LEITURA SOBRE A ESCOLA: RELAÇÕES DE PODER, CULTURA E SABERES GUIRAUD, Luciene – PUCPR [email protected] CORRÊA, Rosa Lydia Teixeira – PUCPR [email protected] Eixo Temático: Cultura, Currículo e Saberes Agência Financiadora: Não contou com financiamento Resumo O presente artigo é uma leitura sobre a escola pública e as relações de poder que são estabelecidas no seu interior. Trata-se de um exercício reflexivo advindo de discussões empreendidas em um grupo de estudo e de vivência educativa desde essa escola, cujo ambiente é caracterizado por um encadeamento de forças que, inseridas no contexto em que se apresenta, favorece a hierarquização e sujeição nas relações desta instituição, disciplinar em sua essência. Assim, aborda relações de poder que são estabelecidas no interior da escola enquanto organização social, entendendo que os saberes ali ensinados são ainda sumamente vinculados a uma compreensão tradicional de exercício de poder disciplinar. Toma como referência autores como Weber (1971, 2002, 2004), Bourdieu (1982), Foucault (1979, 1990, 1995, 2001), Julia (2001), Frago (1995), Geertz (1989), Moreira e Candau (2003), Prata (2005), entre outros, na perspectiva de depreender as características deste universo escolar contemporâneo, penetrado por relações tensas, conflituosas, contraditórias, desiguais, e intencionar, com este entendimento, encontrar novos e diferentes meios de inculcar os saberes ali sistematizados, criar novas práticas condizentes aos novos tempos e apresentar outros elementos à cultura escolar. Indica ser necessário considerar os saberes que os alunos já possuem, em relação a uma compreensão necessária de multicultura com o fito de significar estes saberes, visando dar novo significado, não somente às relações de poder que ali se estabelecem, mas também a outros saberes e, consequentemente, à própria cultura escolar. Trata-se de pensar a escola e a sua cultura em relação ao seu tempo, à contemporaneidade. Palavras-chave: Escola. Relações de poder. Saberes. Multicultura. Introdução 6532 Quando o objeto de estudo é a escola, observam-se diferentes enfoques de análise, da História à Sociologia, da política educacional à prática pedagógica, que a colocam no centro das pesquisas educacionais. Na diversidade de abordagens sobre esta instituição, denotamos a constante presença do reconhecimento da existência de uma cultura própria e particular. A cultura da escola apresenta-se com diferenciadas tendências investigativas, permeada por múltiplas interpretações. Ao observar a prática educativa sob diferentes pontos de vista e fazer análises sob diversos enfoques, permitimos teorizá-la, precisando seus possíveis sentidos, no que diz respeito à percepção, orientação e valor. Assim, a explicitação de outros modos de se entender esta prática nos possibilita avaliá-la diferentemente e assumir opções, propiciando estabelecer relações mais consistentes com as pessoas e com o mundo a nossa volta. Em estudo sobre a cultura escolar como objeto da historiografia, Julia (2001) estabelece que a escola tem uma história que não é muito diferente da história de outras instituições da sociedade, como as instituições jurídicas ou as militares. A cultura escolar, para ele, evidencia que a escola não é somente um lugar de transmissão de conhecimentos, mas é, ao mesmo tempo e talvez principalmente, um lugar de “inculcação de comportamentos e de habitus” (JULIA, 2001, p. 14). Conforme esse autor, a lógica de inculcação que tem lugar na escola encontra resistência, na cultura dos estudantes e da localidade ao redor da instituição, pois em todas as épocas “todos sabem que os professores não conhecem tudo o que se passa nos pátios de recreio, que existe, há séculos, um folclore obsceno das crianças” (JULIA, 2001, p. 30). Assim, havendo resistência, parece-nos óbvio que está implícito ser a escola uma organização penetrada por relações de poder e dominação, que se refletem então em sua cultura e nos saberes que a alimentam. Saberes muitas vezes, ambíguos, distantes da vida cotidiana, das pessoas comuns, dos professores, dos alunos que dependem ali quase que exclusivamente da comunicação escrita e se adaptam mais comumente a procedimentos de avaliação formal. Assim entendido, denotamos que os critérios de legitimação e hierarquização presentes na sociedade prevalecem na organização escolar, indicando um sistema educacional enraizado numa sociedade estruturada por relações sociais desiguais, com conseqüências profundas no rendimento escolar e nas manifestações que a partir daí se desvelam. (VALLE, 2008). 