atual.
Os fotógrafos que deles se apropriam – olhando-os e vertendo-os em imagens fotográficas espessas – no
seu contexto “quotidiano” ou “estrangeiro”, configuraram uma estética fundada no real, propugnando
uma axiologia intermedial que atinge consciências múltiplas.
Não se esqueça que, numa indexação estética, no advento da fotografia, o gosto pelas ruínas congregou
artistas e poetas, estabelecendo uma normatividade que atravessou o romanticismo, o decadentismo e o
simbolismo exacerbado até à legitimação crítica (da barbárie…). Nos limites do séc. XX, iniciado o XXI, o
olhar sobre elementos e objetos que nos rodeiam, assumiu proporções referenciais díspares,
externalizadas por morfologias oposicionais ou afins. Ou seja, o sujeito que “saiba ver” depara-se com
resultados imagéticos congêneres em aparência, que resultam de pressupostos conceituais bem
singulares e quase oposicionais, por vezes. Este reconhecimento aguça a curiosidade do público,
propondo o questionamento, quer de ideias específicas e singulares sobre si, abrindo uma circularidade
que admite sobreposições, prevendo interseções e sincronias em termos formalistas. As imagens em
zona de similitude (pois nelas nos reconhecemos, projetando e introjetando como unidades “em estado
de ruína” a rever) garantem que através de percepções de “simulacro” e ilusão…se tornam mais
cognitivos e efetivos, tanto os fatos implícitos do exterior, quanto as vidências internas dos eu(s).
Alerta: quando se observam as 4 fotografias de Catarina Botelho, assiste-se a um deflagrar/desenrolar
de paisagens que ainda sendo excertos do real, avançam rapidamente para a celebração estética,
galgando campos de imaginário pessoal, potencializando, por isso mesmo, o impacto intervencionado
(aquele que enxerga de verdade) do espetador.
Maria de Fátima Lambert
SP, Maio/Junho 2013
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texto - Mercedes Viegas