6533 Desta forma, o presente estudo objetiva fazer uma análise sobre a instituição escolar, entendendo-a como uma organização marcada pela configuração social, que tem o papel precípuo de contribuir para formar sujeitos. Para que possamos melhor compreender as relações de poder que ali se estabelecem, é inevitável que nossos estudos busquem tal compreensão em autores que analisam o funcionamento do poder (FOUCAULT, 1979, 1990, 1995, 2001; BOURDIEU, 1982; WEBER, 1971, 2002, 2004), para subsidiar uma leitura no interior da escola. Entendemos que para a compreensão do que consistem as relações de poder, se faz necessário analisar as formas de resistência e os esforços desenvolvidos que tentam dissociar essas relações. Nesse aspecto, são de relevância obras que tratam, além da cultura escolar, também da indisciplina que ali se manifesta como insubmissão e de estudos sobre subjetividade, pois acreditamos que o sujeito é fruto de seu tempo histórico, das relações sociais em que está inserido, mas é, também, um ser singular, que atua no mundo a partir do modo como o compreende e como dele lhe é possível participar. Relações de Poder Enquanto organização e instituição social, a escola tem uma função que a distingue das outras e é parte fundamental na formação das sociedades humanas. A distinção está na sistematização, no processo formativo que visa inculcar valores, ensinamentos e normas da sociedade, fazendo a mediação entre os conteúdos historicamente produzidos pela humanidade e o aluno, procurando formas para que esses conhecimentos sejam apropriados pelos indivíduos, contribuindo para a formação de novas gerações de seres humanos. (SAVIANI, 2003). Tais conhecimentos são selecionados para serem transmitidos e reelaborados didaticamente para serem apresentados e ensinados (CHEVALLARD, 1991; GABRIEL1, 2000a, 200b, 2002, 2004a, 2004b, 2005, 2006; MONTEIRO, 2001, 2003; LOPES, 2007), o que nos faz entender que se caracterizam “pela disputa/tensão entre interesses diversos; pela intenção de 'territorialização' do conhecimento, num movimento de legitimação de grupos, idéias, sujeitos” (PUGAS e RAMOS, 2008), o que expõe a relação de poder que se manifesta na organização escolar. 1 A referida autora apresenta-se também com o nome de GABRIEL ANHORN. 6534 Além disso, essa organização expressa um tipo de racionalidade escolar que se assemelha à racionalidade econômica e à racionalidade política das sociedades modernas (VERRET, 1975), cujos aspectos institucionalizados de sua própria cultura a caracterizam como organização, compreendida nas “práticas e condutas, modos de vida, hábitos e ritos, objetos materiais e modos de pensar, assim como significados e idéias”, (FRAGO, 1995, p. 68-69), expressos nos saberes por ela oferecidos, compreendidos pelo currículo. Ao buscar entender o porquê dos saberes, Foucault (1990) explica sua existência e suas transformações como dispositivos de relações de poder, diferente do poder exercido pelo Estado. Embora articulado com o aparelho de Estado, é um poder não absorvido por este. Foucault (2001) identifica este tipo também de poder disciplinar. O poder disciplinar (...) organiza-se assim como um poder múltiplo, automático e anônimo; pois se é verdade que a vigilância repousa sobre indivíduos, seu funcionamento é de uma rede relações de alto a baixo, mas também até um certo ponto de baixo para cima e lateralmente; essa rede 'sustenta' o conjunto, e o perpassa de efeitos de poder que se apóiam uns sobre os outros: fiscais perpetuamente fiscalizados. O poder na vigilância hierarquizada das disciplinas não se detém como uma coisa, não se transfere como uma propriedade; funciona como uma máquina. E se é verdade que sua organização piramidal lhe dá um 'chefe', é o aparelho inteiro que produz 'poder' e distribui os indivíduos nesse campo permanente e contínuo. (FOUCAULT, 2001, p.158). O poder disciplinar que caracteriza a estrutura e o funcionamento de instituições, de modo particular, a escola, constitui-se por dispositivos como o olhar hierárquico, a sanção normalizadora2 e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame3. Foucault (2001) esclarece que a disciplina distribui os indivíduos no espaço, estabelece mecanismos de 2 "Em suma, a arte de punir, no regime do poder disciplinar, não visa nem à expiação, nem mesmo exatamente à repressão. Põe em funcionamento cinco operações bem distintas: relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto, que é ao mesmo tempo campo de comparação, espaço de diferenciação e princípio de uma regra a seguir. Diferenciar os indivíduos em relação uns aos outros e em função dessa regra de conjunto - que se deve fazer funcionar como base mínima, como média a respeitar ou como o ótimo de que se deve chegar perto. Medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valor as capacidades, o nível, a 'natureza' dos indivíduos. Fazer funcionar, através dessa medida 'valorizadora', a coação de uma conformidade a realizar. Enfim traçar o limite que definirá a diferença em relação a todas as diferenças, a fronteira externa do anormal. A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeneiza, exclui. Em uma palavra, normaliza" (FOUCAULT, 2001, p.163) 3 "O exame está no centro dos processos que constituem o indivíduo como efeito e objeto de poder, como efeito e objeto de saber. É ele que, combinando vigilância hierárquica e sanção normalizadora, realiza as grandes funções disciplinares de repartição e classificação, de extração máxima das forças e do tempo, de acumulação genética contínua, de composição ótima das aptidões. Portanto, de fabricação da individualidade celular, orgânica, genética e combinatória" (Idem, p.171). 6535 controle da atividade, programa a evolução dos processos e articula coletivamente as atividades individuais, utilizando tais recursos coercitivos. As tentativas de reformas que sucederam ao longo da história (Revolução Francesa de 1789, Revolução Comunista de 1917, as inúmeras reformas políticas do pós-guerra, Revolução Cultural de 1968) não foram suficientes para que se evitasse que as instituições sociais reproduzissem os mesmos mecanismos que desejavam superar. Persistem na recomposição de relações hierárquicas e disciplinares, no jogo de forças que se estabelecem entre seus muros (e também além deles), na busca constante da formação de indivíduos dóceis e produtivos. (FLEURI, 1996). E nesse quadro situa-se a escola, cujo ambiente se caracteriza por uma correlação de forças inseridas em determinado contexto que favorece a hierarquização e sujeição nas relações da instituição, disciplinar em sua essência. A escola, assim, define espaços, subdivide e recompõe atividades, capitaliza o tempo e as energias dos indivíduos pela disciplina, de maneira que sejam susceptíveis de utilização e controle. Articula os indivíduos que se movimentam e se articulam com os outros, ajusta a série cronológica de uns ao tempo dos outros, de modo a aproveitar combinar ao máximo as forças individuais. Esta combinação prevê um sistema preciso de comando, baseado em sinais definidos, que venham a provocar de imediato o comportamento desejado. (FLEURI, 1996). A distribuição dos indivíduos no espaço, mediante a cerca, o quadriculamento, a fila, forma um "quadro" real e ideal que permite identificar, classificar e controlar os indivíduos. O quadro é, assim, um processo de saber porque permite classificar e verificar relações. E uma técnica de poder, porque permite controlar um conjunto de indivíduos. O controle das atividades é feito mediante o horário, que induz os indivíduos a se dedicar e a cumprir fielmente o que foi predeterminado. Além, disso, para obter maior eficácia e rapidez, a disciplina impõe uma relação entre um gesto e a atitude global do corpo, assim como entre o gesto e o objeto. Tal eficiência aumenta na medida em que tal "manobra" respeita e incorpora as exigências e o comportamento natural do corpo. (FLEURI, 1996, p.7). Destaque-se também que as disciplina se manifesta como o mecanismo nuclear para que a veiculação de saberes escolares possa se dar a contento. Ela estritamente se vincula ao estudo, sendo para tanto necessária. Foucault (1995; 2001) ao mesmo tempo em traz historicamente a disciplina como integrante de mecanismos de normatização social e escolar, adverte para seu aspecto positivo na medida em que na escola, por exemplo, ela produz sujeitos. Diferenciando as relações de poder de relações de violência, o autor nos diz que a 6536 segunda “age sobre um corpo, sobre as coisas; ela força, ela submete, ela quebra, ela destrói; ela fecha todas as possibilidades” (FOUCAULT, 1995, p. 243), enquanto que Uma relação de poder, ao contrário, se articula sobre dois elementos que lhe são indispensáveis (...): que o ‘outro’ (aquele sobre o qual ela se exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como o sujeito de ação; e que se abra, diante da relação de poder, todo o campo de respostas, reações, efeitos, intervenções possíveis. (FOUCAULT, 1995, p. 243). As relações de poder que se desenrolam na escola, às vezes são inconscientes e subliminares, sob a forma de poder simbólico (BOURDIEU, 1989), outras vezes explícitas, (WEBER, 1971, 2002, 2004). Nesse contexto, algumas circunstâncias designam a dominação de uns sobre outros, o que pressupõe a probabilidade de que um mandado seja obedecido (WEBER, 2004). Assim, o poder pode ser compreendido como “(...) a possibilidade de que um homem, ou um grupo de homens, realize sua vontade própria numa ação comunitária, até mesmo contra a resistência de outros que participam da ação”. (WEBER, 2002, p. 211). Mas, se Weber (2002) chamou atenção principalmente para os aspetos visíveis do poder, Bourdieu (1989), nos alerta para o seu caráter micro e invisível, digamos, a olho nu. Ele está e se dá nas relações e de diferentes modos. Prata (2005) vai nos dizer que o poder funciona em cadeia, em rede e, não localizado em nenhum local definido, circula juntamente com os indivíduos, “sendo que qualquer um pode estar em posição de ser submetido ao poder, mas também de exercê-lo”. (p. 109). Assim, na organização escolar o poder é quase mágico, pois dissimula a força que o fundamenta, é um “poder invisível que só pode se exercer com a cumplicidade daqueles que não querem saber que a ele se submetem ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU e PASSERON, 1982, p.31). Impõe-se como legítimo por ser simbólico (BOURDIEU, 1989), e só se incute se for reconhecido. Talvez esteja aí a dificuldade expressa no atual contexto escolar, uma vez que a escola da contemporaneidade é, sobremaneira, atravessada por questionamentos quanto a sua imagem social, de tal modo que os profissionais que ali trabalham, principalmente os professores e diretores, acabam acometidos, por exemplo, de uma espécie de falta aguda de credibilidade profissional. Nesse sentido, até que ponto ela é reconhecida socialmente por seus agentes? Ao contrário da força declarada e revelada, que age por uma eficácia mecânica, todo poder verdadeiro age enquanto poder simbólico. A ordem torna-se eficiente porque aqueles 6537 que a executam, com a colaboração objetiva de sua consciência ou de suas disposições previamente organizadas e preparadas para tal, a reconhecem e crêem nela, prestando-lhe obediência. (BOURDIEU e PASSERON, 1982). Na escola, há uma cadeia hierárquica, onde todos têm um ponto de origem da exigência além de si próprio, e se exerce um poder aparentemente impessoal característico da burocracia (WEBER, 2002). Ele está apoiado em normas regimentais e em ordens vindas dos órgãos administrativos do sistema de ensino, que se fundamentam nas leis, decretos e resoluções, consubstanciados sobremaneira no Regimento Escolar e nas práticas distantes do Projeto Político Pedagógico. Em seu interior, acordos são feitos de modo que as regras estabelecidas não sejam abaladas. Além disso, todos estão mobilizados em um processo educativo, em uma prática de poder simbólico, inevitável, reconhecido como necessário e exercido com a cumplicidade de todos. Até surgirem incompatibilidades e divergências entre os atores, onde então se desvenda o poder que, ao invés de existir simbolicamente, torna-se manifesto, explícito e revelado. As greves, eleições para diretores, as reuniões ideológicas sobre metodologias e concepções pedagógicas, a relação conflituosa entre professor e aluno marcada pela indisciplina, são exemplos do poder simbólico desvelado, que cede lugar ao embate sendo transformado em relações de poder antagônicas e tumultuadas. Todavia essas relações nem sempre são como relações de poder tal o embricamento dos diferentes sujeitos no processo de aparente normalidade no qual a escola acha-se submersa. Poderíamos recuperar aqui, o que Heller (1989) chamou de rotinização. Poder e Saberes Características da escola atual, principalmente a pública, com dificuldades expressadas por relações que se manifestam, desde a agressão física entre alunos e destes em professores. Podem ser considerados modos de enfrentamento em meios aos quais se acham implícitas as tentativas de mostrar quem tem poder. No caso das agressões a professores por alunos, tratase de tentativas de inversão de poder, ainda que de modo espúrio. Por outro lado, comportamentos sobremaneira adversos por parte dos alunos podem revelar que as formas tradicionais de exercício de poder, que se traduzem em saberes/conhecimentos ensinados na escola não estão sendo eficientes. Isso nos leva a problematizar que saberes outros seriam esses que põem em xeque aqueles que têm sido a 6538 razão da escola? Eles se apresentam de um ponto de vista negativo. São efeitos de outros saberes que encontram ressonância nos alunos, com os quais, em grande medida, parecem identificar-se mais. Eis uma questão que merece ser investigada com vagar. Em contrapartida poderíamos falar em necessidade de revisão de formas de exercício de poder pela escola, pelos professores, a fim de poderem lidar com aqueles saberes de modo a poder entendê-los para interpretá-los em relação às suas causas e consequente significado para os alunos. Este é um aspecto. Outro estaria nos modos de lidar com saberes tradicionalmente veiculados pela escola por meio das diferentes disciplinas. Seria importante que professores, enfim, educadores, discutissem modos de responsabilizar os alunos no processo de apreensão de saberes ante o desafio de significá-los desde o que eles já sabem. Provavelmente, neste aspecto, precisemos recuperar a compreensão de que as relações que os alunos e professores travam entre si são sumamente mediadas por saberes, conhecimentos. Estes põem os sujeitos em permanente interação entre eles e estes com os saberes. Por ser ele prático, social, deve assim ser traduzido para os alunos. Especificamente esta idéia, trazemos de Lefebvre (1995), para quem o conhecimento humano é social, prático e histórico. Nessa perspectiva o poder tende a ser ressignificado entre alunos e professores, na medida em que os saberes podem adquirir outros sentidos, entre eles, os de suas relações com a vida dos sujeitos, em particular dos alunos. Tomamos de Lefebvre (1995) o caráter histórico do conhecimento para refletirmos sobre as devidas possibilidades de tratamento que ele requer. Consideramos então, que a historicidade não está apenas na validade e/ou temporalidade do conhecimento, mas também nos modos pelos quais os processos interativos são desenvolvidos nas relações que estabelecemos enquanto sujeitos que conhecem, com os mesmos. Se, nos processos conservadores de relação com o conhecimento cabia a memorização exclusivamente, as lições mecânicas a serem transcritas do quadro, as respostas a perguntas simples demais contidas nos livros, nos processos interativos, contemporâneos, elas não cabem mais. Os efeitos positivos dos saberes vêm dos desafios com significado postos para os alunos. Aqui cabe o desafio do exercício da relação, da comparação, da interpretação e por que não da descrição? Nos meandros dessas relações cujos saberes que ali circulam seguem trajetórias sinuosas e por vezes até desorganizadas, num processo de disputa de diversas dimensões, importa pensar em seus efeitos que são sobremaneira decorrentes dos significados para os alunos dos saberes a serem aprendidos. 6539 Com efeito, não é possível descurar que, marcado por um amplo e complexo conjunto de prescrições e, por assim dizer de exigências de realizações, o currículo com o caráter de processo e dinamismo voltado para âmbitos de diversos campos de saberes, apresenta objetivamente implicações as mais variadas: a impossibilidade de a escola atender a essas muitas frentes. Ela termina por não dar conta, por exemplo, do caráter multicultural de nossa sociedade contemporânea. E talvez seja esse um de seus maiores limites. Assim, torna-se imperioso tomar a cultura em suas múltiplas facetas para torná-la um eixo central do processo da dinâmica curricular e assim poder conferir uma orientação multicultural às práticas educativas que se desenvolvem na escola. Existe neste aspecto possibilidades de sintonia com as dificuldades de relacionamento explícitas no cotidiano escolar. Mas há uma exigência: a de significar o significado de multicultura. Certamente a compreensão multicultural possa auxiliar sobre as incertezas e indagações dos profissionais que labutam no interior da escola, tais como: como lidar com essa pessoa tão estranha, que apresenta tantos problemas, que tem hábitos e costumes tão diferente? Como adaptá-la às normas, condutas e valores vigentes? Como ensinar-lhe os conteúdos que se encontram nos livros didáticos? Como prepará-la para os estudos posteriores? Como integrar a sua experiência de vida de modo coerente com a função específica da escola? São questionamentos que refletem visões de cultura, escola, ensino e aprendizagem e dificuldades existentes num ambiente invadido por diferentes grupos sócio/culturais, por vezes ausentes desse espaço. (MOREIRA e CANDAU, 2003). Geertz (1989) nos lega um conceito de cultura que se torna fundamental para uma leitura sobre diversidade cultural ou multiculturalismo, se assim quisermos entender, justamente porque o traduz como uma teia de significados no qual o homem acha-se envolto. A idéia de significados é própria a diferentes grupos sociais pela natureza subjetiva que comporta a diferentes práticas, representações, modos simbólicos sob ou a partir dos quais diferentes grupos sociais e/ou sujeitos estabelecem convívios sociais. No processo de convivência direta ou indireta os significados dimensionam sentidos explicativos às suas existências. Assim, os significados também são múltiplos, daí o sentido de teia. Um emaranhado de realizações que, por se situarem fundamentalmente a partir de um nível subjetivo ultrapassam a própria aparência simbólica das práticas, manifestações exteriores de uma interioridade que precisa ser dada a conhecer a outrem. 6540 Desse modo, o entendimento de teia de significados torna-se, ao mesmo tempo, princípio fundamental à compreensão da diversidade cultural em decorrência da multiplicidade de elementos que lhe são constitutivos. Avançando um pouco mais, podemos sintetizar características históricas da organização escolar, segundo nos apontam Moreira e Candau (2003), O que caracteriza o universo escolar é a relação entre as culturas, relação essa atravessada por tensões e conflitos. Isso se acentua quando as culturas crítica, acadêmica, social e institucional, profundamente articuladas, tornam-se hegemônicas e tendem a ser absolutizadas em detrimento da cultura experiencial, que, por sua vez, possui profundas raízes socioculturais. Em vez de preservar uma tradição monocultural, a escola está sendo chamada a lidar com a pluralidade de culturas, reconhecer os diferentes sujeitos socioculturais, presentes em seu contexto, abrir espaços para a manifestação e valorização das diferenças. É essa, a nosso ver, a questão hoje posta. A escola sempre teve dificuldade em lidar com a pluralidade e a diferença. Tende a silenciá-las e neutralizá-las. Sente-se mais confortável com a homogeneização e a padronização. No entanto, abrir espaços para a diversidade, a diferença, e para o cruzamento de culturas constitui o grande desafio que está chamada a enfrentar. (MOREIRA e CANDAU, 2003, p. 161). Tampouco responde às contradições e às demandas provocadas pelos processos de globalização econômica e de mundialização da cultura (ORTIZ, 1994), responsáveis pelo fortalecimento da idéia de que não há separação do mundo em ricos e pobres, civilizados e selvagens, incluídos e excluídos. (MOREIRA e CANDAU, 2003). Neste sentido também importa dizer sobre qual multicultura a escola toma como referência. Aquela resultante tanto dos processos migratórios internos que lhe acorrem, migrações entre regiões, ou aquela decorrente também dos efeitos da instalação de diferentes etnias de origem européia, por exemplo? Ou mesmo aquela decorrente desse processo global de interculturalidade intensa? Entendemos que todos esses aspectos, e mais aqueles relacionados aos possuidores de necessidades especiais ou aos homossexuais, também. Com efeito, como assinalamos, faz parte da tradição escolar lidar com sujeitos no entendimento de características pretensamente homogêneas e que, por assim dizer, tais características têm feito parte sobremaneira da cultura escolar. Então urge introduzir novos e outros elementos nessa cultura. Para Julia (2001), a cultura escolar se constitui num (...) conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos: normas e práticas coordenadas a finalidades 6541 que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização). Normas e práticas não podem ser analisadas sem levar em conta o corpo profissional dos agentes que são chamados a obedecer a essas ordens e, portanto, a utilizar dispositivos pedagógicos encarregados de facilitar sua aplicação, a saber, os professores primários e os demais professores (p.10-11). Considerando com Julia (2001) que existem normas a ensinar e condutas a inculcar, havemos que encontrar novos e diferentes meios de inculcação de saberes, para que precisemos, talvez, elaborar, criar novas práticas próprias deste tempo e trazermos assim, outros elementos à cultura escolar, próprios desta contemporaneidade. Desta forma, a escola, organização que traz historicamente em seu bojo um conjunto de valores identitários representativos também da relação de forças, de relações de poder, de relações subjetivas, enfim, requer uma nova forma de pensar-se enquanto instituição social. Por isso, ainda considerando o entendimento de Julia (2001), que se faz necessário olharmos as relações internas da escola para que possamos captar as tensões, os conflitos, as resistências e os apoios. Captando as resistências e os esforços desenvolvidos que tentam dissociar essas relações estaremos, conforme nos diz Foucault (1995), compreendendo em que consistem as relações de poder. Considerações Finais As reflexões aqui esboçadas se deram em decorrência de discussões que têm sido feitas no interior de um grupo de estudos, bem como da experiência educativa exercida no interior da escola, destacadamente da escola pública. Relações de poder, como vimos, estão presentes em qualquer grupo social. Na escola não poderia ser diferente, entendida ela tanto quanto um grande grupo, como na dimensão das relações que se estabelecem entre professores e alunos nas salas de aulas, em particular. Sabemos que na escola as relações de poder acompanham nessa tradição, a questão do saber. Possui poder, quem detém o saber. O saber do conhecimento, o saber da autoridade que se legitima na instituição escolar, legalmente organizada para veicular saberes legítimos. O que significa falar sobre verdades cientificamente referendadas, sobre as quais a escola possui autoridade para distribuir, repassar. Mas, na atualidade, os saberes que até bem pouco tempo só eram veiculados na escola, também estão em outros lugares e podem ser acessados. Há também as inúmeras possibilidades sócio-culturais que os alunos podem ter acesso, advindas dos grupos de 6542 convívio, da mídia, da produção – para aqueles que desde cedo precisam inserir-se no mundo do trabalho, enfim. Essas possibilidades sócio-culturais trazem para os alunos uma gama de experiências, as quais não podem ser descuradas no interior da escola pelos educadores/professores. Razão pela qual as tradicionais formas de relações de poder devem ser revistas. Neste caso não se trata de retirar o poder dos educadores, mas reconhecer que o poder nas relações educativas democráticas adquire significado diferente daquele concentrado em poucos indivíduos. REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: DIFEL, 1989. ________________; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução - elementos para uma teoria do sistema de ensino. 2. ed. Trad. 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